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Processo: n.º 134/94.
2ª Secção
Relator: Conselheiro Sousa e Brito.
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I — A causa
1 — A., SA, deduziu junto do Tribunal Tributário de 1.ª Instância de Lisboa,
impugnação de três auto-liquidações de Imposto de Capitais, Secção B, no
montante global de 1 077 435$00, alegando «inexistência do facto tributário»
subjacente à situação originadora de tais liquidações (descontos atribuídos pela
impugnante na venda de veículos em cumprimento de obrigações assumidas em
contratos-promessa celebrados no âmbito do sistema denominado «Poupança-A.»).
Julgada improcedente essa impugnação (sentença de 5 de Fevereiro de 1990 — fls.
45-48), interpôs a impugnante recurso que após uma declaração de incompetência
«em razão da hierarquia» do Tribunal Tributário de 2.ª Instância, foi apreciado
pela Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.
Aí, por acórdão de 21 de Outubro de 1992, (fls. 94-101), foi negado provimento
ao recurso.
Inconformada recorreu a A. para o Pleno dessa Secção, fazendo constar das
alegações, que para o efeito produziu, além de outros, os seguintes argumentos:
............................................................
13 — O douto acórdão recorrido, ao socorrer-se analogicamente do disposto no n.º
1 do artigo 6.º do mesmo Código, violou o mencionado princípio da tipicidade
exclusiva, corolário do princípio da legalidade e efectuou uma interpretação
proibida em Direito Fiscal, por força do princípio da reserva de lei consagrado
no artigo 106.º, n.º 2, da Constituição da República.
14 — Mas mesmo que se considerasse tal interpretação-admissível nenhuma analogia
existe entre a realidade documentada nos autos e a prevista naquele n.º 1 do
artigo 6.º já que, contrariamente ao afirmado na douta decisão recorrida, os
promitentes compradores, ao celebrarem os contratos promessa não recebiam logo
os veículos, nem as entregas de dinheiro representavam uma operação de simples
aplicação de capitais.
15 — A douta decisão recorrida, ao reconhecer expressamente no seu texto (p. 11)
que «a questão não é isenta de dúvidas» e que a norma do artigo 6.º, n.º 12, do
Código do Imposto de Capitais, contém um tipo geral de incidência real,
reconhece afinal que esta norma é inconstitucional por violação do princípio da
tipicidade, corolário do princípio da legalidade previsto no citado artigo
106.º, n.º 2, da Lei Fundamental.
16 — O douto acórdão recorrido, ao reconhecer a existência de dúvidas na
interpretação e aplicação daquelas leis aos factos, admite que a norma em apreço
não respeita os princípios da precisão e certeza, que uma norma de incidência
real, deve conter para ser conforme com o princípio constitucional da legalidade
vertido no citado artigo 106.º, n.º 2, da Constituição da República.
17 — O douto acórdão recorrido ao considerar que «aplicação de capitais» e
«simples aplicação de capitais» são realidades análogas, procedeu a uma
interpretação extensiva de uma norma de incidência fiscal, o que claramente
desrespeita o princípio da interpretação literal que vigora em Direito Fiscal, o
que decorre igualmente do princípio constitucional da legalidade.
18 — A douta decisão recorrida, deveria, assim, ter recusado a aplicação de tal
norma, ou, pelo menos, deveria ter sustentado uma interpretação e aplicação da
mesma conformes ao texto constitucional.
Através de acórdão proferido em 26 de Janeiro de 1994, negou o referido Pleno
provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, consignando a propósito:
A recorrente, nas suas alegações e conclusões afirma que «as normas de
incidência do imposto ou capitais não podem ser interpretadas de forma extensiva
ou analógica já que em Direito Fiscal vigora o princípio da tipicidade
específica, elemento do princípio da legalidade, e que se traduz na enumeração
taxativa dos factos ou realidades que, dentro de cada tipo genérico do objecto
normativo de incidência, são indicados por lei como objecto de incidência — v.
n.º 7 e fls. 113 v, violando o acórdão recorrido o princípio geral do artigo 9.º
do Código Civil e o n.º 2 do artigo 106.º da CRP.
Sendo certo o afirmado no tocante à analogia e não entrando em discussão sobre a
legalidade da interpretação extensiva das normas de incidência, aliás defendida
por juristas consagrados com Pamplona Corte Real, in Ciência e Técnica Fiscal,
152-153 (1971), fls. 64 e segs., e Prof. Soares Martinez, Direito Fiscal, 7.ª
ed., Coimbra, Almedina, 1993, p. 145, sempre se dirá que a solução tomada no
acórdão recorrido não violou qualquer daqueles preceitos nem os normativos
indicados.
Muito simplesmente porque no n.º 12 do artigo 6.º do Código de Imposto de
Capitais se preceituava «são referenciados na Secção B… quaisquer outros
rendimentos derivados da simples aplicação de capitais não compreendidos na
Secção A».
Ora «os descontos» são rendimentos derivados das entregas antecipadas de
parcelas de capital efectuadas antes da celebração do contrato final que influem
no montante global final.
Onde está pois a interpretação extensiva ou a interpretação analógica, ou a
violação do princípio geral do artigo 9.º do Código Civil ou do n.º 2 do artigo
106.º da CRP?
Sendo embora uma norma de incidência residual, os factos passados nos autos têm
perfeito enquadramento na interpretação meramente literal daquele n.º 12 do
artigo 6.º do Código de Imposto de Capitais, na redacção dada pelo Decreto-Lei
n.º 197/82, de 21 de Maio.
2 — Desta decisão, invocando a alínea b) do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, interpôs a A. recurso para este Tribunal, indicando
como norma objecto o n.º 12 do artigo 6.º, do Código do Imposto de Capitais
(CIC), por «violação dos princípios constitucionais da tipicidade e legalidade e
a proibição da interpretação extensiva de normas de incidência fiscal».
Admitido o recurso, alegou neste Tribunal a recorrente, formulando, em apoio do
seu ponto de vista, as conclusões que aqui se transcrevem:
1 — Em Direito Fiscal, por força do princípio da legalidade previsto no artigo
106.º, n.º 2, da Constituição da República e dos princípios da tipicidade e
determinação em que aquele se desdobra, as normas de incidência têm de ser
pré-determinadas no seu conteúdo, devendo os elementos integrantes da mesma
estar formulados de modo preciso e determinado.
2 — A determinação do conteúdo da norma tributária de incidência exclui a
utilização de conceitos indeterminados, bem como de conceitos determinados
normativos, cuja aplicação ao caso concreto assente em valoração subjectiva ou
pessoal do órgão de aplicação, sob pena de ser postergada a segurança jurídica.
3 — Não estando definido na lei ordinária fiscal o conceito de operação de
simples aplicação de capitais, e prevendo a norma como tributável quaisquer
rendimentos daí derivados, a grande amplitude e indeterminação de conteúdo
daqueles conceitos, permitem ao órgão de aplicação incluir na mesma todo e
qualquer ganho decorrente de uma aplicação de capitais, sacrificando-se assim a
segurança jurídica, que se traduz na susceptibilidade de previsão objectiva,
pelos particulares, das suas situações jurídicas futuras.
4 — A norma do n.º 12.º do artigo 6.º do Código de Imposto de Capitais, estando
formulada em termos vagos e imprecisos, com recurso a puros conceitos
normativos, cuja concretização e determinação assenta em valorações subjectivas,
é uma norma materialmente inconstitucional, por ofensa do princípio da
tipicidade e legalidade consagrados no citado artigo 106.º
5 — O reconhecimento expresso no texto da decisão recorrida de que a questão não
é isenta de dúvidas e a alteração de posição por parte do Ministério Público que
emitiu parecer favorável à procedência do recurso e posteriormente mudou de
opinião, confirmam o carácter indeterminado do conteúdo da norma, e a
necessidade de valorações subjectivas para fixação dos conceitos nela
integrados.
6 — Considerando a decisão recorrida que as entregas de dinheiro efectuadas
pelos promitentes compradores, porque determinaram um desconto no preço final
dos bens objecto da compra e venda, traduzem um ganho resultante de uma
aplicação de capital, este entendimento pressupõe uma interpretação extensiva da
norma não compatível com o princípio da legalidade.
7 — Em sede de interpretação de normas de incidência tributária, a segurança
jurídica, valor subjacente ao princípio da legalidade, não consente outra
interpretação que não a literal e restritiva.
8 — A decisão recorrida, não cuidando sequer de precisar e definir o conteúdo da
expressão operação de «simples aplicação de capitais» e considerando análogas as
expressões «aplicação de capitais» e «simples aplicação de capitais» efectuou
uma interpretação extensiva da norma, o que está vedado pelo princípio
constitucional da legalidade.
9 — A decisão recorrida ao assimilar a situação dos autos aos casos de cedência
de capitais tipificados nos artigos 3.º e 6.º, efectuou uma interpretação
extensiva da norma contida no n.º 12.º deste último, já que nos tipos
tributários enumerados nos outros preceitos, a cedência de capitais é realizada
com reserva da titularidade deste, enquanto no caso concreto, os promitentes
compradores ao efectuarem as entregas de dinheiro, perdiam a titularidade deste.
10 — A decisão recorrida, ao assimilar a situação dos autos às demais previstas
no Código, efectuou também interpretação extensiva do preceito, já que em todas
as situações tipificadas na lei, a cedência de capitais tem apenas como
objectivo a obtenção de rendimentos, o que não acontece no caso concreto, em
que, mesmo admitindo que os promitentes compradores tivessem também o propósito
de obter o desconto, o objectivo principal e determinante das entregas era o
pagamento do preço de um veículo automóvel a comprar, traduzindo essas entregas
o pagamento antecipado do preço, e sendo a fonte ou causa das mesmas um contrato
de compra e venda de bem móvel e não uma operação de simples aplicação de
capitais.
11 — A norma contida no n.º 12 do artigo 6.º do Código do Imposto de Capitais
mesmo que pudesse considerar-se conforme à Constituição, foi assim, interpretada
e aplicada em desconformidade com o princípio da legalidade, vertido no n.º 2 do
artigo 106.º da Lei Fundamental.
Corridos os pertinentes vistos, cumpre, enfim, decidir.
II — Fundamentação
3 — A descrição, em termos gerais, da situação subjacente ao recurso
permitir-nos-á caracterizar as questões a solucionar.
Está em causa uma modalidade contratual específica, oferecida pela recorrente
aos seus clientes (sugestivamente qualificada de «Poupança-A.»), traduzida na
projecção para o futuro da aquisição de uma viatura, adiantando-se até lá
determinam somas por conta do preço, sendo que estas determinariam um abatimento
(desconto) nesse preço, aquando da aquisição, abatimento proporcional ao tempo
decorrido desde a entrega dessas parcelas do custo total da viatura.
O esquema é posto em prática através da espécie contratual da promessa (v. o
modelo de contrato junto a fls. 14/16), concretizando-se a redução do preço nos
termos da seguinte cláusula contratual:
1 — O preço do veículo prometido adquirir será o em vigor para esse modelo à
data da entrega, deduzido de um desconto apurado, mediante a aplicação do
coeficiente indicado em Condições Particulares deste Contrato, aos montantes das
entregas efectuadas em antecipação de pagamento do preço do veículo e em função
do número de dias decorridos entre as datas de cada uma dessas entregas e a data
da celebração do contrato prometido.
2 — O coeficiente referido, no número anterior, será alterado no mesmo sentido e
proporção das variações que se venham a verificar, durante a vigência deste
contrato, na taxa de referência fixada em Aviso do Banco de Portugal, tendo em
conta a dos depósitos a prazos superior a 180 dias e até um ano, o que, a
suceder, será prontamente comunicado pela Promitente-Vendedora ao
Promitente-Comprador.
3 — O desconto, calculado nos termos dos números anteriores, em caso algum
poderá constituir sinal inicial ou reforço da anterior antecipação do preço do
veículo a adquirir em novo contrato.
Associa este sistema, assim, ao interesse da empresa aqui recorrente em vender
as viaturas, mobilizando recursos financeiros previamente à entrega das mesmas,
o interesse dos compradores, além do mais, em defenderem as importâncias
parcelares de que dispõem para uma aquisição futura de viatura, da erosão
monetária (o valor 100 possuído hoje, por exemplo, significará, com o aumento do
custo de vida, algo menos no futuro: a entrega deste valor desde logo assegura,
através do desconto proporcional ao tempo decorrido desde a entrega, uma
«remuneração» desse valor que o subtrai a essa depreciação — enfim, algo que na
prática não deixa de produzir o mesmo efeito de qualquer outra aplicação
remunerada dessa importância).
Entendeu a Administração Fiscal numa inspecção à recorrente (entendimento
confirmado pelas diversas decisões judiciais constantes dos autos), traduzirem
tais entregas uma «aplicação de capitais» determinante de um rendimento
(representado pelo desconto) que, como tal, era tributável ao abrigo do disposto
no artigo 6.º, n.º 12, do CIC (redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 197/82,
de 21 de Maio), que estabelece serem compreendidos na Secção B, desse imposto,
«Quaisquer outros rendimentos derivados da simples aplicação de capitais não
compreendidos na Secção A».
3.1 — A dimensão constitucional do problema que em função destes dados se coloca
(aquela relativamente à qual este Tribunal se pode pronunciar), reporta-se a
dois aspectos específicos: o primeiro deles tem que ver com uma alegada
formulação «vaga», «imprecisa» e cuja «concretização assenta em valorações
subjectivas» da norma constante do n.º 12 do artigo 6.º do CIC, determinante da
inconstitucionalidade material desta «por ofensa do princípio da tipicidade e
legalidade», consagrado no artigo 106.º da Constituição; a outra questão de
inconstitucionalidade suscitada, prende-se de novo com o aludido n.º 12 e
assenta na ideia de que a integração dos contratos em causa na previsão dessa
norma, só é possível através de uma operação de «interpretação extensiva», não
constitucionalmente viável, e que, portanto, essa concreta interpretação se
apresenta como não conforme à Lei Fundamental.
4 — Estabelece o texto constitucional (artigo 106.º, n.º 2) a obrigatoriedade de
os impostos serem criados por lei e de esta determinar «a incidência, a taxa, os
benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes».
É a esta formulação (mais precisamente ao que dela decorre) que a recorrente
reporta os argumentos de inconstitucionalidade que, relativamente ao n.º 12 do
artigo 6.º do CIC, adianta. A tal formulação, com efeito — no reservar da
incidência, taxa, etc., na sua determinação à lei — subjaz, tal como já
acontecia na Constituição de 1933 (artigo 70.º, § 1.º), integrando a essência
das garantias dos contribuintes, o que se qualifica como «princípio da
tipicidade tributária».
Neste desde há muito se vê (e seguimos de perto, nesta parte da sua
caracterização, o estudo de J. Bacelar Gouveia: A Evasão Fiscal na Interpretação
e Integração da Lei Fiscal, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 373, p. 27),
especialmente no que tange às normas de incidência, uma exigência de «apertados
limites na sua formulação e integração», paralelamente à proibição de aplicação
analógica dessas normas fiscais de incidência (a recorrente defende existir
também uma proibição de «interpretação extensiva» dessas normas) e à exigência
de que a descrição dos factos tributários seja feita de forma «suficientemente
pormenorizada» de modo a conferir «previsibilidade» à actividade tributária,
permitindo «aos contribuintes algumas certezas na tributação da sua riqueza» (v.
J. M. Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 2.ª ed., Coimbra, 1972, pp. 309
e segs.; J. Casalta Nabais, Contratos Fiscais, Coimbra, 1994, pp. 248-249).
4.1 — Será a norma de incidência aqui questionada tão ampla e vaga na sua
formulação, que ponha em causa esse mínimo de precisão exigível às normas
fiscais?
A resposta a esta interrogação pressupõe o caracterizar da articulação —
constitucionalmente viável — entre o emprego, neste tipo de normas, de conceitos
indeterminados e aquilo que a jurisprudência constitucional alemã definiu como
«princípio da determinabilidade» (Bestimmenheitsgrundsatz), referindo-se à
exigência destas normas construirem a respectiva previsão «assegurando um mínimo
de clareza e de transparência do tipo» e que «permita a calculabilidade e a
previsibilidade da obrigação fiscal» (J. L. Saldanha Sanches, A Segurança
Jurídica no Estado Social de Direito, Ciência e Técnica Fiscal, n.os 310/312, p.
299).
A justificação de qualquer destas realidades (conceitos amplos/exigências de
determinabilidade) não deixa de ser possível face a regras ou princípios
constitucionalmente relevantes: se a determinabilidade se acolhe na defesa dos
contribuintes contra o arbítrio da Administração Fiscal, que subjaz aos artigos
n.os 2 e 3 do artigo 106.º, o emprego de conceitos amplos e por vezes
indeterminados — os únicos que garantem a plasticidade que possibilite a
adaptação ao constante aparecimento de novas situações que, substancialmente
iguais a outras já tributadas, não estejam ainda formalmente descritas com
precisão — não deixa, o emprego desse tipo de conceitos, de se poder louvar no
cumprimento do mandato de igualdade em sentido material, não permitindo o
aparecimento constante de refúgios de evitação fiscal.
Só a harmonização entre estas duas realidades, potencialmente conflituantes, é
susceptível de fornecer soluções equilibradas que, sacrificando o menos possível
dos valores subjacentes a cada uma, garanta o essencial desses valores.
Esta harmonização vem sendo prosseguida, nomeadamente no plano das jurisdições
constitucionais, excluindo as cláusulas gerais que operem como que uma
transferência da «criação da obrigação fiscal» para a «discricionariedade da
administração», mas não inviabilizando liminarmente certas «cláusulas gerais»,
«conceitos jurídicos indeterminados», «conceitos tipológicos» (Typusbegriffe),
«tipos discricionários» (Ermessentatbestände), e certos conceitos que atribuem à
administração uma margem de valoração, os chamados «preceitos poder»
(Kaan-Vorschrift).
Todas estas figuras, guardadas certas margens de segurança, flexibilizam o
sistema tornando-o apto a abranger, através da interpretação, «circunstâncias
novas, porventura imprevisíveis ao tempo da formulação da lei» (J. L. Saldanha
Sanches, ob. cit., pp. 297 e 299-300).
Ganha, assim, a tipicidade tributária, concretizada no princípio da
determinabilidade, um valor específico, aquele que (e citamos de novo J. L.
Saldanha Sanches) «tem o seu núcleo essencial na reserva da competência da lei
para a selecção dos factos da vida social que devem ser objecto de tributação,
na manutenção do dictum do legislador ordinário quanto à determinação dos factos
tributáveis», mas que não inviabiliza «que este se sirva de uma formulação
suficient«mente ampla para abranger factos da mesma natureza e igualmente
indicadores de capacidade tributária, ainda que com características que entre si
os diferenciem» (ob. cit., p. 299).
Ora, a norma aqui constitucionalmente questionada, como verdadeira norma
residual de um universo que o legislador define com suficiente precisão (a
Secção B do Imposto de Capitais — v. artigo 3.º do CIC); construída em torno de
um conceito — «rendimentos derivados da simples aplicação de capitais» — que
concretizado de acordo com as regras interpretativas possíveis relativamente a
normas de incidência fiscal, está muito longe de colocar nas mãos da
administração um poder arbitrário de concretização; uma norma com estas
características, dizíamos, não pode à partida ser tida como
inconstitucionalmente indeterminada.
4.2 — Resta-nos o segundo ponto levantado pelo recorrente, relativo à operação
judicativa que permitiu que a situação subjacente às auto-liquidações aqui
impugnadas fosse considerada «simples aplicação de capitais, não compreendidos
na Secção A». Quanto a este ponto, o Tribunal entende, como decidiu no Acórdão
221/95 (Diário da República, II Série, de 27 de Julho de 1995), que se questiona
aqui a inconstitucionalidade da decisão e não de uma norma, pelo que não pode
conhecer da questão.
III — Decisão
5 — Assim, negando-se provimento ao recurso, confirma-se no que ao julgamento de
constitucionalidade respeita, a decisão recorrida.
Lisboa, 20 de Dezembro de 1995. — José de Sousa e Brito (com declaração de voto)
— Bravo Serra — Fernando Alves Correia — Luís Nunes de Almeida — Guilherme da
Fonseca — Messias Bento — José Manuel Cardoso da Costa.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Ao contrário da fundamentação que fez vencimento quanto ao ponto 4.2, que
considerou tratar-se aqui de uma questão acerca da constitucionalidade da
decisão recorrida, entendo que tem sentido tratar da dimensão específica que a
norma alcança através da interpretação que permitiu considerar a hipótese em
questão como «simples aplicação de capitais, não compreendidos na Secção A»,
como objecto de indagação de constitucionalidade.
A recorrente afirma que o percurso interpretativo seguido nas decisões
sucessivamente impugnadas, traduziu-se numa interpretação extensiva da norma em
causa.
Não existe na doutrina portuguesa qualquer consenso no sentido da proibição da
interpretação extensiva de normas fiscais de incidência. Maioritariamente, o
que se vem entendendo, é que estando sem dúvida vedado o preenchimento de
lacunas, a interpretacão da lei fiscal pode revestir a forma de interpretação
extensiva (v. J. Bacelar Gouveia, ob. cit., pp. 33-34; J. M. Cardoso da Costa,
ob. cit., pp. 206-208; Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, i, Lisboa,
1974, pp. 171 e segs.).
Embora, no caso, a letra da lei, até pelo seu carácter amplo, possa ser
interpretada no sentido de abranger o abatimento no preço das viaturas,
directamente decorrente das entregas parcelares feitas ao abrigo deste tipo de
contratos celebrados entre a recorrente e os seus clientes, traduzindo-se, por
isso, numa interpretação declarativa, eventualmente lata, haverá que
caracterizar com precisão o funcionamento de um processo de interpretação
extensiva — entendendo, e não vemos razão para entender diversamente, não ser
tal processo interpretativo proscrito pelo texto constitucional, relativamente a
este tipo de normas.
A ideia da existência de pontos comuns entre a situação cuja tributação é aqui
discutida e outras abrangidas (expressamente descritas) nas Secções A e B, do
CIC, empregue como argumento interpretativo, (como acontece neste processo com a
primeira decisão do STA — a de fls. 92-101 — e no acórdão de 15 de Dezembro de
1993 do mesmo Tribunal, relativo a uma situação idêntica — v. Fisco, n.º 68, de
Novembro de 1994, pp. 31 e segs., com anotação de Clotilde Celorico Palma), o
emprego desse tipo de argumento, dizíamos, reveste claramente a forma de um
argumento analógico. Porém, o uso de um argumento deste tipo não significa que
se esteja a preencher uma lacuna, e só tal preenchimento está vedado.
A este respeito, como se refere, com inteira aplicação à presente situação, no
recente Acórdão n.º 59/95, deste Tribunal (Diário da República, I-A, de 10 de
Março de 1995), a existência de um princípio de tipicidade em determinada
matéria, não afecta a validade de argumentos por maioria ou identidade de razão,
e de raciocínios por analogia, em sede de interpretação. Escreveu-se, a tal
propósito, no referido Acórdão:
A interpretação extensiva «supõe que há desconformidade entre a letra e o
pensamento da lei», pelo que «há-de ter por efeito operar uma rectificação do
sentido verbal» (transcrevem-se as expressões usadas por Francisco Ferrara,
traduzido por Manuel de Andrade em Ensaio sobre a teoria da interpretação das
leis. Interpretação e Integração das Leis, 2.ª ed., 1963, pp. 147, 148, 149,
150, e que definem a terminologia tradicional). Só deixa de haver a
interpretação quando o pensamento legislativo «não tenha na letra da lei um
mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (artigo
9.º, n.º 2, do Código Civil). Só para lá da interpretação há lacunas a
integrar.
Ora os argumentos por maioria de razão e, em geral, por analogia, são
indispensáveis tanto para interpretar como para integrar. Como instrumentos da
interpretação são eles que permitem incluir num conceito as classes de casos de
inclusão duvidosa, por pertencerem à periferia (Begriffshof na linguagem de
Heck) e não ao núcleo (Begriffskern) do conceito, o que se faz por valerem para
aqueles as mesmas razões que fundamentam o regime legal dos casos nucleares (de
cuja abrangência pelo conceito não se duvida), e isto, precisamente, por
argumentos analógicos de identidade ou maioria de razão.
Pode, assim, assentar-se com segurança, que a norma constante do n.º 12 do
artigo 6.º, também na leitura em que se entende abranger as situações que
determinaram as auto-liquidações impugnadas pela recorrente, não se mostra
desconforme à Constituição. — José de Sousa e Brito.
(1) Acórdão publicado no Diário da República, II Série, de 27 de Março de
1996.