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Proc. nº 436/95 ACÓRDÃO Nº 118/96
1ª Secção Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em 21 de Abril de 1995, deu entrada no Tribunal Judicial de Tomar um requerimento de instauração de execução, subscrito pelo HOSPITAL DISTRITAL DE TOMAR, contra a COMPANHIA DE SEGUROS A ., com base num título executivo previsto no art. 2º do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro
(certidão de dívida decorrente da prestação de serviços pela entidade exequente). Foi atribuído à execução o valor de 239.370$00.
Este requerimento foi indeferido limiarmente por despacho de 27 de Abril de 1995, com fundamento na inconstitucionalidade do disposto nos arts. 2º, nº 2, alinea a), e 4º do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, decorrente da violação do disposto no art. 205º, nº 1, da Constituição. De harmonia com essa decisão, a dívida exequenda referia-se às despesas por tratamentos prestados pelo hospital exequente a pessoa sinistrada em virtude de um acidente de viação causado por terceiro, o qual havia trnsferido a sua responsabilidade civil para a seguradora executada.
Pode ler-se nesse despacho:
'O Dec-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, conforme foi referido atrás, veio regular a cobrança do pagamento, por parte dos serviços e estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde, dos cuidados por parte de terceiros responsáveis, legal ou contratualmente, nomeadamente subsistemas de saúde ou entidades seguradoras (Base XXXIII, nº 2 al.b)).
O legislador da Lei da Bases [Lei nº 48/90, de 24 de Agosto] não definiu nem os termos nem o processo desta cobrança.
Como é sabido, antes da entrada em vigor do Dec-Lei nº 194/92, o processo para cobrança de dívidas a estabelecimentos resultantes da prestação de serviços de saúde e prestações de acção social era o previsto no Dec-Lei nº 147/83, de 5 de Abril.
O novo Dec-Lei achou a solução insatisfatória, por se tratar de uma solução morosa para obter a declaração de direitos quase sempre certos e indiscutíveis e daí que tivesse decidido elevar à categoria de título executivo as certidões de dívida dos estabelecimentos de saúde - cfr. preâmbulo do Dec-Lei nº 194/92.
Posto isto pergunta-se:
No desenvolvimento da Lei de Bases da Saúde, o Governo poderia conferir, nos termos em que o fez, às certidões de dívida força executiva contra terceiros, responsáveis legal ou contratualmente, pelos serviços de saúde?
Salvo melhor opinião, entendo que não.
Um título executivo é um documento constitutivo ou certificativo de uma obrigação ou de obrigações, que, por lhe ser atribuída força probatória especial, dispensa o seu titular do processo declaratório para certificar a existência do direito.
A Lei de Bases, ao permitir a cobrança, dos serviços prestados, aos terceiros responsáveis, legal ou contratualmente, não impôs que o fosse, de imediato ou seja pela via da acção executiva.'
Em seguida, o Senhor Juiz considerou que não se podia ignorar que, nos danos pessoais e patrimoniais causados em virtude de um acidente de viação automóvel, havia normalmente um litígio acerca da pessoa ou pessoas responsáveis pelo ressarcimento dos danos, o qual havia de ser resolvido pelos tribunais. E referiu então:
'Em caso de tratamentos a sinistrados por acidentes de viação o art. 4º do Dec-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro definiu como terceiros responsáveis:
- o transportador e a seguradora, se houver seguro;
- se o sinistrado não circular em qualquer veículo, a entidade seguradora do veículo ou dos veículos que tenham intervindo no sinistro, salvo se ocorrer alguma das causas de exclusão da responsabilidade a que se refere o artigo 505º do C. Civil.
Pergunta-se:
E se o acidente for imputável à própria vitima?
A quem compete averiguar, com vista à elaboração do título executivo, se ocorreu alguma causa de exclusão da responsabilidade a que se refere o art. 505º do C. Civil?
Ao presidente do órgão de administração da entidade credora ou de quem legitimamente o substitua? - cfr. art. 2º nº 2, al. d) do Dec-Lei nº 192/94.
Através de que meios?
Estas questões evidenciam, em meu entender, que a Lei de Bases, ao permitir a cobrança do pagamento de cuidados, a terceiros responsáveis, legal ou contratualmente, não quis afastar o recurso à fase declaratória para a definição destes mesmos responsáveis.
A atribuição de competência, no artigo 2º nº 2 al. a), do Dec-Lei nº 194/92, de
8 de Setembro, à instituição ou serviço público integrados no Serviço Nacional de Saúde, através do presidente do órgão de administração da entidade credora ou de quem legalmente a representa, para definir, em cada caso, qual o terceiro, legal ou contratualmente responsável, nos termos do disposto no artigo 4º do mesmo diploma, redunda, conforme escrevi atrás, numa tarefa jurisdicional, da exclusiva competência dos tribunais - art. 205º nº 1, da C. R. Portuguesa.'
Louvando-se, depois, no critério de distinção entre as funções administrativa e jurisdicional acolhido no acórdão nº 443/91 do Tribunal Constitucional, concluiu assim o mesmo despacho:
'Ora o apuramento do responsável pelos tratamentos a sinistrados de acidentes de viação, dentro do elenco constante do artigo 4º do Dec-Lei nº 194/92, pressupõe não só o conhecimento das circunstâncias de facto em que ocorreu o acidente, mas também a resolução de várias questões de direito.
Por exemplo, mesmo assente que existe a obrigação de indemnização, a medida da responsabilidade é uma se esta se fundar na «culpa» e já será outra se o seu fundamento for o «risco» - cfr. art. 508º, do C. Civil.
Ora, havendo litígio, a definição do responsável e da medida da indemnização, é própria da função jurisdicional, atribuída exclusivamente aos tribunais, pela Constituição - art. 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
É certo que o executado ou os executados poderão deduzir embargos.
Porém, conforme se assinala no Acórdão atrás referido, a resolução de litígios e de questões controvertidas entre particulares cabe exclusivamente aos tribunais não apenas em último, mas também em primeiro lugar.
Concluo, pois, que os artigos 2º nº 2, al. a) e 4º do Dec-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro são materialmente inconstitucionais, por violação do disposto no art. 205º nº 1 da C. R. Portuguesa.
Foi com base nestas normas que a execução foi instaurada.
Por força da declaração de inconstitucionalidade das normas referidas, a execução instaurada deixa de ter título executivo.' (a fls. 3 a 6 dos autos)
Notificados deste despacho, dele interpuseram recursos de constitucionalidade, nos termos da alínea a) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o representante do Ministério Público e o Hospital Distrital de Tomar (requerimentos de fls. 8 e 9, respectivamente). Ambos os recursos foram admitidos por despacho de fls. 12.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Apresentaram alegações ambas as entidades recorrentes, não tendo a seguradora recorrida contra-alegado.
O Ministério Público formulou as seguintes conclusões:
'1º- A certificação da existência de um crédito próprio, emergente de tratamentos prestados em consequência de lesões decorrentes de acidentes de viação, pelos órgãos de gestão dos estabelecimentos hospitalares, contra os possíveis e eventuais obrigados a indemnizar, não representa o exercício de qualquer tarefa ou função jurisdicional, mas mera criação de um título executivo administrativo.
2º- A criação de tal título administrativo em nada preclude o direito de defesa dos executados, que podem perfeitamente alegar, através da dedução de embargos de executado, todos os meios de defesa que lhes seria lícito deduzir em sede de acção declaratória.
Termos em que deve ser julgado procedente o presente recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida.' (a fls. 22 dos autos)
Por seu turno, o hospital exequente concluiu do seguinte modo as respectivas alegações, propugnando pela revogação da decisão recorrida:
'A)- O artº. 46 al. d) do C. P. C. dispõe que podem servir de base à execução os títulos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.
B)- Por disposição especial contida no artº. 2º do DL 194/92 de 08/09 o legislador conferiu à Declaração elaborada nos termos aí prescritos força executiva.
C)- O título assim constituído em nada viola o princípio constitucional ínsito no artº. 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
D)- Uma vez que para tal acontecer só as sentenças condenatórias teriam força executiva.
E)- O DL em causa e, em especial, as invocadas normas dos artºs. 2º al. a), 4º e
6º do DL 194/92, não enfermam de qualquer inconstitucionalidade material.' (a fls. 26 vº)
3. Foram dispensados os vistos legais, dado haver múltiplos recursos em que são relatores os restantes juízes da 1ª Secção, havendo já decisões tiradas sobre recursos idênticos na 2ª Secção do Tribunal Constitucional.
Por não haver motivos que a tal obstem, impõe-se conhecer do objecto do recurso.
II
4. Constituem objecto do recurso as normas desaplicadas pelo Senhor Juiz do Tribunal a quo com fundamento na respectiva inconstitucionalidade.
São as seguintes as normas do Decreto-Lei nº
194/92, de 8 de Setembro, expressamente desaplicadas no despacho recorrido:
Art. 2º (Exequibilidade das certidões de divida)
'1. [...]
2. São condições de exequibilidade do título:
a) A identificação do assistido e dos terceiros legal ou contratualmente responsáveis, se os houver, nos termos do presente diploma; [...]'
Art. 4º (Dívidas resultantes de tratamento a sinistrados por acidentes de viação)
'1- Em caso de dívidas resultantes de assistência ou de tratamentos prestados a sinistrados em acidentes de viação, a execução corre solidariamente contra o transportador e a respectiva entidade seguradora, se seguro houver.
2- Se o sinistrado não circular em qualquer veículo, a execução corre contra a entidade seguradora do veículo ou dos veículos que tenham intervindo no sinistro, salvo se ocorreu qualquer das causas de exclusão da responsabilidade a que se refere o artigo 505º do Código Civil.'
5. O Decreto-Lei nº 194/92 dá conta, no seu preâmbulo, de que, por decorrência do disposto na Lei de Bases da Saúde (Lei nº 48/90, de 24 de Agosto), se tornava necessário regular a cobrança de dívidas as instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde: de facto, por força da Base XXXIII, nº 2, desta lei, essas instituições e serviços podem cobrar, como receitas próprias, as quantias relativas a pagamentos 'de cuidados por parte de terceiros responsáveis, legal ou contratualmente, nomeadamente subsistemas de saúde ou entidades seguradoras' (alínea b) deste número e artigo). Ora, atendendo aos curtos prazos de prescrição estabelecidos na legislação civil (prescrições presuntivas previstas no art. 317º do Código Civil; prescrição de três anos na responsabilidade civil extracontratual), o legislador optou, ainda segundo o mesmo preâmbulo, por afastar 'o recurso, sempre moroso, à acção declarativa, como forma de obter a declaração de direitos quase sempre certos e indiscutíveis' (solução adoptada pelo Decreto-Lei nº
147/83, de 5 de Abril), atribuindo força de título executivo às certidões de dívidas tal como sucedia desde 1940 para as certidões de dividas dos Hospitais Civis de Lisboa.
No que se refere aos danos pessoais causados por acidentes de viação, os arts. 4º e 5º do Decreto-Lei nº 194/92 indicam quais os responsáveis que devem figurar nos respectivos títulos executivos (certidões de dívida): o transportador e a entidade seguradora, havendo seguro; se o sinistrado não circular em qualquer veículo, a entidade seguradora do veículo ou dos veículos intervenientes no acidente; não havendo contrato de seguro valido ou eficaz ou não sendo possível proceder à identificação dos responsáveis pelo acidente, o Fundo de Garantia Automóvel.
As normas acabadas de referir nada mais fazem do que adjectivar a responsabilidade decorrente da legislação civil (arts. 503º a
508º do Código Civil; Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, sobre seguro obrigatório de responsabilidade civil, sucessivamente alterado pelos Decretos-Leis nºs. 122-A/86, de 30 de Maio, 81/87 de 20 de Fevereiro, 394/87, de
31 de Dezembro, 415/89, de 30 de Novembro, 122/92, de 2 de Julho, 358/93, de 14 de Outubro, 130/94, de 19 de Maio e 3/96, de 25 de Janeiro), considerando a indiscutibilidade e prática certeza da identificação dos responsáveis, no comum dos acidentes de viação.
6. Terá razão o Senhor Juiz a quo quando entende que a solução constante das normas impugnadas viola o art. 205º, nº 1, da Constituição ?
Responde-se decididamente pela negativa.
A criação de títulos executivos extra-judiciais
-muito frequente, conforme se nota nas alegações do hospital exequente com referência a abundante legislação especial - não implica a violação da reserva do exercício da função jurisdicional aos juízes e aos tribunais. Transcreve-se a este propósito o seguinte passo do recente acórdão nº 760/95, ainda inédito, tirado pela 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
'Escreveu-se lapidarmente no acórdão nº 182/90 que a função jurisdicional se consubstancia «numa composição de conflitos de interesses, levada a cabo por um
órgão independente e imparcial, de harmonia com a lei ou com critérios por ela definidos, tendo como fim específico a realização do Direito ou da Justiça».
Sendo estas as notas que caracterizam a função jurisdicional, logo se vê que a elas se não reconduzem os poderes conferidos pelos artigos 2º, 4º e 6º, do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, ao «presidente do órgão de administração» das «instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde» (ou a «quem legitimamente o substitua») para a emissão de certidões de dívida por serviços ou tratamentos prestados.
Nestas certidões de dívida, que são títulos executivos, o emitente, que é uma entidade pública, certifica, não apenas a existência de um crédito próprio, como também a identidade daquele ou aqueles contra quem a execução deve correr. E isso, sem que o executado haja assumido a responsabilidade pelo débito e sem que tenha havido qualquer decisão judicial prévia a definir (declarar) essa responsabilidade. Ou seja: tais certidões de dívida gozam legalmente de um grau de fé pública tal que dispensam a intervenção do juiz, previamente à instauração da execução, para declarar a existência da dívida e dizer quem o responsável pelo seu pagamento.
Esta actividade de certificação de um crédito por parte da entidade pública que dele é titular não representa, contudo, o exercício de poderes característicos da função judicial, pois que o hospital, ao emitir a certidão de dívida, não resolve ou compõe qualquer conflito que, acaso, oponha o credor (ou outrem)
àquele que, no título, é indicado como devedor. Na execução, pode, de facto, o executado lançar mão dos meios de defesa que podia ter usado na acção declarativa, se esta tivesse tido lugar. Ele pode opor-se à execução mediante embargos de executado. E, se o fizer, então sim, haverá lugar à resolução do conflito por um órgão independente e imparcial, de harmonia com normas ou critérios legais pré-existentes - e tudo com vista à realização do direito e da justiça.'
7. O juízo no sentido da não inconstitucionalidade das normas desaplicadas não significa, claro, que não se deixe de reconhecer que existem dificuldades práticas decorrentes da solução legislativa adoptada, nomeadamente nos casos apontados na decisão recorrida em que há um litígio sobre uma causa de exclusão de responsabilidade legal ou contratual (nas suas alegações, o Exmº Procurador-Geral Adjunto chama a atenção para a 'proliferação indefinida' de embargos de executado, nas situações mais complexas, que poderá pôr em causa a celeridade visada pelo legislador).
Simplesmente, o reconhecer-se que se está perante mau direito não implica que tenha de se concluir que se está perante uma inconstitucionalidade.
8. Por último, e como se acentua no citado acórdão nº 760/95, a circunstância de se instaurar logo a acção executiva acarreta incómodos para o executado: embora ele tenha toda a latitude, no processo de embargos, para pôr em causa a sua responsabilidade (art. 815º do Código de Processo Civil), a verdade é que a execução só se suspende se o embargante prestar caução (art. 818º, nº 1, do mesmo diploma): 'simplesmente _ refere-se nesse acórdão - de um lado, quando a execução prossegue achando-se pendentes os embargos, também o exequente só pode obter pagamento se prestar caução (cf. artigo 919º, nº 1, do mesmo código); e, de outro, atento o montante da quantia exequenda, no caso [11.600$00], nunca a exigência de caução poderá dificultar a defesa em termos tais que pudesse ter-se por violado o direito de acesso à justiça'.
Estas considerações são transponíveis para o presente recurso, não obstante o valor de execução ser mais elevado (embora não atingindo metade do valor da alçada do tribunal de primeira instância), sendo certo que, sendo a executada uma seguradora, não terá dificuldade patrimonial em assegurar a sua defesa em qualquer instância executiva.
III
9. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional conceder provimento a ambos os recursos, devendo a decisão impugnada ser reformada em conformidade com o julgamento sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 6 de Fevereiro de 1996
Ass) Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Dinis Maria da Assunção Esteves Maria Fernanda Palma Vitor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa