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Proc. nº 293/94 ACÓRDÃO Nº 119/96
1ª Secção Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em 11 de Junho de 1993, A, casado, soldado na situação de reserva da Guarda Fiscal, residente na ..., em Lisboa, veio interpor, na 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, recurso contencioso de anulação, com fundamento em ilegalidade, de um acto de indeferimento tácito do Ministro da Administração Interna. Tal indeferimento recaíra sobre um recurso hierárquico por ele, recorrente, oportunamente interposto de um despacho do Comandante Geral da Guarda Fiscal (despacho este que indeferira anterior recurso hierárquico, também por ele deduzido, contra uma decisão sancionatória que lhe aplicara dez dias de prisão disciplinar, por ter sido considerado autor de comportamento desprestigiante para aquela corporação, ligado à alegada prática de contrabando de circulação, e da infracção ao dever previsto no nº 1 do art.
4º do Regulamento de Disciplina Militar, com referências aos nºs 5º e 6º do art.
3º do Estatuto Militar da Guarda Fiscal e nº 4 do art. 22º da Lei Orgânica da Guarda Fiscal).
O recorrente alegou que a Guarda Fiscal não tinha competência e legitimidade para o punir, visto ele estar, não na reserva, mas reformado há mais de treze anos por incapacidade para todo o serviço, razão por que não podia estar sujeito ao Regulamento de Disciplina Militar, nomeadamente porque não estava efectivamente subordinado a nenhum superior hierárquico, nem existia sobordinação funcional. O indeferimento tácito seria ilegal, dada a incompetência e ilegitimidade da Guarda Fiscal para o punir, ocorrendo ainda vícios de violação de lei e de forma, usurpação e abuso de poder. Em qualquer caso, a pena aplicada fora exageradamente grave e desajustada aos comportamentos por ele praticados. Considerou ainda que seria ilegal a posterior transição, por si requerida, da situação de reforma para a reserva.
Entretanto, na pendência do recurso, veio o recorrente a ser notificado do despacho do Ministro da Administração Interna que indeferira o recurso hierárquico por ele apresentado, pelo que requereu a
'ampliação do objecto do recurso', passando a impugnar o acto expresso de indeferimento. Nesse requerimento sustentou que a decisão sancionatória estava afectada por inconstitucionalidade, por violação do disposto nos arts. 12º, nº
1, 18º, nº 2, 27º, nº 3, e 271º, nº 1, da Constituição.
A autoridade recorrida respondeu ao recurso, seguindo-se alegações de recorrente e de recorrido.
No seu parecer, o representante do Ministério Público sustentou que o recurso não merecia provimento.
Por acórdão de 19 de Maio de 1994, tirado por maioria, a 1ª Secção do Contencioso Administrativo, em subsecção, concedeu provimento ao recurso, declarando nulo o acto impugnado, na sequência da desaplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, do art. 1º do Decreto-Lei nº 143/80, de 21 de Maio, do art. 69º da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas (Lei nº 29/82, de 11 de Dezembro), na parte em que declara aplicável aos
'militares e agentes militarizados dos quadros permanentes e dos contratados em serviço efectivo' na Guarda Fiscal, o art. 32º da mesma lei, relativo ao Regulamento de Disciplina Militar, e do art. 12º, nº 1, da Lei Orgânica da Guarda Fiscal, aprovado pelo Decreto-Lei nº 373/85, de 20 de Setembro.
Nesse acórdão, depois de se dar conta da jurisprudência, com acórdãos de sentidos opostos sobre essas questões de constitucionalidade no Supremo Tribunal Administrativo, abordaram-se sucessivamente questões de inconstitucionalidade material e orgânica, que mereceram resposta positiva. E começou-se por historiar a evolução da redacção do art. 27º da Constituição, da versão originária para a redacção decorrente da primeira revisão constitucional de 1982, pondo-se em destaque o contexto em que passou a admitir-se a legitimidade constitucional da pena disciplinar de prisão para os militares das Forças Armadas, para tal relatando as diferentes posições assumidas nos debates parlamentares na matéria, durante a primeira revisão constitucional. Pode ler-se no referido aresto:
'Resulta destas intervenções que, no momento histórico em que foi constitucionalizada a prisão disciplinar de militares, embora se entendesse que tal solução era indesejável ao nível dos princípios, por representar uma privação de liberdade imposta por decisão administrativa, possibilidade repudiada pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem, reconheceu-se que a força da realidade então vigente no seio das Forças Armadas, da instituição militar, impunha essa cedência. Tratando-se de um preceito restritivo de direitos, de natureza claramente excepcional, admitido por razões específicas das Forças Armadas, logo este elemento histórico de interpretação aponta para a rejeição da sua extensão a instituições distintas das Forças Armadas, como a Guarda Fiscal ou a Guarda Nacional Republicana.
3.6.1.3. Este elemento histórico é reforçado por argumentos de índole literal e sistemática. Com efeito, a Constituição, no seu artigo 270º, introduzido também na revisão de 1982, veio possibilitar que a lei estabeleça «restrições ao exercício dos direitos de expressão, reunião, manifestação, associação e petição colectiva e à capacidade eleitoral passiva dos militares e agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço efectivo, na estrita medida das exigências das suas funções próprias», sendo da exclusiva competência da Assembleia da República (reserva absoluta, indelegável no Governo) legislar sobre «restrições ao exercício de direitos por militares e agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço efectivo» (artigo 167º, alínea p), também introduzida na revisão de 1982, onde constituía a alínea m)). É, assim, claro que, para a Constituição, militares e agentes militarizados constituem categorias distintas e só para os primeiros se consente a aplicação de medidas disciplinares de prisão.' (a fls 224-225 dos autos)
Ainda nesta decisão faz-se referência ao entendimento sobre a contraposição entre militares e agentes militarizados no art. 270º da Constituição, aludindo às diferentes teses debatidas na doutrina e jurisprudência, nomeadamente nos acórdãos nºs 103/87 e 308/90 do Tribunal Constitucional. Nesse acórdão nº 103/87, prevaleceu o entendimento de que aos agentes da Polícia de Segurança Pública, considerados como agentes militarizados, não podiam constitucionalmente ser aplicadas penas de prisão disciplinar ou de prisão disciplinar agravada, por não se tratar de militares. Daí a declaração de inconstitucionalidade parcial do art. 69º da Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas e de diversas normas da respectiva legislação orgânica. E concluiu o acórdão do STA, ora recorrido:
'3.6.1.5. Em face do exposto, uma vez que o artigo 27º, nº 3, alínea c), da Constituição apenas permite a aplicação de penas disciplinares de prisão aos militares das Forças Armadas, tem de concluir-se que as normas do artigo 1º do Decreto-Lei nº 143/80, de 21 de Maio («É aplicável à Guarda Fiscal o Regulamento de Disciplina Militar»), do artigo 69º da Lei nº 29/82, de 11 de Dezembro (Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas), na parte em que declara aplicável aos
«militares e agentes militarizados dos quadros permanentes e dos contratados em serviço efectivo» na Guarda Fiscal o disposto no artigo 32º da mesma Lei, relativo ao Regulamento de Disciplina Militar, e do artigo 12º, nº 1, da Lei Orgânica da Guarda Fiscal, aprovada pelo Decreto-Lei nº 373/85, de 20 de Setembro («Aos militares da Guarda Fiscal aplicam-se, nos termos da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas, (...) o Regulamento de Disciplina Militar
(...)») são, nos segmentos em que tornam aplicáveis aos «militares» da Guarda Fiscal as penas de prisão disciplinar e de prisão disciplinar agravada previstas naquele Regulamento, materialmente inconstitucionais, por violação do citado preceito constitucional, pelo que se impõe aos tribunais a recusa da sua aplicação (artigos 207º da Constituição e 4º, nº 3, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais)'. (a fls. 232 dos autos)
O acórdão recorrido considera ainda que o art. 1º do Decreto-Lei nº 143/80 se acha afectado de inconstitucionalidade orgânica no segmento em que manda aplicar o Regulamento de Disciplina Militar aos
'militares' da Guarda Fiscal que não se acham em serviço efectivo (quanto aos que se acham em serviço efectivo, veja-se o disposto nas disposições conjugadas dos arts. 69º, nº 1, e 32º da Lei nº 29/82). Fundamenta-se aí o juízo de inconstitucionalidade nos seguintes termos, depois de se recordar que o recorrente se acha na reserva e não em serviço efectivo:
'A este respeito, para além de serem para aqui transponíveis as razões que levaram o Tribunal Constitucional, no aludido acórdão nº 103/87, a julgar organicamente inconstitucional o Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública aprovado pelo Decreto-Lei nº 440/82 - a saber: versar sobre o regime da função pública (alínea m) do artigo 167º da Constituição, na sua versão originária) -, acresce que o segmento da norma ora em causa, na medida em que torna aplicável uma pena disciplinar privativa da liberdade, assim afectando o direito à liberdade consagrado no artigo 27º, versa sobre matéria de direitos, liberdades e garantias, relativamente à qual o Governo só podia legislar provido de autorização legislativa (artigo 167º, alínea c), da versão originária da Constituição), o que no caso não ocorria.
Conclui-se, assim que a norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº
143/80, de 21 de Maio, na parte em que torna aplicável aos membros da Guarda Fiscal na situação de reserva as penas de prisão disciplinar e de prisão disciplinar agravada previstas no Regulamento de Disciplina Militar, é organicamente inconstitucional, por violação do artigo 167º, alíneas c)
(referida ao artigo 27º) e m), da Constituição, na sua versão originária, ao tempo vigente.' (a fls. 233-234 dos autos)
Notificado deste acórdão, dele veio interpor recurso de constitucionalidade o representante do Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional. O recurso foi admitido por despacho de fls. 242. O Ministério da Administração Interna interpôs recurso do acórdão para o Pleno da Secção do STA, mas foi considerada prejudicada a apreciação do respectivo requerimento, dada a admissão do recurso de constitucionalidade.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Recorrente e recorrido apresentaram alegações, propugnando ambos pela confirmação do acórdão recorrido.
O Ministério Público formulou as seguintes conclusões:
1º
'As normas do artigo 1º, do Decreto-Lei nº 143/80, de 21 de Maio, ao declarar aplicável à Guarda Fiscal o Regulamento de Disciplina Militar; do artigo 69º da Lei nº 29/82, de 11 de Dezembro, na parte em que declara aplicável aos
«militares e agentes militarizados dos quadros permanentes e dos contratados em serviço efectivo» na Guarda Fiscal o disposto no artigo 32º da mesma Lei, relativo ao Regulamento de Disciplina Militar: e do artigo 12º, nº 1, da Lei Orgânica da Guarda Fiscal, aprovada pelo Decreto-Lei nº 373/85, de 20 de Setembro, ao estabelecer que «aos militares da Guarda Fiscal aplicam-se, nos termos da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas, (...) o Regulamento de Disciplina Militar (..)», são, nos segmentos em que tornam aplicáveis aos
«militares» da Guarda Fiscal as penas de prisão disciplinar e de prisão disciplinar agravada previstas naquele Regulamento, materialmente inconstitucionais, por violação do artigo 27º, nº 3, alínea c) da Constituição, por este preceito apenas permitir a aplicação de penas disciplinares de prisão aos militares das Forças Armadas.
2º
A norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº 143/80, de 21 de Maio, na parte em que torna aplicável aos membros da Guarda Fiscal na situação de reserva as penas de prisão disciplinar e de prisão disciplinar agravada previstas no Regulamento de Disciplina Militar, é organicamente inconstitucional, por violação do artigo 167º, alínea c) (referida ao artigo 27º) e m) da Constituição, na sua versão originária.
3º
Deve, assim, negar-se provimento ao recurso, confirmando-se o acórdão recorrido, na parte impugnada.' (a fls. 258-260 dos autos)
O recorrido, por seu turno, considerou nas respectivas conclusões da sua alegação que as normas desaplicadas sofriam de inconstitucionalidade material, por violação do art. 27º, nº 3, alínea c), da Lei Fundamental, estando ainda o art. 1º do Decreto-Lei nº 143/80, de 21 de Maio, afectado de inconstitucionalidade orgânica, por violação das alíneas c) e m) do art. 167º da versão originária da Constituição, remetendo quanto a ambas as conclusões para a fundamentação constante do acórdão recorrido e das alegações do Ministério Público.
3. Foram corridos os vistos legais.
Por não haver motivos que a tal obstem, cumpre conhecer do objecto do recurso.
II
4. Constituem objecto do presente recurso, por terem sido desaplicadas no acórdão recorrido, com fundamento na sua inconstitucionalidade, as seguintes normas:
- art. 1º do Decreto-Lei nº 143/80, de 21 de Maio - 'É aplicável à Guarda Fiscal o Regulamento de Disciplina Militar';
- art. 69º, nº 1, da Lei nº 29/82, de 11 de Dezembro (Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas) - 'O disposto nos artigos 31º, 32º e 33º do presente diploma
é aplicável aos militares e agentes militarizados dos quadros permanentes e dos contratados em serviço efectivo [...] na Guarda Fiscal' (o segmento desaplicado refere-se exclusivamente à remissão para o art. 32º nº 1, desta lei, que tem o seguinte teor: 'As exigências específicas do ordenamento aplicável em matéria de justiça e de disciplina serão reguladas, respectivamente, no Código de Justiça Militar e no Regulamento de Disciplina Militar');
- art. 12º, nº 1, da Lei Orgânica da Guarda Fiscal, aprovada pelo Decreto-Lei nº
373/85, de 20 de Setembro. - 'Aos militares da Guarda Fiscal aplicam-se, nos termos da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas, as restrições ao exercício de direitos por militares, o Código de Justiça Militar e o Regulamento de Disciplina Militar e o regime jurídico do recurso ao Provedor de Justiça em matéria de defesa nacional e das Forças Armadas.'
5. Importa referir que, relativamente às normas desaplicadas pelo acórdão recorrido, todas elas são apontadas como violando materialmente o art. 27º, nº 3, alínea c), da Constituição. Além disso, é imputado igualmente ao art. 1º do Decreto-Lei nº 143/80, de 21 de Maio, o início de inconstitucionalidade orgânica.
Na economia da decisão recorrida, avulta a circunstância de se considerar que o recorrente, enquanto soldado da então existente Guarda Fiscal na situação de reserva, só está sujeito ao Regulamento da Disciplina Militar por força do disposto no art. 1º do citado Decreto-Lei nº
143/80. De facto, só esta disposição torna aplicável aos oficiais, sargentos e praças da Guarda Fiscal, no activo, na reserva e na reforma, o Regulamento de Disciplina Militar, ao passo que o art. 69º, nº 1, da Lei nº 29/82 - ao remeter para o nº 1 do art. 32º da mesma lei - só torna aplicável o Regulamento de Disciplina Militar 'aos militares e agentes militarizados dos quadros permanentes e dos contratados em serviço efectivo [...] na Guarda Fiscal' (o mesmo se diga também do art. 12º, nº 1, da Lei Orgânica da Guarda Fiscal, aprovada pelo Decreto-Lei nº 373/85, de 20 de Setembro, visto que este diploma torna aplicável aos 'militares da Guarda Fiscal' o Regulamento de Disciplina Militar 'nos termos da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas'.
De facto, pode ler-se no acórdão recorrido:
' Porém, como acabou de se registar, a Lei nº 29/82, no seu artigo 69º e por remissão para o artigo 32º, apenas determinou a aplicação do Regulamento de Disciplina Militar aos militares, agentes militarizantes e contratados da Guarda Fiscal «em serviço efectivo». E o mesmo alcance tem a norma do artigo 12º, nº 1, da Lei Orgânica da Guarda Fiscal.
Ora, no presente caso, o recorrente não está em serviço efectivo, mas sim na reserva, pelo que, relativamente a ele, a aplicabilidade do Regulamento de Disciplina Militar só pode ter arrimo no diploma de 1980 e, assim, há que apreciar a sua inconstitucionalidade orgânica' (a fls. 233 vº dos autos).
Mas, se assim é, só pode constituir objecto do recurso a norma efectivamente desaplicada pela decisão recorrida, a saber, o art. 1º do Decreto-Lei nº 143/80, de 21 de Maio, sendo as outras normas desaplicadas meras reproduções ou confirmações daquela, mas restritas ao universo dos membros da Guarda Fiscal no activo.
A norma do art. 1º do diploma de 1980 constitui, pois, o objecto do presente recurso de constitucionalidade.
Recorde-se, por último, que essa norma foi desaplicada na decisão recorrida por se considerar afectada não só de inconstitucionalidade material, como de inconstitucionalidade orgânica.
Começar-se-á pela análise da questão da alegada inconstitucionalidade orgânica.
6. No recente acórdão nº 725/95, tirado pela 2ª Secção deste Tribunal e ainda inédito - que versou um recurso idêntico ao presente - houve a preocupação de historiar a evolução da Guarda Fiscal em Portugal, desde a sua criação em 1884 até à sua extinção em 1993, referindo-se nesse contexto o seguinte:
'1. No Decreto nº 4, de 27 de Setembro de 1884, estabeleceu-se que «[a] Guarda Fiscal, como parte integrante das forças militares do Reino», estava submetida a
«deveres e direitos idênticos aos que competem aos oficiais e praças de pré do Exército activo».
Porém, em 1927, por intermédio do Decreto nº 13.461, de 23 de Março, foi aprovado um específico «Regulamento Disciplinar da Guarda Fiscal», o qual veio, em 1966, a ser substituído por um outro, aprovado pelo Decreto nº 49.969, de 23 de Abril.
Nos termos do prescrito no artº 5º deste último «Regulamento», os deveres nele consagrados (elencados nos 68 números do artigo anterior) deveriam ser cumpridos pelo «pessoal da Guarda Fiscal em serviço activo e na situação de reserva prestando serviço», ficando o «restante pessoal na situação de reserva» unicamente obrigado ao cumprimento dos deveres indicados nos números 3º, 4º, 5º,
9º, 11º, 12º, 13º, 16º, 24º, 25º, 28º, 30º, 31º, 32º, 33º, 36º, 37º, 38º, 44º,
47º, 48º, 50º, 53º, 54º, 62º, 63º, 66º e 67º do referido artº 4º.
De harmonia com o disposto nos artigos 10º e 11º desse mesmo «Regulamento», as penas aplicáveis a cabos e soldados eram, respectivamente: (a) as de «Repreensão agravada», «Detenção até 40 dias», «Prisão disciplinar até 30 dias» e «Prisão disciplinar agravada até 60 dias» e, (b) as de «Repreensão», «Repreensão agravada», «quartos de serviço até 12», «Detenção até 40 dias», «Prisão disciplinar até 30 dias» e «Prisão disciplinar agravada até 60 dias».
Com a reestruturação da Guarda Fiscal, designadamente a que foi operada a partir de 1974, foi entendido aplicar-se-lhe o «Regulamento de Disciplina Militar», o que se operou por intermédio do Decreto-Lei nº 143/80, de 21 de Maio, atenta a característica daquela força como um «corpo com estrutura militar», e em que é de «evidência a sua ligação às forças armadas, tanto em tempo normal como em situação de emergência, de estado de sítio ou de guerra, altura em que passa à subordinação dos comandos militares» (palavras do exórdio desse diploma), consequentemente deixando o respectivo pessoal de estar sujeito a um específico regulamento disciplinar' (nº II. 1).
7. No acórdão que vimos seguindo analisa-se depois a evolução legislativa subsequente, nomeadamente o disposto no art. 69º da Lei nº 29/82, de 11 de Dezembro (Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas), bem como a legislação orgânica de 1985 (o Decreto-Lei nº 373/85, de 20 de Setembro, que aprovou a Lei Orgânica da Guarda Fiscal; o Decreto-Lei nº
374/85, da mesma data, que aprovou o Estatuto do Militar da Guarda Fiscal e os Estatutos do Oficial, do Sargento e do Praça dessa corporação).
E, mais à frente, afirma-se o seguinte no mesmo aresto:
' Da perfunctória resenha acima efectuada concluir-se-á sem dificuldades de maior, que, no que tange à pena de «Prisão Disciplinar» e de «Prisão Disciplinar Aprovada» aplicáveis a cabos e soldados, têm alguma semelhança os regimes que se divisam no então vigente «Regulamento Disciplinar da Guarda Fiscal» [de 1966, que substituiu o de 1927] e no «Regulamento de Disciplina Militar» (cfr. artigos
15º, 16º, 25º, 26º, 28º e 29º daquele primeiro «Regulamento» e 27º, 28º, 51º, nº
3, e 52º, nº 3, do segundo).
A questão, todavia, com o recorte que nos é dado pela decisão recorrida, é a de saber se (ainda que um e outro daqueles «Regulamentos» apresentassem, no que à pena em apreciação concerne, uma total identidade), em face dos preceitos constitucionais vigentes ao tempo da edição do D.L. nº 143/80, era possível ao Governo, no uso da sua competência legislativa e desacompanhado de credencial parlamentar, emitir normação que tornasse aplicável a um corpo especial de tropas que não faz parte das Forças Armadas um regime disciplinar por intermédio do qual aos respectivos elementos era aplicável uma pena disciplinar consistente na privação de liberdade.
A resposta a uma tal questão não poderá deixar de ser negativa'. (nº II. 2. 1)
8. De facto, e como se demonstra no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo sob recurso, bem como no acórdão nº
725/95 deste Tribunal, implicando as penas de prisão disciplinar a reclusão do soldado da Guarda Fiscal em casa a esse efeito destinada, aquartelarmento ou estabelecimento dessa corporação (cfr. arts. 27º e 28º do Regulamento de Disciplina Militar, RDM, aprovado pelo Decreto-Lei nº 142/77, de 9 de Abril), penas não aplicadas por decisão jurisdicional, isso há-de levar a concluir que as mesmas penas afectam o direito à liberdade, direito fundamental previsto no nº 1 do art. 27º da Constituição. Por isso, trata-se de matéria que versa sobre direitos, liberdades e garantias, reservada à competência da Assembleia da República (ou do Governo por aquele autorizado) - veja-se a alínea c) do art.
167º da Constituição, na versão originária, em vigor à data da publicação do Decreto-Lei nº 143/80.
De facto, o Decreto-Lei nº 143/80 foi emitido pelo Governo, sem autorização parlamentar para tanto, não relevando - como se demonstrou no citado acórdão nº 725/95 - a circunstância de haver uma analogia de factos entre os regimes de prisão disciplinar no diploma de 1966 e no Regulamento de Disciplina Militar.
Daí a sua inconstitucionalidade orgânica, nos termos expostos.
9. Alcançada esta conclusão, torna-se inútil averiguar se a norma que constitui objecto do presente recurso sofre de inconstitucionalidade material por ofensa da alínea c) do nº 3 do art. 27º da Constituição.
III
10. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso, julgando inconstitucional, por violação do disposto nas alíneas c) do art. 167º da versão originária da Constituição, a norma constante do art. 1º do Decreto-Lei nº
143/80, de 21 de Maio, enquanto determina a aplicabilidade a cabos e soldados da Guarda Fiscal na situação de reserva as penas de prisão e prisão disciplinar agravada nos artigos 27º e 28º do Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pelo Decreto-Lei nº 124/77, de 9 de Abril, confirmando, embora com fundamento parcialmente diferente, o acórdão recorrido no julgamento da questão de constitucionalidade.
Lisboa, 7 de Fevereiro de l996
Ass) Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Vitor Nunes de Almeida
Maria Fernanda Palma
José Manuel Cardoso da Costa