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Procº nº 435/95.
2ª Secção.
Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Por apenso a uns autos de execução instaurados pelo
hospital A. contra a companhia de seguros B., veio esta última deduzir embargos,
tendo o Juiz do Tribunal Judicial da comarca de -------------, no processo a
estes respeitantes, proferido, em 2 de Maio de 1995, sentença por intermédio da
qual julgou extinta a execução.
Para alcançar uma tal decisão foi recusada a aplicação
do disposto nos artigos 2º, nº 2, alínea a), e 4º do Decreto-Lei nº 194/92, de 8
de Setembro, por ofensa do que se consagra no nº 1 do artigo 205º da
Constituição, em síntese com base num raciocínio segundo o qual o legislador, ao
conferir força executiva às certidões de dívida emanadas das instituições e
serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde, e ao definir os
terceiros responsáveis pelo pagamento dos tratamentos aos sinistrados por
acidentes de viação, estava a conferir a um órgão administrativo funções
materialmente jurisdicionais, e isso porque, na sua perspectiva, no caso
daqueles acidentes, 'a definição do ou dos responsáveis é uma tarefa
jurisdicional da exclusiva competência dos tribunais', aos quais cabe
exclusivamente não apenas a última, mas a primeira palavra, acrescendo que,
'mesmo que assente que existe a obrigação de indemnização, a medida da
responsabilidade é uma se esta se fundar na 'culpa' e já será outra se o seu
fundamento for o 'risco''.
Do assim decidido recorreu para o Tribunal
Constitucional unicamente o hospital A., não o tendo feito o Ministério Público
não obstante o que se consagra no nº 3 do artigo 280º da Constituição e no nº 3
do artº 72º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Aquele Hospital concluiu a alegação que produziu
solicitando que fosse dado provimento ao recurso, vindo, por outro lado, a
companhia de seguros B. a rematar a sua alegação formulando as seguintes
conclusões:
'1ª O Mmo. Juiz 'a quo' decidiu correctamente ao considerar materialmente
inconstitucionais os artigos 2º, nº 2, al. a) e artº 4º do Dec- -Lei nº 194/92
por violação do disposto no artº 205º da C.R.P..
2ª A determinação do terceiro responsável em caso de acidente de viação é uma
tarefa exclusivamente juridicional, a qual o legislador não poderia ter delegado
nos administradores das instituições de saúde.
3ª O legislador ao atribuís força de título executivo às certidões de dívida
hospitalares, criou um regime de excepção violador dos princípios gerais de
direito e do princípio da igualdade consagrado no artº 13º da C.R.P..
4ª As certidões de dívida hospitalares com força de título executivo vieram
prejudicar gravemente os direitos de defesa das seguradoras, pois criaram uma
situação de inversão do ónus da prova.
5ª Apesar das seguradoras poderem socorrer-se dos embargos de executado, tal
meio de defesa nem sempre é possível devido à falta e conhecimento dos factos
geradores da responsabilidade por parte das mesmas - falta de participação do
segurado.
6ª A circusntância das certidões hospitalares com força de título executivo,
leva também à situação aberrante de poder vir a ser executa- da pessoa diferente
de quem afinal vier a ser condenado noutro processo como autor da lesão.
7ª Pelo exposto deve este Venerando Tribunal declarar a inconstitucionalidade
dos artº 2º, nº 2, al. a) e artº 4º do Dec-Lei nº 194/92 de 8/9, por violarem o
disposto no artº 205º da C.R.P., os princípios gerais de direito da
responsabilidade civil extra-contratual e também o princípio da igualdade
previsto no artº 13º da C.R.P.'
Tendo em conta que neste Tribunal pendem inúmeros
processos cujo objecto se traduz na apreciação da compatibilidade ou
incompatibilidade com a Constituição das normas ora sub iudicio, o que vale por
dizer que a problemática em causa é já do conhecimento dos respectivos juízes,
foram, neste autos, dispensa- dos os «vistos».
Cumpre, por isso, decidir.
II
1. A Lei nº 48/90, de 24 de Agosto - Lei de Bases da
Saúde -, veio a estabelecer, na alínea b) do nº 2 da Base XXXIII, que os
serviços e estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde podiam cobrar receitas,
a inscrever nos seus orçamentos próprios, de entre estas se compreendendo '[o]
pagamento de cuidados por parte de terceiros responsáveis, legal ou
contratualmente, nomeadamente subsistemas de saúde ou entidades seguradoras'.
Com vista a regular a cobrança de dívidas às
instituições e serviços públicos integrados no S.N.S., e ponderando que tais
dívidas estão sujeitas a regime de prescrição presuntiva cujos respectivos
prazos são muitos curtos e que a propositura de uma acção declarativa com o fim
de tornar, por via de uma sentença, inequívoca a existência do crédito dessas
instituições e serviços, era uma via morosa que, em face daquele regime de
prescrição, poderia acarretar na prática a não efectiva cobrança dos créditos,
editou o Governo em 8 de Setembro de 1992 o Decreto-Lei nº 194/92, diploma que,
inter alia, veio a dispôr:
Artigo 1º.
Âmbito de aplicação
O presente diploma regula a cobrança de dívidas às instituições e
serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde.
Artigo 2º.
Exequibilidade das certidões de dívida
1 - As certidões de dívida a qualquer das entidades a que se refere o
artigo anterior, por serviços ou tratamentos prestados, são títulos executivos.
2- São condições de exequibilidade do título:
a) A identificação do assistido e dos terceiros legal ou contratualmente
responsáveis, se os houver, nos termos do presente diploma;
b) A menção precisa e individualizada dos serviços prestados;
c) A indicação da quantia exequenda, calculada nos termos do presente diploma;
d) A assinatura do presidente do órgão de administração da entidade credora ou
de quem legitimamente o substitua;
e) A autenticação do título de dívida com a aposição do selo branco em uso na
instituição credora.
Artigo 4.º
Dívidas resultantes de tratamentos a si-
nistrados por acidentes de viação
1- Em caso de dívidas resultantes de assistência ou tratamentos
prestados a sinistrados em acidentes de viação, a execução corre solidariamente
contra o transportador e a respectiva entidade seguradora, se seguro houver.
2 - Se o sinistrado não circular em qualquer veículo, a execução
corre contra a entidade seguradora do veículo ou veículos que tenham intervido
no sinistro, salvo se ocorrer qualquer das causas de exclusão da
responsabilidade a que se refere o artigo 505.º do Código Civil.
2. Segundo o despacho recorrido, as normas constantes
dos transcritos artigos 2º, nº 2, alínea a), e 4º enfermariam de vício de
desconformidade com a Lei Fundamental, visto que violariam o disposto no artigo
205º deste último diploma.
Impõe-se, por isso, em primeira linha, analisar se
normação criadora de um título executivo de índole administrativa ou, mais
latamente, se a criação de um título executivo não decorrente de sentença
judicial, é algo que vai ferir o princípio da «reserva de juiz» ínsito na
Constituição.
2.2. Como é sabido, a dação de exequibilidade a um
título não resulta unicamente da circunstância de ele provir de uma sentença
judicial (cfr. Eurico Lopes Cardoso, Manual da Acção Executiva, 1964, 32 e
segs., Castro Mendes, Manual de Processo Civil, 1963, 74 e segs., Manuel de
Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 58 e segs., e Anselmo de
Castro, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 1977, 14 e segs.).
Necessário é que a especial força detida pelo título e que serve de base ao
processo executivo, lhe seja conferida pela lei e que ele obedeça a determinados
requisitos (cfr. artigos 46º e segs. do Código de Processo Civil).
No caso sujeito à apreciação deste Tribunal, e já que
dúvidas não há em como pela prestação de serviços prestados pelas instituições e
serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde estas e estes se
constituíram em credoras dos montantes correspondentes a tais serviços, não se
poderá, de todo, dizer que não consta de lei (em sentido material) a conferência
de exequibilidade às certidões que atestam a efectivação daqueles montantes, a
isto sendo de aditar que nenhuma norma constitucional s divisa da qual resulte
que se insere na competência reservada da Assembleia da República a enunciação e
tipificação dos títulos executivos.
3. Isto posto, haverá que equacionar se, de uma banda, a
certificação da dívida pela entidade administrativa representa a prossecução de
uma actividade que visa, quer a definição do responsável, quer a composição de
um conflito entre credor e devedor e, de outra, se ficam patentemente diminuídos
os direitos de defesa do que, no título, figura como devedor.
3.1. Quanto ao primeiro aspecto, a resposta é obviamente
negativa.
Efectivamente, já por diversas vezes que este Tribunal
se debruçou sobre aquilo por que se deva considerar a «função jurisdicional»
(cfr., por entre muitos, os Acórdãos números 104/85 - in Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 5º Vol., 633 a 643 - 182/90 - publicado na 2ª Série do Diário da
República de 11 de Setembro de 1990 - 443/91 - idem, idem, de 2 de Abril de 1992
- e 396/95 - idem, idem, de 15 de Novembro de 1995), tornando-se fastidioso
estar-se aqui, de modo exaustivo, a enunciar o que em tais arestos, com
desenvolvimento, foi dito a esse respeito.
Bastará, em síntese, definir que, para o Tribunal, e tal
como se escreveu no mencionado Acórdão nº 182/90, a função jurisdicional
consubstancia-se 'numa composição de conflitos de interesses, lavada a cabo por
um órgão independente e imparcial, de harmonia com a lei ou com critérios por
ela definidos, tendo como fim específico a realização do Direito e da Justiça'.
Perante estas características da função jurisdicional,
claro é que os poderes conferidos pelas disposições conjugadas dos artigos 2º,
números 1 e 2, alínea a), 4º e 6º nelas se não integram.
Na verdade, a emissão da certidão levada a cabo por uma
entidade pertencente à Administração e que lhe vai conferir a característica de
título executivo mais não é que uma simples operação de certificação de um
crédito detido por essa mesma entidade em razão da actividade que dispendeu em
benefício de outrem, não representando, por isso, qualquer forma de composição
de litígio ou de definição dos direitos de determinado credor.
3.2. Tocantemente ao segundo ponto (recorde-se: saber se
os direitos de defesa daquele que, no título, figura como devedor, ficam
patentemente diminuídos), também a resposta é de índole negativa.
É que, ainda que no título se mencione quem é ou deva
ser considerado 'terceiro legal ou contratualmente responsável' pela satisfação
do crédito certificado, daí não resulta minimamente que fique irremediavelmente
definido esse responsável, e isso pela simples razão perante a qual o mencionado
(responsável) poderá dispôr de todos os meios de defesa ao seu alcance -
embargos de executado - que lhe seriam facultados caso se estivesse perante um
processo declaratório visando a sua condenação (cfr. artº 815º do Código de
Processo Civil).
A norma ínsita no artº 2º do D.L. nº 194/92 representa,
desta arte, apenas a atribuição de uma especial fé a uma declaração de crédito
(e correspondente débito), sem minimamente pôr em causa a possibilidade de
questionar, quer a obrigação exequenda (aí se compreendendo o respectivo
montante), quer o responsável pelo seu cumprimento, caso se poste, nestes
campos, um verdadeiro litígio.
Sequentemente, haverá que concluir que um tal normativo
não só não intenta dirimir qualquer conflito (e, por isso, se não divisa ofensa
do nº 1 do artigo 205º da Constituição), como ainda não preclude os meios de
defesa dos executados (pelo que, desta sorte, não se verifica ferimento do
artigo 20º, nº 1, da Lei Fundamental) que apenas, para os exercitarem, haverão
de seguir um formalismo processual diferente (os embargos de executado) daquele
que, normalmente, é usado (a contestação na acção declaratória).
Termos em que se não mostram violados os princípios
decorrente daquelas normas constitucionais.
4. Alega a companhia de seguros B. que os normativos sub
specie vêm estabelecer uma dispariedade de tratamento referentemente às
seguradoras, por isso que as mesmas só se poderão defender mediante a dedução de
embargos.
É por demais evidente que uma tal argumentação não pode
proceder.
Efectivamente, em todos os casos em que o credor munido
de título dotado de parata executio instaure directamente execução, a defesa
dos executados é somente alcançável mediante embargos, não se divisando qualquer
diferenciação entre os meios de defesa postos à disposição das seguradoras que
figuram como executadas no título ora em apreço, e aqueloutros que são
conferidos àqueles que, como devedores, constam de outras espécies de títulos
executivos.
A diversidade – tão-somente em relação a meios
processuais e não quanto à substância da validade de defesa - deparada
relativamente a quem é demandado em acções declarativas e em acções executivas
tem justificação bastante pela incorporação do crédito no próprio título, razão
pela qual tal diversidade não constitui arbitrária desigualdade.
E, por isso, não se mostra afrontado o artigo 13º da
Constituição.
Aliás, nem sequer se vê como é que - deduzidos que
venham a ser pelas seguradoras, em autos de execução instaurados com base nos
preceitos em análise, cabidos embargos, nos quais se venha a alegar, verbi
gratia, a inexistência de factualidade de onde decorra a responsabilidade civil
extra-contratual do segurado - se pode dizer que, nestes, as regras sobre o ónus
da prova que impendem sobre os lesado e lesante (in casu a instituição ou
serviço de saúde e o condutor e ou proprietário do veículo interveniente no
acidente) se vão postar de jeito diferente relativamente a uma acção
declarativa.
4. Uma última nota se efectuará.
Consiste ela em salientar que, embora sendo verdade que,
recebidos os embargos, a suspensão da execução só tem lugar se o executado
prestar caução (cfr. nº 1 do artº 818º do Código de Processo Civil), nem por
isso, relativamente ao exequente, se desenhará uma posição desigualitária, já
que, na hipótese de a execução embargada prosseguir, o mesmo só poderá obter
pagamento se prestar caução (nº 1 do artº 819º do mesmo corpo de leis).
Por outro lado, tendo em atenção o montante, no caso, da
quantia exequenda, nunca a exigência de caução - como condição de suspensão da
execução - se pode vislumbrar como algo que, acentuada ou patentemente, vai
dificultar a defesa, em termos tais que conduzissem a um visionamento de negação
do direito de acesso à justiça.
E, seja como fôr, ainda que diversa perspectiva fosse
acolhida quanto ao particular de que nos ocupamos - o da exigência de caução
como forma de suspensão da execução embargada - então há-de convir-se que a
eventual deferenciação resultaria, não das normas que constituem objecto do
presente recurso, mas sim daquela que tal exigência prescreve (o citado nº 1 do
artº 818º).
III
Em face do exposto, concedendo-se provimento ao recurso,
determina-se a revogação da decisão impugnada, a fim de a mesma ser reformada em
consonância com o ora decidido quanto à questão de inconstitucionalidade.
Lisboa, 20 de Dezembro de 1995
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
José de Sousa e Brito
Luís Nunes de Almeida
Guilherme da Fonseca
Messias Bento
José Manuel Cardoso da Costa