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Processo nº 882/93 ACÓRDÃO Nº 35/96
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- A, com sede em Leiria, requereu, ao abrigo dos artigos 76º e seguintes da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos
(LPTA-Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho) a suspensão de eficácia da deliberação da Câmara Municipal de Leiria, de 14 de Agosto de 1992, que ordenou o embargo de obra que está a efectuar nessa cidade.
O Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra, por decisão de 3 de Novembro de 1992, indeferiu o pedido, o que levou a interessada a recorrer para o Supremo Tribunal Administrativo (STA).
De acordo com o artigo 76º citado, a suspensão de eficácia é concedida quando se verifiquem os requisitos nele previstos: a) a execução do acto cause provavelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso; b) a suspensão não determine grave lesão do interesse público; c) do processo não resultem fortes indícios da ilegalidade da interposição do recurso [cfr. artigo 76º, nº 1, alíneas a), b) e c)].
A recorrente desde logo alegou não só no sentido de se acharem verificados os requisitos enunciados no preceito, como, também, dever entender-se que ao requisito negativo da alínea b) foi dada na sentença recorrida uma interpretação inconstitucional, por violação do direito à tutela jurisdicional efectiva, consagrado nos artigos 20º e 268º, nºs. 4 e 5, da Constituição da República (CR).
O STA, por acórdão de 11 de Março de 1993, da 1ª Subsecção da 1ª Secção, negou provimento ao recurso após ter afastado, por inexistente, o alegado vício de inconstitucionalidade.
Então, recorreu a interessada para o Tribunal Pleno com a alegação de oposição de julgados - com o acórdão da 1ª Secção, de 12 de Junho de 1991, proferido no processo nº 29 441 e transitado em julgado.
Nas alegações oportunamente apresentadas, para além de deduzir nulidades que pretende ver declaradas, nos termos do artigo 668º, nº
1, alínea b), do Código de Processo Civil (CPC), convoca-se a interpretação em seu entender inconstitucional dada à norma do artigo 76º, nº 1, alínea b), da LPTA, agora reportada à decisão constante do acórdão recorrido.
O Pleno da 1ª Secção, no entanto, por acórdão de 26 de Outubro de 1993, não deu como verificadas nos acórdãos em confronto soluções opostas sobre o mesmo fundamento de direito, nos termos impostos pelo artigo
24º, alínea b), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
(ETAF-Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril) e, desse modo, julgou findo o recurso, nos termos do artigo 767º, nº 1, do CPC.
Inconformada, recorreu A, então, para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, dos acórdãos da Secção e do Pleno, com base nos artigos 660º, 668º e 684º do CPC, 70º, nº 2, da Lei nº 28/82, com a interpretação dada pelo segundo desses acórdãos, e 76º, nº 1, da LPTA, por alegada violação do direito de defesa e do direito à tutela jurisdicional efectiva - CR, artigos 20º e 268º, nº 4.
Encarando o problema da tempestividade da suscitação das questões de inconstitucionalidade logo adianta que, relativamente ao artigo 76º, nº 1, da LPTA, já equacionara o problema nas alegações do recurso jurisdicional e nas de recurso de oposição de julgados, só o fazendo agora no tocante aos demais preceitos em virtude de apenas terem sido aplicados 'no acórdão ora recorrido' (presume-se que se refere ao do Pleno).
2.- Foi o recurso admitido - a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo - pelo Conselheiro Relator, tendo, no Tribunal Constitucional, alegado recorrente e recorrido.
A primeira, concluiu as suas alegações a final, do seguinte modo:
'1ª- Com a autonomização, na segunda Revisão Constitucional de
1989, de um preceito especificamente dedicado a garantir o acesso à justiça administrativa, não apenas para o 'reconhecimento' - como se dispunha no texto anterior -, mas também para a tutela de direitos ou interesses legalmente protegidos (art. 268º/5 CRP), a Constituição superou decididamente o quadro originário do recurso de anulação dos actos administrativos, consagrando um verdadeiro direito à tutela jurisdicional efectiva, pelo que:
a) abriu caminho a acções de tutela positiva dos direitos dos administrados perante a Administração;
b) reconheceu o particular como legítimo titular de um posição subjectiva de vantagem em ordem à satisfação ou conservação de um bem jurídico, digna da atribuição dos correspondentes poderes processuais para a sua efectiva realização;
2ª- A elevação do princípio da tutela jurisdicional efectiva a direito fundamental, nos termos dos artºs. 20º e 268º/4 e 5 da Constituição, implica a concretização do seu conteúdo perceptivo mínimo ao nível da Constituição, traduzido nos seguintes vectores:
a) primeiro, a garantia de uma tutela jurisdicional administrativa sem lacunas, consubstanciada no princípio de que a qualquer ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos e a qualquer ilegalidade da Administração Pública deve corresponder uma forma de garantia jurisdicional adequada;
b) segundo, a garantia da existência de meios necessários com vista à sua plena exequibilidade e operatividade, no sentido de que o direito à tutela jurisdicional efectiva se tem de traduzir obrigatoriamente na plena eficácia da decisão jurisdicional na esfera jurídica do particular;
c) terceiro, e em consequência, a paralisação do privilégio da execução prévia inerente à actividade administrativa, no caso da sua violação ou da possibilidade de preclusão da sua tutela eficaz, em obediência ao comando constitucional contido no artº 266º/1 CRP;
3ª- A Constituição da República Portuguesa consagra o direito fundamental à suspensão da eficácia dos actos administrativos de que se haja interposto ou de que se pretenda interpor recurso contencioso de anulação, sendo reconduzível ao núcleo fundamental do direito dos administrados à tutela jurisdicional efectiva, pelo que é de afastar o entendimento segundo o qual a suspensão da eficácia é uma providência de carácter excepcional;
4ª- A presunção de legalidade dos actos administrativos nunca pode funcionar como meio ou critério de prova, ainda que sumária, no quadro do incidente da suspensão da eficácia, sob pena de se violar o núcleo fundamental do direito à tutela jurisdicional efectiva, vertido nos arts. 20º e 268º/4 e 5 da Constituição;
5ª- O nº 1 do artº. 76º da L.P.T.A. está ferido de inconstitucionalidade, porquanto:
a) é, desde logo, redundante, no sentido de que a suspensão da eficácia de um determinado acto administrativo lesa sempre o interesse público, tal como é configurado por uma Administração executiva, como é a nossa, pelo que se constitui, afinal, em cláusula de exclusão ilícita do funcionamento desse meio jurisdicional, denegando, em consequência, o direito à tutela jurisdicional efectiva, previsto nos artºs. 20º e 268º/4 e 5;
b) apela a valoração judicial da gravidade da lesão do interesse público contrária à ideia material de Direito prosseguida pela Administração, no sentido de que recorta a actividade por esta desenvolvida numa feição contrária aos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares, violando, pois, o preceituado no artº 266º/1 da Constituição;
6ª- O artº 76º/1 da L.P.T.A. está ferido de inconstitucionalidade material, por restringir desproporcionada e desnecessariamente o direito à tutela jurisdicional efectiva, afectando o conteúdo essencial deste, em clara violação do artº 18º/2 e 3 da Constituição.
7ª- A 1ª parte do nº 2 do artº 660º do C.P.C., ao permitir ao juiz o desconhecimento de questões alegadas pelas partes, viola o direito dos particulares à tutela jurisdicional efectiva, previsto nos artºs. 20º e 268º/4 e
5 da Constituição, derrogando o princípio constitucional da plenitude da garantia jurisdicional administrativa, pelo que deve ser julgado materialmente inconstitucional;
8ª- O artº. 668º/3 contraria a regra fundamental do nosso ordenamento jurídico do duplo grau de jurisdição, criando situações discriminatórias entre os recorrentes, pelo que deve ser julgado inconstitucional por violação dos artºs. 13º e 20º da Constituição.
Neste termos
Deve ser julgado inconstitucional o artº 76º/1 da L.P.T.A., com todas as consequências legais.
Devem ainda ser julgados inconstitucionais os artºs.
660º/2 e 668º/3 do C.P.C., com as inerentes consequências legais'.
Por seu turno, a recorrida, concordando, embora, com os princípios jurídicos espraiados nas alegações da recorrente e, em tese geral, com o alegado em matéria de tutela jurisdicional efectiva e suspensão de eficácia dos actos administrativos, já, no entanto, manifesta o seu desacordo quanto às inconstitucionalidades invocadas, de acordo com a tese professada pelo STA nos próprios autos
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II
1.1- Importa, num primeiro momento, delimitar o objecto do presente recurso de constitucionalidade.
Com efeito, se a recorrente, no seu requerimento de interposição do recurso e como já se registou, começou por fundamentar a sua atitude na 'violação do direito de defesa e do direito à tutela jurisdicional efectiva' provocada pelas normas dos artigos 660º, 668º e
684º do CPC, 70º, nº 2, da Lei nº 28/82, com a interpretação dada no acórdão de
26 de Outubro de 1993 - ou seja, no acórdão do Pleno - e 76º, nº 1, da LPTA, já nas alegações apresentadas subsequentemente restringiu o objecto inicial do recurso, circunscrevendo-o às normas dos artigos 660º e 668º da CPC e do artigo
76º, nº 1, da LPTA.
Assim sendo, e tendo presente o disposto no artigo 684º, nº 3, do CPC, segundo o qual pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, nas conclusões da alegação, o objecto inicial do recurso, preceito aplicável por força do artigo 69º da Lei nº 28/82,
é com este último limite que deve ser entendido o objecto do recurso. E, nessa conformidade, mais se considera a referência à norma do artigo 660º como limitada à primeira parte do nº 2, e a do artigo 668º como circunscrita ao seu nº 3.
1.2- A recorrente começou por suscitar problemas de constitucionalidade nas alegações do seu recurso jurisdicional para o STA, face ao decidido no Tribunal Administrativo de Círculo: logo então argumentou ser a alínea b) do nº 1 do artigo 76º da LPTA, na interpretação que lhe foi dada na decisão recorrida, inconstitucional por violação do direito à tutela jurisdicional efectiva, consagrado nos artigos 20º e 268º, nºs 4 e 5, da CR.
No entanto, relativamente às normas citadas do Código de Processo Civil, tão só o fez no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, com a justificação de essas normas apenas terem sido aplicadas no acórdão do Pleno.
Resta saber se reagiu atempadamente, sendo certo que se recorre quer do acórdão de 11 de Março de 1993, da 1ª Subsecção, quer do de 26 de Outubro seguinte, do Pleno da Secção.
Considera-se que, em processo constitucional, o recurso para o Pleno, fundado em oposição de acórdãos, é um recurso ordinário para os efeitos do nº 2 do artigo 75º da Lei nº 28/82 - interposto recurso ordinário que não seja admitido com fundamento na irrecorribilidade da decisão, o prazo para recorrer para o Tribunal Constitucional conta-se do momento em que se torne definitiva a decisão que não admita o recurso.
No caso vertente, desde logo se julgou não ser cabível o recurso. Nem por isso, no entanto, se deve entender não representar o decidido quanto à inexistência de julgados a última palavra sobre a questão, pelo que só a partir da notificação do acórdão do Pleno se deve começar a contar o prazo para o recurso de constitucionalidade (cfr., inter alia, o acórdão nº 214/94, publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Julho de 1994).
Tem-se, deste modo, por tempestivamente apresentado o requerimento de interposição do recurso.
1.3- Sem embargo, coloca-se o problema da concorrência dos pressupostos exigidos para a admissibilidade deste tipo de recurso, baseado no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82: a) prévia suscitação no processo da inconstitucionalidade de norma (ou de uma certa interpretação sua); b) utilização dessa norma (ou de certa interpretação) na decisão, de modo a integrar a respectiva ratio decidendi; c) inadmissibilidade de recurso ordinário da decisão aplicativa, por a lei o não prever ou por já se haverem esgotados os que no caso cabiam.
Alguma reflexão a este respeito proporcionam os autos.
1.3.1 - Para a A, a primeira parte do nº 2 do artigo 660º do CPC - 'o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras [...] - ao permitir ao juiz 'ignorar' questões alegadas pelas partes, é inconstitucional, por violar o direito dos particulares à tutela jurisdicional efectiva, previsto nos artigos 20º e 268º, nºs 4 e 5, da CR, derrogando o princípio constitucional da plenitude da garantia jurisdicional administrativa. De igual modo, o artigo 668º, nº 3, do CPC - segundo o qual as nulidades mencionadas nas alíneas b) e e) do nº 1 só podem ser arguidas perante o Tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário - é também inconstitucional, por contrariar a 'regra fundamental do nosso ordenamento jurídico de duplo grau de jurisdição, criando situações discriminatórias entre os recorrentes'.
Pode, no entanto, argumentar-se que o acórdão do Pleno - que suscitou a questão de constitucionalidade no tocante aos preceitos do CPC - não aplicou (nem podia aplicar) qualquer dessas normas pela razão simples de que o recurso por oposição de julgados tem um específico fim de uniformização de jurisprudência e um conteúdo limitado, numa primeira fase, à verificação da eventual oposição, para, subsequentemente, mas só então, e se disso for caso, julgar o conflito. Nesta perspectiva, este tipo de recurso não se compadece, como se pondera no acórdão recorrido, 'com a arguição de nulidades, sendo evidente que, a admitir-se o suprimento dessas nulidades, bem poderia suceder a desnecessidade do recurso para o Pleno, por alteração das questões de direito pretensamente decididas em sentidos divergentes'.
Objectar-se-á, no entanto, que o acórdão, na medida em que assim se pronuncia, está a interpretar, restritivamente, o falado nº 3 do artigo 668º e, assim, a aplicá-lo implicitamente (cfr., o acórdão nº 305/94, publicado no Diário da República, II Série, de 27 de Agosto de 1994).
Seja como for, e decisivamente, a suscitação da questão de constitucionalidade quanto às indicadas normas do CPC não foi atempada, pelo que, nessa parte, não há que delas conhecer.
1.3.2. - Com efeito, constitui jurisprudência pacífica deste Tribunal o entendimento segundo o qual o recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do citado artigo 70º tem como pressuposto de admissibilidade a suscitação da inconstitucionalidade 'durante o processo', tomando-se este inciso não em sentido puramente formal - tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância - mas sim em sentido funcional, tal que essa invocação haverá de ser feita até ao momento em que o Tribunal a quo possa conhecer da questão (cfr., por todos, o acórdão nº 439/91, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de
1992).
Deste modo, porque o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença e porque a eventual aplicação de uma norma inconstitucional 'não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura nem ambígua', há-de ainda entender-se que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade (cfr., acórdão citado e os lugares nele citados), como o não é, também, o próprio requerimento da interposição do recurso de constitucionalidade.
Só assim não será em situações excepcionais ou anómalas em que os interessados não tenham disposto de oportunidade processual para equacionar a questão de inconstitucionalidade antes de ser proferida a decisão, casos em que lhes é salvaguardado o direito ao recurso correspondente (cfr., acórdão nº 94/88, no Diário da República, II Série, de 22 de Agosto de 1988, entre tantos outros).
Recai, por conseguinte, sobre as partes, o ónus de considerarem as várias possibilidades interpretativas das normas em causa, a menos que a interpretação judicial, pela sua imprevisibilidade ou natureza insólita, torne desrazoável exigir a sua prognose
(cfr., acórdão nº 479/89, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1992).
O que, adiante-se, desde já, não se verifica no concreto caso.
É certo que esta específica questão de constitucionalidade só surgiu com o segundo dos acórdãos do STA, o do Pleno da Secção - e, daí, alegar a recorrente não a ter podido suscitar mais cedo. Só que a tese acolhida pelo acórdão do Pleno insere-se na habitual jurisprudência dos nossos mais altos Tribunais (cfr., v.g., o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Novembro de 1989, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 391, págs. 406 e segs ) nada acrescentando de imprevisível ou de bizarro.
O que vale dizer não ser o requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional o momento adequado para, pela primeira vez, suscitar a questão de constitucionalidade nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 70º, nº 1., alínea b), da Lei nº 28/82, ou seja, de modo a considerar-se tal (ou tais) questão pertinentemente suscitada
'no decurso do processo', de acordo com jurisprudência estabelecida neste Tribunal relativamente à qual não se vê razão válida para nos afastarmos (cfr., entre os mais recentes, os acórdãos nºs 40/92, 58/92 e 60/92, publicado o primeiro no Diário da República, II Série, de 20 de Maio de 1992).
À recorrente competiria então, na previsão do entendimento que viria a ser adoptado pelo Pleno e de harmonia com habitual linha jurisprudencial, levantar o problema nas próprias alegações para esse Pleno.
Virá a propósito citar um acórdão deste Tribunal - o nº 305/94, publicado no Diário da República, II Série, de 27 de Agosto de 1994 - que se pronunciou exactamente sobre a interpretação de uma das normas ora em causa, a do nº 3 do artigo 668º do CPC, não lhe surpreendendo qualquer vício de inconstitucionalidade ( e imputavam-se-lhe os mesmos), em que a parte, no recurso que interpôs para o pleno do Supremo Tribunal de Justiça, arguíu de nulo o acórdão proferido pela Secção Cível desse Tribunal por, na sua
óptica, enfermar de nulidades várias ( omissão de pronúncia, falta de fundamentação e contradição entre os fundamentos e a decisão ), defendendo que cabia ao Pleno conhecer dessas nulidades ' sob pena de, perfilhando-se entendimento contrário, isso implicar uma inconstitucional interpretação de norma ínsita no nº 3 do artigo 668º do Código de Processo Civil ' - o que levou o Tribunal a conhecer do pedido, por tempestivamente suscitada a questão, se bem que, a final, não o dando como procedente.
2.- Resta, em face do exposto, a questão da constitucionalidade do artigo 76º, nº 1, da LPTA onde, pode dizer-se, a recorrente concentra a sua atenção, se bem que ora atendo-se à interpretação inicialmente dada à alínea b) desse nº 1, ora - e ultimamente - atribuindo vício de inconstitucionalidade à norma em si, 'por restringir desproporcionada e desnecessariamente o direito à tutela jurisdicional efectiva, afectando o conteúdo essencial deste, em clara violação do artigo 18º, nºs 2 e 3, da Constituição' .
2.1.- O direito à tutela jurisdicional efectiva, enquanto garantia da via jurisdicional para a tutela das situações juridicamente protegidas, está consagrado, genericamente, no artigo 20º, nº 1, da CR, sendo certo que após a revisão constitucional de 1989, a garantia de recurso contencioso, já previsto no artigo 268º, nº 4, da CR, mais se reforçou, ao estabelecer-se, com o nº 5 do preceito, a garantia dos administrados ao acesso à justiça administrativa para tutela dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos.
A pluralidade de meios de tutela constitucionalmente consagrados torna inquestionável, para Gomes Canotilho e Vital Moreira, o princípio da plenitude da garantia jurisdicional administrativa. Ao administrado, dizem este autores, é garantido, por um lado, o tradicional 'recurso de anulação' de actos administrativos ilegais, mas, além disso, é sempre admitida a protecção jurisdicional de posições subjectivas sem que se limite essa protecção à adopção de meios específicos de impugnação
(recurso contencioso) ou à existência de uma decisão da Administração (actos administrativos). Em qualquer caso, trata-se de refracções necessárias do direito geral de acesso aos tribunais para defesa de direitos e interesses legítimos (artigo 20º, nº 1)' [cfr., Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª. ed., Coimbra, 1993, pág. 937]. Nomeadamente, com o nº 5 do artigo
268º, observam, abriu-se a porta àquele princípio de plenitude, não condicionado quer à adopção de meios específicos de impugnação, quer à existência de um 'acto administrativo' (ob. cit., pág. 941/942).
Daí que se possa considerar reforçado o contencioso administrativo de procedimento cautelar, teleologicamente orientado para a efectiva tutela jurisdicional dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos. E que se venha a pôr em causa a regra do carácter não suspensivo do recurso, defendendo-se o alargamento do campo de aplicação da medida de suspensão ( cfr., v.g., Maria Fernanda Maçãs, 'A Relevância Constitucional da Suspensão Judicial da Eficácia dos Actos Administrativos', in Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Lisboa, 1993, págs.
327 e segs. ).
2.2. - Decorrerá do sumariamente exposto que a suspensão de eficácia seja vista como dotada de natureza de direito fundamental, decorrente do direito de acesso aos tribunais, consagrado, ao nível de recurso contencioso, pela articulação dos artigos 20º e 268º, nºs 4 e 5, da CR ?
A suspensão de eficácia, já se salientou neste Tribunal, é uma medida cautelar posta ao serviço do administrado que, detendo legitimidade para impugnar contenciosamente o acto administrativo que o afecte, pode provisoriamente obstar à sua imediata execução se esta lhe provocar prejuízos de difícil reparabilidade. Para o efeito, pretende-se assegurar o efectivo proveito da procedência do recurso a que tem direito, se for esse o caso, congraçando-o com a inexistência de grave lesão do interesse público e a ponderação dessa execução (cfr., inter alia, o acórdão nº
450/91, publicado no Diário da República, II Série, de 3 de Maio de 1993).
O Tribunal Constitucional, a esta luz, tem professado teses que, denotando diferenciações quanto à natureza da medida, convergem, no entanto, no que à não violação da garantia de recurso contencioso respeita.
Em acórdão recente - nº 201/95, inédito - fez-se uma síntese quanto à pontual identidade dos diversos entendimentos existentes que interessa reproduzir, subscrevendo-a:
' Esta conclusão [a que chegou o acórdão nº 8//95, por publicar, sobre a legitimidade constitucional da alínea b) do nº 1 do artigo 76º] é subscrita por quem [...] entende que a suspensão jurisdicional da eficácia dos actos administrativos não é uma garantia constitucional (cfr., o acórdão nº 187/88, publicado no Diário da República, II Série, de 5 de Setembro de 1988), nem tão pouco se configura como uma
'faculdade conatural à garantia de recurso contencioso' ou como 'pressuposto necessário' dela (cf., o acórdão nº 163/91, publicado no Diário da República, II Série, de 6 de Setembro de 1991). E é-o também por quem entende que o direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos ( recte, o direito ao recurso contencioso por impugnação de actos administrativos com fundamento em ilegalidade) pressupõe a faculdade de obter a suspensão de eficácia dos actos administrativos (cf., os [...] acórdãos nºs 450/91, 631/94 e 8/95, e bem assim os acórdãos nºs 43/92 e 366/92, publicados no Diário da República, II Série, de 23 de Fevereiro de 1993).
Quem adopta este último entendimento reconhece que a exigência (para obter o decretamento judicial da suspensão de eficácia do acto administrativo impugnado ou a impugnar) da verificação cumulativa dos requisitos enunciados no nº 1 do mencionado artigo 76º - para além de ser algo que releva ainda da liberdade de conformação do legislador - preserva o conteúdo essencial da garantia de recurso contencioso, pois que os interessados não ficam impedidos de aceder aos tribunais para defender os seus direitos e interesses legítimos, nem vêem esse acesso, injustificada ou desproporcionadamente, restringido ou dificultado'.
Estando em causa apenas a alínea b) do nº 1 do artigo 76º ou todos os requisitos enunciados nas várias alíneas do preceito, pode, na verdade, afirmar-se, em conformidade com a tese contida na passagem acabada de transcrever, não se vislumbrar, na liberdade conformatória do legislador sobre os requisitos do instituto da suspensão, uma qualquer restrição à garantia do recurso contencioso, pois, como se pondera no acórdão nº 631/94, publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Janeiro de 1995,
'o interessado não fica impedido, de modo injustificado, de obter protecção para os seus direitos e interesses legalmente protegidos'.
Acolhe-se, no caso vertente, a orientação jurisprudencial citada.
Sendo assim, não se surpreende o apontado vício de inconstitucionalidade na norma posta em crise.
III
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se o anteriormente decidido.
Lisboa, 17 de Janeiro de 1996
Ass) Alberto Tavares da Costa
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma
Maria da Assunção Esteves
Vitor Nunes de Almeida (vencido, quanto
à tempestividade do recurso, pelos fundamentos constantes do voto de vencido aposto ao Acórdão nº 714/94, publicado no 'Diário da República', II Série, nº
165, de 19 de Julho de 1994)
José Manuel Cardoso da Costa