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Proc. nº 249/95 ACÓRDÃO Nº 116/96
1ª Secção
Rel: Cons. Ribeiro Mendes
(Cons. Vitor Nunes de Almeida)
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A, detido no Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira, requereu a providência de habeas corpus, ao abrigo do disposto nos arts. 31º da Constituição e 215º, 217º e 222º e seguintes do Código de Processo Penal, invocando encontrar-se privado de liberdade em regime de prisão preventiva desde
18 de Março de 1991, ou seja, há mais de quatro anos. A providência foi apresentada em 27 de Março de 1995 no Supremo Tribunal de Justiça. No respectivo requerimento, o arguido preso descreveu as vicissitudes do processo penal em que foi acusado da prática dos crimes de violação e de rapto de menor, alegando ter sido condenado na pena de dez anos de prisão, em cúmulo jurídico, por acórdão do Tribunal de Círculo de Santo Tirso proferido em 10 de Março de 1992, decisão essa confirmada depois pelo Supremo Tribunal de Justiça. Inconformado com este
último acórdão, o ora requerente dele interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, o qual veio a ser julgado procedente. O Supremo Tribunal de Justiça reformou o seu anterior acórdão em 15 de Dezembro de 1994, mas o ora requerente, de novo inconformado por lhe ter sido mantida a pena em que fora condenado em 1992, interpôs segundo recurso para o Tribunal Constitucional, o qual foi admitido por despacho de 27 de Janeiro de 1995. Esse recurso achava-se, assim, pendente na data em que veio requerer a referida providência de habeas corpus.
Ainda de harmonia com o mesmo requerimento, o requerente alegou que viera requerer, ao abrigo dos arts, 191º, 192º, 193º, 202º, 204º, 212º, 213º, 215º e
217º do Código de Processo Penal a revogação da medida de coacção prisão preventiva e a restituição à liberdade, atendendo a que o acórdão condenatório do Supremo Tribunal de Justiça tinha a sua eficácia suspensa por força do efeito com que o segundo recurso de constitucionalidade fora admitido. Sobre esse pedido de libertação fora proferido despacho de indeferimento, com fundamento no entendimento da jurisprudência unânime do Supremo Tribunal de Justiça de que, uma vez proferido um acórdão condenatório por este Tribunal, em via de recurso, os arguidos presos passam a estar em cumprimento de pena, ainda que dessa decisão venha a ser interposto recurso de constitucionalidade. O arguido ainda requerera diversas providências destinadas, em conformidade com esse entendimento, a ser-lhe liquidada a pena para efeitos, nomeadamente, de concessão de liberdade condicional, mas as mesmas haviam sido indeferidas, atendendo a que os autos haviam sido remetidos ao Tribunal Constitucional. Nesse requerimento, o arguido considerou que as normas sobre prisão preventiva, tal como interpretadas na decisão do Supremo Tribunal de Justiça por ele referida, estavam afectadas de inconstitucionalidade (arts. 61º e seguintes).
Através da informação do Conselheiro relator, nos termos do art. 223º do Código de Processo Penal, foi afirmado que a situação de prisão do arguido era inteiramente legal (a fls. 20 a 22 dos autos).
Através de acórdão proferido em 11 de Abril de 1995, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu o pedido de habeas corpus, considerando que os recursos interpostos para o Tribunal Constitucional não têm a natureza de recursos ordinários, nem respeitam directamente à decisão que ordenou e manteve a prisão, sendo restritos à matéria de constitucionalidade. Daí que, após a prolação do acórdão condenatório pelo Supremo Tribunal de Justiça, os arguidos deixassem de estar em situação de prisão preventiva, passando a estar em situação equiparada a cumprimento de pena:
' Por isso, é que tem sido mantido neste Supremo Tribunal que as decisões do Tribunal Constitucional não se traduzem numa declaração de nulidade do acórdão recorrido. Limitam-se, eventualmente, a dizer que se aplicou uma norma inconstitucional e que o acórdão recorrido tem de ser reformulado em conformidade com o juízo sobre a inconstitucionalidade formulado pelo Tribunal Constitucional.
Daí que, enquanto o acórdão recorrido não for reformulado, se mantenha em vigor o decidido até que este Supremo Tribunal volte a emitir nova decisão que poderá até vir a concluir da mesma forma, embora com exclusão da norma declarada inconstitucional.
Não vemos assim razões para alterar aquela jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal e também entendemos que, uma vez interposto recurso para o Tribunal Constitucional, o arguido deixa de se encontrar em prisão preventiva e passa a estar em situação análoga à de cumprimento de pena.
Como tal, nada impede, contrariamente àquilo que refere o requerente, em consequência do indeferimento do seu requerimento de fls 510º e seguintes, do processo 42916, da 3ª Secção, que os arguidos nessa situação de cumprimento de pena possam requerer a medida de liberdade condicional ou outras de que possam beneficiar os arguidos presos, em normal cumprimento de pena' (a fls. 27 vº - 28 dos autos).
Notificado deste acórdão, veio o requerente interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do art. 70º, nº 1, alínea b), da respectiva lei orgânica, com o fundamento de que violam várias fontes normativas, antes de mais a Constituição, nomeadamente os seus artigos
28º, nº 4, 30º, nº 1, 31º e 32º, nºs. 1 e 2, arts. 5º e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e 9º e 10º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, e arts. 7º a 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem 'os artigos 214º nº 1 alínea e), 215º nº 1 alínea d) e nº 4 e 217º todos do Código de Processo Penal, na interpretação perfilhada pelo Supremo Tribunal de Justiça, isto é, no sentido de que não se encontra em prisão preventiva mas sim em situação análoga ao cumprimento de pena o arguido cuja condenação foi confirmada por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e dele foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, deixando assim de se encontrar em prisão preventiva e passando a estar em situação análoga à de cumprimento de pena, não podendo assim o arguido beneficiar da libertação imediata por estarem excedidos os prazos de duração máxima de tal medida' ( a fls. 34 e vº).
O recurso de constitucionalidade foi admitido por despacho de fls. 37.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Chegou a haver um despacho a julgar deserto o recurso por falta de alegações, mas o mesmo veio a ser declarado sem efeito, por não ter sido expedida sob registo a notificação do despacho a fixar prazo para alegações.
O recorrente apresentou depois alegações, formulando quarenta e cinco conclusões e pedindo o provimento do recurso.
O Ministério Público, na contra-alegação, preconizou o não conhecimento do objecto do recurso, com a seguinte argumentação:
'Ora, pensamos que o recorrente se não terá apercebido da estrutura argumentativa seguida pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça - considerando, desde o inicio e inequivocamente, que a situação do arguido se não pode qualificar como de prisão preventiva - não estando o mesmo, consequentemente, após a prolação da decisão condenatória pelo Supremo Tribunal de Justiça sujeito a qualquer «medida de coacção», já que se encontraria em situação análoga à de cumprimento de pena.
Ou seja: o Supremo Tribunal de Justiça não aplicou - nem podia logicamente ter aplicado - as normas apontadas como inconstitucionais, já que entendeu claramente inexistir, no caso dos autos, um pressuposto essencial, verdadeira
«conditio sine qua non», da aplicação das mesmas: a qualificação do arguido como estando, na hipótese em apreciação, sujeito à medida de coacção de prisão preventiva.
Na realidade, ao não ter qualificado ou subsumido a situação do arguido ao conceito legal de 'prisão preventiva', o Supremo Tribunal de Justiça teria naturalmente de considerar precludidas e ultrapassadas as questões suscitadas pelo [recorrente], maxime a do excesso daquela prisão, por ultrapassagem dos prazos previstos no artigo 215º do Código de Processo Penal.
Em rigor, o que o Supremo Tribunal de Justiça terá feito foi recusar a aplicação ao caso dos autos das normas invocadas pelo recorrente - não, obviamente, por as considerar 'inconstitucionais', mas por qualificar a situação do arguido como 'análoga' ou «equivalente» à de cumprimento ou execução da pena.
Dito por outras palavras, o que o acórdão recorrido, na nossa perspectiva, fez foi definir um conceito processual penal de «cumprimento de pena», fundando-o na posição do Supremo Tribunal de Justiça perante o Tribunal Constitucional e na natureza e objecto do recurso de constitucionalidade e sua incidência sobre a decisão anteriormente proferida por aquele Supremo Tribunal.
Tal implica, a nosso ver, a clara inadmissibilidade do presente recurso de constitucionalidade, já que:
- por um lado, o Supremo Tribunal de Justiça não aplicou nenhuma das normas processuais penais invocadas pelo recorrente e por ele indicadas como objecto do recurso;
- bem pelo contrário, o Supremo Tribunal de Justiça recusou a aplicação ao caso dos autos de tais normas, por entender que se não verificava em concreto um pressuposto essencial à aplicabilidade das mesmas: a qualificação da situação do arguido como sofrendo a medida de coacção de prisão preventiva.' (a fls. 74-75)
Ouvido sobre esta questão prévia, o recorrente veio sustentar a sua improcedência, invocando, além do mais, que só existem, à face do ordenamento jurídico-penal português, duas situações: a de prisão preventiva e a situação de cumprimento de pena em virtude de sentença judicial condenatória com trânsito em julgado, sendo inaceitável a denominada 'situação análoga ao cumprimento de pena' (a fls. 81), sendo certo que o mesmo recorrente tinha suscitado claramente a inconstitucionalidade de certos preceitos da lei processual penal, quando entendidos do mesmo modo como o haviam sido em diferentes decisões do Supremo Tribunal de Justiça, e este Supremo havia indeferido a providência de habeas corpus sem apreciar as questões de constitucionalidade por aquele suscitadas e aplicando tais normas com esse entendimento inconstitucional, legitimando, assim, o requerente a interpor recurso dessa decisão para o Tribunal Constitucional.
3. Foram corridos vistos quanto a esta questão prévia.
O primitivo relator apresentou memorando em que preconizava o não conhecimento do objecto do recurso, mas a sua posição não obteve vencimento, tendo havido mudança de relator.
Cumpre, assim, apreciar a questão prévia suscitada.
II
4. O ora recorrente delimitou o objecto do recurso no requerimento de interposição do mesmo, indicando as normas que teriam sido interpretadas de forma inconstitucional no acórdão recorrido. São as seguintes normas:
- Artigo 214º do Código de Processo Penal (de 1987), subordinado à epígrafe
'Extinção das medidas':
'1. As medidas de coacção extinguem-se de imediato:
[...]
e) Com o trânsito em julgado da sentença condenatória. [...]'
- Artigo 215º do mesmo diploma, subordinado à epígrafe 'Prazos de duração máxima da prisão preventiva':
'1. A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido:
[...]
d) Dois anos sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.
2. [...]
3. [...]
4. Os prazos referidos nas alíneas c) e d) do nº 1, bem como os correspondentemente referidos nos nºs. 2 e 3, são acrescentados de seis meses se tiver havido recurso para o Tribunal Constitucional ou se o processo tiver sido suspenso para julgamento em outro tribunal de questão prejudicial.'
- Artigo 217º ainda do mesmo diploma, subordinado à epígrafe 'Libertação do arguido sujeito a prisão preventiva':
'1. O arguido sujeito a prisão preventiva é posto em liberdade logo que a medida se extinguir, salvo se a prisão dever manter-se por outro processo.
2. Se a libertação tiver lugar por se terem esgotado os prazos de duração máxima da prisão preventiva, o juiz pode sujeitar o arguido a alguma ou algumas das medidas previstas nos artigos 197º a 200º, inclusive'.
O arguido considerou que essas normas foram aplicadas pelo Supremo Tribunal de Justiça, na interpretação perfilhada no acórdão, 'no sentido de que não se encontra em prisão preventiva mas sim em situação análoga ao cumprimento de pena o arguido cuja condenação foi confirmada por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e dele foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional.
5. Antes de apreciar a questão prévia suscitada pelo Ministério Público importa referir que o segundo recurso interposto pelo ora recorrente - recurso do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que operou a reforma do seu anterior acórdão, decorrente da prolação do acórdão nº 507/94 do Tribunal Constitucional (publicado no Diário da República, II Série, nº 285, de 12 de Dezembro de 1994) - já não se encontra pendente, por ter transitado em julgado o acórdão nº 361/95 que se absteve de tomar conhecimento do mesmo. Por tal circunstância, transitou em julgado o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Dezembro de 1994, a fls. 501 e seguintes dos autos de processo crime (acha-se junta aos presentes autos certidão desse acórdão nº 361/95, proferido por esta 2ª Secção, sendo essa matéria de conhecimento oficioso do Tribunal Constitucional).
6. Terá razão o Ministério Público quando sustenta que o Tribunal Constitucional não deve conhecer do presente recurso pela circunstância de o Supremo Tribunal de Justiça não ter aplicado as normas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente?
Responde-se negativamente a tal questão.
O recorrente procurou descobrir na lei processual penal a norma que foi aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça e encontrou-a através de uma conjugação de segmentos diversos de diferentes normas: no fundo, sustenta que aquele Alto Tribunal entendeu que a interposição do recurso de constitucionalidade não impedia um limitado efeito (embora precário) de caso julgado, em termos de fazer cessar a situação de prisão preventiva em que se encontrava o recorrente, o qual, após a condenação confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça, passaria a estar numa situação análoga ou equiparada à de recluso em cumprimento de pena.
Nesta situação concreta, o Supremo Tribunal de Justiça parece ter interpretado extensivamente o disposto no art. 214º, nº 1, alínea e), considerando que se havia extinguido a medida de coacção prisão preventiva por força de um trânsito em julgado da sentença condenatória, entendida esta última expressão como significando a impossibilidade de interposição de recurso ordinário do próprio acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.
De facto, e como se pode ler no acórdão recorrido, a interposição de um recurso para o Tribunal Constitucional de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça é um acto que não tem a ver com um recurso ordinário interposto na ordem dos tribunais judiciais: a competência do Tribunal Constitucional é uma competência especializada, restrita às questões jurídico-constitucionais, sucedendo que a eventual procedência do recurso de constitucionalidade não acarreta que o próprio Tribunal Constitucional se substitua ao tribunal recorrido no conhecimento da acção penal, limitando-se antes o Supremo Tribunal de Justiça a reformular o seu acórdão (que não é declarado nulo) em conformidade com o juízo sobre a inconstitucionalidade formulado por aquele Tribunal.
Como é óbvio, não importa discutir agora a bondade deste entendimento do Supremo Tribunal de Justiça. Ele parece, claramente, comportar a ideia de um trânsito em julgado sujeito a condição resolutiva, traduzindo, assim, um certo entendimento do art. 214º, nº 1, alínea e), do Código de Processo Penal, delimitado negativamente por outras normas do mesmo diploma que, segundo sustenta o recorrente, integram o objecto do recurso.
Face à dificuldade experimentada pelo recorrente, sentiu-se ele na necessidade de afirmar repetidamente que só existiam, face ao ordenamento processual penal, 'duas situações: a prisão preventiva e a situação de cumprimento da pena em virtude de sentença judicial condenatória com trânsito em julgado, e não a denominada «situação análoga ao cumprimento de pena»' (a fls
81 dos autos, resposta do recorrente à questão prévia).
O recorrente suscitou, no requerimento da providência de habeas corpus, a questão dilemática de que ou havia prisão preventiva ou havia cumprimento de pena, distinguindo-se as duas figuras pelo momento temporal considerado (antes ou depois do trânsito em julgado). Tertium non datur, sob pena de inconstitucionalidade. O Supremo Tribunal de Justiça aplicou norma legal ou de criação jurisprudencial que admitiu esse tertium. Logo, o recorrente pode interpor um recurso de constitucionalidade (cfr. artigos
22º a 25º da resposta do recorrente, a fls. 82 vº e 83º).
É indubitável que o recorrente suscitou a inconstitucionalidade, assim, da norma efectivamente aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
7. Deve, pois, desatender-se a questão prévia suscitada.
Constitui objecto do recurso a norma efectivamente aplicada pela decisão recorrida, ou seja, a norma do art. 214º, nº
1, alínea e), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que ocorre o trânsito em julgado, embora sujeito a condição resolutiva, logo que é proferida decisão condenatória pelo Supremo Tribunal de Justiça, ao conhecer do mérito do recurso interposto de acórdão do tribunal colectivo ou de júri, quando dessa decisão haja sido interposto recurso para o Tribunal Constitucional, admitido com efeito suspensivo.
Essa norma foi impugnada no processo pelo recorrente, motivo por que se verificam os pressupostos do presente recurso de constitucionalidade.
8. Como atrás se referiu, o Tribunal Constitucional tem conhecimento oficioso de que transitou, entretanto, em julgado o acórdão condenatório do Supremo Tribunal de Justiça, como acima se referiu.
Importa, por isso, averiguar se ainda se reveste de utilidade o conhecimento do objecto do recurso, visto que, após esse trânsito em julgado, é juridicamente indiscutível que o ora recorrente passou a estar preso em cumprimento de pena, podendo mesmo beneficiar do regime de liberdade condicional, nos termos legais.
De harmonia com a jurisprudência deste Tribunal Constitucional, continua a revestir-se de interesse o conhecimento do objecto do recurso.
De facto, ainda que a partir do trânsito em julgado do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que manteve a condenação do ora recorrente, ao reformular o seu anterior acórdão por imperativo de uma decisão do Tribunal Constitucional (acórdão nº 507/94), haja, sem qualquer margem de dúvida, cessado a controvertida situação de prisão até então mantida, seja ela uma situação de prisão preventiva ou de situação análoga à de cumprimento de pena, para passar a ocorrer uma situação de cumprimento de pena, não pode deixar de configurar-se, em abstracto, o interesse do recorrente - no caso de proceder o presente recurso - em demandar o Estado em acção de responsabilidade civil para obter o ressarcimento dos danos causados por uma situação de prisão ilegal, nos termos dos arts. 27º, nº 5, da Constituição e
225º do Código de Processo Penal. A circunstância de o tempo de prisão preventiva ilegal ser descontado no tempo de prisão em cumprimento de pena não
é, só por si, determinante para o Tribunal Constitucional poder afirmar que não existe qualquer prejuízo relevante que possa ser ressarcido em eventual acção de indemnização a intentar pelo recorrente. Trata-se de questão que é da competência de outros tribunais e que comportará, com toda a probabilidade, a apreciação de prova respeitante à alegação de prejuízo.
De facto, e como se demonstrou no acórdão nº
90/84 deste Tribunal (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4º volume, págs.
267 e seguintes) - acórdão tirado no domínio da lei da extradição de 1975 e antes de ter sido publicado o Código de Processo Penal de 1987 e, portanto, antes de vigorar o disposto nos arts. 225º e 226º deste último - torna-se necessário que não transite em julgado um acto judicativo (despacho, sentença ou acórdão) que considere legal a prisão do ora recorrente, mesmo proferido em providência de habeas corpus, pois não se vê como poderia 'vir a ser ulteriormente «desautorizado» por outro tribunal (porventura até de diferente espécie, ou pertencente a uma diversa ordem de jurisdição, ou inclusivamente da mesma espécie, mas de grau inferior) mesmo só para limitados efeitos' (ob. cit., pág. 282). É perfeitamente transponível para o caso sub judicio o entendimento manifestado nesse aresto de que, se deixasse de ser apreciada no recurso de constitucionalidade a decisão do tribunal criminal, que, por isso, se consolidaria, transitando em julgado, ficaria 'definitivamente decidido - e decidido mesmo no tocante a um eventual efeito de carácter indemnizatório - que a prisão do recorrente [...] não violou a Constituição. E com isso ficará [...] impedid[o], sem mais, de exercer - agora ou no futuro - o eventual direito à indemnização que entenda caber-lhe por força do disposto no artigo 27º, nº 5, da lei fundamental. O que significa - em resumo - que o conhecimento do presente recurso da questão da inconstitucionalidade que ele tem por objecto representa, na verdade, pressuposto indispensável para o exercício desse direito' (ibidem, págs. 282-283; vejam-se ainda os acórdãos nºs 102/84, no mesmo volume dos Acórdãos, págs. 293 e seguintes, 339/87, in Acórdãos, 10º volume, págs. 599 e seguintes e 137/92, inédito).
No caso de vir a ser julgada inconstitucional a norma aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça na providência de habeas corpus, com a interpretação aí perfilhada, a procedência do recurso de constitucionalidade deverá, em princípio, implicar a reformulação do anterior acórdão, acolhendo-se a solução da ilegalidade da prisão em que foi mantido o recorrente após o decurso dos prazos de prisão preventiva contemplados no art.
215º do Código de Processo Penal e abrindo-se a via à acção indemnizatória regulada nos arts. 225º e 226º do mesmo diploma.
III
9. Nestes termos e pelas razões expostas. decide o Tribunal Constitucional desatender a questão prévia de não conhecimento do recurso suscitada pelo Ministério Público nas suas alegações, julgar que se mantém o interesse do recorrente no conhecimento do objecto do recurso e ordenar a prossecução dos autos.
Lisboa,6 de Fevereiro de 1996
Ass) Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma
Maria da Assunção Esteves
Vitor Nunes de Almeida (vencido, conforme declaração de voto que junto) DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Entendi que o Tribunal não deveria ter decidido a manutenção do interesse no conhecimento do recurso e a prossecução dos autos pelas razões que expus em memorando e que agora retomo.
2. Em minha opinião, a questão prévia suscitada pelo Ministério Público mereceria deferimento.
Nas contra-alegações do respectivo representante neste Tribunal, sustentou-se que o Supremo Tribunal de Justiça não aplicara as normas apontadas como inconstitucionais por ter considerado que a situação em que se encontrava o arguido não se enquadrava na categoria típica das situações qualificáveis como implicando a sujeição do arguido à medida de coação de prisão preventiva. Daí, que aquele Tribunal não tivesse aplicado, mas sim desaplicado, as normas invocadas pelo recorrente. Por sua vez, a recusa de aplicação não se fundara na inconstitucionalidade das normas, antes na sua inaplicabilidade, dado não ocorrer no caso a factis specie correspondente à estatuição.
Este aspecto da questão é para mim decisivo, pela projecção que lhe cabe no domínio dos pressupostos dos recursos de inconstitucionalidade interpostos ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Exige-se nestes recursos que a questão de constitucionalidade seja suscitada «durante o processo» precisamente para que o tribunal recorrido profira decisão, mesmo que implícita, sobre a conformidade à Lei Fundamental de norma que venha a aplicar na decisão a proferir, com vista a que desta forma se obtenha uma pronúncia sobre a constitucionalidade susceptível de ser reapreciada em recurso.
No caso, na perspectiva do Ministério Público, o Supremo Tribunal não teve de emitir pronúncia sobre a constitucionalidade porque não aplicou as normas identificadas pelo recorrente. Noutro entendimento, que para o recorrente será mais favorável mas não ao ponto de excluir a pertinência das razões que fundamentariam o não conhecimento do recurso, terá aplicado o artigo
214º, nº 1, alínea e), do Código de Processo Penal não, porém, com a interpretação ou com o sentido que o recorrente refere como violador da Constituição. E determinante é aqui não a formulação literal do preceito mas a norma que dele foi extraída.
A decisão recorrida parte do pressuposto de que o arguido, no momento em que é proferido o acórdão, já se não encontra na situação de arguido sujeito a prisão preventiva, mas antes em situação análoga à de cumprimento da pena. Ora, tal pressuposto (admitida aqui a sua correcção constitucional, pois o questionamento deste aspecto é matéria relativa ao mérito do recurso de constitucionalidade que não está, neste momento, em causa), afasta decisivamente a aplicabilidade dos preceitos com a interpretação que lhes foi imputada pelo arguido recorrente como fundamento da inconstitucionalidade.
3. Igualmente no memorando por mim apresentado referi, para o caso de não proceder o ponto de vista acabado de expor, o meu entendimento de que o recurso se tornara supervenientemente inútil. Com efeito, destinando-se o habeas corpus a obviar a uma situação de prisão ilegal, facto é que, na pendência do recurso, o arguido, fora de qualquer dúvida, passou a estar em situação de cumprimento de pena. Tal situação resultou do trânsito em julgado do acórdão nº 361/95, deste Tribunal, que não tomou conhecimento do recurso interposto da decisão do Supremo Tribunal de Justiça que reformulara a sua anterior decisão condenatória.
No presente acórdão o Tribunal Constitucional entende que subsiste o interesse do recorrente porque mantem a anterior jurisprudência sobre a subsistência do interesse do recorrente em demandar o Estado em acção de responsabilidade civil para obter o ressarcimento dos danos causados por uma situação de prisão ilegal, nos termos dos artigos 27º, nº 5, da Constituição, e
225º do Código de Processo Penal.
Neste ponto, continuo a defender entendimento contrário pelas razões que deixei expostas em declaração de vencido constante do Acórdão nº 137/92 e que no essencial se reconduzem à circunstância de a decisão a proferir no presente processo não produzir efeito de caso julgado na acção de indemnização susceptível de ser movida contra o Estado.
Por estas razões, não acompanhei a decisão do tribunal relativamente às questões prévias suscitadas nos autos.
Vitor Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa (vencido nor termos da declaração de voto apresentada pelo Ex.mº Conselheiro Vitor Nunes de Almeida)
José Manuel Cardoso da Costa