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Processo: n.º 130/94.
1ª Secção
Relator: Conselheiro Ribeiro Mendes.
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1 — A., representada por sua mãe, B., intentou em 12 de Abril de 1977, na
comarca do Montijo, acção de investigação de paternidade contra C., pedindo que
fosse declarada filha do réu, sendo condenado este a reconhecê-la como tal e
ordenando-se em conformidade a rectificação do registo de nascimento.
A acção foi contestada, tendo vindo a ser julgada procedente em primeira
instância. O réu interpôs recurso de apelação, o qual veio a ser julgado
improcedente. De novo inconformado, interpôs recurso de revista. A revista
veio a ser denegada, quer quanto ao fundo, quer quanto à condenação do
recorrente como litigante de má fé, havendo o Supremo Tribunal de Justiça apenas
corrigido a decisão de primeira instância, suprimindo o adjectivo «ilegítimo
relativamente ao reconhecimento do estado de filha da autora face ao réu por
imposição do disposto no artigo 36.º, n.º 4, da Constituição (acórdão de 28 de
Maio de 1985, a fls. 7 e segs. dos autos).
Inconformado ainda, interpôs o réu recorrente recurso para o tribunal pleno, nos
termos aos artigos 763.º e seguintes do Código de Processo Civil, com fundamento
em que o acórdão recorrido se achava em oposição com um acórdão do mesmo Supremo
Tribunal de Justiça, proferido em 29 de Maio de 1970 e publicado no Boletim do
Ministério de Justiça, n.º 197, a pp. 331-332, relativo ao entendimento do
requisito de sedução, previsto na primeira parte do artigo 1864.º do Código
Civil, com referência ao disposto na alínea e) ao artigo 1860.º do mesmo
diploma, ambas as disposições na versão originária deste último.
Autuado o recurso, veio o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 15 de
Janeiro de 1987, a julgar que se verificava oposição de julgados, visto que, no
acórdão-fundamento de 1970 se havia considerado que a sedução relevante exigia
que a mãe do investigante tivesse engravidado com a primeira cópula mantida com
o sedutor, ao passo que, no acórdão recorrido, se sustentara, que tal exigência
não era legalmente necessária, bastando que o processo de sedução se iniciasse
quando a seduzida fosse virgem e menor de dezoito anos (a fls. 28 dos autos).
Seguiram-se alegações, tendo o Ministério Público preconizado, em parecer, que
fosse tirado assento no sentido da decisão de 1970.
Por acórdão proferido em 1 de Fevereiro de 1994, o pleno do Supremo Tribunal de
Justiça veio a julgar que as normas dos artigos 1860, alínea e), e 1864.º do
Código Civil, na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro,
eram inconstitucionais por ofenderem, nomeadamente, o princípio da não
discriminação dos filhos nascidos fora do casamento, razão por que decidiu não
proferir assento, julgando, por isso, findo o recurso para tribunal pleno.
Notificado neste acórdão, dele interpôs recurso o investigado C., nos termos do
artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional (a fls. 84 dos
autos); o qual foi admitido por despacho proferido em 7 de Março de 1994 (a fls.
85).
2 — Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Apenas apresentou alegações o recorrente, pronunciando-se no sentido da
revogação do acórdão recorrido, tendo formulado as seguintes conclusões:
1 — O disposto nos artigos 1860.º e 1864.º do Código Civil, na redacção anterior
ao Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, não ofende qualquer preceito da
Constituição de 1975, nomeadamente os [artigos] 13.º, 36.º, n.º 4, e 33.º;
2 — Na verdade, ao exigirem, em certos termos, a verificação de certos
pressupostos para a investigação da paternidade, na altura referida como
ilegítima, tais disposições não contendem com o princípio da igualdade
consagrado no artigo 13.º da Constituição nem com o princípio da igualdade de
tratamento dos filhos nascidos dentro do casamento e aos nascidos fora dele
estabelecido no artigo 36.º, n.º 4, da Constituição;
3 — Com efeito, o disposto nos referidos artigos 1860.º e 1864.º, apenas trata
da prova que, de acordo com uma certa política legislativa, se exigia para o
estabelecimento da paternidade de filhos então chamados ilegítimos, isto é,
nascidos fora do casamento;
4 — Ao estabelecer tais pressupostos não se estava a discriminar os filhos
nascidos dentro do casamento dos nascidos fora dele, uma vez que para os filhos
nascidos dentro do casamento não se justificava a exigência dos processos
indicados no artigo 1860.º;
5 — Por outro lado, os citados artigos 1860.º e 1864.º não ofendem o princípio
consagrado no artigo 33.º da Constituição, uma vez que não interferem em nada
com os direitos a que o preceito constitucional se refere;
6 — Não é de argumentar com a reforma operada através do Decreto-Lei n.º 496/77,
de 25 de Novembro, uma vez que as alterações relativamente ao disposto nos
artigos 1860.º e 1864.º, na primitiva redacção, não eram exigidas pelo artigo
293.º, n.º 3, da Constituição, sendo certo que, como resulta do próprio
preâmbulo do citado Decreto-Lei, através da reforma visou-se ir mais além do que
tal disposição constitucional exigia (a fls. 100-101 dos autos).
Foram corridos os vistos legais.
Por não haver razões que a tal obstem, impõe-se conhecer do objecto do recurso.
II
4 — Na versão originária do Código Civil de 1966, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
47 344, de 25 de Novembro de 1966, acolhia-se uma distinção basilar entre
parentesco legítimo e parentesco ilegítimo logo no artigo 1583.º do diploma: o
parentesco era legítimo «quando todas as gerações que formam a respectiva linha»
fossem legítimas nos termos fixados para a filiação legítima; era ilegítimo,
«quando em alguma das gerações» houvesse quebra da legitimidade do vínculo.
O Código Civil de 1966 aceitava, assim, uma distinção a que ligava soluções
diversificadas: os parentes legítimos tinham uma posição privilegiada em
diferentes matérias, nomeadamente sucessórias, por comparação com os parentes
ilegítimos, que eram discriminados face àqueles, tal discriminação dos parentes
ilegítimos tinha a sua máxima expressão no direito sucessório: a concorrência de
filhos legítimos com ilegítimos à mesma sucessão não acarretava o afastamento
dos ilegítimos, mas implicava a atribuição de um quinhão inferior aos ilegítimos
(artigos 2139.º, 2140.º e 2158.º, n.º 2). Na classe sucessória dos irmãos e
seus descendentes, na sucessão legítima, os irmãos e sobrinhos legítimos
preferiam aos irmãos e sobrinhos ilegítimos (artigos 2143.º e 2144.º). E
idêntico critério se aplicava quanto ao chamamento à sucessão dos restantes
colaterais até ao sexto grau (artigos 2149.º e 2150.º). E, como explicavam Pires
de Lima e Antunes Varela, «os critérios de prioridade ou de tratamento
preferencial estabelecidos da sucessão legítima propagam-se, de certo modo, à
obrigação de alimentos, relativamente às pessoas abrangidas pela lista do artigo
2009.º, n.º 1, atento o disposto no n.º 2 deste artigo e no n.º 1 do artigo
2110.º [Código Civil Anotado, vol. iv, Coimbra, 1.ª ed., 1975, p. 26; os mesmos
comentadores indicavam a relevância da distinção no campo de organização do
instituto da tutela — artigos 1930.º, n.º 1, alíneas a) e b), 1952.º, n.os 1 e
3, e 1962.º].
A Constituição de 1976 estabelece, no n.º 4 do artigo 36.º, que os «filhos
nascidos fora do casamento não podem por esse motivo, ser objecto de qualquer
discriminação e a lei ou as repartições oficiais não podem usar designações
discriminatórias relativas à filiação». E depois de dispor, no n.º 1 do artigo
293.º que o direito anterior à entrada em vigor da Constituição se mantinha,
desde que não fosse contrário à Constituição ou aos princípios nela consignados,
estatuiu, no n.º 3 do mesmo artigo, que a adaptação ao direito ordinário
anterior atinente ao exercício dos direitos, liberdades e garantias consignados
na Constituição estaria concluída até ao fim da primeira sessão legislativa.
Relativamente às matérias do direito de família e do direito das sucessões, a
adaptação do Código Civil à Constituição de 1976 foi levada a cabo pelo
Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro. Este diploma começou a vigorar em 1
de Abril de 1978, por força do seu artigo 176.º estatuindo o artigo seguinte que
o mesmo não era aplicável às acções pendentes nos tribunais à data da sua
entrada em vigor.
5 — Esta breve referência à evolução legislativa, quer no plano constitucional,
quer no plano do direito ordinário, nomeadamente quanto à sucessão de regimes
substantivos, destina-se a facilitar a rigorosa delimitação do objecto do
recurso.
Consoante a matéria de facto provada nos autos, a recorrida nasceu em 14 de Maio
de 1959, tendo sido registada como filha ilegítima de B. e de pai incógnito. A
mãe da recorrida investigante, por seu turno, tinha nascido em 7 de Janeiro de
1933, tendo sido admitida como criada de servir em Agosto de 1949 por aqueles
que viriam a ser os sogros do ora recorrente, tendo sempre pernoitado em casa
destes até dois meses antes do nascimento da investigante. O réu, após o seu
casamento, passou a residir em casa dos sogros a partir de Agosto de 1950, tendo
começado a manter relações sexuais com a mãe da ora recorrida durante o ano de
1951, relações que se prolongaram, de forma regular, quase até ao nascimento da
investigante. A mãe da recorrida era virgem e, sendo analfabeta e de condição
social humilde, era vulnerável às censuras dos patrões, nomeadamente do ora
recorrente. Só por influência das palavras deste último e submissa por
natureza, consentiu em ter relações sexuais com ele durante o ano de 1951.
A acção de investigação foi intentada em 12 de Abril de 1977, antes ainda da
publicação do Decreto-Lei n.º 496/77.
6 — Neste quadro constitucional, legal e factual, o Supremo Tribunal de Justiça
desaplicou, com fundamento em inconstitucionalidade, as normas dos artigos
1860.º, alínea e), e 1864.º do Código Civil, na sua versão originária.
De harmonia com a primeira dessas disposições:
A acção de investigação de paternidade ilegítima só é admitida nos seguintes
casos:
[…]
e) Tendo havido sedução da mãe no período legal da concepção.
Esta norma, porém, só é compreensível quando ligada à norma definidora do
regime, a do artigo 1864.º, que tem o seguinte teor:
A sedução para o efeito da alínea e) do artigo 1860.º só é relevante se a mulher
era virgem e tinha menos de 18 anos no momento em que foi seduzida ou se o
consentimento foi obtido por meio de promessa de casamento, abuso de confiança
ou abuso de autoridade, quando notórios.
Pode, assim, concluir-se que o objecto do presente recurso é formado pelas
normas conjugadas dos artigos 1860.º, alínea e), e 1864.º, 1.ª parte, do Código
Civil, na redacção originária deste diploma.
7 — Começar-se-á por ver quais as razões por que foram julgadas
inconstitucionais as normas dos artigos 1860.º, alínea e), e 1864.º do Código
Civil pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão recorrido.
No acórdão em apreciação faz-se uma resenha histórica das soluções vigentes a
partir do Código Civil de 1867, pondo-se em destaque o assento do Supremo
Tribunal de Justiça de 19 de Julho de 1966 (este assento estabeleceu que a época
de sedução, para o efeito do disposto no n.º 4 do artigo 34.º do Decreto n.º 2,
de 25 de Dezembro de 1910, não terminava necessariamente com a primeira cópula —
in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 159, p. 277) e a orientação diversa
adoptada nos trabalhos preparatórios do Código Civil e que passou para o texto
do novo Código. E escreveu-se a seguir:
Cremos, todavia, de rigor exagerado a tese assumida pelo acórdão-fundamento de
que para que se verifique a condição de admissibilidade em referência é
necessário que a mulher, menor de 18 anos e virgem, engravide com a primeira
cópula, pela comezinha razão de que, aquando das cópulas posteriores, já não é
virgem.
Cabe perfeitamente na letra da lei o caso de a mulher, virgem, ter sido seduzida
antes dos 18 anos e, até essa idade, ter engravidado, seja ou não com a primeira
cópula, desde que o estado de seduzida se tenha mantido pelo menos até ao
momento da cópulas de que resultou a gravidez, ocorrida nos primeiros 120 dias
dos 300 dias que precederam o nascimento da investigante (a fls. 76 dos autos).
Todavia, reconhecendo que esta interpretação desaprovava, manifestamente, a
adoptada pelo acórdão recorrido, embora não coincidente com a do
acórdão-fundamento, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que não se
justificava a revogação do acórdão recorrido, ao contrário do preconizado pelo
recorrente e pelo Ministério Público.
Sem desconhecer que as normas da versão originária do Código Civil deviam, em
princípio, ser aplicadas ao caso sub judicio por força da regra de direito
transitório constante do artigo 177.º do Decreto-Lei n.º 496/77, escreveu-se no
acórdão em análise, depois de se transcrever o n.º 31 do preâmbulo do
Decreto-Lei n.º 496/77:
Com efeito, com a entrada em vigor da Constituição de 1976, em 25 de Abril desse
ano (artigo 312.º, n.º 3), diversos preceitos do Código Civil — entre eles os
que estabeleciam pressupostos processuais ou condições de admissibilidade da
acção de investigação de paternidade — tornaram-se inconstitucionais,
nomeadamente por ofenderem os princípios consagrados nos artigos 13.º (princípio
de igualdade) […], 33.º (direito à identidade, ao bom nome e à intimidade) […],
36.º, n.º 4, (direito à não discriminação dos filhos nascidos fora do casamento)
[…].
Ora, como «os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e
garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e
privadas» — artigo 18.º, n.º 1, da Constituição de 1976 — terá o tribunal de
recusar, por inconstitucionalidade superveniente, a aplicação dos preceitos dos
artigos 1860.º e 1864.º (redacção primitiva), enquanto directamente ofensivos
dos princípios constitucionais referidos, nomeadamente o consagrado no artigo
36.º, n.º 4.
No sentido da inconstitucionalidade superveniente do artigo 1860.º, do Código
Civil, na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 496/77, o acórdão deste Supremo
Tribunal, de 3 de Julho de 1986, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 358,
p. 535, e o citado neste aresto ao mesmo Tribunal, de 24 de Junho de 1980, no
Boletim, n.º 298, p. 332 (a fls. 77 e v dos autos).
8 — Poder-se-á considerar que tal entendimento é constitucionalmente incorrecto,
como sustenta o recorrente?
É o que passará a analisar-se de seguida. Para tal, começar-se-á por descrever
o regime da acção de investigação de paternidade ilegítima na versão originária
do Código Civil de 1966.
Nessa versão, na linha tradicional do direito português, estabelecia-se uma
distinção entre o estatuto dos filhos legítimos e o dos filhos ilegítimos.
Presumia-se legítimo «o filho nascido ou concebido na constância do matrimónio
da mãe, nos termos dos artigos 1736.º a 1798.º e salvo o disposto nos artigos
1803.º e 1804.º». O estatuto da filiação legítima implicava menção dessa
qualidade no registo civil, regulando-se por isso, a forma e vindicação da
legitimidade (artigos 1807.º a 1814.º). A impugnação da legitimidade era
admitida em termos muito restritos (artigos 1815.º a 1823.º).
Relativamente à filiação ilegítima, admitia-se o reconhecimento do vínculo
através de três meios diferentes: a perfilhação, o reconhecimento oficioso e o
reconhecimento em acção de investigação (artigo 1825.º).
Não curando da perfilhação, acto pessoal e livre de reconhecimento do vínculo,
importa dizer que o Código Civil acolheu um regime oficioso de reconhecimento,
inspirado na legislação dinamarquesa de 1937, considerando ser este o meio por
excelência de constituição do vínculo. Admitia ainda, mas adoptando um regime
restritivo, a possibilidade de investigação judicial em acção especialmente
intentada para esse efeito, em prazos relativamente curtos (artigo 1854.º).
Relativamente à acção de investigação de maternidade ilegítima, o Código
considerou-a sempre admissível, sem estabelecer especiais pressupostos (artigo
1857.º). Já quanto à investigação de paternidade ilegítima, o legislador de
1966 foi especialmente rigoroso: tornou esta acção dependente do reconhecimento
prévio da maternidade ou, pelo menos, do pedido conjunto do reconhecimento da
maternidade e da paternidade e, por outro lado, só admitiu a acção desde que
verificados algum ou alguns dos pressupostos previstos nas cinco alíneas do
artigo 1860.º, sendo certo que tais pressupostos eram considerados, quanto à
prova de paternidade, «como simples presunções de facto, cujo valor o tribunal
apreciara livremente, em conjunto com as demais provas produzidas, para formar o
seu convencimento acerca do mérito do pedido» (artigo 1866.º).
Esta regulamentação legal tinha como fundamento último a distinção entre os
filhos «bem nascidos», fruto da relação matrimonial, e os filhos «mal nascidos»
de uniões não matrimoniais, estruturando-se numa opção de tratamento de
sistemático favorecimento aos filhos legítimos. No dizer do autor do
anteprojecto da regulamentação do Código Civil, Gomes da Silva, a distinção
entre filhos legítimos e ilegítimos prendia-se «com um dos fenómenos mais
tristes da vida social, pois, mais do que em nenhum outro, nele se manifesta o
peso das faltas cometidas por uns, sobre a vida dos outros — sobre a vida de
inocentes que, por natureza, só deviam estremecer-se e beneficiar-se». («O
Direito de Família no Futuro Código Civil», 2.ª parte, in Boletim do Ministério
de Justiça, n.º 88, p. 73). E segundo ainda o mesmo civilista, o mal dos filhos
ilegítimos residia «fundamentalmente, na realidade, no vício de que enferma a
própria filiação, no vício de que são inquinadas as relações dos filhos
ilegítimos com os pais e destes entre si, vício que precisamente rouba a essa
filiação aqueles estímulos naturais que, muito acima da acção das Leis ou do
bem-estar económico, inspira nos pais legítimos a dedicação e o sacrifício,
necessários à defesa da prole» (mesmo estudo, mesma publicação, pp. 74-75).
A partir destes pressupostos ideológicos, não é difícil compreender que o
legislador de 1966 privilegiasse a investigação oficiosa lata e obrigatória,
quanto aos recém-nascidos e procurasse «restringir sensivelmente a investigação
por meio de acção judicial por iniciativa privada» (Gomes da Silva, estudo cit.,
p. 88). Um especialista do direito da filiação, Guilherme de Oliveira, dá conta
da difícil concatenação do sistema da investigação livre da paternidade
envolvido no regime do reconhecimento oficioso adoptado pelo Código Civil com o
sistema limitativo acolhido no artigo 1860.º deste diploma. Este sistema
limitativo «continuava a não dar satisfação plena ao direito de investigar os
vínculos biológicos e reconhecer juridicamente a paternidade. O Decreto n.º 2
[de 25 de Dezembro de 1910] tinha fixado o elenco nas causas de admissão do
pleito e o Código de 1966, dentro do mesmo elenco, alargou as possibilidades de
investigar; porém, não cabiam dentro do sistema alguns casos chocantes que
mereciam tutela jurídica. O lamento do Juiz Santos Silveira — ‘É confrangedor
ver a demonstração da filiação biológica ou real, mas a demanda improceder […]’
[…] — foi proferido em 1971, quando o sistema tinha atingido o máximo da
abertura (Critério Jurídico da Maternidade, Coimbra, 1983, p. 138). E este
autor afirma ainda que, se não tivesse sido a intervenção do regime de
averiguação oficiosa, de eficácia comprovada, que diminuía o ensejo de se tornar
necessário a acção particular, teria sido maior a falta de coincidência entre a
filiação jurídica e a filiação biológica, mesmo com um sistema limitativo tão
atenuado como o de 1966 […]» (ibidem).
9 — Após a Constituição de 1976, o Decreto-Lei n.º 496/77 introduziu profundas
mudanças na regulamentação legal da filiação, adaptando a lei civil à Lei
Fundamental. Explicando o sentido das alterações, descritas minuciosamente no
preâmbulo daquele decreto-lei, escreve Guilherme de Oliveira:
A acção de investigação da paternidade fora do casamento está hoje subordinada a
regras muito diferentes das que vigoravam antes da Reforma de 1977. E as
modificações foram nitidamente influenciadas pelo mesmo espírito «biologista» de
que tenho exposto as consequências principais.
A acção pode seguir dois caminhos: ou a pretensão se fundamenta em factos que
constituem a base de uma presunção legal — presunção que cede perante «dúvidas
sérias»; ou a pretensão se baseia na «coabitação causal» entre a mãe do autor e
o pretenso pai.
O sistema português é original no contexto europeu recente: o direito francês
manteve «condições de admissibilidade» (apesar da alteração insólita que resulta
da lei de 25 de Junho de 1982, nos termos da qual o estabelecimento da
paternidade ou da maternidade pode fundar-se na mera prova, a todo o tempo, da
posse do estado); O direito italiano abandonou as «condições de
admissibilidade» mas organizou um controlo preliminar de viabilidade; o direito
espanhol admitiu a prova livre mas exige um «princípio de prova»; os direitos
alemão e suíço presumem a paternidade contra o réu com base na mera prova de
coabitação.
Julgo que o direito português é adequado às circunstâncias que baseiam a
presunção legal além de serem bem conhecidas da jurisprudência, estão carregadas
da probabilidade de o réu ser o pai — são mais expressivas do que a simples
prova da coabitação. E no caso de se seguir o outro caminho (o da prova da
coabitação causal) não haverá receio justificado que reclame um juízo prévio
acerca da viabilidade ao pedido — a temeridade e a calúnia ficam guardadas pelo
regime geral da litigância de má fé que, aliás, tem uma tradição firme em
Portugal» («O Estabelecimento da Filiação. Mudança recente e Perspectivas», in
Temas de Direito da Família, ob. colect., Coimbra, 1986, pp. 97 e 98).
Referindo-se ao regime legal da investigação de paternidade acolhido nos novos
artigos 1869.º a 1873.º do Código Civil, decorrentes da alteração introduzida
pelo Decreto-Lei n.º 496/77, lê-se no ponto 31 do preâmbulo deste diploma:
Na investigação judicial de paternidade, desaparecem os pressupostos de
admissibilidade da acção: passa a poder provar-se em qualquer caso a paternidade
do investigado. Os pressupostos da investigação, tal como o Código Civil os
delimitava no seu artigo 1860.º, reaparecem, todavia, em boa parte, como
presunções de paternidade. A prova que deles resulta pode no entanto ser
afastada por dúvidas sérias sobre a paternidade do investigado (artigo 1871.º).
Comparando os dois regimes de investigação da paternidade, o vigente entre 1967
e 1978, e o decorrente da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 496/77, outro
especialista do Direito da Família, Pereira Coelho, põe em destaque que o
princípio fundamental da versão originária do Código Civil era o da
proibição-regra da investigação da paternidade, ao passo que, na actual
regulamentação, o princípio é o da permissão-regra. Até 1978, só
excepcionalmente podia ocorrer o reconhecimento judicial, ou seja, desde que
autor conseguisse fazer a prova de uma das circunstâncias previstas nas cinco
alíneas do artigo 1860.º, as quais funcionavam como pressupostos de
admissibilidade da acção. O fazer-se a prova da filiação biológica não bastava,
sendo certo que a autonomia desses pressupostos «levava também a que a sua prova
não fosse considerada suficiente para que a acção procedesse, sendo sempre
necessário que o autor fizesse prova da filiação biológica, pois tais
pressupostos funcionavam não como presunções legais, mas sim como meras
presunções de facto» (Filiação, apontamentos de lições académicas revistas pelo
professor, Coimbra, 1978, policopiado, p. 113). No dizer de Pereira Coelho, o
sistema em causa «era, pois, em ambos os aspectos [proibição-regra com
admissibilidade dependente de certos pressupostos; autonomia da respectiva
prova], injusto e criticáveis tendo levado a que a filiação jurídica se tivesse
afastado muitas vezes da filiação real» (ibidem).
10 — No presente processo, não cabe fazer uma apreciação global do regime de
todo o artigo 1860.º (versão originária) do Código Civil, à luz do disposto no
artigo 36.º, n.º 4, da Constituição ou de outras normas constitucionais.
Cabe apenas averiguar se o pressuposto de admissibilidade constante da alínea e)
deste artigo, tal como definido pelo artigo 1864.º 1.ª parte, viola ou não a
Constituição.
A resposta do acórdão recorrido foi a de que tais normas violam a Constituição,
na linha de uma jurisprudência maioritária do Supremo Tribunal de Justiça.
O recorrente, por seu turno, sustenta posição inversa, baseado nos seguintes
argumentos:
— Não tem consistência argumentativa a invocação pelo acórdão recorrido do
preâmbulo do Decreto-Lei n.º 496/77 para dele extrair quaisquer ilações sobre a
inconstitucionalidade dos artigos 1860.º e 1864.º da versão originária do Código
Civil, visto que foi confessadamente assumido pelo legislador de 1977 que as
alterações introduzidas excediam em muito a mera adaptação do Código Civil à
nova Constituição;
— A eliminação dos artigos 1860.º e 1864.º do Código Civil, na sua versão
primitiva, não decorreu de nenhuma imposição constitucional;
— Estes artigos não ofendem princípios constitucionais básicos como o da
igualdade, ou da não discriminação dos filhos nascidos fora do casamento ou
outros direitos fundamentais (direito à identidade, ao bom nome e à intimidade),
conforme foi decidido por diversos acórdãos da Relação do Porto e um do Supremo
Tribunal de Justiça;
— Os princípios sobre a prova para o estabelecimento de filiação, quer dentro do
casamento, quer fora deles sempre tiveram o seu tratamento nas leis ordinárias,
deles não cuidando as Constituições, incluindo a que se encontra em vigor,
limitando-se os impugnados artigos a estabelecer uma modalidade de prova
dirigida ou legal destinada a garantir a margem de segurança indispensáveis
segundo critérios legais, para o reconhecimento de paternidade.
Importa ver se é procedente a posição crítica do recorrente, desde já se
chamando a atenção para duas notas prévias: por um lado, o recorrente invoca em
seu favor jurisprudência mais antiga dos tribunais superiores, posteriormente
desautorizada pela doutrina e jurisprudência; por outro lado, é, no mínimo,
temerário afirmar que a matéria de filiação não tem implicações constitucionais,
devendo ser regulada livremente pelo legislador ordinário.
11 — No Código de Seabra, a investigação da paternidade era proibida, salvo nos
casos de escrito do pai, de posse de estado, de estupro violento e de rapto
(artigo 130.º). Nos dois primeiros casos, havia actos de reconhecimento
voluntário por parte do possível progenitor. Nos dois últimos, o reconhecimento
da paternidade era admitido como justa punição do pai pelos ilícitos praticados.
O Decreto n.º 2, de 25 de Dezembro de 1910 (Lei da Protecção dos Filhos),
acrescentou aos referidos pressupostos de admissibilidade mais dois: a sedução
com abuso da autoridade, abuso de confiança ou promessas de casamento e a
convivência notória (artigo 34.º). No caso da sedução deveria coincidir «a
época do nascimento, nos termos indicados no artigo 1.º, com a época da sedução»
(n.º 4 do artigo 34.º), considerando a doutrina que tal requisito se revestia de
natureza sancionatória, punindo a culpa grave do sedutor, acrescendo que este
último, na medida em que procurara de forma tão culposa as relações sexuais,
deveria considerar-se como tendo contraído «para com a mulher, para com o filho
que daí fosse gerado, e até para a colectividade, a obrigação de tomar sobre si
a respectiva paternidade» (Manuel de Andrade, «Sedução com Abuso de Autoridade»,
in Scientia Ivridica, ano iii, p. 35).
A par da sedução qualificada e da convivência notória, o Código Civil de 1966,
na sua versão originária, admitiu como pressupostos de admissibilidade da acção
de investigação a sedução simples e o concubinato simples (alíneas c) e e) do
artigo 1860.º; artigos 1862.º e 1864.º).
A jurisprudência aceitou, de um modo geral, nos primeiros anos em que vigorou a
versão originária do Código Civil na matérias que os pressupostos de
admissibilidade ou causas de investigação deviam ser entendidos como um modo de
prova legal, especial, cujo intuito visaria garantir a segurança de decisão
respeitante à maternidade. São ilustrativos os passos de decisões dos tribunais
superiores transcritos pelo recorrente nas suas alegações.
Neste quadro legal, tem sentido referir que a doutrina portuguesa se dividira,
na vigência do Decreto n.º 2, sobre o entendimento do requisito de sedução. Uma
parte da doutrina e da jurisprudência inclinava-se para que a sedução se devia
«reportar exclusivamente ao acto sexual que determinou o desfloramento, ou, por
outras palavras, […] que a sedução é um facto e não um estado que se mantenha,
para efeitos da investigação da paternidade ilegítima». A doutrina maioritária
e a jurisprudência a partir dos finais da década de cinquenta adoptaram um ponto
de vista menos restritivos considerando que o estado de sedução se devia
reportar «não apenas ao acto de desfloramento, mas às relações posteriores entre
o pretenso pai e a mãe do investigante» (F. A. Pires de Lima, anotação ao
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Dezembro de 1964, in Revista de
Legislação e de Jurisprudência, ano 98, pp. 238 e 239).
A orientação maioritária, especialmente representado por Alberto dos Reis, viria
a ser consagrada em assento em 1966. A divergência jurisprudencial ficava
resolvida no sentido de que «a época da sedução, para o efeito do disposto no
n.º 4 do artigo 34.º do Decreto n.º 2, de 25 de Dezembro de 1910, não termina
necessariamente com a primeira cópula» (in Boletim do Ministério da Justiça, n.º
159, p. 279). No dizer deste acórdão de 19 de Julho de 1966, poderia
considerar-se «corrente, de há muito, que o conceito de sedução envolve o estado
de espírito da mulher que consente em manter relações sexuais ilícitas pelo
engano a que foi levada por meios ardilosos ou fraudulentos usados pelo homem
para vencer o seu pudor natural». E, mais à frente, o acórdão acolhia a opinião
de Alberto dos Reis, de que a sedução só deveria considerar-se como desaparecida
no momento em que a mãe do investigante «se viu abandonada e traída».
Pires de Lima, na anotação já referida, em passo, aliás, reproduzido no acórdão
recorrido, dava conta de que o anteprojecto do futuro Código Civil — ao
estabelecer que a sedução só seria relevante para efeitos de investigação de
paternidade se a mulher fosse virgem e tivesse menos de dezoito anos na data em
que fora seduzida, artigo 1883.º, da 1.ª Revisão Ministerial — consagrava tese
oposta à por si sufragada, inspirando-se na posição preconizada por Lopes
Cardoso. Referindo que tal orientação nova correspondia a um «claro propósito»
de restringir na matéria de fixação dos pressupostos de acção de investigação,
aliás traduzida em outras soluções que enumerava, o civilista de Coimbra
anunciava que tinha a intenção de propor ao Governo a eliminação dos requisitos
de sedução, dada a concepção puramente objectiva do projectado requisito na nova
lei (exigência de virgindade da mulher e de que ela tivesse menos de dezoito
anos à data da sedução): «dados estes requisitos, haja ou não abuso de
autoridade ou de confiança, justifica-se, em qualquer caso, a admissibilidade da
acção de investigação com base no acto criminoso […]» (in Revista, cit., p. 239,
nota 2). De jure constituendo, este civilista não discordava da orientação do
Anteprojecto, por considerar perfeitamente compreensível «que, no caso de
sedução, se relacione apenas o pressuposto da acção com o acto ilícito inicial
(desfloramento) praticado no período legal da concepção, pois que, quanto às
relações posteriormente consentidas, os factos não diferem de quaisquer outros
no que respeita ao seu valor probatório […], e não têm, além disso, a natureza
ilícita ou criminosa do desfloramento» (mesma Revista, p. 240).
A verdade é que tal proposta — a admitir que tenha sido feita — não foi acolhida
pelo Código Civil de 1966.
12 — Por diversas vezes, teve o Tribunal Constitucional ocasião de precisar a
tutela constitucional do vínculo de filiação, contrariando, assim, a postura do
recorrente, acima posta em relevo.
Fê-lo pela primeira vez no Acórdão n.º 99/88, onde julgou, embora com vozes
discordantes, não serem inconstitucionais as normas dos n.os 3 e 4 do artigo
1817.º do Código Civil, enquanto aplicáveis às acções de investigação de
paternidade por força do artigo 1873.º do mesmo diploma (nova redacção
resultante do Decreto-Lei n.º 496/77). Pode ler-se neste acórdão:
Não se afigura questionável que, seja do direito à integridade pessoal, e em
particular à integridade «moral» (artigo 25.º, n.º 1), seja do direito à
«identidade pessoal», pode e deve extrair-se um verdadeiro direito fundamental
ao conhecimento e ao reconhecimento da paternidade.
De facto, a «paternidade» representa uma «referência» essencial da pessoa (de
cada pessoa), enquanto suporte extrínseco da sua mesma «individualidade» (quer
ao nível biológico, e aí absolutamente infungível, quer ao nível social) é
elemento ou condição determinante da própria capacidade de auto-identificação de
cada um como «indivíduo» (da própria «consciência» que cada um tem de si); e,
sendo assim, não se vê como possa deixar de pensar-se o direito a conhecer e ver
reconhecido o pai — o direito de conhecer e «pertencer ao pai cujo é», para
usar a fórmula vernácula e expressiva do velho Assento do Supremo Tribunal de
Justiça de 22 de Julho de 1938 — como uma das dimensões dos direitos
constitucionais referidos, em especial do direito à identidade pessoal, ou uma
das faculdades que nele vai implicada (in Acórdãos do Tribunal Constitucional,
11.º Vol., pp. 795-796, com remissões para a obra já citada de Guilherme de
Oliveira).
E, no mesmo acórdão, a maioria do Tribunal aceitou que as normas da lei civil
que estabeleciam prazos de caducidade curtos para o exercício do direito de
conhecer e reconhecer a paternidade, se configurariam como meras normas
condicionadoras do exercício do mesmo e não como verdadeiras restrições,
constitucionalmente proibidas. Diferente, porém, foi o juízo então feito quanto
à constitucionalidade dos pressupostos de admissibilidade da acção de
investigação estabelecidos no artigo 1860.º da versão originária do Código
Civil:
Que se trata de «condicionamento», e não de «restrições», resultará, antes de
mais, de em tais normas se não consignarem quaisquer condições «materiais» e
«permanentes» da admissibilidade da acção de investigação — como eram, essas
sim, as «causas de admissibilidade» da mesma acção mantidas ainda na versão
originária do artigo 1860.º do Código Civil —, mas tão-só uma condição
«temporal» dessa admissibilidade. Na ausência de uma daquelas «causas», na
verdade, ficava a priori precludida a faculdade de investigar a paternidade, e
por isso podia afirmar-se que se estava perante uma «restrição» a essa
faculdade, é dizer, perante um encurtamento ou estreitamento do próprio
«conteúdo» do direito constitucional ao reconhecimento da paternidade: daí, pelo
menos, que tais causas de admissibilidade da acção de investigação hajam sido
abolidas na revisão do Código de 1977. Já não acontece assim com a necessidade
da observância dos prazos para a propositura da acção, a qual de modo algum
fecha ab initio a possibilidade da investigação e o correspondente
reconhecimento do direito, e simplesmente contende, por consequência, com o
«exercício» deste último, obrigando a que o mesmo tenha lugar em certo tempo
(ob. cit., p. 799; sobre situações afins pronunciaram-se igualmente os Acórdãos
n.os 413/89, 451/89 e 370/91, o primeiro e o terceiro publicados no Diário da
República, II Série, n.º 213, de 15 de Setembro de 1989, e n.º 78, de 2 de Abril
de 1992, e o segundo nos Acórdãos, cit., 13.º Vol., Tomo II, pp. 1321 e segs.).
13 — O Tribunal Constitucional renova o entendimento anteriormente perfilhado no
Acórdão n.º 99/88, considerando que não merece censura o acórdão recorrido.
De facto, o direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da paternidade
— «direito à historicidade pessoal», no dizer de Gomes Canotilho e Vital Moreira
(Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 179) —
só pode ser restringido nas condições estabelecidas nos n.os 2 e 3 do artigo
18.º da Constituição.
Ora, a verdade é que a Constituição não prevê a possibilidade de restrição de
tal direito fundamental, de tal forma que o mesmo só pudesse ser exercido desde
que verificadas certas «condições materiais e permanentes», a saber, as
situações previstas nas diferentes alíneas do artigo 1860.º da versão originária
do Código Civil, com a consequência de que, fora dessas condições ou
pressupostos de admissibilidade, o direito fundamental deixaria de poder ser
exercido, ficando praticamente sem conteúdo, eliminado na sua consistência
prática.
Mas ainda que fosse possível defender a conformidade constitucional desta
solução, as consequências do entendimento propugnado pelo recorrente levariam a
situações de profunda injustiça, verdadeiramente aberrantes: assim, se a mãe da
investigante tivesse engravidado em 1951, logo no início do relacionamento dela
com o recorrente, a autora recorrida veria o seu direito fundamental reconhecido
pelos tribunais; porém, e tal como no caso dos autos, em que provou que as
relações sexuais se prolongaram durante vários anos entre a mãe da investigante
e o recorrente, sem que entre eles houvesse convivência more uxorio, estava
irremediavelmente vedado à filha ver reconhecido o vínculo jurídico da filiação,
não obstante haver prova da filiação biológica. Como se dizia no acórdão do
Supremo de 24 de Junho de 1980, através das restrições previstas nas diferentes
alíneas do primitivo artigo 1860.º do Código Civil «se vedava afinal a prova
fundamental que era a da paternidade biológica, fora do quadro por elas
estabelecido» (in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 298, p. 334).
Mas as críticas no plano da injustiça material, são irrelevantes nesta sede uma
vez que tudo se passa no plano da inconstitucionalidade: é que o legislador não
pode restringir permanentemente a possibilidade de alguém ver o seu direito
fundamental ao conhecimento ou reconhecimento da paternidade, só porque se não
verificam certos pressupostos típicos da investigação. Daí que haja de
afirmar-se que as normas desaplicadas pelo acórdão recorrido violam seguramente
o disposto nos artigos 26.º, n.º 1 (33.º, n.º 1, da versão originária da
Constituição) e 18.º, n.os 2 e 3, da Lei Fundamental. Esta afirmação não
implica, claro, que o legislador não possa estabelecer certas presunções quanto
a casos típicos da vida, como hoje ocorre no actual artigo 1871.º do Código
Civil. Simplesmente, a circunstância de o autor não beneficiar de uma certa
presunção, não o impede hoje de ver o seu direito fundamental reconhecido pelos
tribunais, desde que cumpra o ónus de prova que sobre ele recai de demonstrar a
paternidade biológica. Com este regime, deixou de ser incongruente o regime
vindo de 1966 de livre averiguação oficiosa da paternidade (artigos 1865.º, n.os
4 e 5, e 1868.º do Código, na versão vigente).
14 — Conclui-se, assim, que os artigos 1860.º, alínea e), e 1864.º, 1.ª parte,
da versão originária do Código Civil de 1966 se tornaram supervenientemente
inconstitucionais a partir da entrada em vigor da Constituição de 1976, por
violarem, pelo menos, o disposto nos artigos 26.º, n.º 1 (33.º, n.º 1, da versão
primitiva da Constituição) e 18.º, n.os 2 e 3, da Lei Fundamental (neste
sentido, veja-se a crítica de Guilherme de Oliveira ao acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça de 14 de Fevereiro de 1978, em anotação publicada na Revista
de Direito e Estudos Sociais, ano xxiv, 1978, pp. 164 e segs., o qual considera
igualmente que estes preceitos violam os princípios de igualdade e de não
discriminação dos filhos nascidos fora do casamento; do mesmo autor, veja-se
ainda «O Direito de Filiação na Jurisprudência Recente», in Estudos em Homenagem
ao Prof. Doutor Teixeira Ribeiro, iii, Boletim da Faculdade de Direito, pp. 113
e segs.; por último, o acórdão do Supremo de 3 de Junho de 1986, no Boletim do
Ministério de Justiça, n.º 358, pp. 535 e segs.).
III
15 — Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional
negar provimento ao recurso, confirmando, em consequência, o acórdão recorrido
quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade.
Lisboa, 5 de Dezembro de 1995. — Armindo Ribeiro Mendes — Antero Alves Monteiro
Diniz — Maria Fernanda Palma — Maria da Assunção Esteves — Alberto Tavares da
Costa — Vítor Nunes de Almeida — José Manuel Cardoso da Costa.
(1) Acórdão publicado no Diário da República, II Série, de 23 de Abril de
1996.