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Processo nº 45/95
2ª secção Relator: Cons. Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo (1ª Secção) do Despacho conjunto do PRIMEIRO-MINISTRO e do MINISTRO DAS FINANÇAS, nº A-2-89-XI (comunicado em 7 de Abril de 1989), que lhe indeferira o pedido de concessão de uma pensão por serviços excepcionais e relevantes prestados ao país, requerida ao abrigo do Decreto-Lei nº 404/82, de
24 de Setembro.
O Supremo Tribunal Administrativo (1ª Secção) negou provimento ao recurso.
Do respectivo acórdão recorreu ela para o Pleno da 1ª Secção do mesmo Supremo Tribunal, dizendo, entre o mais, que o artigo 28º do Decreto-Lei nº 404/82, de 24 de Setembro (redacção do Decreto-Lei nº 140/87, de
20 de Março) é inconstitucional.
O Pleno, por acórdão de 24 de Novembro de 1994, negou provimento ao recurso.
2. É deste acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
(Pleno da 1ª Secção), de 24 de Novembro de 1994, que vem o presente recurso, interposto pela recorrente ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade do mencionado artigo 28º do Decreto-Lei nº 404/82, de 24 de Setembro, na redacção do Decreto-Lei nº 140/87, de 20 de Março.
Neste Tribunal alegou a recorrente e o Ministro das Finanças.
A recorrente formulou as seguintes conclusões: I - A profunda alteração introduzida na competência dos tribunais militares, pela Constituição de 1976, visou a delimitação dessa competência, em relação à que detinham por força do CJM de 1925. II - Tal delimitação traduziu-se, na redacção originária desse artº 218, na restrição dessa competência ao âmbito puramente criminal, de julgamento de crimes essencialmente militares ou equiparados. III - Com a redacção dada pela LC 1/82 a esse artº 218 foi precisada tal competência, donde resultou, designadamente, a inconstitucionalização da competência que os tribunais militares detinham em matéria de contencioso administrativo militar.
IV - As funções consultivas, preparatórias de decisões da Administração, não cabem no âmbito da competência definida para os tribunais militares pela Constituição, no seu actual artº 215º, correspondente ao anterior 218º, por via da LC 1/89. V - Tais funções competem, em exclusivo, no caso sub judice, à Procuradoria-Geral da República - e não apenas nos casos não relacionados com actos praticados em teatro de guerra. VI - O art. 28º do DL 404/82, na redacção do DL 140/87, no que respeita à exigência de 'parecer' do Supremo Tribunal Militar, é, assim, materialmente inconstitucional por ofensa do disposto no artº 215 da CRP. Termos em que deve conceder-se provimento ao recurso, declarando-se a arguida inconstitucionalidade.
O Ministro das Finanças concluiu as suas alegações, dizendo que deve ser negado provimento ao recurso, 'uma vez que o artigo 28º do Decreto-Lei nº 404/82 não está ferido de inconstitucionalidade'.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir se é ou não inconstitucional o artigo 28º do Decreto-Lei nº 404/82, de 24 de Setembro
(redacção do Decreto-Lei nº 140/87, de 20 de Março), na parte em que atribui ao Supremo Tribunal Militar competência para emitir parecer sobre haver ou não direito à pensão por serviços excepcionais ou relevantes, quando o facto justificativo dele seja a prática de actos realizados em teatro de guerra.
II. Fundamentos:
4. O DL nº 404/82, de 24 de Setembro (alterado pelo Decreto-Lei nº 140/87, de 20 de Março), regula a concessão das pensões de preço de sangue e das pensões por serviços excepcionais ou relevantes prestados ao País.
Esta matéria estava regulada no Decreto-Lei nº 47.084, de 9 de Julho de 1966, que havia sido alterado por vários outros diplomas legais.
Dá direito à pensão de preço de sangue o falecimento de alguém nalguma das circunstâncias enumeradas nas alíneas a) a f) do nº 1 do artigo 2º do citado Decreto-Lei nº 404/82 e, bem assim, o desaparecimento em campanha e em perigo de militar ao serviço da Nação ou de civil incorporado em serviço nas forças militares e com elas colaborando por ordem da autoridade competente (cf. o nº 2 do mesmo artigo 2º).
Confere direito à pensão por serviços excepcionais ou relevantes prestados ao País a prática, por cidadão português, militar ou civil, de feitos em teatro de guerra, de actos de
abnegação e coragem cívica ou de altos e assinalados serviços à humanidade ou à Pátria; e, bem assim, a prática, por qualquer funcionário ou agente do Estado, de algum acto humanitário ou de dedicação à causa pública de que resulte a impossibilidade física ou o falecimento do seu autor [cf. artigo 3º, alíneas 1) e 2), do mesmo diploma legal].
Têm direito à pensão de preço de sangue o cônjuge sobrevivo e os descendentes, as pessoas que o tenham criado e sustentado, os ascendentes e os irmãos, preferindo aos do grupo seguinte os beneficiários de cada um desses grupos (cf. artigo 4º).
A pensão por serviços excepcionais ou relevantes é estabelecida em benefício do próprio autor do facto que a origina, enquanto vivo, e, após a sua morte, das pessoas acabadas de referir, a estas se transmitindo, com a morte do seu beneficiário, quando houver sido concedida em vida dele (cf. artigo 5º).
A pensão de preço de sangue é concedida (ou recusada) pelo Montepio dos Servidores do Estado (cf. artigo 1º do
Decreto-Lei nº 140/87, de 20 de Março, e artigo 24º do Decreto-Lei nº 404/82, de
24 de Setembro, na redacção introduzida pelo artigo 5º daquele Decreto-Lei nº
140/87).
A pensão por serviços excepcionais ou relevantes é concedida (ou denegada) por resolução do Conselho de Ministros, mediante proposta do Ministro das Finanças e precedendo parecer favorável do Supremo Tribunal Militar, quando o facto justificativo do direito seja a prática de actos realizados em teatro de guerra, e da Procuradoria-Geral da República, nos demais caso.
É o que preceitua o artigo 28º do Decreto-Lei nº 404/82, de 24 de Setembro (redacção do Decreto-Lei nº 140/87, de 20 de Março), aqui sub iudicio e assim redigido: Artigo 28º Compete ao Conselho de Ministros proferir resolução sobre o direito à pensão a que se refere o artigo anterior, mediante proposta do Ministro das Finanças, precedendo parecer favorável do Supremo Tribunal Militar, quando o facto justificativo do mesmo seja a prática de actos realizados em teatro de guerra, e da Procuradoria-Geral da República, nos demais casos.
5. Pergunta-se, então: este artigo 28º, na dimensão que atrás se apontou (supra, I.,3.), será, como pretende o recorrente, incompatível com a Constituição? - recte, violará o artigo 215º da Lei Fundamental?
A resposta - adianta-se já - é afirmativa.
De facto, o artigo 215º (correspondente ao artigo 218º na revisão de 1982) reza assim: Artigo 215º (Tribunais militares)
1. Compete aos tribunais militares o julgamento dos crimes essencialmente militares.
2. A lei, por motivo relevante, poderá incluir na jurisdição dos tribunais militares crimes dolosos equiparáveis aos previstos no nº 1.
3. A lei pode atribuir aos tribunais militares competência para a aplicação de medidas disciplinares.
Significa isto que o artigo 215º comete aos tribunais militares 'o julgamento de crimes essencialmente militares' (nº 1) e abre à lei a possibilidade de lhe atribuir competência para o julgamento de 'crimes dolosos equiparáveis' aos crimes essencialmente militares, desde que concorra 'motivo relevante' (nº 2) e 'para aplicação de medidas disciplinares' (nº 3).
A Constituição, pois, apenas delega no legislador a definição da competência dos tribunais militares para a aplicação de medidas disciplinares e para o julgamento de crimes dolosos equiparáveis a crimes essencialmente militares.
Ora, a competência dos órgãos de soberania - e os tribunais militares são tais (cf. artigo 113º, nº 1, conjugado com o artigo
211º, nº 1, alínea d), da Constituição) - é a que lhes for definida pela Constituição ou, nos casos em que esta o consinta - mas apenas neles - pela lei
(cf. o artigo 113º, nº 2, que prescreve que '[...] a competência [...] dos
órgãos de soberania [é a] definid[a] na Constituição').
Assim, se a Constituição define, ela própria, toda a competência de determinada categoria de tribunais, eles só têm essa competência; num tal caso, não é lícito à lei atribuir-lhes outras competências. Quando, como
é o caso, a Constituição, define uma parte da competência e delega no legislador essa definição quanto a certos outros domínios, que indica, só nessas matérias pode a lei intervir - lei que há-de ser uma lei parlamentar ou parlamentarmente autorizada [cf. artigo 215º, nº 3, conjugado com o artigo 168º, nº 1, q), da Constituição].
É que, como este Tribunal sublinhou no acórdão nº 61/84
(Diário da República, II série, de 17 de Novembro de 1984) e repetiu, depois, entre outros, no acórdão nº 49/85 (Diário da República, II série, de 12 de Abril de 1985), a competência dos órgãos de soberania (tribunais incluídos) 'só está na disposição
da lei se e na medida em que a Constituição o autoriza' (sublinhados acrescentados). Ou - nas palavras do acórdão nº 81/86 (Diário da República, I série, de 22 de Abril de 1986) - 'nestes domínios [os da competência dos órgãos de soberania], não pode haver leis independentes da Constituição, ou seja, competência sem base constitucional; aqui, seguramente, a Constituição não é apenas um limite da lei - é fundamento e pressuposto necessário'.
Portanto, o mencionado artigo 215º não consente que a lei atribua ao Supremo Tribunal Militar competência para exercer funções consultivas (maxime, para emitir o parecer a que se refere a norma aqui sub iudicio).
Escrevem J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA
(Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, página
816, na anotação III do artigo 215º): A delimitação da competência dos tribunais militares decorre de forma evidente deste artigo, pois este só pode ser entendido no sentido de definir toda a sua competência, que é, por princípio, apenas criminal, não lhes podendo ser atribuída outra (salvo o nº 3). A alteração do nº 1 efectuada na 1ª revisão constitucional dissipou as dúvidas que a versão originária poderia suscitar
[...], quanto à limitação de competência dos tribunais militares. Isso inconstitucionalizou nomeadamente a competência que os tribunais militares detinham em matéria de contencioso administrativo militar [...], bem como a competência administrativa e consultiva legalmente atribuída aos mesmos tribunais.
Os tribunais militares , de facto - como se sublinhou no já citado acórdão nº 81/86 -, 'não têm competência fora das áreas indicadas no artigo 218º' (hoje, 215º).
6. Conclusão:
O legislador, ao cometer ao Supremo Tribunal Militar competência para emitir o parecer a que se refere o artigo 28º do Decreto-Lei nº
404/82, de 24 de Setembro (redacção do Decreto-Lei nº 140/87, de 20 de Março), violou, pois, os artigos 113º, nº 2, e 215º da Constituição.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, decide o Tribunal Constitucional:
(a). Julgar inconstitucional - por violação dos artigos 113º, nº 2, e 215º da Constituição da República - o artigo 28º do Decreto-Lei nº 404/82, de 24 de Setembro (redacção do artigo 5º do Decreto-Lei nº 140/87, de 20 de Março), na parte em que atribui ao Supremo Tribunal Militar competência para emitir o parecer aí previsto;
(b). Em consequência, conceder provimento ao recurso e revogar o acórdão recorrido, o qual, quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade, deve ser reformado em conformidade com o ora decidido.
Lisboa, 16 de Janeiro de 1996 Messias Bento José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Fernando Alves Correia Bravo Serra Luis Nunes de Almeida