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Processo n.º 816/2011
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., notificada do acórdão de 28 de setembro de 2011 do Supremo Tribunal Administrativo, vem dele interpor recurso para este Tribunal ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, al. b) da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação atual, pretendendo a apreciação das questões de constitucionalidade normativa invocadas nas alegações de recurso para aquele Supremo Tribunal, tal como sejam:
'...
10. ..., o artigo 5.º, n.º 1 do diploma preambular da LGT (DL 398/98), conjugado com o disposto no artigo 297.º, n.º 1, do CC é inconstitucional, por violação do princípio da proibição da retroatividade, da segurança e da tutela da confiança, quando interpretado no sentido de que a lei nova reguladora da prescrição se aplica aos prazos iniciados antes da sua entrada em vigor quando daí resulte um alargamento em concreto do prazo prescricional.
11. E igual juízo deverá fazer-se relativamente ao artigo 12.º da LGT, conjugado com o disposto no n.º 3 do artigo 49.º, quando interpretado no sentido de que as causas de interrupção da prescrição previstas ex novo são aplicáveis aos prazos de prescrição que se iniciaram antes da entrada em vigor da LGT, por ofensa dos princípios constitucionais da segurança jurídico-fiscal, da tutela da confiança e da irretroatividade da lei fiscal.
12. A Assembleia da República não autorizou o governo a definir as regras aplicáveis ao cômputo do prazo prescricional, editando um critério legislativo de acordo com o qual as regras definidas na LGT possam aplicar-se aos prazos já em curso quando daí resulte um alargamento em concreto daquele prazo, razão pela qual a norma do artigo 5.º do diploma preambular da LGT, é organicamente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, al. i), da CRP.
...'.
2. Admitido que foi o recurso e ordenada a notificação para alegações, a recorrente apresentou as respetivas alegações e nelas concluiu da seguinte forma:
“...
São materialmente inconstitucionais as seguintes normas:
O artigo 5.º, n.º 1, do diploma preambular da LGT (DL 398/98), conjugado com o disposto no artigo 297.º, n.º 1, do CC, por violação do princípio da proibição da retroatividade, da segurança e da tutela da confiança, quando interpretado no sentido de que a lei nova reguladora da prescrição se aplica aos prazos iniciados antes da sua entrada em vigor quando daí resulte um alargamento em concreto do prazo prescricional.
O artigo 12.º da LGT, conjugado com o disposto no n.º 3 do artigo 49.º, quando interpretado no sentido de que as causas de interrupção da prescrição previstas ex novo são aplicáveis aos prazos de prescrição que se iniciaram antes da entrada em vigor da LGT, por ofensa dos princípios constitucionais da segurança jurídico-fiscal, da tutela da confiança e da proibição da retroatividade autêntica da lei fiscal.
Por outro lado, a Assembleia da República não autorizou o governo a definir as regras aplicáveis ao cômputo do prazo prescricional, editando um critério legislativo de acordo com o qual as regras definidas na LGT possam aplicar-se aos prazos já em curso quando daí resulte um alargamento em concreto daquele prazo, razão pela qual a norma do artigo 5.º do diploma preambular da LGT, é organicamente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, al. i), da CRP.
...”
3. Por sua vez, a recorrida apresentou as suas contra-alegações, sendo que nelas pugna pela sem razão da recorrente.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
4. O presente recurso mostra-se interposto ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (na atual redação), pelo que o seu objeto definir-se-á tendo em conta o teor do respetivo requerimento de interposição.
Como se depreende com toda a clareza de tal requerimento recursivo, temos que nele se suscita a inconstitucionalidade material da norma resultante do «… artigo 5.º, n.º 1, do diploma preambular da LGT (DL 398/98), conjugado com o disposto no artigo 297.º, n.º 1, do CC, por violação do princípio da proibição da retroatividade, da segurança e da tutela da confiança, quando interpretado no sentido de que a lei nova reguladora da prescrição se aplica aos prazos iniciados antes da sua entrada em vigor quando daí resulte um alargamento em concreto do prazo prescricional e uma questão de (in)constitucionalidade orgânica, tendo como objeto outras tantas normas» e, bem assim, do «… artigo 12.º da LGT, conjugado com o disposto no n.º 3 do artigo 49.º, quando interpretado no sentido de que as causas de interrupção da prescrição previstas ex novo são aplicáveis aos prazos de prescrição que se iniciaram antes da entrada em vigor da LGT, por ofensa dos princípios constitucionais da segurança jurídico-fiscal, da tutela da confiança e da proibição da retroatividade autêntica da lei fiscal», e, ainda, a inconstitucionalidade orgânica da norma do «… artigo 5.º do diploma preambular da LGT, é organicamente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, al. i), da CRP», constituindo, portanto, as enunciadas normas o objeto do presente recurso.
Os preceitos legais, integrantes do objeto daquelas normas, apresentam o seguinte teor:
“…
Artigo 5.º (do diploma preambular da LGT)
(Prazos de prescrição e caducidade)
1. Ao novo prazo de prescrição aplica-se o disposto no artigo 297.º do Código Civil, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2. Aos impostos já abolidos à data da entrada em vigor da lei geral tributária aplicam-se os novos prazos de prescrição, contando-se para o efeito todo o tempo decorrido, independentemente de suspensões ou interrupções de prazo.
3. Ao prazo máximo de contagem dos juros de mora previsto na lei geral tributária é aplicável o artigo 297.º do Código Civil.
4. O disposto no número anterior não se aplica aos regimes excecionais de pagamento em prestações em vigor.
5. O novo prazo de caducidade do direito de liquidação dos tributos aplica-se aos factos tributários ocorridos a partir de 1 de janeiro de 1998.
6. O disposto no número anterior aplica-se aos prazos previstos nos n.ºs 1 e 5 do artigo 78.º da lei geral tributária.
…
Artigo 12.º (da Lei Geral Tributária)
(Aplicação da lei tributária no tempo)
1. As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroativos.
2. Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor.
3. As normas sobre procedimento e processo são de aplicação imediata, sem prejuízo das garantias, direitos e interesses legítimos anteriormente constituídos dos contribuintes.
4. Não são abrangidos pelo disposto no número anterior as normas que, embora integradas no processo de determinação da matéria tributável, tenham por função o desenvolvimento das normas de incidência tributária.
...
Artigo 49.º (Lei Geral Tributária)
(Interrupção e suspensão da prescrição)
1. A citação, a reclamação, o recurso hierárquico, a impugnação e o pedido de revisão oficiosa da liquidação do tributo interrompem a prescrição.
2. (Revogado)
3. Sem prejuízo do disposto no número seguinte, a interrupção tem lugar uma única vez, com o facto que se verificar em primeiro lugar.
4. O prazo de prescrição legal suspende-se em virtude de pagamento de prestações legalmente autorizadas, ou enquanto não houver decisão definitiva ou passada em julgado, que puser termo ao processo, nos casos de reclamação, impugnação, recurso ou oposição, quando determinem a suspensão da cobrança da dívida.
…
Artigo 297.º (do Código Civil)
(Alteração de prazos)
1. A lei que estabelecer, para qualquer efeito, um prazo mais curto do que o fixado na lei anterior é também aplicável aos prazos que já estiverem em curso, mas o prazo só se conta a partir da entrada em vigor da nova lei, a não ser que, segundo a lei antiga, falte menos tempo para o prazo se completar.
2. A lei que fixar um prazo mais longo é igualmente aplicável aos prazos que já estejam em curso, mas computar-se-á neles todo o tempo decorrido desde o momento inicial.
3. A doutrina dos números anteriores é extensiva, na parte aplicável, aos prazos fixados pelos tribunais ou por qualquer autoridade.
…”.
5. Foram considerados assentes, com relevo para a decisão, os seguintes factos:
a) – A requerente em 28.12.2001 impugnou a liquidação de IVA e de IRS de 1996 e entre 21/10/02 até 18.02.04 esteve parada por facto não imputável à impugnante.
b) – Em 28.01.2002 e 03.01.2002 foram instauradas as execuções 02/100513.8 e 02/100012.9.
c) – Em 03.07.06 foram as execuções apensadas.
d) – No processo de execução foram feitas várias penhoras e no seguimento destas o Chefe de Finanças proferiu despacho em 07.08.06, a suspender a execução por se mostrar prestada garantia.
e) – Entretanto, em 04.08.06 a executada foi citada pessoalmente para a execução (fls. 58 e 59B).
f) – No âmbito da impugnação proferiu-se despacho a excluir da impugnação a liquidação do IVA, por se verificar uma cumulação ilegal de pedidos e por a impugnante ter optado pela impugnação do IRS (fls. 239 e 243 da impugnação).
g) – Em 11.10.10 transitou em julgado a sentença de impugnação judicial.
h) – Em 26.12.10 deu entrada de requerimento, dirigido ao Chefe, a pedir a declaração de prescrição, tendo sido indeferida por despacho de 15.12.10.
6. Perante estes factos, por se afigurar necessária à compreensão das suscitadas questões de (in)constitucionalidade, importa atentar na forma como a decisão recorrida descreveu as posições assumidas pela decisão cujo recurso se lhe impunha conhecer e, bem assim, pela recorrente, o que faz da seguinte forma:
« …
4.1. A decisão recorrida julgou improcedente a reclamação por entender que, sendo aplicável o prazo de oito anos previsto na LGT, em face das causas de interrupção e suspensão entretanto ocorridas no decurso do prazo de prescrição, este ainda não se havia completado.
Por sua vez, a recorrente, defende que as normas da LGT relativas à prescrição – prazo, causas de suspensão e de caducidade – apenas podem aplicar-se aos prazos que se iniciem depois da sua entrada em vigor, ou quando daí resulte, em concreto, um encurtamento do prazo relativamente ao que resulta da aplicação do regime do CPT.
Deste modo, a lei que encurta o prazo apenas terá válida aplicação nos casos e circunstâncias em que esse prazo é concretamente reduzido, sob pena de pelo artificialismo da redução do prazo prescricional, acoplada a uma panóplia de efeitos interruptivos ou suspensivos inovadoramente criados em relação à lei antiga, se verificar, como in casu, uma extensão desse mesmo prazo, incompatível com os princípios constitucionais acbados de referir.
A aplicação de lei nova sem ressalva dos casos em que o prazo computado pela lei antiga se consuma em primeiro lugar afeta o princípio da proteção da confiança e da segurança jurídica imanentes ao Estado de direito porque implica um insustentável alargamento do prazo de prescrição e a aplicação retroativa desfavorável da nova lei a um prazo já em curso, decorrente da aplicação a um prazo prescricional em curso de uma lei nova que determina o seu prolongamento para além do prazo que resultava da aplicação da lei em vigor no momento em que se iniciou o decurso desse prazo.
O critério de determinação da lei aplicável exigido pelo artigo 297.º do CC, pressupõe claramente que a lei nova apenas proceda ao encurtamento dos prazos e não à alteração dos termos e condições que determinam o seu cômputo, sendo que, quando essas condições sejam alteradas, o juízo de ponderação não pode deixar de as levar necessariamente em conta.
Assim, não é aplicável o prazo de 8 anos estabelecido na LGT, quando, de acordo com os critérios da lei em vigor no momento em que se inicia a contagem do prazo prescricional (o CPT), ocorra a prescrição da dívida em momento anterior ao que resultaria da aplicação das regras da LGT.
As causas de interrupção ou suspensão do prazo prescricional prescritas na LGT, não podem aplicar-se aos prazos que se tenham iniciado e se determinem segundo os critérios do CPT, porque tais causas interferem com garantias dos contribuintes, afastando-se, por isso, a aplicação imediata de um prazo que alargue concretamente o tempo de prescrição previamente estabelecido.
Por esses motivos, o artigo 5.º, n.º 1, do diploma preambular da LGT (DL 398/98), conjugado com o disposto no artigo 297.º, n.º 1, do CC é inconstitucional, por violação do princípio da proibição da retroatividade, da segurança e da tutela da confiança, quando interpretado no sentido de que lei nova reguladora da prescrição se aplica aos prazos iniciados antes da sua entrada em vigor quando daí resulte um alargamento em concreto do prazo prescricional.
E igual juízo deverá fazer-se relativamente ao artigo 12.º da LGT, conjugado com o disposto no n.º 3 do artigo 49.º, quando interpretado no sentido de que as causas de interrupção da prescrição previstas ex novo são aplicáveis aos prazos de prescrição que se iniciaram antes da entrada em vigor da LGT, por ofensa dos princípios constitucionais da segurança juridico-fiscal, da tutela da confiança e da irrectroactividade da lei fiscal.
...».
Invocando que, nesta matéria, o Supremo Tribunal Administrativo vem decidindo uniformemente que no tocante a prazos de prescrição de obrigações tributárias não há que considerar, quando ocorra sucessão de regimes na pendência da mesma obrigação tributária, a aplicação de um ou outro regime em bloco, apenas havendo que atender ao prazo de prescrição objetivamente previsto em cada uma das leis em causa, a antiga e/ou a nova, para determinar qual seja a mais favorável, desconsiderando, portanto, os regimes de suspensão ou interrupção do prazo de prescrição que se mostrem previstos numa ou noutra lei, a decisão recorrida, perfilhando tal doutrina e para cuja explicitação citou sumariamente o Acórdão do STA de 07.09.2011 (proferido no Processo n.º 0246/11), procedeu à aplicação da lei em conformidade com a mesma e nos seguintes termos:
«...
Temos então que no decurso do prazo de prescrição se sucederam dois regimes legais, sendo que o último diploma legal encurtou o prazo de prescrição.
Então tem aqui aplicação o artº 297º, nº 1 do Código Civil que estabelece o seguinte:
(…)
Considerando que, no âmbito do artº 34º do CPT o prazo de 10 anos se conta a partir de 01.01.1997, a prescrição completar-se-ia em 01.01.2007.
Considerando o disposto no citado nº 1 do artº 297º do CC e no nº 1 do artº 48º da LGT, o prazo de oito anos de prescrição completar-se-ia em 01.01.2007, ou seja na mesma data em que ocorreria aplicando o CPT.
Neste caso, é de aplicar o prazo da LGT, já que segundo a lei antiga, não falta menos tempo para o prazo se completar.
Por outro lado, há também que considerar as causas interruptivas e suspensivas na LGT, já que 'a LGT é competente para determinar e reger os eventos interruptivos e suspensivos que ocorrem na sua vigência, ainda que atinentes a prazos prescricionais iniciados na vigência do CPT, sem que isso represente um efeito retroativo da lei nova ou uma ofensa aos princípios da legalidade e da separação de poderes …'.
...».
É, portanto, com base nesta decisão e interpretação normativa nela contida que se haverá de apreciar e decidir as suscitadas questões de (in)constitucionalidade.
7. A recorrente, como resulta do supra exposto, suscita duas questões de (in)constitucionalidade material e uma de (in)constitucionalidade orgânica, ou seja:
- a inconstitucionalidade material do artigo 5.º, n.º 1, do diploma preambular da LGT (DL 398/98), conjugado com o disposto no artigo 297.º, n.º 1, do CC, por violação do princípio da proibição da retroatividade, da segurança e da tutela da confiança, quando interpretado no sentido de que a lei nova reguladora da prescrição se aplica aos prazos iniciados antes da sua entrada em vigor quando daí resulte um alargamento em concreto do prazo prescricional;
- a inconstitucionalidade material do artigo 12.º da LGT, conjugado com o disposto no n.º 3 do artigo 49.º, quando interpretado no sentido de que as causas de interrupção da prescrição previstas ex novo são aplicáveis aos prazos de prescrição que se iniciaram antes da entrada em vigor da LGT, por ofensa dos princípios constitucionais da segurança jurídico-fiscal, da tutela da confiança e da proibição da retroatividade autêntica da lei fiscal;
- a inconstitucionalidade orgânica com fundamento em que a Assembleia da República não autorizou o governo a definir as regras aplicáveis ao cômputo do prazo prescricional, editando um critério legislativo de acordo com o qual as regras definidas na LGT possam aplicar-se aos prazos já em curso quando daí resulte um alargamento em concreto daquele prazo, razão pela qual a norma do artigo 5.º do diploma preambular da LGT, é organicamente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, al. i), da CRP.
Vejamos de cada uma delas.
7.1 Quanto à inconstitucionalidade material do artigo 5.º, n.º 1, do diploma preambular da LGT, conjugado com o disposto no artigo 297.º, do Código Civil.
Sustenta a recorrente que a interpretação extraída pelo tribunal a quo da conjugação do artigo 5.º, n.º 1, do diploma preambular da LGT, com o artigo 297.º, do Código Civil, é inconstitucional, por violação dos “princípios da proibição da retroatividade, da segurança e da tutela da confiança”. De acordo com tal interpretação, a lei nova reguladora da prescrição aplica-se aos prazos iniciados antes da sua entrada em vigor mesmo quando daí resulte um alargamento em concreto do prazo prescricional.
Sendo o presente recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, exige-se o preenchimento de um conjunto de pressupostos processuais, de entre os quais ressalta a exigência que a norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo haja sido ratio decidendi da decisão recorrida. Por outras palavras, a norma impugnada pelo recorrente deve ter constituído “fundamento determinante” da decisão recorrida (cf. Acórdão n.º 101/85, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Sucede, porém, que tal pressuposto não se encontra preenchido no caso vertente. Isto ocorre, fundamentalmente, porque o critério jurídico que o recorrente pretende assacar ao tribunal recorrido leva já pressuposta uma certa compreensão hermenêutica que aquele tribunal efetivamente não perfilhou.
Vejamos.
Para o recorrente, o artigo 297.º, do Código Civil deve ser interpretado no sentido de que “a lei que encurta o prazo apenas terá válida aplicação nos casos e circunstâncias em que esse prazo é concretamente reduzido, sob pena de pelo artificialismo da redução do prazo prescricional, acoplada a uma panóplia de efeitos interruptivos ou suspensivos inovadoramente criados em relação à lei antiga, se verificar, como in casu, uma extensão desse mesmo prazo, incompatível com os princípios constitucionais (...).” Assim, “não é aplicável o prazo de 8 anos estabelecido na LGT quando, de acordo com os critérios da lei em vigor no momento em que se inicia a contagem do prazo prescricional (o CPT), ocorra prescrição da dívida em momento ao que resultaria da aplicação das regras da LGT.”
Já o Supremo Tribunal Administrativo, na senda de jurisprudência consolidada, argumenta que “em face da previsão normativa contida no artigo 297.º do Código Civil, a aplicação de diferentes regimes no tocante aos prazos de prescrição de obrigações tributárias não determina aplicação de um ou outro regime em bloco, pois o preceito só se refere à lei que altere o prazo, e não a tudo o mais que releva para o seu curso. Por conseguinte, não há que comparar os regimes de suspensão e interrupção do prazo de prescrição adotados pela lei antiga e pela lei nova para determinar qual é o mais favorável e escolher a lei aplicável segundo o juízo assim atingido.” Atento este pressuposto, concluiu o STA que, in casu, seria de aplicar o prazo da LGT (8 anos), “já que segundo a lei antiga, não falta menos tempo para o prazo se completar.”.
Talqualmente deflui do exposto, o STA não interpretou os preceitos mencionados no sentido de se dever aplicar a lei nova aos prazos iniciados antes da sua entrada em vigor quando daí resulte um alargamento em concreto do prazo prescricional. Na verdade, o tribunal recorrido, rejeitando uma comparação e aplicação, em bloco, do complexo normativo integrado pelos prazos de prescrição e respetivas causas de interrupção e prescrição, chegou tão-só à conclusão de que, atento o critério previsto no artigo 297.º, do Código Civil, o prazo prescricional estatuído na LGT completar-se-ia mais cedo, devendo por isso aplicar-se ao caso vertente.
Dito isto, confirma-se não haver correspondência entre a interpretação normativa cuja constitucionalidade o recorrente impugnou, por um lado, e a interpretação normativa veiculada pelo tribunal recorrido, por outro, daí resultando não ter sido a primeira ratio decidendi da decisão recorrida.
7.2 Quanto à inconstitucionalidade orgânica do artigo 5.º do diploma preambular da LGT.
A segunda questão de constitucionalidade a apreciar é a relativa à inconstitucionalidade orgânica do artigo 5.º, do diploma preambular da LGT, por violação do disposto no artigo 103.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, al. i), da CRP. Invoca o recorrente, com efeito, que a Assembleia da República não autorizou o Governo a “definir as regras aplicáveis ao cômputo do prazo prescricional”, maxime, não autorizou o Governo a editar “um critério legislativo de acordo com o qual as regras definidas na LGT possam aplicar-se aos prazos já em curso quando daí resulte um alargamento em concreto daquele prazo.”
A ordem seguida no conhecimento das inconstitucionalidades não é aleatória e justifica-se em virtude do facto de o critério cuja constitucionalidade é impugnada pela recorrente na questão supra analisada coincidir com o critério a que a recorrente assaca, também, o vício orgânico na questão que agora se aprecia.
Daí que, atenta a exigência de utilidade assacada aos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade, e reiterando-se o que foi dito supra quanto ao facto de o critério impugnado pelo recorrente não ter sido ratio decidendi da decisão recorrida, se imponha alargar o juízo de não conhecimento do objeto de recurso também a esta questão de constitucionalidade.
7.3 Quanto à inconstitucionalidade material do artigo 12.º, conjugado com o artigo 49.º, n.º 3, ambos da LGT.
Finalmente, sustenta o recorrente que a interpretação extraída pelo tribunal a quo dos artigos 12.º e 49.º, n.º 3, da LGT – no termos da qual as causas de interrupção da prescrição previstas ex novo são aplicáveis aos prazos de prescrição que se iniciaram antes da entrada em vigor da LGT – apresenta-se desconforme com o parâmetro normativo-constitucional, por violação dos “princípios constitucionais da segurança jurídico-fiscal, da tutela da confiança e da irretroatividade da lei fiscal.” Com efeito, afirma o STA, no acórdão recorrido, que “a LGT é competente para determinar os eventos interruptivos e suspensivos que ocorram na sua vigência, ainda que atinentes a prazos prescricionais iniciados na vigência do CPT, e para determinar os efeitos que sobre esse prazo têm esses eventos, não podendo esse efeito imediato da lei nova ser considerado como representando efeito retroativo.”.
Ora, como vem sendo defendido pela jurisprudência constitucional consolidada, o princípio da segurança jurídica em matéria fiscal está ligado a um conjunto de consequências normativas. Desde logo, consta do artigo 103.º, n.º 3, da CRP, desde a revisão constitucional de 1997, uma proibição constitucional de impostos retroativos bem como de quaisquer outras normas fiscais retroativas desfavoráveis (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 2007, p. 1090). Por conseguinte, entende o Tribunal Constitucional e alguma doutrina que da inclusão desta referência constitucional autónoma se retira uma “garantia forte” (cfr. o Acórdão n.º 172/2000, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), nos termos da qual uma norma respeitante aos elementos essenciais do imposto que tenha caráter retroativo está sempre ferida de inconstitucionalidade. Ou seja, “nestes casos (...), não há lugar a ponderações” (cfr. o Acórdão n.º 128/09, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), ou melhor, qualquer ponderação a que eventualmente houvesse lugar ficou automaticamente resolvida pela proibição introduzida pelo legislador constituinte de revisão.
É certo, também, que o Tribunal Constitucional vem lendo esta proibição constitucional no sentido de abarcar nela apenas as situações de retroatividade autêntica, perfeita, ou em sentido próprio (neste sentido, v. os Acórdãos n.ºs 128/2009, 85/2010, e 399/2010, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Pode ler-se no último dos arestos mencionados que, dos trabalhos preparatórios da revisão constitucional de 1997, resultou não se terem pretendido “integrar no preceito as situações em que o facto tributário que a lei nova pretende regular não ocorreu totalmente ao abrigo da lei antiga, antes continuando a formar-se na vigência da lei nova”, pelo menos quando estejam em causa impostos periódicos.
Daqui não resulta, porém, que o princípio da proteção da confiança em matéria fiscal se esgote na proibição constitucional de impostos retroativos, talqualmente explicitada. Explica Suzana Tavares da Silva que tal princípio continua a ter valia quando “estão em causa, quer as situações de retroatividade inautêntica (...), quer as situações em que se trate da mera aplicação retroativa de lei fiscal que não interfira com os elementos essenciais dos impostos, ou seja, que embora não onere a tributação de factos tributários passados ou que se iniciaram em momento passado e ainda decorrem, se revele prejudicial para os sujeitos passivos, por lhes impor encargos novos com os quais estes legitimamente não contavam (violação de expectativas legítimas) e que, por essa razão, possam vir a ser admitidos à luz daquele princípio fundamental” (Suzana Tavares da Silva, Sumários desenvolvidos de Direito Fiscal – I Ciclo, Coimbra, 2011, p. 36).
Não deixa o Tribunal Constitucional de avançar os critérios que hão de presidir a esta ponderação entre o princípio da segurança jurídica e os outros princípios ou bens constitucionalmente protegidos subjacentes à norma a apreciar. Nos Acórdãos n.ºs 128/2009 e 399/2010 (todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), confirma-se que aquela ponderação deve obedecer a quatro critérios ou testes cumulativos. Assim, «para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.»
Cumpre, pois, qualificar a situação vertente à luz do quadro jurídico traçado.
Ora, constituindo a prescrição das obrigações tributárias e as respetivas causas de interrupção e suspensão verdadeiras garantias dos contribuintes, há que concluir que a aplicação de causas de interrupção ou suspensão introduzidas pela lei nova a prazos de prescrição que já haviam começado a correr ao abrigo da lei antiga é assimilável a uma situação de aplicação retrospetiva de norma fiscal desfavorável.
Com efeito, não há dúvida de que, correspondendo a prescrição à “extinção de uma obrigação vencida em consequência do decurso de um prazo” (Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, 2007, p. 261), por razões de certeza, de segurança e de paz jurídicas (Benjamim Silva Rodrigues, “A prescrição no direito tributário”, Problemas Fundamentais do Direito Tributário, Lisboa, 1999, p. 263), a introdução de novas causas de interrupção ou de suspensão dos prazos de prescrição gera situações prejudiciais ou de desvantagem para os sujeitos passivos daquela obrigação, potencialmente lesivas das expectativas legítimas que mantinham na conservação do concreto conteúdo de tais garantias.
Porém, ao contrário do que defende a recorrente (fls. 400), não tem a norma extraída, pelo tribunal recorrido, dos preceitos em crise eficácia retroativa, mas tão-só retrospetiva. A recorrente argumenta que “não é pelo facto de o prazo de prescrição se encontrar a decorrer que se poderá deixar de considerar que ocorre, neste caso, uma questão de retroatividade autêntica. Na verdade, mesmo no âmbito de uma relação jurídica duradoura, que não se encontre ainda esgotada, existirá sempre retroatividade autêntica quando haja uma alteração do regime jurídico quanto ao efeito conexionado a factos que já ocorreram, v.g., citação, execução, impugnação, etc., são para efeito do cômputo do prazo de prescrição, factos que têm aí um efeito instantâneo, o qual não pode deixar de ser regulado pela lei que estiver em vigor no momento em que os mesmos se verificam (...).”
Apesar de impressiva, esta tese não vinga. Na verdade, a prescrição constitui uma causa de extinção da obrigação tributária de formação contínua, prevendo a lei que, no decurso desse período de formação, possam ocorrer factos ou serem praticados atos suscetíveis de causar a sua interrupção. Talqualmente interpretados pelo tribunal recorrido, os preceitos em crise aplicam-se a factos ocorridos após a sua entrada em vigor, ao abrigo das novas causas de interrupção dos prazos de prescrição neles previstas, muito embora tais prazos tenham começado a correr na vigência da lei antiga e ainda não tivessem terminado no momento em que se deu a cessação da sua vigência. Trata-se, portanto, de uma norma fiscal com natureza retrospetiva.
Assumindo como corretos estes pressupostos, necessário se revela fazer passar o critério em causa pelos testes que reiteradamente o Tribunal Constitucional vem propondo nos casos que não se reconduzem, tout court, às situações de retroatividade expressamente proibida nos termos do artigo 103.º, n.º 3, da CRP. Nesses casos, recordando as palavras deste Tribunal no Acórdão n.º 128/2009 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), “saber se a norma é ou não inconstitucional (por violação da proteção da confiança) obriga a que se tenha em conta, e se pondere, tanto o contexto da administração tributária quanto o contexto do particular tributado.”
Assim, antes da entrada em vigor da LGT, valia em matéria de causas de interrupção e suspensão dos prazos de prescrição o disposto no artigo 34.º, do CPT:
«(...)
Artigo 34.º
Prescrição das obrigações tributárias
1 – A obrigação tributária prescreve no prazo de 10 anos, salvo se outro mais curto estiver fixado na lei.
2 – O prazo de prescrição conta-se desde o início do ano seguinte àquele em que tiver ocorrido o facto tributário.
3 – A reclamação, o recurso hierárquico, a impugnação e a instauração da execução interrompem a prescrição, cessando, porém, esse efeito se o processo estiver parado por facto não imputável ao contribuinte durante mais de um ano, somando-se neste caso o tempo que decorrer após este período ao que tiver decorrido até à data de autuação.
(...)»
Já o artigo 49.º, da LGT, na sua versão originária (Decreto-lei n.º 398/98, de 17 de dezembro), dispunha nos seguintes termos:
«(...)
Artigo 49.º
Interrupção e suspensão da prescrição
1 - A citação, a reclamação, o recurso hierárquico, a impugnação e o pedido de revisão oficiosa da liquidação do tributo interrompem a prescrição.
2 - A paragem do processo por período superior a um ano por facto não imputável ao sujeito passivo faz cessar o efeito previsto no número anterior, somando-se, neste caso, o tempo que decorrer após esse período ao que tiver decorrido até à data da autuação.
3 - O prazo de prescrição legal suspende-se por motivo de paragem do processo de execução fiscal em virtude de pagamento de prestações legalmente autorizadas, ou de reclamação, impugnação ou recurso.
(...)»
Cotejados os regimes, a principal diferença entre ambos radica, pois, na introdução, pela LGT, da citação (em lugar da instauração da execução) e do pedido de revisão oficiosa como factos capazes de desencadear a interrupção do prazo de prescrição; e nas novas causas suspensivas do prazo de prescrição das obrigações tributárias, previstas no n.º 3, do artigo 49.º (hoje alterado).
Na verdade, porém, as expectativas dos contribuintes na manutenção em bloco das causas de interrupção e suspensão dos prazos de prescrição vigentes à luz do CPT não assumem a magnitude necessária para que se verifique uma violação do princípio constitucional da proteção da confiança.
Desde logo, porque assumindo a prescrição, enquanto facto extintivo da obrigação tributária, natureza contínua ou de formação sucessiva – dependente, portanto, de uma situação de inércia prolongada do sujeito ativo da relação tributária – é pouco expectável que durante esse período não se processem alterações do quadro jurídico vigente com efeitos imediatos nos prazos em curso. Com efeito, se quando estão em causa impostos periódicos, em que a formação do facto tributário se prolonga por alguns meses ou anos, este Tribunal vem afastando - em caso de alterações legislativas reconduzíveis a um agravamento da carga fiscal durante aquele período de formação - a intolerabilidade da violação das legítimas expectativas dos cidadãos (cfr., novamente, o Acórdão n.º 399/10), a mesma conclusão, por maioria de razão, há de poder extrair-se quando estejam em causa normas fiscais relativas a factos extintivos da obrigação tributária e cuja formação é bem mais prolongada.
Depois, analisadas em conjunto, as alterações legislativas produzidas em matéria de prazos de prescrição apresentam um saldo positivo para o sujeito passivo: os prazos de prescrição diminuíram (de 10 para 8 anos), e uma das causas de interrupção da respetiva contagem – a instauração da execução fiscal (cfr. artigo 34.º, n.º 3, do CPT) – foi substituída por uma outra – a citação – algo que veio antecipar o termo do prazo de prescrição (Benjamim Silva Rodrigues, “A prescrição no direito tributário”, Problemas Fundamentais do Direito Tributário, Lisboa, 1999, p. 280).
Concluindo, não só a mutação verificada na ordem jurídica não é de molde a provocar uma efetiva lesão na confiança dos cidadãos-contribuintes, como tal confiança, a existir, não se afigura plenamente justificada à luz da atuação estadual e do longo período de inércia da administração tributária de que está dependente a consumação do prazo prescricional. Por conseguinte, atenta a natureza cumulativa dos critérios/testes supra identificados, resulta não estarem preenchidos os requisitos de que depende a tutela da confiança à luz do princípio constitucional da segurança jurídica e da “herança” da jurisdição constitucional nesta matéria.
III. Decisão
8. Termos em que, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) - Não conhecer parcialmente o objeto do recurso, ou seja, quanto às questões de inconstitucionalidade material do artigo 5.º, n.º 1, do diploma preambular da LGT, conjugado com o disposto no artigo 297.º do Código Civil (7.1) e inconstitucionalidade orgânica do artigo 5.º do diploma preambular da LGT (7.2).
b) - Não julgar inconstitucional os artigos 12.º e 49.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária, na sua versão originária, interpretados no sentido de que as causas de interrupção da prescrição previstas ex novo são aplicáveis aos prazos de prescrição que se iniciaram antes da entrada em vigor da LGT; e, por conseguinte, negar provimento ao recurso de constitucionalidade interposto.
Custas pela recorrente, que se fixam em 25 (vinte e cinco) UCs., sem prejuízo da existência de apoio judiciário concedido nos autos.
Lisboa, 5 de dezembro de 2012.- J. Cunha Barbosa – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de Sousa Ribeiro.