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Proc. nº 406/93 ACÓRDÃO Nº 114/96
1ª Secção
Rel: Cons. Ribeiro Mendes
(Cons. Tavares da Costa)
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A, casado, operário, residente em ..., Nossa Senhora de Machede, concelho de Évora, veio, em 26 de Junho de 1992, interpor recurso contencioso de anulação do acto de processamento do abono de vencimento, referido ao dia 26 de Fevereiro do mesmo ano, praticado pelo Presidente da Câmara Municipal de Évora, apresentando a correspondente petição no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa. Invocou que o STAL-Sindicato dos Trabalhadores da Administração Local promovera em 23 de Janeiro de 1992 uma greve de vinte e quatro horas, tendo publicado os correspondentes pré-avisos em jornais matutinos publicados em Lisboa e de âmbito nacional, e que o recorrente havia desempenhado as suas funções como empregado do Município de Évora entre as
8 horas e as 11 horas do mesmo dia, tendo aderido a tal greve a partir desta hora. No mês subsequente, detectara que não havia recebido renumeração quanto ao trabalho prestado durante esse período de três horas, sendo-lhe descontado o dia por inteiro. Considerou que o acto impugnado era ilegal, violando o nº 1 do art.
7º da Lei da Greve (Lei nº 65/77, de 26 de Agosto). A apresentação desta petição seguiu-se a despacho de indeferimento de anterior petição de recurso, com fundamento em ilegal coligação de recorrentes.
A autoridade recorrida apresentou resposta em que sustentou a legalidade da decisão de não abonar a retribuição quanto a essas três horas, referindo que sempre seria irrelevante a decisão individual de fazer greve por período inferior ao constante do pré-aviso de greve, subscrito pelas associações sindicais ou de trabalhadores. Fosse como fosse, o desconto do dia inteiro resultaria do disposto na lei administrativa sobre férias e faltas dos trabalhadores da Administração Pública (arts. 17º, nºs 1 e 3, 19º, nº 1, alínea u), e 67º, nº 2, do Decreto-Lei nº 497/88, de 30 de Dezembro).
Nas alegações, o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade das disposições respeitantes à greve contidas no Decreto-Lei nº 497/88, atendendo a que este último diploma 'foi publicado ao abrigo de uma autorização legislativa (Lei 2/88, de 26/01), a qual apenas autorizou o Governo a legislar sobre o «regime de férias, faltas e licenças e duração do trabalho....»! (art.
16º, alínea b)' (a fls. 16). Não caberia, assim, no âmbito da autorização legislativa em causa a possibilidade de o Governo legislar, de forma directa ou indirecta, sobre o exercício do direito à greve na função publica.
A agente do Ministério Público preconizou que fosse concedido provimento ao recurso (parecer de fls. 29 e vº).
Através de sentença proferida em 5 de Março de 1993, foi anulado o acto recorrido, tendo sido desaplicadas as normas invocadas pela autoridade recorrida com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica. Podem ler-se na fundamentação desta sentença as razões do adoptado julgamento de inconstitucionalidade, que foi a razão de decidir no sentido da anulação daquele acto:
' O regime que decorre das normas acabadas de citar [arts. 19º, alínea u), e
67º, nºs 2 e 4, com referência aos nºs 1 e 3 do art. 17º do Decreto-Lei nº
497/88] no que toca aos efeitos da falta por greve, é de que em caso de greve por tempo inferior ao do período normal de trabalho diário, a falta, embora justificada, se conta por dia inteiro.
Quer dizer, ainda que a greve tenha duração de uma hora ou menos, será considerada falta à totalidade do período diário de trabalho [...]
7. O resultado a que se chegou, não se mostra conforme com a Constituição [...]
Um dos direitos de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República é o direito dos trabalhadores à greve, previsto no nº 1 do art. 58º da CRP, redacção da Revisão Constitucional de 1982.
Na verdade, o art. 58º está integrado no Título II, da Parte I da CRP, epigrafado de «Direitos, Liberdades e Garantias», pelo que não suscita quaisquer dúvidas que na alínea b) mencionada se inclui o direito à greve (neste sentido, J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed., II vol., pág. 199 e BERNARDO LOBO XAVIER, ob., pág. 32).
O nível de reserva relativa da Assembleia da República estende-se a toda a regulamentação legislativa da matéria em causa, ou seja, do direito à greve
[...].' (a fls. 36 vº a 37)
O Senhor Juiz do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa passou então a analisar o teor da lei de autorização legislativa (art. 16º, alínea b), da Lei nº 2/88, de 26 de Janeiro), chegando à conclusão de que o Governo não tinha sido 'autorizado a legislar em matéria de greve da função pública, qualquer que fosse o seu âmbito, designadamente quanto a efeitos da greve' (a fls. 37 vº).
Notificada desta decisão, dela veio a agente do Ministério Público interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do art. 70º, nº 1, alínea a), da lei orgânica deste Tribunal. A autoridade recorrida interpôs recurso da sentença para a 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo. Foi apenas admitido o recurso de constitucionalidade (despacho de fls. 41).
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Apenas o Ministério Público apresentou alegações preconizando o provimento do recurso e formulando as seguintes conclusões:
'1º - O artigo 16º, alínea b) da Lei nº 2/88, de 26 de Janeiro, ao autorizar o Governo a legislar acerca do regime de faltas na função pública, consente a definição genérica de um regime juridico para as faltas justificadas, qualquer que seja o seu concreto fundamento, incluindo as que derivam do exercício do direito à greve - no que se refere à forma de efectivação dos descontos nas remunerações dos faltosos.
2º - As normas constantes dos artigos 17º, nºs 1 e 3, 19º, alínea u) e 67º nºs
2 e 4 do Decreto-Lei nº 497/88, de 30 de Dezembro, aprovado no exercício da autorização legislativa atrás referida, não enfermam consequentemente de inconstitucionalidade orgânica.' (a fls.67 dos autos)
3. Foram corridos os vistos legais.
O primitivo relator elaborou projecto de acórdão em que preconizava que fosse concedido provimento ao recurso.
Discutido este projecto, não logrou o mesmo vencimento, tendo, por isso, ocorrido mudança de relator.
Importa, por isso,conhecer do mérito do recurso.
II
4. Constituem objecto do presente recurso as seguintes normas do Decreto-Lei nº 497/88, de 30 de Dezembro, diploma que estabelece o regime juridico das férias, faltas e licenças dos funcionários e agentes das Administrações Central, Regional e Local:
Artigo 17º - Conceito de Falta
'1. Considera-se falta a ausência do funcionário ou agente durante a totalidade ou parte do período diário de presença obrigatória no serviço, bem como a não comparência em local a que o mesmo deva deslocar-se por motivo de serviço.
2. [...]
3. As faltas contam-se por dias inteiros, salvo quando a lei estabelecer regime diferente.'
Artigo 19º - Faltas Justificadas
'1. Consideram-se justificadas, desde que observado o respectivo condicionalismo legal, as seguintes faltas:
[...]
u) Por actividade sindical e greve; [...]'
Artigo 67º - Faltas por actividade sindical e greve. Regime
1. [...]
2.As faltas dadas no exercício do direito à greve na função pública, garantida pelo artigo 12º da Lei nº 65/77, de 26 de Agosto, consideram-se justificadas.
3. [...]
4. As faltas referidas no nº 2 implicam sempre a perda das remunerações correspondentes aos dias de ausência mas não descontam para efeitos de antiguidade.'
5. Tendo a desaplicação dessas normas sido determinada na sentença recorrida por violação do disposto no art. 168º, nº 1, alínea b), da Constituição, importa analisar o teor da norma emanada da Assembleia da República que autorizou o Governo a legislar nesta matéria.
Essa norma encontra-se na Lei do Orçamento para
1988 (Lei nº 2/88, de 26 de Janeiro) e através dela foi o Governo autorizado a legislar no sentido do aperfeiçoamento e modernização do regime jurídico da função pública, nomeadamente em matéria de:
' Regime de férias, faltas e licença e duração do trabalho, tendo em vista aproximá-lo do regime de contrato de trabalho, das soluções vigentes na Administração dos países comunitários e das obrigações decorrentes das convenções internacionais' (alínea b) do artigo 16º).
Importa, pois, perguntar se a norma da lei de autorização legislativa, no que toca apenas às faltas dadas por virtude do exercício do direito de greve, obedece aos requisitos constitucionais previstos nº 2 do art. 168º da Constituição.
6. O Ministério Público, nas alegações apresentadas nos autos, respondeu afirmativamente a essa pergunta, nos seguintes termos:
' O problema situa-se, deste modo, na interpretação do nº 2 do artigo 168º da Constituição, pressupondo a determinação do nível de exigência na concretização e densificação, na lei de delegação, do «objecto, sentido e extensão da autorização» concedida ao Governo.
Será que a circunstância de, nessa lei de autorização, não se referenciar expressamente que ela abarca também a regulamentação das consequências do exercício do direito à greve, no que se reporta às repercussões no direito ao vencimento de quem a ela aderiu que implica a sua restrição ao estabelecimento do regime das faltas justificadas por outras razões que não o exercício do direito à greve ?
Pensamos que não.
Por um lado - e voltando à dualidade de planos normativos atrás referidos - supomos que o concreto ponto de discussão já não terá conexão directa com a regulamentação do direito à greve: esta implica que as faltas dadas se tenham por justificadas. Saber, porém, em que termos exactos é que se deverá proceder ao desconto nas remunerações em consequência de ocorrerem «faltas justificadas»
é matéria que se não liga já directamente à temática daquele direito fundamental dos trabalhadores.
Por outro lado, quer a doutrina, quer a jurisprudência constitucional vêm realizando uma interpretação não estritamente literal e restritiva do âmbito das autorizações legislativas ao Governo - sob pena, aliás, de, optando-se por entendimento diverso, se ser arrastado por insuportáveis formalismos: o que é essencial é que a lei de autorização definia claramente o núcleo essencial da intervenção legislativa deferida ao Governo.' (a fls. 62-63 dos autos)
Da passagem acima referida, a que se segue a transcrição de um passo do acórdão nº 163/93 do Tribunal Constitucional ainda inédito, resulta que o representante da entidade recorrente considera que a circunstância de a norma da lei autorizadora não referir expressis verbis as faltas dadas por agentes da Administração Pública decorrentes do exercício do direito de greve não priva de objecto a lei autorizadora: seria determinante notar que se estava, em qualquer caso, face a faltas justificadas, não importando saber qual a sua origem (nojo, greve, doença, tratamento ambulatório, etc.). O disposto na alínea b) do nº 1 do art. 168º não impunha - contrariamente ao que se decidira na sentença recorrida - que a lei autorizadora indicasse expressamente que o Governo estava habilitado a legislar em matéria de faltas dadas por greve.
7. Deixando entre parentêsis a questão do objecto da autorização - questão que é, no mínimo, controvertida, tanto mais que o art. 12º, nº 1, da Lei da Greve (Lei nº 65/77, de 26 de Agosto, alterada pela Lei nº 30/92, de 20 de Outubro) garante o exercício do direito à greve na Função Pública, indicando o nº 2 dessa disposição que, sem prejuízo dessa garantia, 'o exercício do direito à greve na Função Pública será regulado no respectivo estatuto ou diploma especial' - importa averiguar se a norma autorizadora dispõe de sentido constitucional adequado.
8. De harmonia com o nº 2 do art. 168º da Constituição, 'as leis de autorização legislativa devem definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização, a qual pode ser prorrogada.'
A exigência de que o sentido da autorização conste da lei impõe ao legislador parlamentar que leve a cabo 'uma predefinição
[...] da orientação política da medida legislativa a adoptar. Por exemplo, não basta que a AR autorize o Governo a notificar as penas para certos crimes; importa que defina o tipo e determine se é para as aumentar ou para as diminuir. Destes requisitos decorre directamente o princípio da especialidade das autorizações legislativas, estando claramente proibidas as autorizações genéricas (v. g., autorização para rever os impostos sobre o rendimento; autorização para criar crimes e penas até x anos, etc.). Não é obrigatório, naturalmente, que a autorização contenha um projecto do futuro decreto-lei (como acontece com as autorizações de decretos legislativos regionais), mas ela não pode ser, seguramente, um 'cheque em branco' (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 678; vejam-se ainda António Vitorino As Autorizações Legislativas na Constituição Portuguesa, policopiado, Lisboa, 1985, págs. 232 e segs.; Jorge Miranda, Funções, Órgãos e Actos do Estado, Lisboa, 1990, págs. 471 e segs.)
9. Na jurisprudência constitucional, encontram-se frequentes decisões que se ocupam da noção de sentido da autorização legislativa.
Assim, no acórdão nº 473/89, afirma-se que 'se o objecto [da autorização legislativa] constitui o elemento enunciador da matéria sobre que versa a autorização e a extensão especifica qual a amplitude das leis autorizadas, através do sentido são fixados os princípios base, as directivas gerais, os critérios rectores da actividade legislativa delegada.' E, no mesmo acórdão, acolhe-se a doutrina constante do seguinte passo do estudo de António Vitorino: 'o sentido da autorização [...] só se encontra efectivamente contemplado quando as indicações a esse título constantes da lei de autorização permitem um juízo seguro de conformidade material do conteúdo do acto delegado em relação ao do da lei delegante. Donde resulta que, se o sentido não tem que exprimir-se em abundantes princípios ou em critérios directivos (que levados às
últimas consequências até poderiam condicionar totalmente em termos de conteúdo o exercício dos poderes delegados), deverá, pelo menos, ser suficientemente intelegível para que o seu conteúdo possa operar com clareza como parâmetro de aferição dos actos delegados e consequentemente da observância por parte do legislador delegado do essencial dos ditames do legislador delegante' (in Acórdãos, 14º volume, págs. 47-48).
No acórdão nº 358/92, teve ocasião o Tribunal Constitucional de reanalisar a exigência de sentido nas leis da autorização legislativa, constante do nº 2 do art. 168º da Constituição (inovação introduzida pela primeira revisão constitucional em 1982). Aí se chamou a atenção para a evolução do texto constitucional desde 1976, acentuando-se que,
'enquanto o objecto e a extensão constituem limites externos da autorização, já o sentido constitui um seu limite interno, porque essencial para a determinação das linhas de força, no plano substantivo, que nortearão o exercício dos poderes delegados' (in Diário da República, I Série-A, nº 21, de 26 de Janeiro de 1993, pág. 327). Destacou-se ainda que, após 1982, o modelo português aproximou-se da regulamentação constante do art. 80º da Lei Fundamental alemã, devendo a definição dos limites 'constar imediatamente da lei de autorização, não podendo ser determinados apenas a partir dos próprios diplomas autorizados, na medida em que é o próprio legislador delegante que tem a obrigação constitucional de estatuir as normas habilitantes e deve fazê-lo em termos que, simultaneamente, orientem o legislador delegado e tornem reconhecível e até previsível pelo cidadão qual o sentido da legislação que vai ser emanada ao abrigo dos poderes delegados'. E, mais à frente, louvando-se no estudo já citado de António Vitorino, afirmava o Tribunal Constitucional que o nº 2 do art. 168º se aproximava mais do modelo alemão do que das soluções acolhidas nas constituições italiana e espanhola vigentes, 'podendo entender-se que o sentido de uma autorização legislativa, sendo um dos elementos do «conteúdo mínimo exigível» da lei de autorização, só é efectivamente observado quando as indicações a esse título constantes da lei de autorização permitam um juízo seguro de conformidade material do conteúdo do acto delegado em relação ao da lei delegante, pelo que, se o «sentido» não tem que exprimir-se em abundantes princípios ou critérios directivos, deverá, pelo menos, ser suficientemente inteligível para que o seu conteúdo possa preencher a função paramétrica que a Constituição confere'
(ibidem).
Também no acórdão nº 311/93, depois de se recordar esta orientação da jurisprudência e doutrina constitucionais, se referia que, como se pusera em destaque no acórdão nº 107/88, 'o sentido da autorização legislativa era «essencial para a determinação das linhas gerais das alterações a introduzir numa dada matéria legislativa» (in Diário da República, I Série-A, nº 170 de 22 de Julho de 1993; no recente acórdão nº 581/95, publicado no jornal oficial, I Série-A, nº 18, de 22 de Janeiro de 1996, o plenário do Tribunal Constitucional teve ensejo de recordar de novo esta orientação jurisprudencial, transcrevendo passos do acórdão nº 311/93 sobre o requisito do sentido nas autorizações legislativas, acentuando que sempre será indispensável 'a descoberta do programa de legislação estabelecido pelo Parlamento', sob pena de violação do nº 2 do art. 168º da Constituição. Ainda no mesmo sentido, entre muitos outros, vejam-se os acórdãos nºs 349/93, 492/94,
213/95 e 302/95, todos publicados na II Série do jornal oficial, nºs. 180, de 3 de Agosto de 1993, 289, de 16 de Dezembro de 1994, 145, de 26 de Junho de 1995 e
174, de 29 de Julho do mesmo ano, versando o segundo matéria fiscal e os três restantes matéria penal).
10. Para responder à questão que atrás se deixou em aberto sobre se a norma autorizadora indicava o sentido em que o legislador autorizado devia consagrar soluções em matéria de faltas justificadas por efeito de greve importa chamar a atenção para o tratamento dessas faltas no direito ordinário, anteriormente à publicação do Decreto-Lei nº 497/88.
Nos cultores do Direito do Trabalho, tem sido pacífico o entendimento de que 'os efeitos da greve sobre o contrato individual dependem naturalmente do facto de o trabalhador aderir, só se produzem a partir do momento em que o faça, e cessam logo que, porventura, ele retire a sua adesão' (Monteiro Fernandes, Direito de Greve, Coimbra, 1982, pág. 56, passo transcrito nas alegações do Ministério Público). Por outro lado, e no tocante à perda de retribuição como efeito do exercício do direito de greve pelos trabalhadores, sustentam os mesmos especialistas que, no regime do contrato individual de trabalho e no silêncio da Lei nº 65/77 e, eventualmente, dos instrumentos de contratação colectiva, tal perda deve ser proporcional ao tempo da paralisação, sendo usual o critério de cálculo através do valor da retribuição horária. Dessa solução se deveriam, porventura, afastar situações em que surgem modalidades atípicas de greve, como sejam as das greves intermitentes, rotativas ou articuladas, em trombose, etc. (Monteiro Fernandes, ob. cit., págs. 51 e segs.; Bernardo Lobo Xavier, Direito da Greve, Lisboa,
1984, págs. 203 e segs.; Jorge Leite, Direito da Greve, policop., Coimbra, 1994, pág. 79; Maria do Rosário Palma Ramalho, Lei da Greve Anotada, Lisboa, 1994, págs. 51-52).
Relativamente à Função Pública e antes da publicação do Decreto-Lei nº 497/88, o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República preconizou que o desconto do vencimento em caso de adesão a uma greve decretada por um período de tempo inferior a um dia normal de trabalho devia ser proporcional ao tempo da paralisação efectiva, atendendo que não tinha ainda sido publicado o estatuto a que fazia referência o nº 2 do art. 12º da Lei da Greve, nada havendo na Constituição ou na lei que vedasse inclusivamente as
'greves-relâmpago' na Função Pública (Parecer nº 184/79, de 24 de Janeiro de
1980, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 298, págs. 62 e segs., remetendo para o parecer nº 123/76-B, de 3 de Março de 1977, publicado no mesmo Boletim, nº 265, págs. 57 e seguintes). Neste mesmo parecer, referia-se que o intérprete, na falta de solução legal e na linha do que dispõe o nº 3 do art.
10º do Código Civil, devia sustentar que o trabalho prestado em dia de greve, por período inferior ao dia, devia 'ser remunerado - à falta de melhor critério, em função do tempo [...] - em conformidade com a citada norma que, no entendimento que se nos afigura mais correcto, apenas comina a suspensão do direito à retribuição no período em que suspensas se encontram as relações laborais [...]' [Boletim cit., pág. 68; em nota, observava-se neste parecer que solução diversa valeria 'em meros casos de quebra de continuidade do exercício de funções (situações de faltas, justificadas ou não, e licenças) contadas por dias e meses, e não por horas ou outras fracções de tempo'].
11. Deve notar-se, com Jorge Leite, que, em Portugal, ocorre uma 'situação quase singular' quanto aos trabalhadores da Administração Pública, por referência ao panorama europeu, na medida em que gozam do mesmo estatuto dos trabalhadores do sector privado, sendo a uns e outros aplicável a mesma lei (Lei nº 65/77), ficando apenas excluídas as forças militares e militarizadas (art. 13º da Lei da Greve). Esta situação é, de facto, singular, porque há ordenamentos europeus em que a greve dos funcionários públicos é proibida (é o caso da República Federal Alemã), ao passo que, em outros, tal direito é reconhecido a esses trabalhadores, embora com algumas restrições ou especialidades, muitas vezes introduzidas por obra da jurisprudência constitucional (é paradigmático o caso italiano - vejam-se os elementos de direito comparado nos estudos de Abdelfattah Amor, La reconaissance du droit de grève dans les services publics en Tunisie, in Melanges René Chapus, Paris 1992, págs. 42 e segs., e de Francisco Liberal Fernandes, A Greve na Função Pública e nos Serviços Essenciais - Algumas Notas de Direito Comparado, in Boletim da Faculdade de Direito - Número Especial - Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró, II, Coimbra, 1993, págs. 62 e seguintes; do mesmo autor, O Direito de Greve nos Ordenamentos Francês, Alemão e Italiano, também no mesmo Boletim - Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, II, Coimbra, 1984,págs. 327 e segs.). No que toca à retribuição proporcional aos períodos de greve na função pública, é especialmente ilustrativa a evolução das soluções legislativas em França, evolução que demonstra o carácter eminentemente político das escolhas pelo legislador, incidente sobre efeitos de dissuasão ligados a uma eventual penalização financeira dos grevistas. Assim, a solução tradicional do direito administrativo francês desde 1862 previa que o pagamento da retribuição aos funcionários públicos só podia ser efectuado em contrapartida do serviço feito por estes (remontava, aliás, a 1822 a chamada 'règle du service fait'), do mesmo modo que a legislação da contabilidade pública estabelecia que os vencimentos eram liquidados por meses de trinta dias, sendo indivisível a trigésima parte correspondente ao dia. A partir de 1946, tornaram-se mais frequentes as greves na Função Pública, tendo havido na V República várias leis que sucessivamente regularam as 'retenues de traitement' dos grevistas. A Lei de
13 de Julho de 1963 relativa à greve nos serviços públicos reafirmou a regra do desconto por dias inteiros, operando uma verdadeira derrogação à regra da proporcionalidade e visando evitar as greves de duração muito curta. Esta solução foi reafirmada em 1977, embora com derrogações para a retribuição no asseguramento dos serviços mínimos, vindo a ser afastada em 1982, ano em que foram consagradas modalidades mais flexíveis que o trigésimo não pago por cada dia de trabalho (desconto de um cento e sessenta avos do vencimento mensal, por cada hora de greve, desconto de outras fracções consoante as horas de paralisação). Em 1987, a Lei de 30 de Julho desse ano restabeleceu a regra da indivisibilidade do trigésimo, apontada como regra de indiscutível natureza financeira e contabilística por Georges Vedel e pela Decisão nº 87-230 DC do Conselho Constitucional, mas denunciada como 'a arma do porta-moedas' nos debates parlamentares da Lei de 1987 (sobre esta evolução e a polémica doutrinal e política, veja-se o relato de Henry-Michel Crucis, Les retenues de traitement pour fait de grève dans la fonction publique, in Revue du Droit Public et de la Science Politique en France et à l'Étranger, 1988, 5, págs. 1315-1353). Importará acentuar que a referida decisão de 1987 do Conselho Constitucional analisou, entre outras, a questão de saber se a revogação parcial da Lei de 1982 pelo diploma sujeito a fiscalização preventiva em 1987 introduzia 'uma penalização financeira destinada a dissuadir pecuniariamente o exercício de um direito reconhecido pela Constituição'.
12. Face aos elementos relativos ao direito de trabalho português e à evolução do direito francês, um dos ordenamentos de países comunitários que são erigidos em parâmetro pelo legislador parlamentar no artigo 16º, alínea b), da Lei nº 2/88, impõe-se a conclusão de que o legislador parlamentar não indicou o sentido em que o legislador governamental devia regular uma matéria tão sensível de forma inovatória, a das consequências financeiras das greves no sector público. De facto, a referência à aproximação das soluções vigentes na legislação do contrato individual de trabalho poderia apontar em sentido diverso das soluções consagradas em certos Estados-membros da Comunidade Económica Europeia na matéria, do mesmo modo que a remissão para estes ordenamentos seria totalmente indeterminada, dada a variação de soluções que vão desde a proibição até à admissão com mais ou menos restrições do direito
à greve (remete-se para os dados de direito comparado constantes dos estudos acima citados).
13. Carecem, assim, as normas desaplicadas da necessária credencial parlamentar, na medida em que, havendo, embora, autorização legislativa, a mesma não dispõe de sentido constitucionalmente adequado no que toca às consequências em matéria remuneratória das faltas justificadas dadas por motivo de greve na função pública. Da violação do nº 2 do art. 168º da Constituição decorre que as normas desaplicadas, sendo provenientes do Governo, violam a alínea b) do nº 1 do art. 168º da Constituição.
III
14. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade, embora com fundamentação diversa.
Lisboa, 6 de Fevereiro de 1996
Ass) Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma
Alberto Tavares da Costa (vencido nor termos da decraração junta)
A tese professada no acórdão parte da inexistência de um sentido constitucionalmente adequado na autorização legislativa concedida pela alínea a) do nº 1 do artigo 16º da Lei nº 2/88, 'no que toca às consequências em matéria remuneratória das faltas justificadas dadas por motivo de greve na função pública'. O que implica desrespeito pelo nº 2 do artigo 168º da Constituição e gera inconstitucionalidade das normas que foram desaplicadas do Decreto-Lei nº 497/88, editado pelo Governo à luz daquela autorização, considerando a alínea b) do nº 1 do mesmo artigo 168º.
Não se subscreveu este entendimento.
Na verdade, reconhecendo-se que o sentido da autorização legislativa não está apertadamente expresso, perfila-se, no entanto, com a suficiente inteligibilidade 'para que o conteúdo possa operar com clareza como parâmetro de aferição dos actos delegados e consequentemente por parte do legislador delegado no essencial dos ditames do legislador delegante' (Cfr., António Vitorino, ob. cit., no texto, pág. 240).
Por outro lado, o diploma posto parcialmente em crise não rege sobre o direito de greve mas estabelece o regime geral das férias, faltas e licenças dos funcionários e agentes da Administração Pública e, nomeadamente, cuida da concreta efectivação dos descontos nas remunerações de quem falta justificadamente - seja por motivo de greve, seja por muitos outros motivos tais como a actividade sindical, o casamento, a maternidade ou a paternidade, o nascimento, etc. (cfr. o nº 1 do artigo 19º).
Ora, o que verdadeiramente importa é a garantia do exercício do direito à greve de modo a deixar intocado o seu núcleo essencial - independentemente da disciplina jurídica adoptada para a dedução dos critérios correspondentes ao período de duração da greve. Esse plano garantístico não se cruza, porém, necessariamente, com o programa anunciado pela norma autorizante - no sentido do aperfeiçoamento e modernização do regime jurídico da função pública no que respeita a férias, faltas e licenças - na medida em que este último contempla as faltas dadas no exercício do direito à greve, previstas na própria lei da greve, as tem por justificadas e dispõe sobre o respectivo regime remuneratório.
No projecto que apresentei desenvolvia esta perspectiva, chegando à conclusão que o facto de a lei de autorização não mencionar expressa e literalmente abranger a credencial parlamentar a determinação do regime das faltas na função pública, nela se incluindo as resultantes do exercício do direito à greve, não permite, por si, concluir que os preceitos desaplicados enfermam de inconstitucionalidade por não se integrarem no âmbito da autorização legislativa.
Vitor Nunes de Almeida (vencido, pelos fundamentos constantes do voto de vencido do Cons. Tavares da Costa)
Maria da Assunção Estevesn(vencida, nos termos da declaração de voto junta)
Não subscrevi a tese do acórdão. Porque assenta numa dramática 'pré-compreensão' do direito de greve que leva a exigir uma especial orientação a esse direito das determinantes da lei de autorização legislativa. Se o Parlamento deixou ao Governo-legislador a regulação unitária da temática das 'Faltas na Função Pública' donde a exigência de um específico grau de determinação para os domínios da 'greve-enquanto falta'?
Não se conexiona o tema da legislação, em muitos momentos, com outros direitos fundamentais? E não ocorrem as vicissitudes de competência que legitimam nessa área a intervenção do Governo?
A tese do acórdão leva à solução dilemática de assunção de uma mais-valia do direito de greve - que é desigual com relação aos outros direitos que justificam as faltas [cf. Decreto-Lei nº 497/88, de 30/12, artigo 19º] - ou à exasperação tutelar da lei de autorização legislativa sobre todos os momentos que no Regime de de Faltas se conexionem com os direitos fundamentais.
José Manuel Cardoso da Costa