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Processo nº 171/94
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
A CAUSA
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Macau, foi sujeito a julgamento, sob a forma de processo sumário, A, imputando-se-lhe o cometimento de um crime p. e p. pelo artigo 14º, nº1 da Lei nº 2/90/M, de 3 de Maio, com a redacção dada pelo Decreto-Lei nº 39/92/M, de 20 de Julho.
Iniciada a audiência, pelo magistrado do Ministério Público, foi arguida a nulidade do julgamento, por a ele presidir o Juiz do Tribunal Administrativo de Macau, considerando o arguente que ao Conselho Judiciário de Macau (CJM) es
tava vedado emitir a deliberação com base na qual aquele juiz presidia ao julgamento dos processos sumários crime, por se entender violado o princípio do
'juiz natural' consagrado nos artigos 32º, nº 7 da Constituição e 13º do Decreto-Lei nº 17/ /92/M de 2 de Março.
Desatendida essa pretensão, veio a realizar-se o julgamento, sendo o arguido condenado na pena de 60 dias de prisão. Inconformado, porém, com o decidido quanto à invocada nulidade do julgamento, recorreu o referido magistrado do Ministério Público para o Tribunal Superior de Justiça de Macau (TJSM), formulando as seguintes conclusões:
'1. Ao Tribunal Administrativo compete o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto os litígios emergente das relações jurídicas administrativas fiscais e aduaneiras não lhe estando atribuídas quaisquer competências em matéria penal.
2. A deliberação do Conselho Judiciário de Macau que afectou ao Juiz do Tribunal Administrativo 'para além dos processos da sua específica competência, os sumários, os de transgressões ou equiparados os de menores e os de execução de penas' viola lei expressa pelo que o Mmº Juiz 'a quo' deveria julgar-se incompetente e remeter os autos ao Tribunal de Competência Genérica. Na verdade,
3. Através daquela deliberação o Conselho subtraiu poderes jurisdicionais ao Tribunal Comum e afectou-os ao Tribunal Administrativo.
4. Violando desse modo o princípio do juiz natural ou do juiz legal consagrado no art. 32º nº 7 da Constituição e no art.º 15º do Dec.-Lei nº 17/92/M, de 2/3 e ainda o regime constante dos arts. 5º nº 1 e 3 e 7. nº 2 da Lei 112/91, de 29/8,
12 nº3, 15, 18 nº 2, 28, do Dec.-Lei 17/92/M, de 2/3.
5. Através deste princípio sanciona-se de forma expressa o direito fundamental dos cidadãos a que uma causa seja julgada por um Tribunal previsto como competente por lei anterior e não 'ad hoc', criado ou tido como competente.
6. Deve assim dar-se provimento ao (...) recurso revogando-se a sentença proferida que deverá ser substituída por despacho a ordenar a remessa dos autos ao Tribunal de Competência Genérica.'
2. O TSJM, através de Acórdão de 16 de Março de 1994
(fls. 61/65), decidiu, por maioria, revogar a decisão recorrida, ordenando 'que
o processo seja julgado pelo juiz do Tribunal de competência genérica que a distribuição determinar'.
Para o efeito, recusou o TSJM a 'aplicação da norma contida na resolução do CJM de 23/9/93 que determina que os processos sumários, de transgressões ou equiparados, de menores e de execução de penas, passem a ser da competência do juiz do Tribunal Administrativo de Macau', recusa esta fundada em violação do disposto no artigo 115º, nº 7 da Constituição.
Argumentando nesse sentido, consignou o TSJM:
' A deliberação em causa contém uma regra geral por ter como destinatários um número indeterminado e indeterminável de pessoas, definidas através de certas características ( in casu, todas aquelas que se coloquem na situação de serem submetidas a quaisquer dos processos nela previstos). E contém igualmente uma regra abstracta por regular não um caso ou hipótese determinada, mas um número indeterminado e indeterminável de casos, uma pluralidade de hipóteses reais que venham a verificar-se no futuro (in casu, todos os processos sumários, de transgressões ou equiparados, de menores e de execução das penas para que sejam competentes os tribunais de Macau).
Quanto ao âmbito da sua aplicação é o regulamento em apreciação um regulamento local, por dirigido apenas ao território de Macau.
No que concerne à sua ligação com a lei desconhece-se se o referido regulamento é, por
um lado, um regulamento complementar ou de execução ou, por outro, um regulamento independente ou autónomo, sabendo-se que os primeiros são os que desenvolvem ou aprofundam a disciplina jurídica constante de uma lei e os segundos os que os órgãos administrativos elaboram para assegurar a realização das suas atribuições específicas, sem cuidar de desenvolver ou de completar nenhuma lei em especial.
A estes dois tipos de regulamentos se refere o nº 7 do artº 115º da CRP que, ao consagrar o princípio da primariedade ou precedência da lei, estabelece, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira: 'a) a precedência da lei relativamente a toda a actividade regulamentar; b) o dever de citação da lei habilitante por parte de todos os regulamentos. Esta dupla exigência torna ilegítimos não só os regulamentos carecidos de habilitação legal mas também os regulamentos que embora com provável fundamento legal, não individualizem expressamente este fundamento'.
Segundo os mesmos autores, 'isto é assim, mesmo quando seja possível identificar a lei habilitante, pois a função da exigência de identificação expressa consiste não apenas em disciplinar o uso do poder regulamentar
(obrigando o Governo e a Administração a controlarem, em cada caso, a habilitação legal de cada regulamento) mas também em garantir a segurança e a transparência jurídicas sobretudo relevante à luz da principiologia do Estado de direito democrático.
E o Tribunal Constitucional, numa jurisprudência constante e uniforme, concretizada numa enorme multiplicitade de casos, vem julgando formalmente inconstitucionais, por infracção ao disposto no nº 7 do artº 115 da CRP, todos os regulamentos que não indiquem expressamente a lei que visam regulamentar
(regulamentos complementares ou de execução) ou que não refiram a lei que define a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão (regulamentos independentes ou autónomos).'
Deste Acórdão, interpôs recurso, para o Tribunal Constitucional, o Ministério Público, por recusa de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade.
3. Neste Tribunal o Exmº Procurador-Geral Adjunto em exercício, alegou formulando as seguintes conclusões:
'1º - Não vigorando no Território de Macau a norma constante do nº 7 do artigo
115º da Constituição - preceito não atinente aos direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição da República Portuguesa e não consagrado nem 'devolvido' à Lei Fundamental pelo Estatuto Orgânico de Macau - não padece
de inconstitucionalidade formal, por omissão do dever de citação da lei habilitante, o acto genérico, de índole regulamentar, consubstanciado na deliberação do CJM de 23 de Setembro de 1993.
2º - Porém, a norma constante de tal deliberação, na parte em que determinou que fossem cometidos ao juiz do Tribunal Administrativo de Macau os processos sumários penais, inseridos no âmbito da competência do Tribunal de Competência Genérica desse Território, infringe o princípio constitucional do juiz natural, consagrado no nº 7 do artigo 32º da Constituição, aplicável ao Território de Macau, nos termos do artigo 2º do respectivo Estatuto Orgânico.
3º - Na verdade, tal norma - emitida pelo órgão de administração judiciária do Território - posterga as regras que, nos termos das leis de processo e de organização judiciária aplicáveis, devem reger a distribuição de processos entre vários juízes colocados no Tribunal de Competência Genérica de Macau, traduzindo a directa afectação, por via administrativa, de certas categorias de causas a determinado juiz, titular de um tribunal de competência especializada - o Tribunal Administrativo de Macau.'
Corridos os pertinentes vistos, cumpre decidir.
II
FUNDAMENTAÇÃO
4. Em processos, como este, oriundos de Macau, em que estão em causa decisões de tribunais daquele território chinês, sob administração portuguesa até 20 de Dezembro de 1999 (v. artºs. 5º, nº1 e 292º, nº1 da Constituição e nº 1 da Declaração Conjunta Luso-Chinesa, publicada no DR-I de 14/12/87), a questão que preliminarmente sempre se coloca é a de saber se detém este Tribunal competência para apreciar a constitucionalidade das normas aplicadas ou, como aqui sucede, desaplicadas por tribunais integrados na organização judiciária própria de Macau.
A esta questão vem o Tribunal Constitucional respondendo afirmativamente (v., por exemplo, Acórdãos nºs. 284/89 e 245/90, respectivamente no DR-II de 12/6/89 e 22/1/ /91), sendo certo exercer a sua jurisdição 'no âmbito de toda a ordem jurídica portuguesa', como refere o artigo 1º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (LTC), em disposição visando precisamente a situação de Macau (cfr., Barbosa de Melo/Cardoso da Costa, Projecto de Lei sobre a Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, no Bl. Fac. Direito de Coimbra, vol. LX, e em separata, nota ao referido artigo 1º).
A esta resposta, aliás, não é estranho o teor dos artigos 30º, nº 1 alínea a) e
40º, nº 3 do Estatuto Orgânico de Macau, na redacção da Lei nº 13/90, de 10 de Maio (adiante Estatuto Orgânico) e a circunstância de não ter sido ainda exercida a faculdade conferida pelo artigo 75º do mesmo Estatuto.
5. Assente este pressuposto, importa analisar a disposição cuja aplicação o TSJM recusou, com fundamento em inconstitucionalidade.
Está em causa uma deliberação do CJM de 23 de Setembro de 1993, atribuindo ao Juiz do Tribunal Administrativo a tramitação e julgamento, além dos processos próprios, dos processos sumários, de transgressões ou equiparados, de menores e os de execução de penas.
Lê-se na referida deliberação, transcrita a fls. 40:
'Propôs o senhor presidente, e o Conselho aceitou e assim o deliberou, que em razão de o Tribunal Administrativo ter sido grandemente aliviado de suas competências pela entrada em funcionamento do Tribunal de Contas, fossem cometidos ao respectivo juiz, para além dos processos da sua específica competência, os sumários, os de transgressão ou equiparados, os de menores e os de execução das penas.
E como o quadro de funcionários do Tribunal Administrativo é reconhecidamente exíguo, deverão, todavia, aqueles processos correr pelas secções do Tribunal de jurisdição comum, conforme distribuição equitativa ou como o presidente desse Tribunal melhor entenda.
Mais deliberou que todos os processos daquela natureza, salvo aqueles em que, eventualmente, tenha sido iniciado o julgamento, passem ao Juiz do Tribunal Administrativo logo que este seja empossado no cargo. '
6. Ora, seguindo o percurso argumentativo do Acórdão recorrido, interessa-nos agora a qualificação como regulamento da deliberação ao afectar determinadas espécies de processos ao Juiz do Tribunal Administrativo, criando, como se diz no Acórdão, um 'Tribunal de competência especializada'. Tal qualificação carece da seguinte explicitação: traduz, a deliberação em causa, com efeito, uma regra geral e abstracta, porque construída em torno de categorias abstractas: ser Juiz do Tribunal Administrativo (todas as pessoas que exerçam essa função, na vigência da deliberação, e não a pessoa concreta que naquele momento circunstancialmente a exerce); processos pertencentes a determinadas espécies (todos os processos dessas espécies) e porque tem como destinatários uma generalidade de pessoas
(os operadores judiciários e demais intervenientes nos processos presentes e futuros relativos às espécies indicadas) [v. Diogo Freitas do Amaral, Direito Administrativo, vol.III, Lisboa 1989, pág. 36/38]. Porém, decisivo na caracterização como 'norma', enquanto objecto do processo constitucional, mais que a exigência de generalidade das pessoas e abstracção dos factos é a presença do elemento normatividade, em termos que o Parecer nº 13/82 da Comissão Constitucional (Pareceres da Comissão Constitucional, 19, pág. 159) refere da seguinte forma:
'... é de certo seguro e indiscutível que a Constituição, ao prever o controlo da constitucionalidade das «normas» jurídicas (...) teve em vista não toda a actividade dos poderes públicos mas apenas um sector dela, a saber, o que se traduz na emissão de regras de conduta ou padrões de valoração de comportamentos (i.e., de «normas»): deste modo, fora desse específico controlo ficam os puros actos de aplicação dessas regras ou padrões, que são os actos jurisdicionais e os actos administrativos, stricto sensu. Simplesmente (...) cumpre atentar em que um preceito legal que rege para um caso concreto, e que nessa medida se apresenta com uma eficácia equivalente à de um acto administrativo, nunca é um puro acto de «aplicação» do direito préexistente, pois que simultaneamente se traduz num acto de «criação» de direito novo: é que nele estabelece-se também a regra aplicável ao caso, regra que muitas vezes (se não normalmente) constitui um desvio ou uma excepção às que de outro modo seriam aplicadas, mas que justamente se torna necessária para conferir à providência administrativa adoptada o seu mesmo fundamento de validade (de validade «legal», claro). Em tal preceito ou disposição legal vai implicitamente contida, por conseguinte, uma norma - uma norma «individual», de certo, mas que não há razão para subtrair só por esse facto (...) à possibilidade de controlo previsto no artigo 281º da Constituição.'
Ora, na deliberação do CJM aqui em causa, o elemento criação normativa, sinónimo de normatividade, encontra-se claramente presente tornando-a sempre passível de fiscalização concreta pelo Tribunal Constitucional.
Seja como for, aceitando a qualificação constante do Acórdão do TSJM da deliberação como regulamento (e ela é aceitável), importa agora encarar se a não indicação - no caso notória - da lei habilitante nos permite, relativamente a Macau, formular um juízo de inconstitucionalidade por violação do nº 7 do artigo 115º da Constituição.
Enunciada desta forma, contém a questão o elemento que irá ser decisivo na obtenção de uma resposta: aplica-se ao espaço jurídico de Macau o artigo 115º da Constituição ?
É sabido - e este Tribunal tem-no acentuado por diversas vezes (cfr. Acórdãos nºs. 284/89 e 245/90, já citados, e 292/91, no DR-II de 30/10/91) - que a Constituição da República Portuguesa não rege automaticamente no Território de Macau, cujo verdadeiro 'texto constitucional' reside no seu Estatuto Orgânico, só se aplicando da Constituição, para além do que ela própria indique, o que o Estatuto explícita ou implicitamente dela receba.
Ora, se é certo que as regras atinentes a direitos fundamentais, máxime aos direitos, liberdades e garantias são, por devolução do Estatuto Orgânico (v. artigo 2º), inquestionavelmente aplicáveis ao Território de Macau (cfr., Acórdão nº 245/90), já o mesmo se não pode dizer de uma regra, como a constante do artigo 115º, nº 7, sistematicamente inserida nos princípios gerais da 'Organização do poder político', 'concretizadora da vinculação constitucional do legislador quanto à produção normativa' (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª. ed., Coimbra 1993, pág. 501).
Que esta disposição não rege constitucionalmente em Macau, intui-se aliás, desde logo, do seu próprio teor, totalmente omisso quanto ao Território, em aberto contraste com o carácter exaustivo das referências à legislação própria das Regiões Autónomas. A isto acresce a circunstância, referida nas alegações do Ministério Público, traduzida na forte especificidade da 'produção de actos normativos' no Território de Macau, particularmente no que tange ao domínio regulamentar, com a atribuição ao Governador de um poder genérico de 'Regulamentar a execução das leis e demais diplomas vigentes no território que disso careçam' (artigo 16º, nº 1 alínea c) do Estatuto Orgânico). Decorrendo daqui, claramente, a ideia de precedência da lei quanto à actividade regulamentar, já não decorre a
'cominação de inconstitucionalidade' relativamente à não citação da lei habilitante no exercício dessa actividade.
Cai, pois, por esta base, a construção em que se baseou a decisão de recusa aqui em apreciação.
7. Avançando na nossa indagação é altura de proceder a uma leitura global da deliberação do CJM sub judicio. Como ponto de partida temos a indicação, expressa, do que se pode considerar ter constituído o fundamento prático da deliberação: o Tribunal Administrativo, mercê da divisão das suas competências com o Tribunal de Contas, viu o respectivo volume de trabalho bastante reduzido. Seguidamente, em função de tal constatação, decide o Conselho atribuir ao Juiz do Tribunal Administrativo determinadas espécies processuais não correspondentes à jurisdição administrativa, intuíndo-se, até, do teor da deliberação, que essa atribuição é feita ao próprio Tribunal Administrativo, resultando a manutenção dos processos nas secções do Tribunal de jurisdição comum, apenas, da circunstância do quadro de funcionários do Tribunal Administrativo ser exíguo.
Sendo certo que os tipos processuais indicados na deliberação, próprios como são da jurisdição comum, jamais corresponderiam ao juiz do, ou ao, Tribunal Administrativo (v. artigo 7º e 9º da Lei nº 112/91, de 29 de Agosto e artigos 18º e 27º/31º do DL nº 17/92/M), o que a deliberação na prática vem fazer é, de forma totalmente inovatória relativamente às leis existentes, mexer nas regras de divisão funcional de processos entre os diversos juízes.
Outro aspecto dessa deliberação reforça a ideia de que se procedeu a uma redefinição dessa divisão funcional dos processos
entre os processos abrangidos, incluem-se mesmo os pendentes (exceptuados aqueles em que se iniciou o julgamento) numa clara redefinição da competência.
A situação configurada não é assim redutível ao estabelecimento de uma situação de simples acumulação de funções (possível nos termos do artigo 21º do DL 17/92/M) consubstanciando antes uma verdadeira alteração das regras relativas à competência em razão da matéria, tal qual estas decorrem das leis sobre organização judiciária vigentes em Macau, designadamente da Lei de Bases da Organização Judiciária respectiva.
É certo que o mesmo resultado prático da deliberação questionada poderia ser obtido através da nomeação para o Tribunal de jurisdição comum, como juiz auxiliar ou como juiz titular (portanto, co-titular desse Tribunal), do mesmo juiz que é titular do Tribunal Administrativo, em acumulação de funções. A divisão do trabalho entre os juízes co-titulares do Tribunal de jurisdição comum poderia então fazer-se de modo a que ao juiz assim nomeado fossem cometidos os processos sumários, de transgressão ou equiparados, os de menores e os de execução das penas. Tais actos de administração judiciária não implicariam alteração das normas sobre competência funcional e seriam certamente admissíveis desde que fosse respeitado o princípio do juiz natural. Só que não foi este o conteúdo da deliberação do CJM que cometeu ao juiz do Tribunal Administrativo 'para além dos processos da sua específica competência, os sumários, os de transgressão, os de menores e os de execução das penas' e que, além disso, relativamente aos 'processos daquela natureza, salvo aqueles em que, eventualmente, tenha sido iniciado o julgamento', já atribuídos a juízes do Tribunal de jurisdicção comum, 'passem ao juiz do Tribunal Administrativo logo que este seja empossado no cargo'. Tratou-se aqui de alterar as regras de competência funcional e de redestribuir processos segundo características genéricas. A equivalência de resultados práticos não implica equiparação, do ponto de vista constitucional, de soluções jurídicas diversas.
Sendo certo que esta Lei de Bases decorre directamente do disposto no artigo 292º, nº 5 da Constituição ('As únicas normas constitucionais directa e automaticamente aplicáveis a Macau são aquelas que especificamente se lhe referem, a começar pelo artigo 292 que é a Grundnorm do ordenamento do território', Gomes Canotilho/Vital Moreira, A Fiscalização da Constitucionalidade das Normas de Macau, separata da Rev. do Mº.Pº., Lisboa
1991, pág.16), sendo isto certo, dizíamos, a competência para o desenvolvimento da Lei de Bases, efectuando, como no caso afecta, regras de competência judiciária, constituía competência exclusiva do Governador do Território a exercer sob forma de decreto-lei (artigo 13º, nº 1 e 3 do Estatuto Orgânico : v.Vitalino Canas, Quadros e Padrões do Fenómeno Político em Macau, separata da Rev. da Fac. de Dir., Lisboa 1992, pág.421/422).
Temos, pois, como segura a conclusão de que a deliberação viola o disposto no artigo 292º, nº 5 da Constituição, com referência ao artigo 13º do Estatuto Orgânico.
8. Sendo a deliberação em causa orgânicamente inconstitucional, nos termos indicados, torna-se dispensável a abordagem do problema nos moldes propugnados pelo Mº.Pº., os relativos à violação do princípio constitucional do juiz natural decorrente do nº 7 do artigo 32º da Lei Fundamental.
III DECISÃO
9. Pelo exposto, decide-se julgar inconstitucional a norma constante da deliberação do Conselho Judiciário de Macau de 25 de Setembro de 1993, por violação do artigo 292º, nº 5 da Constituição, com referência ao artigo 13º do Estatuto Orgânico de Macau, e negar provimento ao recurso.
Lisboa, 23 de Janeiro de 1996 José de Sousa e Brito Fernando Alves Correia Messias Bento Guilherme da Fonseca Luis Nunes de Almeida Bravo Serra (vencido, nos termos da declaração de voto junta)
Votei vencido quanto à decisão tomada no presente Acórdão, tentando agora explanar as razões por que o fiz.
1. A Lei nº 112/91, lei que aprovou as Bases da Organização Judiciária de Macau, dispôs no seu artº 5º, nº 1, que tal organização compreende 'tribunais de jurisdição comum e tribunais de jurisdição administrativa, fiscal, aduaneira e financeira', comandando-se que ao Tribunal Administrativo de Macau compete 'o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, fiscais e aduaneiras' e 'das demais matérias que lhe forem confiadas por lei ' (números 1 e 5 do artº 9º), o que é descriminado, designadamente, nos números 2, 3 e 4 do mesmo artigo, estatuindo-se que '[a]s causas não atribuídas a outra ordem jurisdicional são da competência dos tribunais de jurisdição comum' (nº 3 daquele artº 5º).
De outra banda, prescreve o artº 18º que
'[a] magistratura dos tribunais de Macau compreende juízes e agentes do Ministério Público' (nº 1), cujo quadro 'é fixado pelo Governador de Macau' (nº
2), podendo os respectivos cargos ser providos, por entre outras formas, por, respectivamente, 'juízes e magistrados do Ministério Público dos quadros da República, em regime de comissão de serviço' com a duração de três anos renovável (números 3 e 4), cabendo àquele Governador nomear os juízes 'sob proposta do Conselho Judiciário de Macau' (nº 4 do artº 20º).
O Decreto-Lei de Macau nº 17/92/M, editado ao abrigo da norma ínsita no nº 1 do artº 38º da Lei nº 112/91, veio consagrar a existência, em Macau (cfr. artº 18º), de 'tribunais de 1ª. instância de jurisdição comum e de jurisdição administrativa, fiscal e aduaneira', tribunais esses que 'podem desdobrar-se em juízos', onde 'exerce funções um juiz, cuja colocação compete ao Conselho Judiciário de Macau' (cfr. números 1 e 2 do artº
20º), dispondo que '[a] jurisdição comum é assegurada pelo Tribunal de Competência Genérica (desdobrado em três juízos - cfr. artº 27º) e pelo Tribunal de Instrução Criminal (desdobrado em dois juízos - cfr. artº 29º), sem prejuízo da possibilidade de criação posterior de outros tribunais de competência especializada ou de competência específica, nomeadamente de um Tribunal de Execução de Penas, de um Tribunal de Polícia e de um Tribunal de Pequenas Causas', enquanto que '[a] jurisdição administrativa, fiscal e aduaneira é assegurada pelo Tribunal Administrativo' (que tem um juiz - cfr. artº 31), sendo que (cfr. artº 28º, nº 1) '[a]s causas que não sejam atribuídas por lei a um determinado tribunal são da competência do Tribunal de Competência Genérica', .
Este diploma, no seu artº 21º, veio dispor que '[p]onderadas as necessidades do serviço, o Conselho Judiciário de Macau pode determinar que um juiz exerça, em regime de acumulação, funções em mais de um juízo ou tribunal' (nº 1), e que, '[f]undado em razões de acréscimo de serviço, o Conselho Judiciário de Macau pode propor ao Governador a nomeação para um tribunal ou juízo de outros juízes que se mostrem necessários' (nº 2).
Ainda no desenvolvimento da Lei nº 112/91, surgiu a lume o Decreto-Lei de Macau nº 55/92/M, de 18 de Agosto, que constitui, afinal, 'o estatuto dos juízes, o estatuto e a orgânica do Ministério Público e o estatuto e a orgânica dos Conselhos de gestão e disciplina dos magistrados'
(palavras do exórdio daquele corpo de leis).
De harmonia com os seus comandos, existe, entre outras, uma categoria designada por 'Juízes dos tribunais de 1ª. instância' [artº 7º., alínea c)], cujos requisitos de provimento são, especialmente, os previstos na Lei nº 112/91 (cfr. artº 22º), sendo, como se viu, nomeados pelo Governador de Macau, cabendo ao Conselho Judiciário de Macau, de entre o mais, '[p)roceder à colocação dos juízes dos tribunais de 1ª instância' e '[d]eterminar a acumulação de funções e a substituição de magistrados e designar os juízes que compõem o tribunal colectivo' [artº 99º, alíneas e) e f)].
Vale isto por dizer que, de acordo com a normação reguladora da organização judiciária de Macau, a nomeação dos juízes dos tribunais de 1ª instância - da competência do Governador - não implica directamente a sua colocação num determinado tribunal ou juízo, já que esta se processa por intermédio de deliberação do Conselho Judiciário de Macau, recaindo, obviamente, sobre quem já tiver sido nomeado juiz.
Este sistema é, desta arte, diverso daquele que se encontra consagrado para os magistrados judiciais da República por intermédio da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, consagradora do respectivo Estatuto
(cfr., v. g., artigos 42º, nº 2, 43º, números 2, 3, 4 e 5, e 45º).
Daí que o Conselho Judiciário de Macau tivesse de tomar a deliberação, também da mesma data da agora em apreciação, através da qual procedeu à colocação de juízes, já como tal nomeados pelo Governador, nos Juízos do Tribunal de Competência Genérica, Tribunal Administrativo e Tribunal de Instrução Criminal (cfr. fls. 27 dos presentes autos).
Não desejo entrar agora na questão conexionada com a caracterização que o Tribunal a quo fez da deliberação em crise [é de notar que, em tese, poderia haver quem entendesse que, tendo em conta, nomeadamente, a disposição ínserta no artº 21º, nº 1, do Decreto-Lei de Macau nº 17/92/M, não seria de todo incurial considerar-se a deliberação tomada em 23 de Setembro de 1993 pelo Conselho Judiciário de Macau como um acto administrativo e não como «uma norma jurídica (de carácter geral e execução permanente) dimanada de um órgão administrativo, no desempenho da função administrativa» - cfr. o conceito de regulamento dado por Afonso Queiró nas Lições citadas, 409 e, bem assim, Marcello Caetano no Manual de Direito Administrativo, 10ª edição, tomo I, 95, Sérvulo Correia in Noções de Direito Administrativo, vol. I, 95, e Esteves de Oliveira, Direito Administrativo, vol. I, 103, ou, para utilizar uma terminologia próxima de Aldo Sandulli in Manuale di diritto amministrativo, vol. I, 1982, 49, «um acto normativo composto geralmente por uma série articulada de disposições, que habitualmente, mas nem sempre, tem características de generalidade e abstracção»; e, nessa senda, a deliberação em apreço poderia, num certo entendimento, ser reconduzida a uma
«estatuição autoritária» levada a cabo por um órgão da Administração «no uso de poderes de Direito Administrativo» conferidos, no caso, pelo já mencionado artº
21º, nº 1, do D.L. de Macau nº 17/92/M, e visando dar resolução a «um caso individual» ou a um «caso concreto», precisamente o de se obter uma solução que obvie a situações de acumulação ou necessidades de serviço, estatuição essa que, assim, vai produzir «efeitos jurídicos externos» (retiraram-se as expressões em itálico de Rogério Soares, Direito administrativo, 1978, edição policopiada,
76)].
Aceito, assim que - atentas as acentuadas dificuldades na diferenciação, em termos de caracteriologia, entre um regulamento e um acto administrativo, designadamente quando este contém injunções que visam situações abstractas e sujeitos ainda não individualizados mas determináveis (o que leva alguns administrativistas a reportarem-se a «actos administrativos atípicos» que, todavia, deverão sofrer juridicamente o tratamento conferido aos actos administrativos típicos - cfr. Sérvulo Correia, idem, 273 e Rogério Soares, idem, 80 -, fazendo residir a caracterização desse acto como administrativo - embora atípico - na circunstância de o mesmo não ser normativo, por carente de generalidade e abstracção) -, a deliberação em apreço possa ser visualizada, não como um acto administrativo atípico, de execução instantânea - porque não carecido de qualquer acto ou actividade administrativa posterior para poderem ser produzidos os seus efeitos, aplicável a uma pluralidade de sujeitos, ao menos determinável (o juiz de 1ª instância que está colocado, por decisão do Conselho Judiciário de Macau, no Tribunal Administrativo e, porventura, enquanto se mantiverem a deliberação em causa e as necessidades do serviço, os que naquele Tribunal vierem a ser colocados), livremente revogável e, como sublinha Rogério Soares (idem, 83), atendendo a uma conceptualização finalística, passível de impugnação por intermédio de recurso contencioso -, mas sim como constituindo um verdadeiro regulamento, assim assumindo uma caracterização como norma, tomada esta expressão no seu sentido funcional, tal como o que tem sido adoptado por este Tribunal.
Contudo, mesmo perante uma tal óptica, ainda assim aquela deliberação não enfermaria do vício de inconstitucionali- dade formal descortinado no aresto impugnado, neste ponto, tal como no antecedente, dando o meu acordo ao que é referido no aresto a que presente declaração se encontra apendiculada.
2. Daqui resulta que o que me distancia do Acórdão são as considerações nele ínsitas e que o levaram a pronunciar-se pela existência, in casu, de vício de inconstitucionalidade orgânica.
Na verdade, e como já acima sublinhei, a deliberação do CJM de 23 de Setembro de 1993 não veio afectar qualquer regra processual e judiciária tocante à normal distribuição de processos sumários, de transgressão, de menores e de execução de penas por entre os diversos Juízos do Tribunal de Competência Genérica de Macau. De facto, essas espécies de autos continuam a ser normalmente distribuídas por entre aqueles Juízos e aí continuam a ser processadas; de igual modo, tais autos irão ser decididos por um magistrado judicial que, mercê da acumulação de funções que lhe foi cometida pela deliberação em crise, há-de ser perspectivado como um magistrado judicial que, também ele, desempenha serviço no Tribunal de Competência Genérica e, por isso, é «co-titular» desse Tribunal.
Por outra banda, e atenta a disposição constante do nº 2 do artº 21º do Decreto-Lei de Macau nº 17/92/M, que acima se encontra já transcrita, é perfeitamente hipotisável que o CJM, visando acudir ao acréscimo de serviço, viesse propor ao Governador do Território a nomeação, verbi gratia, de um juiz para cada um dos três Juízos actualmente existentes no Tribunal de Competência Genérica (ou de um juiz - que na prática funcionaria como «auxiliar» - para esses três Juízos). Numa tal situação hipotética, e supondo que, quer por decisão tomada pelos juízes do Tribunal de Competência Genérica, quer por decisão do CJM, fosse, internamente, dividido o serviço de molde a que o os juízes «efectivos» ou «realmente titulares» dos Juízos ficassem encarregues, por exemplo, dos processo de natureza cível e o ou os juízes
«auxiliares», dos restantes processos, não se vislumbra que houvesse uma
'criação' de um 'juiz de competência especializada ou específica mista' ou de um
'tribunal de competência especializada ou específica mista'.
Ora, na substância prática das coisas, quer se trate de juiz ou juízes «auxiliares», quer de juiz ou juízes em acumulação de funções, não parece que haja qualquer alteração de relevo quanto ao ponto de que agora se trata.
A deliberação em análise, na minha óptica, mais não fez do que praticar um acto (aceitando que com características de normatividade) inserível nos poderes de gestão ou administração judiciária, tendo suporte legal bastante no artº 21º do Decreto- -Lei de Macau nº 17/92/M e no artº 99º, alínea f), do Decreto-Lei de Macau nº 55/92/M, pelo que, a meu ver, não invadiu ou violou quaisquer regras de competência legislativa, nomeadamente as decorrentes das leis de organização judiciária de Macau. José Manuel Cardoso da Costa