Imprimir acórdão
Processo nº 128/94
2ª Secção
Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do
Tribunal Constitucional:
1. A., com os sinais identificadores dos autos, veio
interpor recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça, de 20 de Janeiro de 1994, que decidiu 'não tomar
conhecimento do objecto do recurso', ou seja, o recurso de revista interposto
pela mesma recorrente, em processo de expropriação litigiosa, do acórdão do
Tribunal da Relação do Porto, de 27 de Abril de 1993, que, confirmando a
sentença da primeira instância, fixou o montante da indemnização pela
expropriação de uma parcela de terreno.
2. O acórdão recorrido, perfilhando e dando como
reproduzido 'o parecer do relator de fls. 310', entendeu 'não serem
inconstitucionais os artigos 37º, 47º, nºs 1, 2 e 3, 51º, nº 1, e 56º, nºs 1, 2
e 3, do vigente Código das Expropriações, como pretende a recorrente' e daí ser
o recurso de revista interposto pela recorrente 'legalmente inadmissível'.
O dito 'parecer do relator de fls 310',apoiou-se nas
seguintes considerações:
'O presente processo é de expropriação litigiosa.
A declaração de expropriação da parcela em questão data de 1987.
Nesta conformidade, e porque se entendeu, na base de jurisprudência corrente,
que as disposições legais aplicáveis ao processo expropriativo, relativa à
indemnização, são as vigentes à data daquela declaração, na fixação do valor
global da indemnização atendeu-se exclusivamente à norma do Código das
Expropriações aprovado pelo Decreto-Lei nº 845/76, de 11 de Dezembro, vigente
quando foi proferida a decisão final da 1ª instância.
No recurso para a Relação discutiu-se apenas a correcção do montante
indemnizatório fixado.
O artigo 46º, nº 1, do Código das Expropriações, vedava o recurso para o
Supremo da decisão de 2ª instância que fixa o valor global da indemnização
nestes processos.
O acórdão recorrido foi proferido em 27 de Abril de 1993, quando vigorava o
Código das Expropriações aprovado pelo Dec. Lei nº 438/91, de 9 de Novembro.
Acontece que relativamente aos graus de jurisdição em matéria de recurso das
decisões que fixam o valor global da indemnização nestes processos, o regime
legal anterior não foi alterado.
É certo que o artigo 37º do novo Código estatui que 'na falta de acordo sobre o
valor global da indemnização, será fixado por arbitragem, com recurso para os
tribunais, de harmonia com a regra geral das alçadas'.
Mas isto não significa que se tenha regressado ao regime anterior ao Código de
1976, quer dizer, ao da Lei nº 2063, de 3 de Junho de 1953, que permitia o
recurso sem limitações relativamente aos graus de jurisdição.
Alteração tão profunda e significativa exigiria uma clara e inequívoca
referência do legislador, sendo certo que o relatório preambular do Dec.-Lei nº
438/91 é completamente omisso quanto a tal questão.
Sendo certo que, de facto, existe uma justificação objectiva para impedir o
recurso até ao Supremo Tribunal no que toca às decisões sobre a fixação do valor
global da indemnização devida pela expropriação: pretende-se evitar nesse caso
que haja quatro graus de jurisdição.
É que, sendo o julgamento dos árbitros uma verdadeira decisão jurisdicional, e
não uma modalidade de prova pericial, a exclusão do recurso para o STJ
assenta na consagração do regime geral de um máximo de três graus de jurisdição.
De contrário teríamos uma interpretação do mencionado artigo 37º contrária à
unidade do sistema jurídico, e oposta à regra enunciada no artigo 9º, nº 1, do
Código Civil.
Finalmente,
a solução que temos vindo a enunciar pode também ser corroborada com o disposto
no artigo 64º, nº 2, do Código de 91, que refere que a sentença proferida pelo
juiz do tribunal da comarca que fixa o montante da indemnização a pagar pela
entidade expropriante 'será notificada às partes, podendo dela ser interposto
recurso com efeito meramente devolutivo para o tribunal da relação'.
Porquê limitar aqui, se não fosse esse o sistema geral?
Em face do exposto, e porque o recurso interposto é legalmente inadmissível,
sou de parecer que não pode conhecer-se do respectivo objecto.
/*/
Cumpra o disposto no artigo 704º, nº 1, do Código de Processo Civil.'
E, no acórdão recorrido, acrescentou-se 'mais o seguinte':
'o artigo 37º do Código das Expropriações apenas possibilita o recurso para os
tribunais da decisão arbitral relativa ao 'quantum' indemnizatório.
É o reconhecimento do primado constitucional dos tribunais 'stricto sensu' como
órgãos de composição dos conflitos de interesses;
-a natureza do carácter jurisdicional de decisão arbitral, reconhecida na
fundamentação do Assento do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/79, de 24-7-79,
publicado no D.R., I Série, de 3-11-79, não foi minimamente posta em causa por
qualquer preceito da Constituição da República;
-a Lei Fundamental não define o que seja uma decisão jurisdicional, ou mesmo os
Tribunais, apontando apenas para a função a estes cometida (artº 205º);
- a decisão dos árbitros, que o Código qualifica de 'acórdão' - artº 48º - é
proferida na base de critérios de justiça e imparcialidade, revestindo, assim,
natureza jurisdicional.
Não sendo recorrida, fixa o valor da indemnização por forma definitiva - artº
51º, nº 2, C.E..
-não é lícito restringir o sentido do artº 64º, nº 2, cuja finalidade seria
apenas a de atribuir ao recurso interposto para a Relação efeito meramente
devolutivo.
É que, então, a disposição seria redundante, já que esse é justamente o efeito
do recurso nos processos especiais - cfr. os artigos 463º, nº 3, e 792º, do C.P.
Civil.
E, porque temos de partir do princípio que o legislador soube exprimir o seu
pensamento em termos adequados - artigo 9º, nº 3, do Código Civil - a fórmula
legal só colherá segura compreensão quando for entendido ser esse o derradeiro
grau de recurso e, como tal, correspondente ao recurso de revista, cujo efeito
regra é também meramente devolutivo - artº 723º do Código de Processo Civil.'
3. Nas suas alegações, concluiu assim a recorrente:
'a) O artº 205º da Constituição da República Portuguesa consagra o princípio
segundo o qual só aos tribunais compete administrar a justiça, não podendo ser
atribuídas funções jurisdicionais a quaisquer outros órgãos;
b) A 'decisão' ou 'acórdão' dos árbitros, em processo de expropriação, em fase
pré-contenciosa, não tem natureza jurisdicional, não podendo ser qualificada
como acto daquela espécie.
c) O recorrente arguiu, perante o Supremo Tribunal de Justiça, a
inconstitucionalidade material dos artºs 46º nº 1, 56º nº 1, 58º nº 1, 59º nº
1, 68º, 70º nº 2 e 73º nº 1 do Código das Expropriações aprovado pelo Dec.-Lei
845/76, de 11 de Fevereiro, bem como dos artºs 37º, 47º nº 1, 48º nºs 1, 2 e 3,
51º nº 1 e 56º nºs 1, 2 e 3 do Código das Expropriações aprovado pelo Dec.-Lei
438/91 de 9.11, na interpretação de que a decisão dos árbitros nele prevista
constitui uma decisão jurisdicional, por forma a que possa integrar um grau de
jurisdição;
d) A decisão recorrida não atendeu à inconstitucionalidade arguida;
e) Em provimento do presente recurso, haverá que considerar que os invocados
preceitos legais são inconstitucionais, na referida interpretação,
ordenando-se em conformidade a reformulação do acórdão recorrido'
4. O recorrido B. não apresentou alegações.
5. Vistos os autos, incluindo o visto do Ministério
Público, cumpre decidir.
E, o primeiro passo a dar tem a ver com a delimitação do
objecto do presente recurso de constitucionalidade, o que pode permitir um mais
fácil encaminhamento para a decisão de mérito.
É que, dada a profusão de normas indicadas pela recorrente
como inconstitucionais, o facto de o Supremo, doravante STJ, não se ter
pronunciado sobre a invocada inconstitucionalidade de algumas delas e a
confusão manifestada na referência a alguns artigos, quer pela recorrente, quer
pelo Tribunal recorrido, há que proceder à identificação precisa de qual ou
quais as normas que podem ser objecto de apreciação de constitucionalidade por
este Tribunal Constitucional.
Viu-se que a recorrente invoca a inconstitucionalidade
das normas constantes dos artigos 46º, nº 1, 56º nº 1, 58º nº 1, 59º nº 1, 68º,
70º nº 2, e 73 nº 1 do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº
845/76, de 11 de Fevereiro, e das normas constantes dos artigos 37º, 47º nº 1,
48º nºs 1, 2 e 3, 51º nº 1 e 56º nºs 1, 2 e 3 do Código das Expropriações,
aprovado pelo Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro.
Porém, o STJ apenas se pronunciou pela não
inconstitucionalidade de preceitos deste último diploma e, ainda assim, não se
referiu a todos os invocados pela recorrente.
Aquele Supremo Tribunal considerou não serem
inconstitucionais os artigos 37º, 47º nºs 1, 2 e 3, 51º nº 1, e 56º nºs 1, 2 e
3 do vigente Código das Expropriações, não fazendo qualquer alusão, em termos
de juízo de constitucionalidade, às normas do Decreto-Lei nº 845/76.
Esta posição do STJ compreende-se se tiver em conta que,
à data da decisão, vigorava o Código das Expropriações, aprovado pelo
Decreto-Lei nº 438/91, encontrando-se já revogado o Código anterior, aprovado
pelo Decreto-Lei nº 845/76.
A referência a alguns dos preceitos deste último diploma
apenas é feita como elemento interpretativo do sentido a dar, segundo o STJ, a
alguns dos preceitos actualmente em vigor (e porque, à data da declaração da
expropriação, era aquele diploma que vigorava em matéria de expropriação
litigiosa).
Eles não eram de aplicar, e não foram efectivamente
aplicados, pela decisão recorrida, em termos de constituírem a sua ratio
decidendi.
De aplicar, como tal, na decisão, eram unicamente os
dispositivos do Decreto-Lei nº 438/91, como claramente flui da decisão ora
recorrida.
Ora, só a eles o STJ se ateve e só, relativamente a eles,
emitiu juízo de inconstitucionalidade, não fazendo sentido que se pronunciasse
sobre a (in)constitucionalidade de normas que, no caso, não aplicou.
Por isso, não terá este Tribunal de se pronunciar sobre a
questão de constitucionalidade das ditas normas do anterior Código das
Expropriações, identificadas pela recorrente.
6. Restringindo-se, pois, a apreciação desta questão aos
preceitos do Decreto-lei nº 438/91, há ainda, num segundo momento, que analisar
se deverá incidir sobre a totalidade das normas referidas pelo STJ e pela
recorrente ou apenas sobre algumas delas.
Subjacente ao parecer do relator a que atrás se aludiu, e
que o acórdão recorrido deu como reproduzido, está a interpretação de que a
decisão dos árbitros constitui uma verdadeira decisão jurisdicional, por forma
a integrar um grau de jurisdição.
Segundo o acórdão, a decisão arbitral é proferida na base
de critérios de justiça e imparcialidade, revestindo, assim, natureza
jurisdicional.
Não definindo a Lei Fundamental o que seja uma decisão
jurisdicional, ou mesmo, os Tribunais, ela aponta apenas para a função a estes
cometida.
Ora, a função a estes cometida é a de (entre outras)
dirimir conflitos de interesses, função em tudo idêntica à exercida pelos
árbitros quando fixam o valor global da indemnização.
Diz-se no acórdão recorrido:
'-o artigo 37º do Código das Expropriações apenas possibilita o recurso para os
tribunais da decisão arbitral relativa ao 'quantum' indemnizatório.
É o reconhecimento do primado constitucional dos tribunais 'stricto sensu' como
órgãos de composição dos conflitos de interesses'.
Por sua vez, como já se viu, no dito 'parecer do relator
de fls. 310' havia-se escrito:
'(...) existe uma justificação objectiva para impedir o recurso (...) sobre a
fixação do valor global da indemnização devida pela expropriação: pretende-se
evitar nesse caso que haja quatro graus de jurisdição.
É que, sendo o julgamento dos árbitros uma verdadeira decisão jurisdicional, e
não uma modalidade de prova pericial, a exclusão do recurso para o STJ assenta
na consagração do regime regra de um máximo de três graus de jurisdição.
De contrário teríamos uma interpretação do mencionado artigo 37º contrária à
unidade do sistema jurídico, e oposta à regra enunciada no artigo 9º, nº 1, do
Código Civil'.
Do que atrás fica transcrito, conclui-se que o STJ,
considerando ser 'o julgamento dos árbitros uma verdadeira decisão
jurisdicional, e não uma modalidade de prova pericial', entendeu que a norma do
artigo 37º, em conjugação com as normas dos artigos 47º, nº 1, 48º, nºs 1, 2 e
3, 51º, nº 1, e 56º, nºs 1, 2 e 3, quando interpretada no sentido de vedar o
recurso da decisão de 2ª instância, por não ser possível haver quatro graus de
jurisdição, não é inconstitucional.
Entendimento diferente tem, como se viu, a recorrente
para quem a decisão dos árbitros não tem natureza jurisdicional e, logo, o
recurso para o STJ funciona como 3º grau de jurisdição. Na posição que a
recorrente assume nas conclusões das alegações de recurso, o que é
inconstitucional, partindo da citação do artigo 205º da Constituição, é a
interpretação que se queira fazer de que a decisão dos árbitros 'constitui uma
decisão jurisdicional, por forma a que possa integrar um grau de jurisdição'.
Assim sendo, é este o complexo normativo do vigente
Código das Expropriações, que a recorrente identifica naquelas conclusões e que
pretende ver submetido o juízo a formular por este Tribunal Constitucional: os
artigos 37º, 47º, nº 1, 48º, nºs 1, 2 e 3, 51º, nº 1 e 56º, nº 1, 2 e 3. E sendo
a incidência na dita interpretação - repete-se - de que 'a decisão dos
árbitros nele prevista constitui uma decisão jurisdicional'.
É esta a essência da argumentação da recorrente:
'A 'decisão' ou 'acórdão' dos árbitros, em processo de expropriação, em fase
pré-contenciosa, não tem natureza jurisdicional, não podendo ser qualificada
como acto daquela espécie'.
Assim, o artigo 37º dispõe que, na falta de acordo, será
o valor global da indemnização 'fixado por arbitragem, com recurso para os
tribunais, de harmonia com a regra geral das alçadas'.
O artigo 47º, nº 1, estabelece o prazo máximo em que a
decisão dos árbitros deve ser proferida e a data a partir da qual deve ser
contado, reportando-se o nº 2 à 'confiança do processo' e o nº 3 à comparência
dos árbitros 'perante a entidade expropriante', quando 'se encontrem
habilitados a proferir a decisão'.
O artigo 48º, nos seus nºs 1, 2 e 3, refere-se ao rito
processual a seguir na elaboração do acórdão dos árbitros.
O artigo 51º, nº 1, dispõe que da decisão arbitral 'cabe
recurso para o tribunal da comarca da situação dos bens a expropriar ou da sua
maior extensão', indicando ainda o prazo de interposição e a maneira de o
interpor.
O artigo 56º reporta-se ao modo de interposição do recurso
da arbitragem, com as exigências aí discriminadas.
Registe-se que se se entender tratar-se de lapso de
escrita a referência à norma do nº 1 do artigo 51º, já que o STJ se havia
referido, no discurso do acórdão, à norma do nº 2, quando se diz: 'Não sendo
recorrida, fixa o valor da indemnização por forma definitiva - artigo 51º, nº
2, C.E.', não poderá esta última norma constituir objecto de apreciação de um
juízo de (in)constitucionalidade por parte deste Tribunal.
Com efeito ela, o nº 2, apenas estabelece o 'modus
operandi' do juiz, nos casos em que não há recurso, da decisão arbitral, nada
tendo a ver com a natureza das funções dos árbitros ou com a possibilidade ou
não possibilidade de recurso. Perante a constatação de que as partes
interessadas não revelam vontade de recorrer, e, logo, se conformam com a
decisão dos árbitros, o juiz deverá observar o que naquele preceito se
estipula.
Finalmente, verifica-se que a referência às normas dos nºs
1, 2 e 3 do artigo 56º do actual Código das Expropriações se traduz num
manifesto lapso, donde elas se devam também excluir do objecto do presente
recurso de constitucionalidade.
Na verdade, não só este artigo não contém aqueles números,
como não parece que haja qualquer fundamento para o STJ lhe fazer alusão. Ele
define apenas o modo de interposição do recurso da arbitragem, com as exigências
aí discriminadas.
Em conclusão: objecto de apreciação de
constitucionalidade são as normas dos artigos 37º, 47º, nº 1, 48º, nºs 1, 2 e 3
e 51º nº 1, do actual Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº
438/91, de 9 de Novembro, interpretadas, como foram, pelo STJ no sentido de
atribuírem natureza jurisdicional às decisões dos árbitros, sendo que um tal
entendimento surge como fundamento do acórdão recorrido.
Vejamos então, feita esta delimitação do objecto do
recurso, a que conduz tal apreciação, na perspectiva da interpretação feita no
acórdão recorrido: a um juízo positivo ou negativo de constitucionalidade?
Para responder a esta questão, há que obter primeiro uma
resposta quanto a duas outras questões:
a) Saber se a Constituição admite a existência de
tribunais arbitrais necessários;
b) Em caso afirmativo, saber se os árbitros, no processo
expropriativo, integram um verdadeiro tribunal arbitral necessário,
satisfazendo os requisitos constitucionais desse tipo de tribunal.
7. Relativamente à primeira questão já teve este Tribunal
Constitucional ensejo de sobre ela se debruçar. Fê-lo no Acórdão nº 32/87
(publicado no Diário da República, II Série, nº 81, de 7 de Abril de 1987), onde
se pode ler: 'depois da revisão constitucional de 1982, e face à nova redacção
então dada ao art. 212º, nº 2, da Constituição (hoje art. 211º, nº 2), passou a
ser insusceptível de qualquer discussão e admissibilidade, na ordem jurídica
portuguesa, de tribunais arbitrais. E, não distinguindo o preceito entre
tribunais arbitrais 'voluntários' e 'necessários', não existe razão para se
haverem por consentidos só os primeiros, e não os segundos: não existe razão,
sendo certo, nomeadamente, que os tribunais 'necessários' não seriam uma
instituição desconhecida, e nova, no nosso ordenamento, mas de há muito nele
encontram acolhimento (cfr. tít. II do livro IV do CPC). Mais: tendo em conta
que a natureza e a fonte ou fundamento dos tribunais arbitrais 'voluntários'
sempre permitiria 'justificá-los' constitucionalmente, se outras 'justificações'
não pudessem ser encontradas, enquanto uma modalidade inteiramente 'privada' e
'consensual' de composição de interesses e resoluções de litígios (no domínio
da zona de disponibilidade de direitos), bem poderia inclusivamente
sustentar-se que a expressa referência a 'tribunais arbitrais' no novo texto
constitucional só se justificaria, em boa verdade, para dissipar quaisquer
dúvidas acerca da admissibilidade de tais instâncias na sua modalidade
'necessária''.
E indo mais longe, no que toca a saber se a Constituição,
na sua versão originária, já admitia instituições desta natureza, pode ler-se
ainda naquele aresto: 'Mas, se as coisas são assim no quadro da actual versão da
lei fundamental, também antes não deviam entender-se diferentemente, face ao
texto originário da Constituição. E, de facto, não o eram, ao menos em geral
(...).
É certo (...) que nessa redacção inicial da Constituição
não havia qualquer referência a 'tribunais arbitrais', apesar de no art. 212º já
se enunciarem as diferentes 'categorias de tribunais'. Do silêncio
constitucional, porém, não era legítimo concluir pela sua inconstitucionalidade.
Com efeito, o que sucedia era que nessa disposição da lei
fundamental apenas se contemplavam os tribunais que eram 'órgãos do Estado' (que
se integravam na organização deste), mas sem com isso se pretender excluir
outras formas de 'realização' ou 'administração da justiça', tradicionalmente
reconhecidas no nosso direito. De resto, assim mesmo acontecia no domínio de
Constituições anteriores (cfr. art. 56º da Constituição de 1911 e sobretudo art.
116º da Constituição de 1933, onde a referência já não é ao 'poder judicial',
mas à 'função judicial' e genericamente aos 'tribunais') sem que alguma vez se
tivesse posto em dúvida a legitimidade dessas outras modalidades de jurisdição,
ou seja, dos tribunais arbitrais, quer 'voluntários', quer 'necessários', e das
normas, nomeadamente do CPC, que os contemplavam.
A verdade, numa palavra, é que ao nosso direito era
estranho - e continua a ser estranho (...) - o princípio do 'monopólio estadual
da função jurisdicional', ou da exclusividade da 'justiça pública'; e, assim
sendo, não pode admitir-se que a Constituição, com o seu silêncio, e um silêncio
que apenas prolongava silêncios constitucionais anteriores, o tivesse querido
consagrar (a esse tal princípio), invertendo radicalmente todo o sentido da
tradição jurídica nacional.
Decorre do exposto, em suma, que quer já face ao texto
primitivo da Constituição, quer agora, face à disposição expressa do art. 212º,
nº 2, se haviam e hão-de considerar admissíveis os tribunais arbitrais
necessários'.
Com o que fica positivamente respondida a primeira
questão, perfilhando, como se perfilha, o entendimento do citado Acórdão nº
32/87.
8. Posto isto, há então que dar, agora, resposta à segunda
daquelas questões, ou seja, indagar da natureza da instituição arbitral a que
se refere o vigente Código das Expropriações, ou, dito de outro modo, saber se
ela integra um verdadeiro tribunal arbitral necessário.
Não restam dúvidas de que os tribunais arbitrais não são
tribunais como os outros, em certos aspectos: designadamente, os árbitros não
são juízes de carreira, não estando, por isso, sujeitos ao estatuto privativo
destes, imposto pelos artigos 207º e segs. e 220º e segs. da Constituição, nem
são órgãos permanentes, sendo constituídos para resolver um determinado
litígio.
Mas, como este Tribunal Constitucional já afirmou por
diversas vezes (cfr. Acórdãos nºs 419/87 e 98/88, publicados, respectivamente,
no Diário da República, II Série, nº 3, de 5 de Janeiro de 1988 e II Série, nº
193, de 22 de Agosto de 1988), embora a administração da justiça caiba em
exclusivo aos tribunais, tal não significa que esse exclusivo respeite apenas
aos tribunais estaduais; abrange também os tribunais arbitrais que, não podendo
considerar-se órgãos de soberania, são verdadeiros tribunais (cfr., entre
outros, os Acórdãos nºs 230/86 e 33/88, respectivamente publicados no Diário da
República, I Série, nº 210, de 12 de Setembro de 1986 e I Série, nº 43, de 22 de
Fevereiro de 1988).
No entanto, a Constituição não nos dá uma definição do
que seja 'tribunal'.
Por isso, 'a sua definição há-de radicar-se na natureza
das funções que exerce, no seu carácter jurisdicional' (cfr. Acórdão nº 289/86,
publicado no Diário da República, II Série, nº 5, de 7 de Janeiro de 1987). E no
estatuto de independência e imparcialidade de quem desempenha tais funções.
Mais concretamente, o que importa é analisar se a
actividade da arbitragem a que se refere o dito Código das Expropriações -
neste vindo regulamentada, nomeadamente nas normas ora questionadas - se insere
nas funções que, nos termos do artigo 205º da Constituição, definem e determinam
a integração da sua competência na função jurisdicional, e no estatuto de
independência e imparcialidade de quem desempenha tais funções. (se, por outras
palavras, os árbitros gozam no desempenho das suas funções da independência e da
imparcialidade que se requerem a quem exerce a função de julgar).
Aquele artigo 205º, que se ocupa da função jurisdicional,
dispõe no seu nº 1 que os tribunais são os órgãos de soberania com competência
para administrar a justiça em nome do povo e, no seu nº 2, que na administração
da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses
legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade
democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.
Como escrevem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, em
anotação a este artigo (Constituição da República Portuguesa, Anotada, 3ª ed.,
1993): 'O principal alcance do nº 1 consiste em determinar que só aos tribunais
compete administrar a justiça e dentro dos tribunais ao juiz (reserva de juiz),
não podendo ser atribuídas funções jurisdicionais a outros órgãos,
designadamente à Administração Pública. Coisa diferente é condicionar o acesso
aos tribunais à intervenção prévia de outras autoridades ou instâncias de
composição de conflitos, requisito que não será só por si inconstitucional, se
essa intervenção não se reclamar de judicial e se ela não retardar
despropositadamente ou não causar prejuízo ao direito de recurso aos
tribunais' (pág. 792).
Os mesmos Autores escrevem ainda: 'Neste preceito, a
Constituição ensaia uma definição da função jurisdicional (cfr. epígrafe), que
na doutrina é deveras controvertida. São três as áreas especialmente
mencionadas: a) a defesa dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos (o
que aponta directamente para a justiça administrativa; b) a repressão das
infracções da legalidade democrática (o que aponta especialmente para a justiça
criminal); c) a resolução dos conflitos de interesses públicos e privados (o que
abrange principalmente a justiça cível).
(...)
Permanece uma questão altamente controvertida a delimitação da reserva de
competência judicial, sendo a distinção entre administração e jurisdição uma
das questões salientes das disputas doutrinais e da jurisprudência. E se não há
dúvidas sobre a natureza necessariamente jurisdicional, por exemplo, quanto à
aplicação de penas criminais, definição autoritária de conflitos de interesses
privados, verificação da legalidade da actividade administrativa, são também
conhecidos casos controvertidos, como, por exemplo (...), a fixação de
indemnizações por expropriação (...). A linha de fronteira terá de atender não
apenas à densifição doutrinal adquirida da função jurisdicional, aos casos
constitucionais de reserva judicial - (...) - mas também ao apuramento neste
campo de um entendimento exigente do princípio do Estado de direito democrático
(artº 2º)' - loc. cit..
Não deixando de ser controvertida na doutrina a definição
de função jurisdicional, há quem a distinga da função administrativa nos
seguintes termos:
'Ao cabo e ao resto, o quid specificum do acto jurisdicional reside em que ele
não apenas pressupõe mas é necessariamente praticado para resolver 'uma questão
de direito'. Se, ao tomar-se uma decisão, a partir de uma situação de facto
traduzida numa 'questão de direito' (na violação do direito objectivo ou na
ofensa de um direito subjectivo), se actua, por força da lei, para se conseguir
a produção de um resultado prático diferente da paz jurídica decorrente da
resolução dessa 'questão de direito', então não estaremos perante um acto
jurisdicional; estaremos, sim, perante um acto administrativo' (Afonso
Rodrigues Queiró, Lições de Direito Administrativo, vol. 1, pág. 51).
Este Autor afirma que a distinção entre as duas funções é
de ordem teleológico-objectiva, sendo necessário em cada caso proceder à
interpretação da lei, para se concluir qual a finalidade objectiva visada com o
exercício de determinada competência legal.
Por seu turno, escreveu-se no córdão nº 104/85 deste
Tribunal Constitucional (Diário da República, II Série, de 28 de Agosto de
1985):
'A separação real entre a função jurisdicional e a função administrativa passa
pelo campo dos interesses em jogo: enquanto a jurisdição resolve litígios em
que os interesses em confronto são apenas os das partes, a Administração,
embora na presença de interesses alheios, realiza o interesse público. Na
primeira hipótese a decisão situa-se num plano distinto do dos interesses em
conflito. Na segunda hipótese verifica-se uma osmose entre o caso resolvido e o
interesse público.
Todavia, ainda por outra vertente se distinguem as funções consideradas: ao
passo que o medium da jurisdição é a vontade da lei (concretizada no apuramento
da conclusão decisória a partir das premissas previamente enunciadas do
silogismo judiciário), o medium da Administração é a vontade própria (o que
pressupõe a possibilidade de agir sobre as várias alternativas propostas pela
lei)'.
Como também se refere no Acórdão nº 453/93 deste Tribunal
(Diário da República, II Série, de 6 de Maio de 1994):
'A doutrina alemã tem distinguido no plano constitucional entre o monopólio de
juiz, por um lado, e uma outra dimensão que se designa por garantia da via
judiciária. Nuns casos, certas matérias só podem ser apreciadas pelos tribunais,
a quem cabe a primeira e a última palavra. Noutros casos, de menor grau de
exigência constitucional, porém, admite-se uma intervenção da Administração,
desde que fique garantido o acesso aos tribunais, a quem cabe a última palavra
na questão. (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República
Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, págs. 792 e 793)'.
Posto isto, e encurtando razões teoréticas, há que retomar
a analise sobre a intervenção dos árbitros, no processo de expropriação: se
há-de ou não reclamar-se de jurisdicional, ou se é antes um tipo de
'intervenção da Administração'. E se, tratando-se de função jurisdicional, os
árbitros gozam de independência e de imparcialidade, como ficou já dito.
Não restam dúvidas de que os árbitros, dispondo de
independência funcional (eles são de facto designados de entre uma lista oficial
de cidadãos sujeitos a inibição e impedimentos vários: cfr. artigos 43º, nº 2,
do Código das Expropriações, 2º e 3º do Decreto-Lei nº 44/94, de 29 de
Fevereiro, e 1º do Decreto Regulamentar nº 21/93, de 15 de Julho) intervêm in
casu para dirimir um conflito de interesses entre partes no processo de
expropriação litigiosa. Eles compõem um conflito entre entidades privadas e
públicas ao decidirem sobre o valor do montante indemnizatório da
expropriação, sendo que tal decisão visa tornar certos um direito ou uma
obrigação, não constituindo um simples arbitramento.
Tal intervenção, traduzida no recurso à arbitragem
obrigatória, quanto à fixação do valor global da indemnização, como primeiro
passo nessa fixação, imposto pelos artigos 42º a 49º do Código citado, cabe,
pois, no âmbito da acção de um qualquer tribunal arbitral, que o nº 2 do artigo
211º da Constituição admite, como se viu já, quando prevê as categorias de
tribunais (conquanto não defina o que são tribunais arbitrais, há-de
'entender-se que foi recebido o conceito decorrente da tradição jurídica
vigente no direito infraconstitucional', como dizem J.J. Gomes Canotilho e Vital
Moreira, loc. cit., pág. 808; cfr. o citado Acórdão deste Tribunal
Constitucional nº 33//88).
Com efeito, podem ver-se aqui presentes, em geral, as
'características fundamentais dos tribunais arbitrais' de que falam aqueles
Autores: 'a) são normalmente formados ad hoc para o julgamento de determinado
litígio, esgotando-se nessa tarefa, podendo, porém, existir tribunais arbitrais
permanentes, a que podem ser diferidos os litígios emergentes de determinado
tipo de relações jurídicas; b) são formados por iniciativa das partes ou por
iniciativa de instituições representativas dos eventuais litigantes
(associações comerciais, etc); c) não têm competência própria, julgando
litígios que, na falta deles, são da competência normal de outros tribunais; d)
os juízes (árbitros) são leigos escolhidos segundo certas regras estabelecidas
na lei.' (loc. cit. pág. 808).
Enfim: a referida intervenção dos árbitros, no processo de
expropriação, não atenta contra a atribuição da reserva da função jurisdicional
aos tribunais nem com a garantia de acesso aos mesmos, princípios integradores
do princípio do Estado de direito democrático, defluindo dos artigos 2º, 20º,
nº 1, e 205º da Lei Fundamental, assim se respondendo à questão principal do
juízo positivo ou negativo da constitucionalidade, na perspectiva da
interpretação feita no acórdão recorrido.
Dai que não proceda a arguição de inconstitucionalidade
que é feita pela recorrente, com referência à interpretação a que o Supremo
Tribunal de Justiça aderiu, não merecendo, deste modo, censura o julgado quanto
à questão de inconstitucionalidade das normas questionadas do vigente Código
das Expropriações.
9. Termos em que, DECIDINDO, nega-se provimento ao
recurso.
Lx. 20.12.95
Guilherme da Fonseca
Messias Bento
Fernando Alves Correia
José de Sousa e Brito
Luís Nunes de Almeida
Bravo Serra (com a declaração idêntica à que apus no Acórdão nº 52/92, publicado
na 1ª Série-A do Diário da República de 14 de Março de 1992, quanto à afirmação
de que, incluindo a C.R.P. no nº 2 do seu artigo 211º a previsão de existência
de tribunais arbitrais, está assegurada a legitimidade constitucional dos
tribunais arbitrais necessários.
José Manuel Cardoso da Costa