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Proc. nº 202/94
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - A e outros, enfermeiros da Administração do Porto de Lisboa, interpuseram no Supremo Tribunal Administrativo recurso contencioso de anulação do despacho de 11 de Agosto de 1988, do Secretário de Estado das Vias de Comunicação, publicado no Diário da República, II série, nº 185, Suplemento, de
11 de Agosto de 1988, 'que os mandou transitar para o novo figurino de carreiras e categorias desenhado pela Portaria nº 494/87, de 27 de Julho'.
Como suporte do pedido, e em síntese conclusiva, alegaram que o acto impugnado:
' - está inquinado de vício de violação de lei de fundo, gerador de nulidade absoluta, por erro acerca do pressuposto de direito por fazer aplicação de regras constantes de actos normativos não legislativos - a Portaria nº 494/88 e o Despacho Normativo nº 63/88 - proferidos com fundamento e em consequência de actos legislativos feridos de inconstitucionalidade orgânica - o Decreto-Lei nº
348/86, de 16 de Outubro, em especial os artigos 3º, i) e 33º das Bases Gerais a si anexas, como parte integrante ex vi do artigo 15º, nº 5; o Decreto-Lei nº
309/87, de 7 de Agosto, (em especial o artigo 42º) e o Decreto-Lei nº 101/88, de
26 de Março - por versarem sobre as bases gerais do regime e âmbito da função pública, tendo sido emitidos pelo Governo sem a necessária autorização legislativa da Assembleia da República, assim violando o prescrito no artigo
168º, alínea v), da Constituição da República que reserva a este último órgão competência para legislar sobre aquelas matérias;
- está ainda inquinado do vício de violação de lei de fundo, gerador de nulidade absoluta, por erro acerca do pressuposto de direito ao aplicar regras constantes dos já referidos Despacho Normativo e Portaria nº 494/88 - qualquer deles acto normativo não legislativo de eficácia externa e integrativos do Decreto-Lei nº 101/88 (em especial do seu artigo 8º, nº 1, do Estatuto de Pessoal das Administrações dos Portos) ao fixarem o regime de carreiras e categorias, mapa de pessoal, funções das carreiras e categorias, bem como do primeiro provimento nos quadros ao abrigo desse regime - preceito este (artigo
8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 101/88), ferido de inconstitucionalidade material por ofensa do disposto nos artigos 115º, 1 e 5 da Constituição da República a qual, consequentemente se comunicou aos citados Despacho Normativo e Portaria, bem como ao despacho impugnado'.
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 3 de Fevereiro de
1994, concedeu provimento ao recurso e anulou o acto impugnado.
E ateve-se, para tanto, à fundamentação seguinte:
'O acto impugnado aprovou as listas nominativas para o primeiro preenchimento de vagas do novo quadro dos trabalhadores da Administração do Porto de Lisboa elaborados de harmonia com o art. 72º do Estatuto de Pessoal das Administrações dos Portos, aprovado pelo Decreto-Lei nº 101/88, de 26 de Março.
O regime de carreiras e categorias, mapa de pessoal, funções das carreiras e categorias, nível remuneratório e primeiro provimento nos quadros foram fixados segundo o Decreto-Lei nº 101/88 e os diplomas regulamentares - Portaria nº 494/88 e Despacho Normativo nº 63/88, de 27 de Julho.
O citado Decreto-Lei nº 101/88 pretendeu definir um novo regime jurídico para o pessoal das administrações dos portos, compatibilizando o estatuto com a nova orgânica do sistema portuário nacional.
Para isso instituiu soluções jurídicas que se afastaram consideravelmente do regime aplicável ao funcionalismo civil do Estado.
Essa nova regulamentação abrange toda a matéria respeitante à relação de emprego e à situação estatutária dos funcionários, incluindo a admissão e provimento de pessoal, cessação da relação de trabalho, direitos e deveres dos trabalhadores, duração e regime da prestação do trabalho, retribuição e segurança social.
Conseguiu-se uma maior flexibilidade de gestão do pessoal das administrações dos portos.
Por sua vez, o artº 33º das Bases Gerais dos Estatutos Orgânicos das Administrações dos Portos publicadas em anexo ao Decreto-Lei nº 348/86, de 16 de Outubro, estabelece que o pessoal das administrações portuárias reger-se-á por um único regime jurídico de direito privativo, adequado às necessidades e responsabilidades do serviço.
Estes diplomas instituem, pois, um regime especial para os funcionários das administrações portuárias.
O artº 168º, nº 1, alínea v) da Constituição da República dispõe que é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar, salvo a autorização ao Governo, sobre bases do regime e âmbito da função pública.
Os citados Decretos-Leis nºs 348/86 e 101/88 tratam de regime e âmbito da função pública, embora relativamente a um sector e fixando regras especiais.
Tais diplomas - como escreve justamente o sr. Procurador-Geral Adjunto - não deixam de incidir sobre matéria da exclusiva competência da Assembleia da República visto que interferem com o estatuto próprio da função pública e com a delimitação do seu âmbito.
Não foram publicados ao abrigo de autorização legislativa.
Verifica-se, assim, a inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei nº
101/88, de 26 de Março, pelo que tem de recusar-se a aplicação da norma do artº
72º do Estatuto de Pessoal das Administrações dos Portos e das disposições regulamentares que serviram de base à elaboração das listas nominativas, o que determina a ilegalidade do acto impugnado'.
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2 - Deste acórdão, em conformidade com o disposto nos artigos 280º, nºs 1, alínea a) e 3, da Constituição e 70º, nº 1, alínea a) e 72º, nº 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, trouxe o Ministério Público recurso obrigatório a este Tribunal.
Nas alegações depois oferecidas pelo senhor Procurador-Geral Adjunto, concluiu-se assim:
1ª - Apenas se situa no âmbito da competência legislativa da Assembleia da República o estabelecimento das 'bases gerais do regime e âmbito da função pública' [alínea v) do nº 1 do artigo 168º da Constituição], sendo lícito ao Governo, sem necessidade de credencial parlamentar, editar diplomas que visem desenvolver as referidas bases gerais ou estabelecer 'regimes especiais' da função pública, desde que não entre em colisão com os parâmetros normativos fundamentais neles estabelecidos.
2ª - Não se situa na área de competência legislativa reservada da Assembleia da República a determinação da passagem de determinado corpo de funcionários de um regime especial (o da carreira de enfermagem), instituído por diplomas editados no uso da competência legislativa própria do Governo, para outro regime especial (decorrente do Estatuto do Pessoal da Administração dos Portos).
Por seu turno, o Ministro do Mar, veio aos autos aduzir que 'não é abrangido pela área de competência reservada da Assembleia da República, a passagem de um núcleo de funcionários de um regime especial instituído por diploma editado no uso da competência legislativa própria do Governo, para outro regime especial', propugnando no sentido do provimento do recurso.
Os recorridos não contralegaram.
Os autos correram os vistos de lei, cumprindo agora apreciar e decidir.
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II - A fundamentação
1 - O Decreto-Lei nº 247/79, de 25 de Julho, aprovou o estatuto laboral das administrações e juntas portuárias, sendo aplicável o regime jurídico nele definido, para além de outros organismos, à então denominada Administração-Geral do Porto de Lisboa (artigo 1º).
Em conformidade com o disposto no artigo 46º, as entidades destinatárias do diploma disporiam do pessoal de enfermagem necessário ao seu funcionamento, sendo-lhes aplicadas as regras de desenvolvimento de carreiras e requisitos de provimento previstos na respectiva legislação geral.
Aquando da publicação do Decreto-Lei nº 191-C/79, de 25 de Julho, aprovado pelo Governo ao abrigo de autorização parlamentar, com o qual se procedeu à reestruturação de carreiras dos diversos serviços e organismos da Administração Central e dos institutos públicos que revestissem a natureza de serviços personalizados ou de fundos públicos, excepcionaram-se do regime geral ali definido algumas carreiras com regime especial referindo-se dentre estas, expressamente, a carreira de enfermagem (artigo 24º).
A carreira de enfermagem veio a ser definida e reformulada pelo Decreto-Lei nº 305/81, de 12 de Novembro, depois alterado em diversos dos seus preceitos pelo Decreto-Lei nº 324/83, de 6 de Julho.
As disposições daquele diploma eram aplicáveis aos enfermeiros providos em lugares de quadros ou mapas dos estabelecimentos ou serviços dependentes do Ministério dos Assuntos Sociais sendo extensíveis por portaria conjunta a outros organismos do Estado e instituições privadas de solidariedade social com fins de saúde e assistência (artigo 1º, nº 2).
Foi entretanto publicado o Decreto-Lei nº 178/85, de 23 de Maio, que procedeu à revisão da carreira de enfermagem e revogou os Decretos-Leis nºs
305/81 e 324/83, vindo mais tarde algumas das suas disposições a ser revogadas pelo Decreto-Lei nº 134/87, de 17 de Março, que introduziu também alterações na estrutura daquela carreira.
Também a sua disciplina, directamente aplicável ao pessoal provido em lugares de quadros ou mapas dos estabelecimentos ou serviços do Ministério da Saúde, era extensível, por portaria conjunta, a outros organismos do Estado e instituições de solidariedade social.
E, na decorrência da Portaria nº 152/87, de 5 de Março, as normas do Decreto-Lei nº 178/85, passaram a ser aplicadas aos enfermeiros providos em lugares dos quadros de pessoal da Administração-Geral do Porto de Lisboa (ponto
1º).
O Decreto-Lei nº 348/86, de 16 de Outubro, que procedeu à reorganização institucional do sector portuário, aprovou, no artigo 15º, nº 5, as Bases Gerais dos Estatutos Orgânicos das Administrações dos Portos, a ele anexas e dele fazendo parte integrante.
Em conformidade com estas Bases Gerais, as administrações dos portos são institutos públicos dotados de personalidade jurídica e de autonomia administrativa, financeira e patrimonial (artigo 1º).
Os estatutos das administrações dos portos devem obrigatoriamente conter, para além de diversas outras especificações, regras gerais relativas ao estatuto de pessoal (artigo 3º).
O pessoal das administrações reger-se-á por um único regime jurídico de direito público privativo, adequado às necessidades e responsabilidades do serviço, a definir em diploma próprio (artigo 33º).
Na decorrência do Decreto-Lei nº 348/86, que previa a publicação em curto prazo de novos estatutos orgânicos das administrações dos portos, foi editado o Decreto-Lei nº 309/87, de 7 de Agosto, que aprovou o Estatuto Orgânico da Administração do Porto de Lisboa.
Em conformidade com o artigo 42º deste Estatuto Orgânico o pessoal da Administração do Porto de Lisboa 'reger-se-á por um único regime jurídico de direito público privativo, adequado às necessidades e responsabilidades do serviço a definir em diploma próprio'.
Foi o Decreto-Lei nº 101/88, de 26 de Março, que, na continuidade e em cumprimento do artigo 33º das Bases Gerais dos Estatutos Orgânicos das Administrações dos Portos, aprovou o Estatuto do Pessoal das Administrações dos Portos.
As soluções adoptadas neste diploma foram assim justificadas na respectiva exposição preambular:
'O regime jurídico actual do pessoal das administrações dos portos tem as especificidades resultantes das disposições do Decreto-Lei nº 247/79, de 25 de Julho, que, sem perder de vista as bases gerais aplicáveis à Administração Pública, procurou responder aos imperativos ditados pelas características próprias do trabalho portuário.
A experiência destes anos demonstrou que tal regime não serve para o pessoal de organismos que são fundamentalmente entidades prestadoras de serviços cuja gestão se reveste de um iniludível carácter empresarial'.
E mais adiante:
A compatibilização do presente estatuto com a nova orgânica do sistema portuário nacional radica na consecução de três grandes objectivos:
a) Flexibilização da gestão do pessoal;
b) Racionalização do trabalho face aos objectivos de gestão;
c) Moralização da prestação de trabalho, nomeadamente no que respeita às horas extraordinárias e ao sistema de turnos.
Os objectivos referidos determinaram um considerável afastamento do regime aplicável ao funcionalismo civil do Estado. Mas entre as soluções possíveis continuou a optar-se por um regime de direito público, ainda que privativo.
A opção é a que melhor se coaduna com a manutenção das administrações como organismos que são simultaneamente autoridades portuárias e entidades prestadoras de serviço para venda no mercado.
A maior flexibilização da gestão do pessoal das administrações dos portos, conseguida através do presente diploma, impõe também uma maior responsabilização dos respectivos conselhos de administração em matéria de gestão do pessoal'.
Nos termos do seu artigo 1º, o Estatuto 'aplica-se a todo o pessoal das administrações dos portos', sendo que em tudo o que nele não se encontrar regulado se aplica ao pessoal ao serviço das administrações dos portos' a legislação relativa ao funcionalismo civil do Estado, salvo se essa legislação for contraditória com o presente Estatuto'.
O articulado do Estatuto acha-se dividido em catorze capítulos, assim epígrafados: Capítulo I (Disposições Gerais); Capítulo II (Quadros de pessoal); Capítulo III (Admissão); Capítulo IV (Alteração da situação profissional); Capítulo V (Cessação da relação de trabalho); Capítulo VI
(Avaliação do desempenho); Capítulo VII (Direitos, deveres e prerrogativas, garantias e incompatibilidades); Capítulo VIII (Prestação de trabalho); Capítulo IX (Suspensão da prestação de trabalho); Capítulo X (Retribuição); Capítulo XI (Segurança Social); Capítulo XII (Formação profissional); Capítulo XIII (Regime de aprendizagem) e Capítulo XIV (Disposições finais e transitórias).
Em ordem a uma melhor apreensão da matéria sob sindicância importa reter de entre o articulado do Estatuto a norma que se contem no artigo 72º, desaplicada, com fundamento em inconstitucionalidade, no acórdão recorrido.
Dispõe assim:
Artigo 72º
(Primeiro preenchimento de lugares nos novos quadros e processos pendentes)
1 - O primeiro preenchimento de lugares nos novos quadros pelos trabalhadores das administrações dos portos vinculados às administrações à data da entrada em vigor do Estatuto do Pessoal far-se-á mediante lista ou listas nominativas aprovadas pelo ministro da tutela e publicadas no Diário da República com dispensa de visto do Tribunal de Contas.
2 - As normas a observar para efeitos do disposto no número anterior, nomeadamente para efeitos de contagem de antiguidade, constarão de despacho normativo dos Ministros das Finanças e da tutela.
3 - Aos trabalhadores que transitem para os novos quadros nos termos dos números anteriores são exigidas, para a manutenção de acesso nas carreiras em que forem integrados, as habilitações literárias regulamentarmente fixadas.
4 - Na data da entrada em vigor do estatuto do Pessoal das Administrações dos Portos caducam os concursos de admissão e promoção concluídos, sendo anulados os que não tenham chegado ao seu termo.
5 - Os despachos de provimento ou de nomeação, incluindo os abrangidos pelo Decreto-Lei nº 66/87, de 7 de Fevereiro, proferidos antes da data da entrada em vigor do Estatuto mantêm-se, mesmo que ainda não sejam eficazes, sendo-lhes aplicável o regime legal vigente àquela data.
6 - Enquanto não estiverem preenchidos os grau finais das novas carreiras, entre as quais se fazem os recrutamentos preferenciais que venham a ser regulamentarmente previstos nos termos do presente diploma, poderão ser feitos entre trabalhadores das administrações dos portos providos no grau imediatamente inferior.
O Decreto-Lei nº 101/88, veio a ser regulamentada pela Portaria nº
494/88, de 27 de Julho e pelo Despacho Normativo nº 63/88, da mesma data.
A Portaria nº 494/88, 'considerando ser necessário estabelecer a regulamentação dos grupos profissionais, carreiras, categorias, conteúdo funcional, regimes de admissão, regimes de estágio, regimes de provimento, evolução profissional, bem como as horas de trabalho semanal, base de remuneração, habilitações literárias, formação, métodos de selecção, provas de conhecimento e experiência profissional exigível decorrentes da aplicação do Estatuto do Pessoal das Administrações dos Portos' veio definir uma disciplina secundária relativamente a estas diversas matérias em cumprimento dos comandos e em execução dos regimes jurídicos estabelecidas na lei.
Por outro lado, o Despacho Normativo nº 63/88, expedido ao abrigo do disposto no referenciado artigo 72º, veio 'estabelecer o dispositivo regulador do primeiro preenchimento de lugares nos novos quadros decorrentes da aplicação do Estatuto do Pessoal das Administrações dos Portos'.
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2 - Os recorrentes impugnaram o despacho ministerial que aprovou as listas nominativas para primeiro preenchimento de lugares do novo quadro, elaboradas nos termos e para os efeitos do artigo 72º do Estatuto do Pessoal das Administrações dos Portos, reportadas a pessoal com contrato administrativo de provimento por tempo indeterminado, nos termos do artigo 33º, nº 5 da Portaria nº 494/88 (pessoal do quadro aprovado com base no Decreto-Lei nº
247/79, de 25 de Julho, com provimento definitivo).
E a decisão recorrida, depois de considerar que os Decretos-Leis nºs
348/86 e 101/88, ao instituirem um 'regime especial para os funcionários das administrações portuárias' dispuseram sobre matérias próprias do 'regime e
âmbito da função pública' recusou, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, a aplicação da norma do artigo 72º e 'das disposições regulamentares que serviram de base à elaboração das listas nominativas'.
Importa assim, desde logo, apurar qual o exacto sentido e extensão da matéria que na alínea u) do artigo 168º, nº 1, da Constituição (na versão saída da revisão constitucional de 1982), se inscreve no domínio da competência reservada da Assembleia da República.
Na versão originária da Constituição a norma correspondente ao actual artigo 168º, nº 1, alínea v) - a alínea m), do artigo 167º - definia esta reserva legislativa em termos de 'regime e âmbito da função pública'.
Aquando da revisão constitucional de 1982, a matéria desta reserva transitou para o artigo 168º, nº 1, alínea u) com a definição que comporta no artigo 168º, nº 1, alínea v), após a revisão de 1989.
Ainda na vigência do primitivo texto constitucional, já na jurisprudência da Comissão Constitucional (cfr. pareceres nºs 22/79 e 12/82, Pareceres da Comissão Constitucional, vols. 9º, p. 48, e 19º, p. 119, respectivamente) se sustentava que na competência reservada da Assembleia da República entrava apenas o 'estatuto geral' da função pública, aquilo que 'é comum e geral a todos os funcionários e agentes', aí se compreendendo, designadamente, 'a definição do sistema de categorias, de organização de carreiras, de condições de acesso e de recrutamento, de complexo de direitos e deveres funcionais que valem, em princípio, para todo e qualquer funcionário público e que, por isso mesmo, favorecem o enquadramento da função pública como um todo, dentro das funções do Estado'; diversamente, já pertencia à competência legislativa do Governo a 'concretização' desse estatuto geral, a sua
'complementação, execução e particularização', ou seja, 'quer o desenvolvimento de tais princípios, quer a sua aplicação e adaptação aos sectores que exijam um regime particular específico ou até excepcional'.
Após a revisão constitucional de 1982, veio este entendimento a ser perfilhado e, porventura, reforçado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional (cfr. por todos os acórdãos nºs 142/85, 154/86 e 103/87, Diário da República, II série, de 7 de Setembro de 1985 e I série, de 12 de Junho de
1986 e 6 de Maio de 1987, respectivamente).
No primeiro destes arestos, escreveu-se assim:
'Ora, se as coisas já se concebiam deste modo com referência ao texto constitucional anterior à revisão, com muito maior razão se impõe o entendimento de que a reserva estabelecida depois dela pelo actual artigo 168º, nº 1, alínea u) [presentemente alínea v)], abrange unicamente o estatuto geral da função pública e o delineamento geral do seu âmbito, mas não a particularização e concretização desse estatuto e o traçado em pormenor do respectivo âmbito de aplicação no concernente a quaisquer sectores concretos e individualizados da Administração Pública. Mais: essa reserva não se reporta sequer a um tratamento normativo desenvolvido da matéria em causa, mas tão só à definição dos seus princípios fundamentais.
É isso o que textual e indiscutivelmente resulta do referido preceito constitucional e se revela, a todas as luzes, do confronto dele com a precedente disposição do artigo 167º, alínea m). Na verdade, em face só do teor literal desta, ainda se poderia duvidar do rigor da orientação interpretativa a seu respeito fixada pela Comissão Constitucional, pelo menos em alguma ou algumas das formulações de que se revestiu; mas, depois que o legislador da revisão constitucional - certamente determinado por considerações de fundo idênticas às que estiveram na base da `jurisprudência' daquela Comissão - veio expressamente limitar a reserva da Assembleia `às bases' do regime e âmbito da função pública, não pode deixar de ter-se por absolutamente líquido que a extensão de tal reserva é unicamente a que ficou apontada, sendo inclusivamente menor do que a que lhe era atribuída na versão originária da Constituição.
Temos assim que o que em exclusivo cabe à Assembleia da República (...) é a definição das grandes linhas que hão-de inspirar a regulamentação legal da função pública e demarcar o âmbito institucional e pessoal da aplicação desse específico regime jurídico. Na imediata dependência de um debate e de uma decisão parlamentar (é esse, bem se sabe, o significado da reserva) encontra-se apenas, e compreensivelmente, o estabelecimento do quadro dos princípios básicos fundamentais daquela regulamentação, dos seus princípios reitores ou orientadores - princípios esses que caberá depois ao Governo desenvolver, concretizar e mesmo particularizar, em diplomas de espectro mais ou menos amplo
(consoante o exigir a especificidade das situações a contemplar), e princípios que constituirão justamente o parâmetro e o limite desse desenvolvimento, concretização e particularização'.
Na esteira desta jurisprudência que por inteiro se perfilha, poder-se-á dizer em síntese final, que a reserva legislativa a que se reporta a alínea v), do nº 1, do artigo 168º da Constituição, remete para uma lei quadro da função pública, na qual se incluirá apenas o que tenha a natureza de regulamentação de princípio, por constituir, ou co-envolver, uma redefinição de princípios jurídicos da respectiva matéria.
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3 - Será que a estatuição contida na norma do artigo 72º do Estatuto do Pessoal das Administrações dos Portos e as disposições regulamentares que lhe deram execução se devem considerar, à luz dos princípios expostos, como integrativos do conceito de 'bases do regime e âmbito da função pública' ?
Aquela norma, inscrita no capítulo das 'disposições finais e transitórias' veio estabelecer a forma do primeiro provimento de lugares nos novos quadros das administrações, sendo que as regras desse preenchimento, regulamentarmente definidas, no respeitante ao segmento aplicado na situação em apreço - Pessoal de enfermagem / Técnico de enfermagem / Enfermeiro chefe / Enfermeiro - não modificaram, substituiram ou derrogaram qualquer base geral do regime da função pública, nomeadamente no que toca às respectivas carreiras e categorias profissionais.
Com efeito, tal preceito, em si mesmo considerado, assim como a regulamentação de mera execução ou complementaridade que ao seu abrigo foi expedida - ao menos na específica dimensão a que se reporta o presente recurso - não introduziu no regime anteriormente aplicável aquele pessoal nenhuma novidade essencial em termos de se poder ter por invadida a esfera dos princípios gerais pertencente à competência reservada da Assembleia da República.
Aliás, para além da preservação da carreira e das categorias e conteúdos funcionais do pessoal de enfermagem, sempre o artigo 73º do Estatuto, aos trabalhadores das administrações dos portos com vínculo à Administração Pública à data da sua entrada em vigor, sem prejuízo da sua aplicação lhes ressalvava os 'direitos adquiridos'.
Mas, poder-se-á porventura sustentar que o acórdão recorrido, apesar de explicitamente apenas ter recusado a aplicação daquelas normas, terá também rejeitado, de modo implícito, todo o Decreto-Lei nº 101/88.
Porém, este entendimento, dada a formulação utilizada naquele aresto aquando da apreciação da questão de inconstitucionalidade deve ter-se por inaceitável, desde logo porque para a aprovação da lista nominativa impugnada pelos recorrentes não havia de se convocar esse articulado, como aliás logo se reconheceu no requerimento de interposição do recurso ao delimitar-se o seu objecto em termos de a matéria a apreciar pelo Tribunal Constitucional se dever circunscrever à 'recusa de aplicação da norma do artigo 72º do Estatuto do Pessoal das Administrações dos Portos, aprovado pelo Decreto-Lei nº 101/88, de
26 de Março, e das normas regulamentares do artigo 33º, nº 5, da Portaria nº
494/88, de 27 de Julho, e do Despacho Normativo nº 63/88, da mesma data'.
E, tem-se por seguro, inexistir na norma daquele artigo 72º qualquer vício de inconstitucionalidade, nomeadamente o vício de ofensa à reserva de competência legislativa da Assembleia da República, que na decisão recorrida se lhe assacou. (Relativamente aos preceitos regulamentares de execução não poderá sequer falar--se em inconstitucionalidade orgânica dada a específica natureza destes actos normativos).
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4 - Ao tempo da edição do Decreto-Lei nº 101/88, não existia propriamente uma lei quadro que de modo global, enunciasse os 'princípios básicos fundamentais' do regime da função pública, tendo contudo sido já aprovados, ao abrigo de credencial parlamentar, alguns diplomas que vieram estabelecer regras gerais sobre tal matéria.
Assim, e num primeiro momento, foram aprovados o Decreto-Lei nº
191-C/79 (já atrás referido) e o Decreto-Lei nº 191-F/79, de 26 de Junho, relativo ao regime jurídico e condições de exercício das funções de direcção e chefia.
Mais tarde, o Decreto-Lei nº 248/85, de 15 de Julho, para além de revogar o Decreto-Lei nº 191-C/79, procedeu à reestruturação do regime geral das carreiras da função pública, estabelecendo também um conjunto de princípios e de regras respeitantes a matérias ligadas ao sistema de carreiras e à sua aplicação na Administração Pública.
Numa linha de continuidade destes textos legais, foram depois aprovados, também no uso de delegação legislativa, os Decretos-Leis nº 184/89, de 2 de Junho e 427/89, de 7 de Dezembro, relativos ao regime de constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego na função pública - diplomas estes cujo conhecimento, apesar de posteriores às normas sob controvérsia, serve para iluminar a questão em apreço -, os quais, nos artigos
41º e 44º, respectivamente, salvaguardam a existência de regimes especiais aplicáveis ao pessoal de certos serviços e organismos, nomeadamente 'institutos públicos que revistam a forma de serviços personalizados ou de fundos públicos abrangidos pelo regime aplicável às empresas públicas ou pelo contrato individual de trabalho e, bem assim, ao pessoal abrangido pelos regimes identificados em lei como regimes de direito público privativo aplicam-se as respectivas disposições estatutárias'.
Em todos estes diplomas, que se apresentam como leis quadro do
'regime e âmbito da função pública', estabelece-se distinção entre carreiras do regime geral e do regime especial, com a consequente remissão, relativamente a estas últimas, para regras próprias a estabelecer por normação autónoma e não necessariamente coincidente com os 'sistemas' do regime geral, sendo certo que na concretização das especificidades dos 'regimes especiais' não existe obstáculo ao exercício da competência concorrencial do Governo, desde que não sejam desrespeitados os princípios fundamentais contidas nas bases gerais parlamentarmente definidas.
Por outro lado, os textos normativos que sucessivamente regularam a carreira de enfermagem sempre a excluiram do regime geral das carreiras, concedendo-lhe um tratamento especial por força da peculiaridade de que os conteúdos funcionais nela integrados se revestem. Assim sucedeu com os Decretos-Leis nºs 305/81, 178/85 e 134/87, todos eles aliás expedidos pelo Governo a descoberto de autorização legislativa, sendo certo que a Portaria nº
152/87 veio depois determinar a aplicação das normas do Decreto-Lei nº 178/85 aos enfermeiros providos em lugares dos quadros de pessoal da Administração-Geral do Porto de Lisboa.
O 'regime jurídico de direito público privativo' pelo qual o pessoal da Administração do Porto de Lisboa passou a reger-se na decorrência da publicação dos Decretos-Leis nº 348/86 e 101/88, enquadra-se assim no entendimento normativo característico da carreira desse pessoal como carreira do regime especial sujeita a regras não necessariamente coincidentes com as do regime geral.
Dentro deste contexto, pode dizer-se que o Governo dispunha de competência para legislar sobre as matérias a que se reporta a lista nominativa de primeiro provimento do pessoal de enfermagem e às situações categoriais e funcionais ali contempladas - correspondência e transição entre as actuais e as novas categorias do quadro do pessoal e respectivos conteúdos funcionais - porquanto, neste domínio, não foi instituída uma normação verdadeiramente inovadora em relação ao quadro legal pré-existente, mantendo-se no essencial os princípios fundamentais que o regiam, como aliás se alcança da manutenção de uma continuidade profissional dentro da respectiva carreira bem evidente nas categorias que, em substituição das anteriormente existentes, foram atribuídas ao pessoal de enfermagem na lista nominativa.
Tem-se assim por inverificada a inconstitucionalidade suscitada pelos recorrentes
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III - A decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Não julgar orgânicamente inconstitucional a norma do artigo 72º do Estatuto do Pessoal das Administrações dos Portos, aprovado pelo Decreto-Lei nº
101/88, de 26 de Março, inexistindo assim uma razão para a sua não aplicação bem como para a das normas do artigo 33º, nº 5 da Portaria nº 494/88, e do Despacho Normativo nº 63/88, ambos de 27 de Julho, na parte em que se reportam ao primeiro preenchimento de lugares do pessoal de enfermagem nos novos quadros referidos naquele primeiro diploma;
b) Conceder, em consequência, provimento ao recurso e determinar a reforma do acórdão impugnado em conformidade com o presente julgamento da questão de constitucionalidade.
Lisboa, 17 de Janeiro de 1996 Antero Alves Monteiro Diniz Maria Fernanda Palma Maria da Assunção Esteves Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes José Manuel Cardoso da Costa