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Proc.Nº 789/92
Sec. 1º
Rel. Cons. Vitor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. - A, veio interpor recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa das decisões proferidas nos processos nº 12, 13 e 14 de 1991, pela Repartição de Finanças de Odivelas, relativamente à aplicação da Portaria nº
381/91, de 3 de Maio, sendo o recurso interposto ao abrigo das disposições conjugadas do artigo 29º da Lei nº 31/86, de 29 de Agosto, artigo 36º, nº 2, do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro (R.A.U.) e do artigo 152º do Código de Processo Civil, sendo os seguintes os fundamentos desse recurso:
- o recorrente pretendeu aumentar a renda a todos os seus inquilinos (os ora recorridos: B, C e D), tendo-lhes comunicado a sua intenção por carta registada com aviso de recepção, de 24 de Junho de 1991;
- os inquilinos não concordaram que lhes fossem aplicados os factores da Tabela II da Portaria nº 1101-D/90, de 31 de Outubro, pelo que solicitaram a intervenção da comissão a que se refere o artigo 36º do RAU e a Portaria nº 381/91, de 3.05, que decidiu através do seu Presidente, e sem qualquer fundamentação, no sentido da aplicação de factores indicados pelos inquilinos (o factor 1,110, da Tabela III, da Portaria nº 1101-D/90);
- desta decisão foi notificado o senhorio e ora recorrente em 10 de Janeiro de 1992;
- O recorrente entende que a revogação pelo RAU do artigo 45º da Lei nº 46/85, de 10 de Outubro (que permitia actualizações anuais da renda e a sua correcção extraordinária, desde que existisse licença de construção ou de utilização) veio liberalizar tal actualização mesmo sem qualquer das referidas licenças.
Assim, dado que todas as rendas foram fixadas em 1975, entende o recorrente que o factor de actualização a aplicar deve ser o de 2,52, referido na Tabela II da Portaria nº 1101-D/90, de 31 de Outubro, pelo que pretende a revogação da decisão proferida pelo Presidente da comissão mencionada.
2. - O Tribunal da Relação de Lisboa por acórdão de 5 de Março de 1992 decidiu não tomar conhecimento do recurso uma vez que o valor do pedido - 'o valor anual das rendas pedidas pelo senhorio e isso representaria a utilidade económica imediata do pedido' - totaliza 154.227$00, valor que é inferior ao da alçada do Tribunal de comarca que é de Esc:500.000$00.
3. - o recorrente, notificado desta decisão, veio interpor recurso de agravo para o Supremo Tribunal de Justiça.
Nestas alegações, o recorrente para além de suscitar a questão da ilegalidade dos artigos 36º, nº 1 e 2 do RAU, da Portaria nº 381/91, de 3 de Maio, e do artigo 25º da Lei nº 31/86, de 29.08, por violarem o disposto no artigo 4º da Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro, suscita a questão da inconstitucionalidade das mesmas normas por violação do direito de acesso aos Tribunais, consagrado no nº 1 do artigo 20º da Constituição, tendo formulado as seguintes conclusões:
'...1ª - Na fixação do valor da acção, não devem ser tomados em consideração os artigos 32º ou 34º do Decreto-Lei nº 321-B/90, dado que estes apenas pretendem garantir que o intervalo de tempo entre um aumento da renda e o seguinte terá que ser de um ano;
2ª - A utilidade económica imediata do pedido, no momento em que os inquilinos solicitaram a intervenção da Comissão Especial que funcionou na Repartição de Finanças de Odivelas cifra-se em 7.752$00, por aplicação do disposto nos artigos 305º, 306º e 308º do C.P.C.;
...3ª - Não pode permitir-se que se tornem exequíveis decisões não judiciais, tomadas por quem não tem a mínima preparação jurídica para o efeito;
...4ª - No caso em apreço (recurso de uma decisão não judicial), o Tribunal da Relação deve, excepcionalmente,funcionar como Tribunal de 1ª instância, relativamente ao qual não há que colocar a questão da competência em razão do valor para conhecer do objecto do recurso (cf. artºs 212º, nºs 2 e 3, da C.R.P.);
5ª - O artigo 36º nºs 1 e 2 do R.A.U. a Portaria nº 381/91 de 3 de Maio e o artigo 29º da Lei nº 31/86, de 29 de Agosto, ao limitarem os recursos para o Tribunal da Relação aos casos em que o valor da causa exceder a alçada do Tribunal de comarca, restringem o conteúdo essencial da garantia de acesso aos tribunais judiciais (acesso a um grau de jurisdição), consagrado no artigo 20º nº 1, da Constituição da República Portuguesa, como tutela jurisdicional mínima;
6ª - Pelo que, o artigo 36º nºs 1 e 2, do R.A.U., a Portaria nº 381/91, de 3 de Maio e o artigo 29º da Lei nº 31/86, de 29 de Agosto, são ilegais, face ao disposto no artigo 4º da Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro e materialmente inconstitucionais, por violação do nº 1 do artigo 20º, da Constituição da República Portuguesa;
7ª - Houve, assim, por parte do douto acórdão recorrido, violação e errada aplicação da lei substantiva e da lei processual - nomeadamente dos artigos 32º e 34º do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, 305º, 306 e 308º do C.P. Civil, artigo 4º da Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro e 20º, nº 1, da C.R.P. - pelo que, com base na alínea b) do artigo 755º, do Código do Processo Civil, deve ser dado provimento ao recurso, anulando-se o aliás douto acórdão recorrido, com todas as legais consequências, como é de JUSTIÇA.'
No Supremo Tribunal de Justiça, (STJ), o relator elaborou um despacho inicial, apreciando a questão do valor da causa para efeitos do recurso da decisão da comissão para a Relação, vindo a fixar este valor em 93.024$00, ao qual se deveria atender para o efeito da admissibilidade do referido recurso. Assim, e sendo o valor da alçada da Relação em matéria cível de Esc.:2.000.000$00, foi proferido despacho no sentido do não conhecimento do recurso (v. artigo 9º da Lei nº 38/87, de 23.12).
Em 3 de Janeiro de 1992, o STJ veio a proferir um acórdão que decidiu não conhecer do recurso interposto, 'quer pelas razões do despacho do Exmo. Relator, de fls. 22 e 23, a que se adere, quer por se entender que o facto de a lei apenas permitir o recurso para o Tribunal da Relação das decisões arbitrais (artigo 2º da Lei nº 31/80), que excedam o valor da alçada do Tribunal de comarca não viola o disposto no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa que assegura a todos o acesso aos Tribunais pois o artigo
36º, nº 2 do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15.10.90 é expresso em mandar aplicar à Comissão Especial que fixou as rendas em causa, o regime previsto na legislação processual civil para o Tribunal arbitral necessário. E a existência dos tribunais arbitrais está prevista no nº 2 do artigo 211º do C.P.C.'.
É desta decisão do STJ que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade 'restrito às questões de ilegalidade e inconstitucionalidade do nº 1 do artigo 36º do RAU e da Portaria nº 381/91, de 3 de Maio, por não permitirem em nenhum caso a possibilidade de recurso a um Tribunal Judicial (um grau de jurisdição) bem como do nº 2 do artigo 36º do RAU e do artigo 29º da Lei nº 31/86, de 29 de Agosto, na medida em que negam, em casos como o dos autos, o acesso a um grau de jurisdição.
4. - Neste Tribunal apenas o recorrente apresentou alegações aí tendo formulado as seguintes conclusões:
' 1ª - O artigo 36º nr. 1 do R.A.U. cria uma comissão especial e o nr. 2 do mesmo artigo diz que a esta se aplica o regime previsto na legislação processual civil para o tribunal arbitral necessário;
2ª - O facto do referido nr. 2 do artigo 36º do R.A.U. mandar aplicar o regime do tribunal arbitral necessário, não transforma 'ipso facto' aquela comissão num tribunal deste tipo. Com efeito, o critério seguido pelo legislador em situações semelhantes tem sido o de ele mesmo classificar as comissões de tribunais arbitrais necessários em termos que não deixam dúvidas quanto à sua natureza jurídica (cf. D.L. 296/92, de 28 de Julho, D.L. 438/91, de 9 de Novembro, D.L. 348/77, de 24 de Agosto, etc.);
3ª - Contudo, o tribunal da Relação de Lisboa e o Supremo Tribunal de Justiça consideraram aquela comissão um tribunal arbitral necessário;
...4ª - A ser assim, tendo em conta que o nr. 2 do artigo 211 da C.R.P. permite a existência de tribunais arbitrais necessários e que a alínea q) do nr. 1 do artigo 168º da C.R.P. abrange esta categoria de tribunais, impõe-se concluir que a Constituição reserva para a Assembleia da República o exercício da função legislativa no que respeita à organização e competência dos tribunais arbitrais necessários, salvo se este órgão de soberania autorizar o Governo a legislar nesta matéria;
5ª - Através da Lei nr. 42/90, de 10 de Agosto, a Assembleia da República autorizou o Governo a legislar em matérias relativas ao regime geral do arrendamento rural e urbano e à criação de impostos e sistema fiscal [alíneas h) e i) do artigo 168º da C.R.P.], nada se dizendo, porém nesta Lei, relativamente
à organização dos tribunais [alínea q) do mesmo artigo];
6ª - Da simples leitura dos nrs. 1º a 10º da Portaria nr. 381/91, de 3 de Maio que deu execução ao artigo 36º nr. 1 do R.A.U., se verifica que versam matérias relativas a organização e competência dos tribunais, num grau tal que seguramente se incluem na reserva parlamentar constante do artigo 168º nr. 1 alínea q) da C.R.P.;
7ª - Do exposto nas três conclusões imediatamente precedentes, se conclui que os referidos artigos 36º nr. 1 do Decreto-Lei nr. 321-B/90, de 15 de Outubro e os nrs. 1º a 10º da Portaria nr. 381/91, de 3 de Maio, são organicamente inconstitucionais por contrariarem o disposto no artigo 168º nr. 1 alínea q) da Constituição;
...8ª - O disposto nos nrs. 1º a 3º da Portaria nr. 381/91, de 3 de Maio estão feridos de inconstitucionalidade material por ofensa ao preceituado nos artigos
2º, 20º nr. 1, 206º e 218º por remissão do 219º nr. 3, todos da C.R.P., na medida em que não garantem a segurança e a certeza jurídicas, a independência e a imparcialidade dos julgamentos e atentam gravemente contra o princípio da independência dos tribunais e dos juizes ao imporem a nomeação destes por um
órgão da Administração Pública;
9ª - Não possibilitando o recurso para o tribunal da comarca ou para qualquer outro, o artigo 36º nr. 1 do R.A.U. e os nrs. 1º a 10º da Portaria nr. 381/91, de 3 de Maio, são também ilegais face ao estatuído pelo artigo 4º da Lei nr.
38/87, de 23 de Dezembro (L.O.T.J.) e materialmente inconstitucionais por violação do nr. 1 do artigo 20º da C.R.P.;
10ª - A aplicação conjugada do nr. 2 do artigo 36º do R.A.U. e do artigo
1528º do Código do Processo Civil e do artigo 29º da Lei nr. 31/86, de 29 de Agosto, na interpretação dada a estas normas, implícita ou explicitamente, pelos já mencionados tribunais superiores, restringe o conteúdo essencial da garantia de acesso aos tribunais judiciais consagrada nos também já referidos artigos 4º da Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro e 20º nr. 1 da C.R.P. o que os torna feridos, respectivamente, de ilegalidade e inconstitucionalidade.
11ª - Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente, declarando-se, com as consequências processuais daí decorrentes:
a) As invocadas ilegalidades e inconstitucionalidades do artigo 36º nr. 1 do R.A.U. e as da Portaria nr. 381/91, de 3 de Maio;
b) As invocadas ilegalidades e inconstitucionalidades do nr. 2 do artigo 36º do R.A.U. do artigo 1528º do Código do Processo Civil e do artigo 29º da lei nr.
31/86, de 29 de Agosto, no sentido em que foram interpretados e aplicados pelas decisões recorridas.
pois só assim se fará inteira JUSTIÇA'
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTOS
5. - Importa, antes de mais, delimitar o objecto do presente recurso.
O recorrente, no seu requerimento de interposição do recurso, suscitou, a questão da 'ilegalidade' e da 'inconstitucionalidade' das normas do nº 1 do artigo 36º do RAU (Regime do Arrendamento Urbano), das normas da Portaria nº 381/91, de 3 de Maio, bem como do nº 2 do referido artigo 36º do RAU e do artigo 29º da Lei nº 31/86, de 29 de Agosto. Como fundamento do recurso invoca o facto de essas normas não permitirem, em nenhum caso [ou em casos como o dos autos] a possibilidade de recurso a um tribunal judicial (um grau de jurisdição) - fundamento esse que, em alegações, alarga a outros aspectos (de carácter orgânico).
Ora, a decisão recorrida - o acórdão do STJ de 3 de Janeiro de 1992 - ao negar provimento ao recurso, funda-se não só nas razões expendidas no despacho do relator que decidiu o valor a fixar à acção, mas também na norma do artigo 36º, nº 2 do RAU, em conjugação com o artigo 29º, da Lei nº 31/86, de 29 de Agosto, na medida em que apenas permite o recurso para a Relação das decisões arbitrais que excedam o valor da alçada do tribunal de comarca.
Todavia, há-de entender-se que a decisão recorrida, não tendo feito expressa e directamente referência à norma do nº 1 do artigo 36º do RAU, não deixou, todavia, de fazer dela uma aplicação implícita. Tal norma prevê que, havendo divergência entre o senhorio e o arrendatário quanto ao aumento da renda, este último poderá accionar uma Comissão Especial para obter a fixação definitiva do aumento, cuja criação estabelece; e determina, além disso, a forma
(portaria) pela qual se deverá fixar a composição e as regras de funcionamento de tal Comissão, aspectos que constam da Portaria nº 381/91. Ora, também esta norma fora questionada perante o Supremo pelo recorrente - como se vê pela conclusão antes transcrita da respectiva alegação; e o facto é mesmo que o Supremo não deixou, afinal, de dar resposta a esse questionamento, ao referir que a existência dos tribunais arbitrais está constitucionalmente prevista (ac. STJ,in fine).
Entretanto, estando em causa, nos autos, a possibilidade de recurso para a Relação das decisões da mencionada Comissão Especial, as
únicas normas susceptíveis de serem aplicadas na decisão recorrida seriam justamente: as dos nºs 1 e 2 do artigo 36º do RAU, que, respectivamente, criam a Comissão Especial e lhe mandam aplicar o regime previsto na legislação processual civil para o tribunal arbitral necessário, e, por força desta remissão, a norma do artigo 1527º do Código de Processo Civil, que manda aplicar, em tudo quanto não for especialmente regulado no regime do tribunal arbitral necessário, as disposições que regulam o tribunal arbitral voluntário e, na sequência desta segunda remissão, a norma do artigo 29º da Lei nº 31/86, de 29 de Agosto, que contém actualmente o regime de recursos das decisões do tribunal arbitral voluntário, e que apenas permite o recurso das decisões arbitrais nos mesmos termos em que caberia recurso de sentença proferida pelo tribunal de comarca, ou seja, em processos cujo valor for superior à alçada do tribunal de comarca.
Assim, as normas aplicadas pela decisão recorrida (para além das relativas ao valor da causa) foram a norma do nº 1 do artigo 36º do RAU, que criou a Comissão Especial e a norma complexa que apenas permite interpôr, das decisões daquela Comissão, os mesmos recursos que caberiam da sentença proferida pelo tribunal de comarca (artigo 36º, nº 2 do RAU, conjugado com os artigos 1527º do CPC e 29º da Lei nº 31/86, de 29 de Agosto), sendo estas as normas que devem constituir o objecto do presente recurso.
6. - O recorrente suscita relativamente a estas normas, não só a questão da sua inconstitucionalidade por eventual violação do artigo
20º da Constituição, mas também que as mesmas estão afectadas pelo vício de ilegalidade, por violação do artigo 4º da Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro.
Ora, em matéria de ilegalidade, a competência do Tribunal encontra-se definida no artigo 280º, nº 2, alíneas a) a d) da Constituição da República Portuguesa e no artigo 70º, nº 2, alíneas c) a f) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, alterada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro - Lei do Tribunal Constitucional - LTC.
Essa competência, em sede de fiscalização concreta de constitucionalidade em que nos situamos, restringe-se às decisões dos tribunais que recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação da lei de valor reforçado, ou recusem a aplicação de norma constante de diploma regional com fundamento na violação de Estatuto da região autónoma ou de lei geral da República, ou recusem a aplicação de norma constante de diploma emanado de um órgão de soberania com fundamento na violação do estatuto de região autónoma e finalmente que apliquem norma cuja ilegalidade tenha sido suscitada com qualquer dos fundamentos atrás alinhados.
No caso em apreço, não estando em causa normas de diploma regional nem se questionando a violação do estatuto de qualquer Região Autónoma, a ilegalidade só poderia advir de a lei considerada violada, a Lei nº
38/87, de 23 de Dezembro (Lei Orgânica dos Tribunais), ser uma lei de valor reforçado. Ora é manifesto que, tal lei, a poder ser considerada como parâmetro de legalidade das normas questionadas, não tem, relativamente a tais normas, natureza de lei de valor reforçado.
De facto, a Lei nº 38/87, designadamente quanto às normas do RAU que vêm questionadas, nem estabelece qualquer conteúdo de natureza paramétrica que deva servir de pressuposto material à sua disciplina normativa, nem nela se contém um regime que possa derrogar o RAU sem ser susceptível de ser por ele derrogado, (cfr. Gomes Canotilho, in 'Direito Constitucional', 5ª Ed., 1991, 874/5), não dispondo assim de uma posição de proeminência funcional, inexistindo também aqui qualquer subordinação de carácter especial que caracteriza as leis ordinárias reforçadas em relação às lei ordinárias comuns. (cfr. Jorge Miranda, in 'Funções, Órgãos e Actos do Estado', Lisboa 1990, pg. 286).
Assim, não sendo a Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro, designadamente em relação às normas do artigo 36º do RAU, quando conjugada com os artigos 1527º do Código de Processo Civil e 29º da Lei nº 31/86, de 29 de Agosto, uma lei de valor reforçado, não tem o Tribunal Constitucional competência para conhecer da eventual questão da ilegalidade derivada da violação daquela lei por estas normas, pelo que se não conhecerá desta questão.
7. - Vejamos, portanto, o teor das normas questionadas pelo recorrente e a que respeita o presente recurso.
Integrada na secção V, Divisão II, do Capítulo I do RAU, sobre as actualizações anuais da renda de imóveis para habitação, o artigo 36º daquele diploma - depois de nos artigos anteriores (32º a 35º) ter regulado os coeficientes e as formalidades a seguir para a actualização - estabelece a forma de recurso a uma 'Comissão Especial' (adiante, CE), nos seguinte termos:
' 1. Quando o senhorio rejeite o montante indicado, nos termos do artigo 35º, nº
3, o arrendatário pode, nos 15 dias subsequentes à recepção da comunicação de rejeição, requerer a fixação definitiva do aumento devido a uma comissão especial, cuja composição e forma de funcionamento são definidas por portaria conjunta dos Ministros das Finanças, da Justiça e das Obras Públicas, Transportes e Comunicações.
2. À comissão referida no número anterior aplica-se o regime previsto na legislação processual civil para o tribunal arbitral necessário.
3. A renda anterior mantém-se até à decisão final, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte.'
Do preceito transcrito decorre a criação de uma
«comissão especial - CE», com a finalidade exclusiva de resolver os conflitos entre os senhorios e arrendatários respeitantes à «fixação definitiva» dos aumentos de renda decorrentes das actualizações anuais legalmente previstas no RAU, comissão esta accionável pelo arrendatário que pode requerer tal fixação dentro de um prazo de 15 dias, a contar da recepção de uma comunicação do senhorio rejeitando o montante proposto e que o arrendatário considera correcto.
Decorre do nº 2 da norma em apreço que a tal comissão se tem de aplicar o regime processual civil previsto para o tribunal arbitral necessário, ou seja, de acordo com o preceituado nos artigos 1525º e seguintes do Código de Processo Civil (adiante, CPC), deve a CE em questão reger-se, em princípio, pelo que estiver determinado na lei especial que prescreve o julgamento arbitral e, não havendo regulamentação expressa, pelas normas processuais civeis sobre nomeação e substituição de árbitros - com remissão expressa para normas reguladoras da arbitragem voluntária, ao tempo constantes também do Código de Processo Civil e agora contidas em legislação própria e separada - legislação esta para a qual remete, em última análise, o artigo 1528º do CPC, a título de normação supletiva.
Assim, é a esta última legislação - a Lei nº 31/86, de
29 de Agosto, a Lei de Bases da Arbitragem Voluntária - que se torna necessário recorrer para encontrar a norma reguladora do regime de recursos, em matéria de decisões arbitrais.
Com efeito, o artigo 29º de tal Lei, estabelece que:
'1. Se as partes não tiverem renunciado aos recursos, da decisão arbitral cabem para o tribunal da relação os mesmos recursos que caberiam da sentença proferida pelo tribunal de comarca.
2. A autorização dada aos árbitros para julgarem segundo a equidade envolve a renúncia aos recursos.'
Nos termos do que se dispõe neste preceito e conjugando-o com o estabelecido no artigo 678º do CPC, é, pelo menos, admitido recurso das decisões da CE criada no âmbito do RAU para a Relação, desde que o valor atribuído à causa seja superior ao da alçada do tribunal de comarca
(actualmente, de Esc.s: 500 000$00) e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior ao de metade da referida alçada (ou havendo dúvidas fundadas quanto à sucumbência, deverá atender-se apenas ao valor da causa), podendo, também, ser admitido recurso independentemente do valor da causa, se o mesmo tiver por fundamento a competência em razão da matéria ou da hierarquia ou a ofensa de caso julgado.
No caso dos autos, a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa não admitiu o recurso interposto da decisão da CE com fundamento em que o valor da causa (que fixou em 154.224$00) era muito inferior à alçada do tribunal de comarca (Esc.s: 500 000$00) e, tendo-se recorrido desta decisão para o STJ, este tribunal, fixando embora um outro valor para a causa (Esc.s: 93
024$00), também não admitiu o recurso pelo mesmo fundamento - ser o valor da causa manifestamente inferior ao valor da alçada do tribunal de que se recorre
(no caso, Escs.: 2 000 000$00).
Face a estas decisões, coloca o recorrente a questão da conformidade constitucional da inadmissibilidade do recurso, e, embora parecendo que tal questão se centra essencialmente no problena da limitação do recurso por insuficiência do valor da causa, o certo é que ele a põe em termos mais alargados e a decisão recorrida (acórdão do STJ de 3 de Janeiro de 1992) não pode deixar de considerá-la nesses termos, como já atrás se viu.
Assim, a resolução da questão de constitucionalidade suscitada nos autos implica que se afrontem e decidam os seguintes problemas:
a) - qual a natureza do órgão criado pelo artigo 36º, nº
1 do RAU e aí designado de «comissão especial»: será um tribunal?;
b) - e, se assim dever ser considerado, tratar-se-á de um tribunal arbitral?;
c) - estabelecida a natureza do referido órgão - sem necessidade de apurar a respectiva qualificação como tribunal arbitrário voluntário ou necessário porque a norma do artigo 29º da Lei nº 31/86 questionada se aplica, no caso, independentemente dessa qualificação - importará averiguar se a norma que o criou e a norma processual que apenas admite recurso das respectivas decisões nos mesmos casos em que é admitido recurso do tribunal de comarca, é violadora de qualquer norma ou princípio constitucional.
Vejamos, pois.
8. - O Regime de Arrendamento Urbano (RAU) criado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, foi instituído ao abrigo da Lei de autorização legislativa nº42/90, de 10 de Agosto, que autorizou o Governo a alterar o regime do arrendamento urbano, cujo sentido fundamental foi o de que
'o Governo nas alterações legislativas a introduzir, se há-de ater ao direito pré-vigente, codificando-o, clarificando-o e completando-o de acordo com os ensinamentos da doutrina e da jurisprudência' (cfr. Acórdão nº 311/93, in
'Diário da República', IIª Série, de 22 de Julho de 1993).
O RAU, em matéria de actualização de rendas, veio permitir tal actualização 'apenas nos casos previstos na lei e pela forma nela regulada' (artigo 30º), considerando as rendas actualizáveis anualmente, segundo coeficientes aprovados pelo Governo ou por convenção das partes, nos casos previstos na lei (artigo 31º, nº 1 alínea a) e artigo 32º), ou em função de obras de conservação extraordinárias ou de beneficiação (artigo 38º e seguintes).
Depois de estabelecer as regras para a fixação dos coeficientes de actualização (artigo 32º), o legislador fixou, nos artigos 33º a
35º, o procedimento a respeitar para efectivar a actualização. Assim, o senhorio deve comunicar ao arrendatário, por escrito e com a antecedência mínima de 30 dias, o novo montante, o coeficiente utilizado e demais elementos relevantes para o cálculo. O arrendatário pode recusar a nova renda com base em erro nos factos relevantes ou na aplicação da lei, devendo comunicar tal recusa fundamentada ao senhorio, no prazo de 15 dias a partir da recepção da comunicação do aumento (artigo 35º), podendo também o arrendatário denunciar o contrato, se o fizer até 15 dias do termo de vigência do primeiro mês da nova renda actualizada (artigo 33º, nº 3), pagando, nesse caso ainda a renda antiga.
Se o senhorio, no prazo de 15 dias a contar da comunicação de recusa da nova renda, rejeitar o montante da renda que o arrendatário considera correcto e que deve indicar na comunicação de recusa, o artigo 36º, nº 1 do RAU prevê, então, que o arrendatário possa, nos 15 dias subsequentes à comunicação de rejeição, accionar uma Comissão Especial, requerendo a fixação definitiva do aumento devido no caso.
No mesmo preceito, o legislador determinou que a composição e a forma de funcionamento daquela «comissão especial» seria definida por portaria conjunta dos Ministros das Finanças, da Justiça e das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, enquanto que o nº 2 do preceito determina que 'à Comissão referida no número anterior aplica-se o regime previsto na legislação processual civil para o tribunal arbitral necessário'.
A portaria a que se refere o nº 1 do artigo 36º do RAU, veio a ser publicada em 3 de Maio de 1991 (Portaria nº 381/91), referindo no seu preâmbulo que o RAU 'veio criar comissões especiais, comissões de carácter excepcional cuja composição e forma de funcionamento carecem de ser definidas tendo em vista uma rápida resolução dos conflitos entre senhorios e arrendatários, no que respeita à correcta aplicação dos factores de actualização anual, quer no regime de renda livre quer no regime de renda condicionada'.
E, nos dez números da portaria, estabelece-se a respectiva composição (nº 1º), o seu funcionamento, modo de accionamento e de comunicação às partes dos respectivos actos (pontos 2º a 9º), fixando no nº 10º a forma de repartir os encargos do processo pelas partes.
Verifica-se, por isso, que, havendo desacordo entre o senhorio e o arrendatário quanto à correcta aplicação dos factores de actualização anual, se ambos mantiverem as suas posições, a única forma que o arrendatário tem de, por sua iniciativa, obter a fixação definitiva do montante do aumento, é a de recorrer à comissão especial criada pelo RAU.
É certo que a doutrina está dividida quanto a este ponto.
Com efeito, Pais de Sousa, (Anotações do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), 3ª Ed., fls.107) entende que se 'o arrendatário não formular perante a comissão especial o pedido de fixação definitiva do aumento e uma vez que o senhorio não aceitou o montante proposto pelo arrendatário, a este resta apenas - se quiser definir jurisdicialmente a divergência - efectuar o depósito liberatório a que se refere o artigo 64º, nº 1, alínea a) do RAU e ir propor uma acção declaratória para definir o montante do aumento, ou, então, tomar uma posição ainda mais arriscada e onerosa: depositar apenas a renda que considera ser devida e aguardar que o senhorio venha propor a competente acção de despejo por falta de pagamento da renda que considera como devida e aí discutir se na fixação do aumento houve erro nos factos relevantes ou na aplicação da lei, podendo até acontecer simultâneamente as duas coisas (cfr. neste sentido - citando Pais de Sousa-, M. Januário C. Gomes, 'Arrendamentos para Habitação', Coimbra, 1994, pág. 132).
Em sentido diverso, Aragão Seia (in 'Arrendamento Urbano
- Anotado e Comentado', Coimbra, 1995, pág.191) entende que, se o inquilino não recorreu à comissão especial, ficando passivo ante a comunicação da rejeição por parte do senhorio, se consideram cessadas 'as conversações impostas por lei ao senhorio e arrendatário, prevalecendo a recusa do senhorio que não foi objecto de recurso', com a inerente consequência de o inquilino ter de pagar as rendas com a actualização do proposto pelo senhorio, sob pena de este poder intentar acção de despejo - artigo 64º, nº 1, alínea a).
Entende-se, de facto, - continua esse autor - que 'se o senhorio não se pode furtar ao 'recurso' para a comissão especial a requerimento do arrendatário, também este tem de sofrer as consequências de a ele não recorrer, vendo precludir o seu direito de discordar da alteração da renda exigida', devendo entender-se a forma 'pode', usada no nº 1 do artigo 36º, do RAU como apenas significando que o arrendatário pode recorrer à Comissão Especial e não que possa dispor de qualquer outra alternativa para resolver esta questão.
Seja como fôr, o certo é que - e é quanto basta - a lei veio estabelecer um meio processual específico, consistente na possibilidade de recurso a uma Comissão Especial (meio que, no mínimo, será decerto o normalmente utilizado) para se obter uma decisão definitiva sobre a questão da actualização normal da renda, quando existam divergências entre o arrendatário e o senhorio quanto a tal aspecto do regime de arrendamento urbano.
9. - Estabelecidos os termos em que pode ocorrer a intervenção da CE e as alternativas possíveis, cumpre agora avançar para a resolução da primeira questão suscitada sobre a natureza de um órgão como a comissão especial criada pelo RAU.
Será tal comissão um verdadeiro tribunal?
Nos termos do artigo 205º da Constituição, 'os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo', competindo-lhes 'assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados' (nº 2 do artigo 205º).
A Constituição não fornece, assim, qualquer definição do
órgão «tribunal» que, em termos genéricos, pode caracterizar-se como o órgão de que é titular um único juiz ou por um colégio de juízes que, a requerimento de pessoa singular ou colectiva, através de um procedimento imparcial e independente, decide, com força obrigatória para os interessados, os factos integradores dos respectivos direitos e obrigações ou que fundamentam a acusação penal, aplicando-lhes o direito pertinente.
Mas, como se escreveu no acórdão nº 289/86 (in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 8ºV, pg.399), 'não basta a um órgão chamar-lhe tribunal para que o seja.Necessário se torna, para o caracterizar como tal, atender à sua natureza intrínseca, à sua essência', devendo radicar a respectiva definição 'na natureza das funções que exerce, no seu carácter jurisdicional'.
E mais adiante, 'Essencial para que se fale de um acto jurisdicional, parece ser que um agente estadual (em regra) tenha de resolver de acordo com o direito uma questão jurídica, entendendo-se por tal um conflito de pretensões entre duas ou mais pessoas ou uma controvérsia sobre a verificação ou não verificação de uma ofensa ou violação da ordem jurídica'.
E, invocando o Prof. Rodrigues Queiró ('Lições de Direito Administrativo', pg. 51), 'Ao cabo e ao resto, o quid specificum do acto jurisdicional reside em que ele não apenas pressupõe, mas é necessariamente praticado para resolver uma `questão de direito'. Se ao tomar-se uma decisão, a partir de uma situação de facto traduzida numa «questão de direito» (na violação do direito objectivo ou na ofensa de um direito subjectivo), se actua, por força da lei, para se conseguir a produção de um resultado prático diferente da paz jurídica decorrente da resolução dessa 'questão de direito', então não estaremos perante um acto jurisdicional;estaremos, sim, perante um acto administrativo'.
No que respeita à arbitragem é ela uma forma de administração da justiça em que o litígio é submetido ao julgamento, não dos tribunais 'estaduais', mas de juizes 'leigos'- os árbitros -, produzindo uma decisão a que a lei reconhece o efeito de caso julgado e força executiva igual à da sentença de um qualquer tribunal estadual. A arbitragem pode ter origem em convenção das partes (arbitragem voluntária) ou por determinação imperativa da lei (arbitragem necessária). Em qualquer dos casos, as decisões tomadas por
árbitros são jurisdicionais, na medida em que 'constituem casos de exercício privado da função jurisdicional ou de participação nela' (cfr. Rodrigues Queiró, ibidem, pág. 41).
A Constituição, na sua versão original, não fazia qualquer referência a 'tribunais arbitrais', que apenas surge com a revisão de
1982, sem que, porém, de tal omissão se devesse concluir pela inconstitucionalidade de tais tribunais, reconhecendo-se antes que não se pretendeu excluir outras formas de administração da justiça, tradicionalmente reconhecidas, entendendo-se a norma que referia as diferentes categorias de tribunais, como reportando-se apenas aos tribunais que eram «órgãos do Estado».
De qualquer modo, com a Lei Constitucional nº 1/82, de
30 de Setembro, passa a ser expressamente referido no artigo 212º (hoje, artigo
211º), que poderão existir tribunais arbitrais, sendo o texto constitucional completamente omisso quanto a qualquer referência relativamente à sua organização, competência e funcionamento, não dando sequer uma definição desses tribunais.
Gomes Canotilho e Vital Moreira ('Constituição da República Portuguesa Anotada', 3ª ed.,pg.808) resumem assim as características dos tribunais arbitrais, conceito este que deve ser entendido ' como o decorrente da tradição jurídica vigente no direito infraconstitucional':
'(a) são normalmente formados ad hoc para o julgamento de determinado litígio, esgotando-se nessa tarefa, podendo, porém, existir tribunais arbitrais permanentes a que podem ser deferidos os litígios emergentes de determinado tipo de relações jurídicas;
(b) são formados por iniciativa das partes ou por iniciativa de instituições representativas dos eventuais litigantes (associações comerciais, etc.);
(c) não têm competência própria, julgando litígios que, na falta deles, são da competência normal de outros tribunais;
(d) os juízes (árbitros) são leigos escolhidos segundo certas regras estabelecidas na lei.'.
Delineados, assim, os traços essenciais dos tribunais arbitrais, importa agora, avançar no sentido de responder à questão acima colocada: a comissão especial, criada pelo nº 1 do artigo 36º do Decreto-Lei nº 321-B/90 de
15 de Outubro (RAU), pode considerar-se um «tribunal arbitral»?
A resposta parece não poder deixar de ser afirmativa.
Com efeito, de acordo com o atrás exposto, a CE (Comissão especial) intervém quando surge uma controvérsia entre o senhorio e o arrendatário relativamente à actualização anual da renda, derivada da recusa pelo arrendatário da nova renda, com fundamento em erro nos factos relevantes ou na aplicação da lei.
Trata-se, portanto, de resolver uma «questão de direito» surgida no desenvolvimento de uma relação jurídica de locação, devendo a decisão a proferir estabelecer a «fixação definitiva» do aumento de renda, ou seja, regular o diferendo por forma definitiva e de acordo com o direito aplicável ao caso.
Por outro lado, a CE tem uma constituição tripartida: um representante do senhorio e um representante do inquilino, presidindo um elemento nomeado pelo Chefe da Repartição de Finanças da área do prédio arrendado, estando estabelecidas na legislação as regras de funcionamento, que contemplam a forma como o pedido de intervenção deve ser deduzido, não sendo a pretensão aceite se tal condicionalismo não for respeitado, a notificação e resposta do senhorio, a sanção para a sua falta, o prazo para a decisão e notificação às partes (cfr. Portaria nº 381/91, de 3 de Maio). Seguro é, além disso, que a Comissão deve decidir com inteira 'independência', não estando sujeita às 'instruções' de ninguém.
Acresce que o recurso a esta CE é directamente previsto pela lei, competindo ao arrendatário desencadear a sua intervenção e sendo a respectiva decisão, quer para ele quer para o senhorio, quanto à forma de actualização anual da renda, uma decisão 'final'.
Assim, ainda que criada para resolver «questões de direito» simples, que têm a ver com meros erros nos factos relevantes ou na aplicação da lei relativa aos factores de actualização anual de rendas do regime de renda livre e de renda condicionada, a Comissão Especial (CE) ao decidir tais questões, pratica actos materialmente jurisdicionais próprios de um tribunal. A própria lei criadora de tal Comissão não se afasta de tal entendimento, uma vez que determina que lhe seja aplicável a legislação prevista, em processo civil, para o tribunal arbittral necessário.
10. - Apurada assim a natureza - de tribunal arbitral - da Comissão Especial prevista no artigo 36º do RAU, seguir-se-á agora verificar se esta norma é violadora de qualquer princípio ou norma da Constituição. Ora, a tal respeito, importará desde logo averiguar se a criação da Comissão Especial veio afectar de modo relevante, a organização e competência dos tribunais, caso em que o Governo não poderia proceder a tal criação sem dispor de autorização legislativa, ou se a existência da CE deixa intocada a reserva de competência exclusiva da Assembleia da República, prevista na alínea q) do nº 1 do artigo
168º da Constituição.
É certo que o recorrente não levanta esta questão no requerimento de interposição de recurso, mas já a trata nas alegações. De todo o modo, sempre o Tribunal poderia julgar inconstitucional a norma questionada com fundamento em violação de norma ou princípios constitucionais diversos daqueles que o recorrente invoca (artigo 79º-C da LTC), pelo que nada obsta a que se conheça desta questão de inconstitucionalidade orgânica - a qual, a ser procedente, tornaria desnecessária a apreciação das questões suscitadas de inconstitucionalidade material.
De acordo com o preceituado no artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição, é da exclusiva competência da Assembleia da República, legislar não só sobre organização e competência dos Tribunais, como também 'das entidades não jurisdicionais de composição de conflitos', aditamento este da parte final do preceito resultante da Lei Constitucional nº 1/89.
Sobre o alcance desta reserva, o Tribunal Constitucional já se pronunciou - ainda que apenas maioritariamente - no sentido de que nela se inclui, de maneira directa, a organização e competência dos tribunais arbitrais
«voluntários» e, portanto, também, por maioria de razão, para os tribunais arbitrais «necessários» (cfr., quanto aos «voluntários», o acórdão nº 230/86, in
'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 8º V., 1986, pg.115, e, quanto aos
«necessários», o acórdão nº 32/87, in 'Diário da República', IIª Série, de 7 de Abril de 1987). E mesmo quem assim não entenda, não deixa de aceitar que a reserva do artigo 168º, alínea q), 'não pode deixar de operar quanto à legislação sobre tribunais arbitrais (voluntários ou necessários) sempre que essa legislação «afecte ou contenda com a definição da competência dos tribunais estaduais, naquele nível ou grau em que ela entra na reserva parlamentar». E nesse nível situam-se seguramente «as normas que, v.g., distribuam a competência contenciosa entre as diferentes ordens de jurisdição estaduais, limitem genericamente o respectivo âmbito material de competência, ou ainda estabeleçam o tipo de conexão que há-de interceder entre os tribunais de Estado e os tribunais arbitrais»' (cf.acórdão nº 86/87, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, IX Vol.,pág. 595/596).
Importa, assim, saber se o Governo ao criar a Comissão Especial (CE) prevista no nº 1 do artigo 36º do RAU, dispunha de autorização legislativa para o efeito, uma vez que não pode deixar de se reconhecer que a criação de tal estrutura inovadora veio afectar a definição e a competência dos tribunais estaduais, na medida em que veio retirar (ou permitir que se retire) do âmbito dessa competência, assim a modificando, o conhecimento dos eventuais conflitos entre senhorios e arrendatários respeitantes à correcta aplicação dos factores de actualização anual da renda, que passaram a ser (ou a poder ser) resolvidos, por forma definitiva, pela referida Comissão.
O novo Regime do Arrendamento Urbano foi aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro. Este diploma foi, por sua vez, emitido pelo Governo ao abrigo de uma autorização legislativa consubstanciada na Lei nº
42/90, de 10 de Agosto.
Torna-se, por isso, indispensável analisar se a Assembleia da República concedeu ao Governo autorização legislativa para a criação da Comissão Especial ou de outra instância similar para resolução de conflitos emergentes do novo regime de arrendamento.
11. - A Lei nº 42/90 veio conceder ao Governo autorização para alterar o regime jurídico do arrendamento urbano, constando do artigo 2º o sentido da autorização, isto é, os princípios-base, as directrizes ou orientações que devem reger o legislador na elaboração do diploma autorizado, constando do artigo 3º a extensão da mesma autorização.
Analisando genericamente a lei em causa, constata-se que o seu sentido fundamental foi o de que o Governo, nas alterações legislativas a introduzir no arrendamento urbano, deveria proceder à codificação do direito anterior, clarificando e completando esse direito por forma a torná-lo isento de contradições e de dúvidas, simplificando o regime da sua formação, vicissitudes e cessação, com vista ao funcionamento mais fácil do arrendamento urbano, mas sem afectar as regras que tutelam a posição do arrendatário, que devem ser preservadas.
A lei permite também que o Governo legisle sobre a subordinação dos novos arrendamentos ou da transmissão entre vivos dos existentes à verificação da aptidão do prédio feita com antecedência não superior a oito anos e sobre o estabelecimento de um regime que permita a fixação do valor real dos fogos para efeito de cálculo das rendas condicionadas, por forma justa e célere.
Substantivamente, a lei de autorização concedeu ao Governo liberdade de estipular limites certos à duração efectiva dos arrendamentos futuros (alínea h), de aperfeiçoar as regras aplicáveis aos trespasses comerciais (alínea j), e de modificar o regime de transmissão por morte da posição do arrendatário habitacional, salvaguardando os interesses legítimos (alínea n) e permitiu a manutenção das penalidades existentes em sede de especulação de rendas, de falsas declarações (quer para levantamento de subsídios quer de levantamento de depósitos de rendas) (alínea l).
Em sede processual ou adjectiva, a lei permitiu a relocalização de preceitos do Código de Processo Civil, com as adaptações necessárias (alínea f) e a consagração de mecanismos adjectivos expeditos para a cessação por via judicial dos contratos de duração limitada, respeitando o direito de defesa do arrendatário (alínea i).
No que se refere à extensão da autorização, o artigo 3º da Lei prevê que 'as alterações facultadas pelos artigos anteriores podem envolver modificações expressas ou tácitas do Cód. Civil, aprovado pelo Decreto-Lei nº 47
344, de 25 de Novembro de 1966, da Lei nº 46/85, de 20 de Setembro e em geral de todas as fontes que complementam esses dois diplomas.'
O artigo 4º da Lei refere-se às alterações a introduzir no Código do IRS na sequência da aprovação do RAU e o artigo 5º fixa a duração da autorização.
Desta análise ainda que sumária da Lei nº 42/90, mostra-se que não consta de nenhum dos seus comandos uma qualquer referência à necessidade de constituição de uma comissão ou outra forma organizacional similar, que tivesse por finalidade a substituição dos tribunais na resolução de qualquer tipo de conflito que pudesse vir a surgir entre o senhorio e o arrendatário.
Não pode, efectivamente, ver-se na referência do artigo 4º da Lei nº
42/90 à possibilidade de modificação expressa 'de todas as fontes que complementam ' o Código Civil e a Lei nº46/85, uma «recriação» das chamadas
«comissões se avaliação do inquilinato', a que se refere o Decreto nº 37 021, de
21 de Agosto de 1948, alterado pelo Decreto nº 37 784, de 14 de Março e pelo Decreto Regulamentar nº 1/86, de 2 de Janeiro, sendo muito duvidoso que esta legislação possa ser definida como 'fonte complementar' quer do Código Civil quer da Lei nº 46/85.
É que estas «comissões de avaliação» - como já acima se referiu - procediam a uma vistoria do imóvel objecto da avaliação e era com base no parecer técnico resultante de tal vistoria que vinha a ser fixada a renda, que a comissão julgava adequada.
Actualmente, a CE tem um âmbito de competência muito mais estrito e de natureza essencialmente jurídica: a resolução dos conflitos entre o senhorio e o arrendatário respeitantes à «correcta aplicação dos factores de actualização anual», sendo certo que os fundamentos de recusa da renda por parte do arrendatário (artigo 35º, nº 1 do RAU) podem assentar quer 'em erro nos factos relevantes' quer em erro 'na aplicação do direito'.
Assim, não só na respectiva composição mas também na competência específica são bem diversas as realidades subjacentes a ambas as comissões, não podendo, por isso, ver-se na referida norma do artigo 4º da Lei nº 42/90, o preceito autorizador da criação da Comissão Especial, constante do nº 1 do artigo 36º do RAU.
E a idêntica conclusão se tem de chegar se se pretender ver qualquer autorização legislativa para a criação de tal comissão nas normas da lei referentes à modificação genérica do direito adjectivo, o qual deve ser
'adequado à realização dos objectivos fixados na lei substantiva' (alínea g) do artigo 2º). É que a criação da Comissão Especial não pode, manifestamente, considerar-se o estabelecimento de uma mera tramitação processual. Do que se trata é da criação de um órgão dotado de poderes decisórios definitivos relativamente aos conflitos acima delimitados.
E mostrado ficou atrás que esta CE, com os poderes referidos - próprios de um tribunal, no caso de um tribunal arbitral (não importando apurar para a economia da decisão a proferir se é voluntário ou necessário) - veio interferir com a repartição da competência contenciosa entre os diferentes tribunais, uma vez que veio retirar aos tribunais judiciais uma determinada parcela do respectivo âmbito material de competência, atribuindo-a a tal Comissão.
Assim sendo, e não dispondo o Governo de autorização legislativa que previsse, por forma inequívoca, a criação da Comissão Especial, a norma do artigo 36º, nº 1 do RAU que a criou, violou a competência legislativa reservada da Assembleia da República, tal como consta do artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição, pois contém normação que o Governo apenas podia elaborar mediante a respectiva autorização parlamentar, pelo que está afectada de inconstitucionalidade orgânica.
Alcançada esta conclusão, desnecessário se torna apreciar a última das questões antes equacionada (ponto 7, 'in fine'), sobre se a norma que apenas admite recurso das decisões da Comissão Especial nos mesmos casos em que é admitido recurso das decisões do tribunal de comarca viola ou não qualquer norma ou princípio constitucional.
III - DECISÃO:
Nos termos do que fica exposto, decide-se julgar organicamente inconstitucional a norma do nº 1 do artigo 36º do RAU, por violação da alínea q) do nº 1 do artigo 168º da Constituição da República Portuguesa, e, em consequência, concede-se provimento ao recurso e revoga-se a decisão recorrida, que deve ser reformulada em conformidade com o decidido em sede de constitucionalidade.
Lisboa, 17 de Janeiro de 1996 Vitor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Diniz Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa