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Processo nº 539/94
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A Directora do Museu Nacional de Machado de Castro, de Coimbra, veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão da
1ª Secção - 1ª Subsecção (Contencioso Administrativo) do Supremo Tribunal Administrativo, de 27 de Julho de 1994, que, revogando a sentença do Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra, intimou 'a entidade requerida (a ora recorrente) a pôr no prazo de 10 dias ao dispor do recorrente (o ora recorrido A) certidão de onde constem as fichas de notação dos demais funcionários, relativas ao ano de 1993, que ele poderá levantar paga que esteja a importância eventualmente devida'.
Na base do julgado está a seguinte consideração essencial:
'Só matérias que digam respeito à intimidade da vida privada ou familiar são de considerar 'confidênciais' para o efeito de retirar ao interessado o direito a obter a certidão pedida'.
2. Nas suas alegações concluiu assim a recorrente:
'1ª As normas contidas no art. 28º do Decreto Regulamentar 44-B/83 de 1 de Junho são constitucionais; e
2ª Deste modo, o acórdão recorrido ao desaplicar as referidas normas por entender, implicitamente, que são inconstitucionais, deverá ser reformado em conformidade com declaração de constitucionalidade das citadas normas e estas deverão ser aplicadas com esta interpretação; Pelo que,
3ª Vªs. Exªs. deverão dar provimento ao recurso, com todas as legais consequências, designadamente as descritas no art. 80º, nº 3 da Lei 28/82 de 15 de Novembro'.
3. Também apresentou alegações o ora recorrido A, sustentando que deverá ser 'o presente recurso liminarmente indeferido ou, caso assim não se entenda, a norma contida no art. 28º do Dec. Reg. 44-B/83 deverá ser julgada tacitamente revogada ou materialmente in
constitucional, com todas as legais consequências, como é de Justiça.'
4. Ouvida a recorrente sobre a questão preliminar suscitada pelo recorrido, veio dizer que ela 'não merece provimento'.
5. Vistos os autos, cumpre decidir.
Começando naturalmente pela dita questão preliminar suscitada pelo ora recorrido, facilmente se alcança que ela não pode ser atendida.
O que se pretende com tal questão é sustentar que o acórdão recorrido 'não recusou a aplicação da norma contida no art. 28º do Dec. Reg. 44-B/83, de 01-6, com fundamento em inconstitucionalidade, antes considerou essa norma tacitamente revogada por normas hierarquicamente superiores e com valor reforçado, ou seja, pelas normas contidas nos arts. 268º da C.R.P., 82º nºs 1 in fine e 3 da L.P.T.A. e 61º a 65º e 166º do C.P.A.' (exactamente por isso o recurso de constitucionalidade interposto pela Directora do Museu não foi inicialmente admitido e só por via de reclamação por ela apresentada e dirigida ao Presidente do Tribunal Constitucional, acabou o recurso por ser admitido por acórdão do mesmo Supremo Tribunal Administrativo,
de 3 de Novembro de 1994, proferido no âmbito do disposto no artigo 688º, nº 3, do Código de Processo Civil, por se considerar que 'não fez o despacho reclamado correcta aplicação do disposto no art. 70º, nº 1, al. a) da Lei nº
28/82').
Ora, decorre do que fica dito, a propósito da tal reclamação, que se considerou, e bem, ter havido no acórdão recorrido um juízo de desaplicação da citada norma do artigo 28º do Decreto Regulamentar nº
44-B/83, de 1 de Junho.
Como claramente se escreveu naquele acórdão de 3 de Novembro de 1994, que seguiu à risca e correctamente o disposto na lei processual civil:
'E partiu (o acórdão recorrido) para esta conclusão, não da análise do texto da mencionada norma e do âmbito que o legislador terá pretendido atribuir à expressão 'carácter confidencial', mas de considerações heterónomas, ou seja, do juízo de inconstitucionalidade repetidamente emitido pelo Tribunal Constitucional sobre a norma semelhante do art. 9º, nº 4 do Dec.-Lei nº 498/88 de 30 de Dezembro atinente aos concursos na selecção de pessoal na função pública e da afirmação produzida pelo mesmo Tribunal segundo a qual a confidencialidade só protege o que diz respeito à intimidade da vida privada e familiar conforme o comando do art. 26º, nº 1 da Lei Fundamental.
E, como esses elementos não constam, normalmente, dos arquivos administrativos, nada impede que tais dados sejam fornecidos a quem mostrar ter interesse legítimo no seu conhecimento (art. 268º nºs 1 e 2 da CRP).
Deste modo, ao restringir ao domínio da intimidade da vida privada ou familiar o círculo das hipóteses abrangidas pelo conceito de 'carácter confidencial' - contrariando, não só o sentido que imediatamente emerge do texto da lei que não contem tal restrição, mas principalmente o fim inequivocamente visado pelo legislador que pretendeu alcançar, em princípio, todas as matérias relativas ao processo de classificação - procedeu, substancialmente, o acórdão sob recurso não a uma interpretação constitucionalizante da norma, uma à sua desaplicação no segmento em apreço.
Tratando-se, no fundo, de um acto abrogante de lei, ele ultrapassou claramente os limites da actividade interpretativa.'
Nada mais há para dizer, restando concluir que se verificam no caso todos os pressupostos do presente recurso de constitucionalidade, abrigado na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro (recurso, aliás, obrigatório para o Ministério Público, nos termos do nº 3 do artigo 72º, da mesma Lei nº 28/82, mas que no caso não chegou a ser interposto).
6. Passando agora ao mérito da causa, é bom de ver que o seu objecto reside na questão da inconstitucionalidade daquela norma do artigo
28º do Decreto Regulamentar nº 44-B/83, mais concretamente do seu nº 3, limitando a passagem de 'certidões da ficha de notação, mediante pedido do notado'.
Prescreve esse artigo:
'1. O processo de classificação tem carácter confidêncial, devendo as fichas de notação ser arquivadas no respectivo processo individual.
2. Todos os intervenientes no processo de classificação ficam obrigados ao dever de sigilo sobre esta matéria.
3. O disposto nos números anteriores não impede que em qualquer fase do processo sejam passadas certidões da ficha de notação, mediante pedido do notado, formulado por escrita ao dirigente com competência para homologar.'.
Este Tribunal Constitucional já ponderou a questão da inconstitucionalidade de uma norma similar àquela do nº 3 - a do nº 4 do artigo
9º do Decreto-Lei nº 498/88, de 30 de Dezembro, em matéria de recrutamento e selecção de pessoal para os quadros da Administração Pública - e concluiu ser ela inconstitucional, por violação do nº 1, em conjugação com o nº 2, ambos do artigo 268º da Constituição, por ser restritiva para os interessados quanto ao
'acesso, em caso de recurso, à parte das actas em que se definem os factores e critérios de apreciação aplicáveis a todos os candidatos e, bem assim, àquela em que são directamente apreciados' (acórdão nº 177/92, publicado no Diário da República, II Série, nº 216, de 18 de Setembro de 1992).
Lê-se nesse acórdão:
'In casu', não se pode duvidar da valia do bem jurídico imaterial - que é recebido na Constituição - que é o da privacidade ou reserva da vida privada e familiar, não se extraindo do artigo 26º da Lei Básica que esse direito pessoal fundamental seja por ela, directa ou autorizadamente através de lei, restringido.
De outra banda, considerando que a Constituição autoriza limitações ao direito ao 'arquivo aberto', ou menores desenvolvimentos quanto ao seu exercício, precisamente porque ressalva o que se prescreverá na lei quanto ao disposto em matérias relativas à segurança interna e externa, à investigação criminal e à intimidade das pessoas, isso poderia constituir desde logo um tópico no sentido de, na colisão deste direito com o direito pessoal fundamental de reserva e intimidade da vida privada e familiar, a relação de prevalência pender para este
último, assim se achando a via de solução para a questão de que nos ocupamos.
Todavia, a uma tal solução se não pode chegar com tanta linearidade.
Na verdade, se se pesar que o conhecimento de elementos curriculares e pessoais de outro (ou outros) candidato(s), elementos esses constantes das actas, pode ser o factor primordial para que o candidato requerente do exame das actas pondere se vai ou não impugnar o concurso em que ele e o(s) outro(s) foram intervenientes, então poder-se-á ser chegado a concluir que esse conhecimento é um pressuposto prévio de facto sobre o exercício da garantia de recurso que, como já foi assinalado por este Tribunal (cfr., entre outros, os Acórdãos números 39/88 e 90/88, publicados no 'Diário da República', 1ª Série, de 3 de Março de 1988 e 13 de Maio de 1988), é um desenvolvimento do direito de acesso aos tribunais'.
Lê-se também no Acórdão nº 80/95 (publicado no Diário da República, II Série, nº 136, de 14 de Junho de 1995, a propósito de normas do Estatuto dos Militares das Forças Armadas e do Regulamento de Avaliação do Mérito dos Militares do Exército, de que resulta que os dados relativos à avaliação individual do mérito dos militares (mais precisamente: dos militares do Exército) são confidenciais):
'Pois bem: não se vê que a defesa do direito à intimidade das pessoas, as necessidades da segurança interna ou externa ou as da investigação criminal reclamem (e, assim, possam justificar) a confidencialidade da avaliação individual do mérito dos militares, em termos de a ela apenas poder aceder o militar avaliado (com ressalva, evidentemente, da publicação, que sempre se fará, do resultado dos concursos, cursos, provas, tirocínios, estágios ou de outros elementos susceptíveis de serem do conhecimento geral)
Uma restrição com essa extensão é, pois, desnecessária para a protecção daquele direito e dos referidos interesses. E, para além disso, privando os interessados (excepção feita do próprio militar avaliado) da possibilidade de obterem certidões que se mostrem necessárias à instrução dos recursos que, acaso, pretendam interpor, acaba por atingir o núcleo essencial do mencionado direito à informação'.
Tal discurso vale para o caso em que os interessados na obtenção de certidões pretendam utilizar meios administrativos (como é a hipótese sub judicio, em que o ora recorrido
anunciava pretender usar a reclamação prevista no processo de classificação e a que se refere o artigo 32º do mesmo diploma regulamentar), relevando aqui, no essencial, os mesmos argumentos utilizados naqueles acórdãos nºs 177/92 e
80/95 (assim como os fundamentos dos acórdãos nºs 156/92 e 176/92, tendo eles culminado com a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, daquela norma do nº 4 do artigo 9º do Decreto-Lei nº 448/88, constante do acórdão nº 394/93, publicado no Diário da República, I Série, nº 229, de 29 de Setembro de 1993). E, em correspondência com esse entendimento, dispõe hoje o nº 2 do artigo 62º, do Código do Procedimento Administrativo, em matéria do direito à informação, que o 'direito de consultar o processo' e de 'obter certidões ou reproduções autenticadas dos documentos que o integram' abrange
'os documentos nominativos relativos a terceiros, desde que excluídos os dados pessoais que não sejam públicos, nos termos legais'.
Saliente-se, por último, que do Regulamento da classificação de serviço na função pública constante do citado Decreto Regulamentar nº 44-B/83 se alcançam como finalidades a 'avaliação profissional do funcionário ou agente' e a sua 'valorização individual e melhoria da eficácia profissional' (artigo 3º, a) e b)), o que não se inscreve na reserva da intimidade da vida privada e familiar dos funcionários classificados.
Ponto é que tais certidões sejam necessárias à utilização desses meios administrativos, o que desde logo exige estar-se perante um acto administrativo que possa afectar os interessados e contra o qual eles projectem usar a correspondente impugnação. E mais: que as certidões que os interessados queiram obter sejam também adequadas, isto é, respeitem a dados pertinentes ou que se revelem úteis à tal eventual impugnação (é o caso, por exemplo, de dados relativos ao mesmo quadro de pessoal de certa categoria - cfr. o artigo 6º do mesmo decreto regulamentar, prevendo diferentes modelos das fichas de notação).
Portanto, e em suma, não merece total censura o julgado quanto à questão da inconstitucionalidade da referida norma do artigo 28º, no tocante à confidencialidade do processo de classificação e no ponto da passagem de certidões das fichas de notação de outros funcionários, além do notado. Todavia, esse julgado tem de ser parcialmente reformulado, de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade e nos termos que acabam de ser expostos, na medida em que ele envolve a passagem de uma certidão ao dispor do ora recorrido 'das fichas de notação dos demais funcionários, relativas ao ano de 1993', isto é, de todos os funcionários do Museu Nacional de Machado de Castro, de Coimbra.
7. Termos em que se DECIDE:
a) Julgar inconstitucional, por violação do nº 1, em conjugação com o nº 2, ambos do artigo 268º da Constituição, a norma constante do nº 3 do artigo 28º do Decreto Regulamentar nº 44-B/83, de 1 de Junho, enquanto veda aos interessados (com a excepção do funcionário notado) a obtenção de certidões das fichas de notação necessárias à instrução de recursos e meios administrativos que eles pretendam interpor; e
b) Conceder, em consequência, parcial provimento ao recurso, devendo o acórdão recorrido ser reformulado de acordo com o presente juizo de inconstitucionalidade.
Lisboa,23.1.96 Guilherme da Fonseca Bravo Serra Messias Bento Fernando Alves Correia José de Sousa e Brito Luis Nunes de Almeida