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Proc. nº 144/92
1ª Secção
Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
Relatório
1. A., B., C., D. e E. intentaram contra F., acção de
reivindicação, ao abrigo do artigo 1311º do Código Civil, relativa a
estabelecimentos de ensino que alegaram ser de sua propriedade e terem sido
ocupados por fundadores da ré durante o período revolucionário subsequente a 25
de Abril de 1974. Pedem a condenação da ré 'a reconhecer a propriedade dos
autores e, em consequência, a restituir os bens usurpados'.
A ré invocou a existência de uma situação de autogestão
daqueles estabelecimentos, empreendida pelos trabalhadores após a ocupação,
tendo, designadamente, arguido a caducidade do direito dos autores de
reivindicar a empresa, por terem proposto a acção já depois de decorrido o prazo
de 120 dias previsto no artigo 47º, nº 1, da Lei nº 68/78, de 16 de Outubro.
Subsidiariamente, a ré argumentou ainda no sentido de se tratar de uma situação
de autogestão justificada, nos termos do artigo 3º, nº 2, da Lei nº 68/78, com
vista à improcedência da acção, em conformidade com o disposto no artigo 40º, nº
2, do referido diploma.
No despacho saneador foi julgada improcedente a excepção
de caducidade, por se entender não ser aplicável ao caso a Lei nº 68/78. Desse
despacho interpôs a ré recurso de agravo.
Na sentença final considerou-se ter ocorrido uma
situação de autogestão enquadrável nas disposições da Lei nº 68/78, mas,
retomando a questão da caducidade, entendeu-se que o prazo para intentar a acção
de reivindicação seria o prazo geral resultante do Código Civil e não o fixado
no artigo 47º, nº 1, daquela lei. Não se julgou verificada a situação de
autogestão justificada e condenou-se a ré a restituir aos autores os
estabelecimentos em causa. Dessa sentença interpôs a ré recurso de apelação.
2. Nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação
formuladas pelos autores, aí na qualidade de recorridos, foi abordada (no ponto
5º), pela primeira vez nos autos, matéria de inconstitucionalidade, nos
seguintes termos:
'(...) conforme dispõe a al. b) do art. 31º da referida Lei [nº 68/78], é
direito do titular da nua‑titularidade de ser indemnizado, nos termos gerais de
direito, se for privado da nua-titularidade, salvo nos casos de autogestão
justificada nos termos do art. 2º.
Mas salvo o caso de abandono, contemplado no art. 87º da
Constituição, o que resta da conjugação daqueles preceitos da Lei é
inconstitucional, pois briga com o disposto no art. 62º da mesma lei
fundamental.
Na verdade, mesmo no caso de falência fraudulenta ou inviabilidade
económica, que não estão em causa, não pode constitucionalmente fugir-se à justa
indemnização. A excepção consignada no nº 2 do art. 87º é única e não pode
estender-se a outras situações. Qualquer lei comum que contrarie essa regra é,
pois, inconstitucional. (...)
(...) Mas quando se quisesse interpretar o artigo 47º como
envolvendo a perda do direito à indemnização (interpretação aberrante,
repete-se, mesmo dentro da economia da lei comum que estamos considerando), tal
preceito devia considerar-se inconstitucional, por contrário ao disposto no art.
62º da Constituição, salvo no caso excepcional previsto no nº 2 do art. 87º, que
aqui não tem lugar. (...)'
O Tribunal da Relação, depois de considerar aplicável ao
caso a Lei nº 68/78, veio revogar a decisão recorrida, por julgar verificada a
excepção de caducidade, nos termos do artigo 47º, nº 1, daquele diploma. Nos
principais trechos da fundamentação desse acórdão lê-se:
'(...) sendo aplicável no presente processo a Lei nº 68/78, há que ter em
consideração o disposto no seu artigo 47º, que prescreve um prazo de caducidade
para a propositura da acção, prazo esse já ultrapassado há muito quando a acção
foi proposta.
(...) Presente o objectivo da Lei nº 68/78 (...) necessária é a
conclusão de que, quando os autores propuseram a acção de reivindicação de
propriedade, há muito passara o prazo concedido para o fazer, verificando-se a
caducidade do artigo 47º, nº 1, da mesma Lei.'
Desse acórdão foi interposto recurso pelos autores para
o Supremo Tribunal de Justiça. Nas suas alegações aflorou-se novamente (no ponto
5º) o tema da inconstitucionalidade, nos seguintes moldes:
'(...) quando se entendesse que se verificavam as condições para aquisição pelo
Estado da nua-propriedade da empresa, nos termos do nº 2 do art. 47º, ficaria em
aberto o problema da contrapartida a conceder aos donos da empresa.
Na verdade, como se dispõe na al. b) do art. 31º da referida Lei,
quando o titular da nua-titularidade haja de ser privado do seu direito sobre a
coisa, cabe-lhe ser indemnizado nos termos gerais. Disposição que quadra
perfeitamente à situação contemplada no nº 2 do art. 47º.
De outra maneira esta disposição seria mesmo inconstitucional, por
contrária ao disposto no art. 62º da Constituição (...).'
Antes da apreciação do recurso, ainda juntaram os
autores parecer jurídico subscrito pelo Professor Doutor Menezes Cordeiro.
O Supremo Tribunal de Justiça confirmou a decisão
recorrida, considerando 'ter caducado o direito que os autores pretendiam fazer
valer através da presente acção', por entender, conforme se sustenta na
fundamentação do acórdão, não haver razão para afirmar que 'o prazo do artigo
47º, nº 1 (120 dias), deva ser afastado' ou 'que justifique a propositura da
presente acção fora do prazo do artigo 47º'.
3. Os autores, em seguida, deduziram o incidente de
arguição de nulidade do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, alegando omissão
de pronúncia, por nele não ter sido apreciada a questão de inconstitucionalidade
do artigo 47º, nº 2, da Lei nº 68/78, anteriormente suscitada. Descreveram assim
o momento e a forma de colocação desse problema:
'(...) Fizeram-no a fls. 389/389 vº dos autos, alegaram a propósito:
'De outra maneira esta disposição ... (o art. 47º nº 2) ... seria
mesmo inconstitucional, por contrária ao disposto no art. 62º da Cons-tituição,
que o Código das Expropriações, em situação paralela a essa, não deixa de
respeitar. É que, não sendo de aplicar o nº 2 do art. 87º da Constituição
anterior à última revisão constitucional, menos isso pode acontecer face ao
actual art. 89º, correspondente aquele outro, onde foi eliminada, e muito bem, a
referência à perda do direito de indemnização pelo abandono. A significar que
actualmente a indemnização é elemento indispensável para compensar em qualquer
caso a perda da propriedade'. (...)
(...) Ficou assim suscitada uma questão, - a da
inconstitucionalidade do art. 47º nº 2 da Lei 68/78.'
Esta reclamação foi indeferida, por se entender que
estava em causa matéria nova não suscitada perante as instâncias e que a matéria
não havia sido incluída nas conclusões da alegação dos recorrentes, as quais
teriam delimitado o âmbito do recurso.
4. Da decisão do Supremo Tribunal de Justiça
interpuseram então os autores recurso para o Tribunal Constitucional, com o
propósito de 'ser declarada a inconstitucionalidade do artigo 47º da Lei nº
68/78, em que o acórdão se fundou (...) para negar a revista'.
O recurso não foi admitido, com fundamento em a questão
de constitucionalidade não ter sido suscitada no recurso de revista, pelo que os
autores deduziram reclamação para o Tribunal Constitucional. O Supremo Tribunal
de Justiça manteve o despacho reclamado, explicitando o argumento de que a
questão de inconstitucionalidade não havia sido suscitada durante o processo.
Na reclamação, o Tribunal Constitucional apenas tratou
da verificação do requisito processual de suscitação da inconstitucionalidade
'durante o processo', por só esse ter sido ali questionado. E, assim, no
respectivo acórdão (nº 41/92), por se considerar ter sido suscitada questão de
constitucionalidade 'durante o processo', decidiu-se atender a reclamação, mas
apenas quanto 'aos fundamentos da rejeição do recurso nela apreciados, sem
prejuízo de eventual rejeição por quaisquer outros que só o cumprimento [do]
(...) artigo 75º-A, nº 5, [da Lei nº 28/82] poderá revelar'.
Voltando os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, foi aí
dado cumprimento ao artigo 75º-A, nº 5, da Lei do Tribunal Constitucional e, em
resposta, disseram os autores:
'(...)
a) A lei constitucional que considera ofendida é o disposto nos
arts. 62º e 89º da Constituição.
b) Quanto às peças do processo em que a questão da
constitucionalidade foi suscitada, indicam-se o nº 5 das alegações apresentadas
por parte dos requerentes para a 2ª instância e nº 5 das alegações dos mesmos
para este Supremo Tribunal.
Acrescente-se que a mesma inconstitucionalidade foi suscitada no
parecer de Menezes Cordeiro, junto já neste Supremo Tribunal, naturalmente com o
apoio dos recorrentes, que fizeram suas as considerações lá produzidas. (...)'
5. Admitido finalmente o recurso, já neste Tribunal
produziram os recorrentes alegações, formulando as seguintes conclusões:
'1º. O art. 62º da Constituição, liberto a partir da revisão
constitucional de 1989 das interferências dos arts. 65º, nº 4, 81º, al. e), 82º,
87º e 90º, nº 2, que permaneceram na revisão de 82, e através dos quais se quis
construir uma teoria restritiva do seu verdadeiro alcance, teria recobrado, se
necessário, todo o seu verdadeiro alcance;
2º. De onde resulta que a Constituição, ao menos na sua forma
actual, reconhece aos cidadãos o direito à propriedade privada, não permitindo
que alguém dela seja desapossado por qualquer meio, mesmo legítimo, senão
através do pagamento de justa indemnização;
3º. Mesmo que abandonados os meios de produção, embora sujeitos a
expropriação, como dispõe o art. 89º da Constituição vigente, devem ser objecto
de indemnização, ao contrário do que se dispunha no art. 87º saído da revisão de
1982, em obediência ao princípio estabelecido no art. 62º, muito embora esse
estado de abandono possa influir, com justa razão, na determinação do valor da
coisa;
4º. Ora o art. 47º da Lei nº 68/78, de 16/X, dispondo no seu nº 2
que a nua titularidade se transfere ope legis para o Estado, a partir da
caducidade da acção de reivindicação estabelecida no nº 1, contraria abertamente
aquele princípio;
5º. De onde dever concluir-se pela inconstitucionalidade de tal
preceito.'
Por sua vez, a recorrida apresentou também alegações,
que concluiu deste modo:
'1. O art. 47º da Lei 68/78 não visou 'expropriar' ou 'penalizar' os
titulares de empresas ou estabelecimentos em autogestão, mas sim e antes de mais
protegê-los;
2. Nem constitui a causa da desapropriação ou qualquer
instrumento expropriativo;
3. Só o próprio desinteresse dos proprietários, não actuando de
acordo com o nele preceituado, constitui a causa da transferência para o Estado
da respectiva nua propriedade e a radicação da correspondente autogestão;
4. Aliás, a promoção da propriedade social, e em especial o sector
público autogerido, era e continua a ser um dos objectivos básicos da
Constituição - cf. arts. 61º, nº 4, 80º, als. b) e e), 82º, nºs 1 e 4, als. a) e
c), 83º, 86º, nº 3 e 89º, nº 2;
5. E aquele art. 47º nem sequer nega qualquer direito a
indemnização;
6. E, ainda que negasse, só esse aspecto seria questionável, mas
não os seus efeitos primários - aquelas transferência e radicação;
7. De resto, os Recorrentes nunca pediram qualquer indemnização e
por isso nem esta tem relevância no presente processo;
8. O questionado art. 47º não sofre, pois, de qualquer
inconstitucionalidade, como o próprio Tribunal Constitucional já decidiu em
Acórdão anterior.'
6. Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II
Fundamentação
7. A questão de constitucionalidade suscitada pelos
autores, ora recorrentes, nas suas alegações de recurso para o Tribunal da
Relação e para o Supremo Tribunal de Justiça incide sobre a norma constante do
nº 2 do artigo 47º da Lei nº 68/78, de 16 de Outubro, diploma que rege as
empresas em autogestão.
Essa norma relaciona-se com o nº 1 do mesmo artigo, que
determina:
'O direito de reivindicar a empresa ou de exigir judicialmente a
restituição da sua posse caduca decorridos cento e vinte dias sobre a entrada em
vigor do presente diploma.'
Por sua vez, o referido nº 2 dispõe o seguinte:
'Verificando-se a caducidade do direito a reivindicar a empresa ou a
exigir a restituição da sua posse ou o decaimento nas mesmas acções, a
nua‑titularidade transfere-se para o Estado.'
Naquelas alegações, a questão é colocada para a hipótese
de prevalecer, no caso concreto, um entendimento que, tomando como pressuposto
ter havido caducidade do direito de reivindicar a empresa ao abrigo do nº 1 do
artigo 47º da Lei nº 68/78, considerasse que a transferência da nua‑titularidade
para o Estado prevista no nº 2 desse artigo 47º implicava a perda do direito a
uma indemnização. Ou seja, é a norma do nº 2 do artigo 47º da Lei nº 68/78 que é
questionada no plano da constitucionalidade e apenas na interpretação segundo a
qual a transferência da nua‑titularidade para o Estado importa a perda do
direito a uma indemnização do anterior proprietário.
Esta delimitação do objecto do recurso foi assumida
claramente pelos recorrentes, quer nas alegações para o Tribunal da Relação, ao
afirmarem que 'quando se quisesse interpretar o artigo 47º como envolvendo a
perda do direito à indemnização (...), tal preceito devia considerar-se
inconstitucional', quer nas alegações para o Supremo Tribunal de Justiça, ao
dizerem que 'quando o titular da nua‑titularidade haja de ser privado do seu
direito sobre a coisa, cabe-lhe ser indemnizado nos termos gerais (...), [o] que
quadra perfeitamente à situação contemplada no nº 2 do artigo 47º (...), [pois]
de outra maneira esta disposição seria mesmo inconstitucional'. E no incidente
de arguição de nulidade do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça expressaram
novamente essa posição, quando afirmaram ter sido 'suscitada uma questão - a da
inconstitucionalidade do artigo 47º, nº 2, da Lei nº 68/78'.
Aliás, foi também esse o sentido atribuído pelo Tribunal
Constitucional às alegações dos recorrentes em sede de reclamação. No citado
Acórdão nº 41/92, ao argumentar-se no sentido de ter sido suscitada uma questão
de inconstitucionalidade durante o processo, afirmou-se:
'(...)
No caso sub judicio, o nº 5 das alegações da revista é claro quanto
à pretensa inconstitucionalidade da norma do nº 2 do artigo 47º em causa, se
considerado não conjugável com a alínea b) do artigo 31º do mesmo diploma, norma
segundo a qual cabe ao titular da nua-propriedade, uma vez privado do seu
direito sobre a coisa, o direito de ser indemnizado nos termos gerais. De outro
modo, acrescentou-se na argumentação desenvolvida, seria a disposição
inconstitucional, 'por contrária ao disposto no artigo 62º da Constituição, que
o Código das Expropriações, em situação paralela a essa, não deixa de respeitar'
(...).
Semelhante abordagem já tinha sido, aliás, feita nas alegações de
recurso para a Relação (...).'
8. Afigura-se, pois, seguro que apenas a norma do nº 2
do artigo 47º da Lei nº 68/78 foi arguida de inconstitucional antes da
interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
Contudo, essa norma não foi aplicada nas decisões do
Tribunal da Relação e do Supremo Tribunal de Justiça.
Conforme foi relatado, a decisão da segunda instância
limitou-se a julgar verificada a excepção de caducidade nos termos do nº 1 do
artigo 47º da Lei nº 68/78, não se tendo pronunciado minimamente sobre se a
transferência da nua‑titularidade para o Estado decorrente dessa caducidade
importava ou não a perda de qualquer direito de indemnização dos autores. E, de
igual modo, também o Supremo Tribunal de Justiça se limitou a concluir pela
caducidade do direito dos autores, de acordo com o disposto no nº 1 do artigo
47º da Lei nº 68/78, confirmando a decisão do Tribunal da Relação e nada dizendo
quanto a uma eventual indemnização. Aliás, nem esses tribunais tinham de se
pronunciar sobre tal matéria, já que os autores não formularam na acção qualquer
pedido subsidiário de indemnização para o caso de improceder o pedido de
reivindicação.
Parece, pois, evidente que as decisões do Tribunal da
Relação e do Supremo Tribunal de Justiça apenas fizeram aplicação da norma do nº
1 do artigo 47º da Lei nº 68/78. E, seguramente, não aplicaram a norma do nº 2
desse artigo na interpretação segundo a qual nela se recusaria a atribuição de
um direito de indemnização ao anterior proprietário.
9. Ora, o recurso para o Tribunal Constitucional
interposto ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º,
nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, como é o presente, exige a
verificação, para além de outros, do seguinte requisito ou pressuposto
processual: a norma arguida de inconstitucional deverá ter sido aplicada na
decisão recorrida, em termos de constituir a sua ratio decidendi ou seu
fundamento normativo.
Com efeito, ainda que durante o processo haja sido
suscitada a questão da inconstitucionalidade de determinada norma, desde que a
decisão recorrida não utilize essa norma como seu suporte normativo, o recurso
de constitucionalidade não deve ser admitido por falta de um pressuposto de
admissibilidade (neste sentido, uniforme na jurisprudência do Tribunal
Constitucional, cf., entre outros, os Acórdãos nºs 82/92, 169/92 e 443/93,
Diário da República, II, de 18 de Agosto de 1992, 18 de Setembro de 1992 e 29 de
Abril de 1994, respectivamente).
Conforme se disse, designadamente, no citado Acórdão nº
169/82, 'o recurso de constitucionalidade desempenha uma função instrumental, só
devendo, por isso, conhecer-se das questões de constitucionalidade, se a sua
decisão puder influir utilmente na decisão da questão de fundo'. Se o Tribunal
Constitucional viesse a pronunciar-se sobre a constitucionalidade de norma que
não tivesse sido aplicada na decisão recorrida, acabaria por proferir uma
decisão sem interesse para o julgamento da causa.
10. No caso sub judicio, a decisão que o Tribunal viesse
a proferir sobre a constitucionalidade da norma do nº 2 do artigo 47º da Lei nº
68/78, na tal interpretação em que se afastaria um direito de indemnização do
anterior proprietário, não teria qualquer repercussão na decisão da causa, já
que os autores não formularam qualquer pedido de indemnização. Um juízo de
inconstitucionalidade daquela norma e a revogação da decisão recorrida em
conformidade com esse juízo nunca poderiam ter como efeito a atribuição de um
direito de indemnização aos autores, por força do princípio dispositivo, nem
imporiam uma alteração da decisão de julgar verificada a excepção de caducidade,
por a norma que a fundamenta não ser objecto daquele juízo de
inconstitucionalidade.
Verifica-se, pois, que não se fez nos autos aplicação da
norma (ou sentido da norma) cuja inconstitucionalidade foi questionada perante
os tribunais comuns, não tendo qualquer interesse a apreciação dessa
inconstitucionalidade para a decisão do caso concreto.
Falta, assim, um pressuposto processual exigido pelos
artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do
Tribunal Constitucional: concretamente, que a norma arguida de inconstitucional
tenha sido aplicada na decisão recorrida. E a falta de tal requisito é
determinante do não conhecimento do objecto do recurso.
A esta conclusão não obsta a decisão já proferida pelo
Tribunal Constitucional em sede de reclamação, porquanto aí apenas foi decidida
positivamente a verificação de um outro requisito processual - suscitação da
inconstitucionalidade da norma do nº 2 do artigo 47º da Lei nº 68/78 'durante o
processo' -, pelo que ficou em aberto (e logo isso foi assinalado na decisão da
reclamação) a possibilidade de rejeição do recurso por falta de outros
requisitos processuais.
11. É certo que no requerimento de interposição de
recurso para o Tribunal Constitucional os recorrentes vieram suscitar a
inconstitucionalidade da norma 'em que o acórdão se fundou (...) para negar a
revista'. Esta referência, ainda que não expressa, parece já poder reportar-se à
norma do nº 1 do artigo 47º da Lei nº 68/78.
Porém, esse já não era o momento próprio para questionar
a constitucionalidade de norma diferente daquela cuja inconstitucionalidade se
suscitara perante os tribunais comuns.
Na verdade, a inconstitucionalidade do nº 1 do artigo
47º da Lei nº 68/78 não foi suscitada durante o processo, conforme exigem os
artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do
Tribunal Constitucional.
Com efeito, como é jurisprudência segura e pacífica
deste Tribunal, esse requisito de admissibilidade do recurso de
constitucionalidade deve ser visto não num sentido formal, segundo o qual a
inconstitucionalidade poderia ser suscitada até à extinção da instância, mas num
sentido funcional, segundo o qual a invocação da inconstitucionalidade tem de
ser feita enquanto o tribunal a quo ainda possa conhecer a questão, ou seja,
antes de esgotado o poder jurisdicional sobre a matéria a que a questão de
constitucionalidade respeita, ressalvada a situação excepcional de o interessado
não dispor de oportunidade processual para levantar a questão antes de esgotado
o poder jurisdicional (cf., designadamente, os Acórdãos do Tribunal
Constitucional nºs 62/85, 90/85 e 94/88, Diário da República, II, de 31 de Maio
de 1985, 11 de Julho de 1985 e 22 de Agosto de 1988, respectivamente).
E, nessa conformidade, o requerimento de interposição de
recurso para o Tribunal Constitucional já não é meio idóneo e tempestivo para
suscitar questão de inconstitucionalidade (neste sentido, cf., designadamente,
os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 69/85 e 339/86, Diário da República,
II, de 22 de Janeiro de 1985 e 18 de Março de 1987, respectivamente).
Ora, no caso sub judicio, a questão de
constitu-cionalidade do nº 1 do artigo 47º da Lei nº 68/78 só foi suscitada no
requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional (e não -
como se podia e devia ter feito -, pelo menos, após a primeira aplicação
expressa dessa norma, efectuada pelo Tribunal da Relação, ou seja, nas alegações
de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça). E nesse momento já se encontrava
esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo, sem que verificasse a situação
excepcional (e ampliadora do conceito de 'inconstitucionalidade suscitada
durante o processo') de os recorrentes não terem tido oportunidade processual
para levantar anteriormente a questão.
12. Note-se, neste ponto, que não pode tomar-se como uma
adequada arguição de inconstitucionalidade a menção, constante do parecer
jurídico junto pelos recorrentes no Supremo Tribunal de Justiça, de que o artigo
47º, nº 1, da Lei nº 68/78 seria de 'constitucionalidade duvidosa': o parecer
não se debruça sobre qualquer questão de constitucionalidade, sendo essa
referência ocasional e meramente dubitativa; e, por outro lado, ainda restaria
saber se um parecer jurídico junto aos autos é meio adequado para suscitar uma
questão de constitucionalidade.
Falta, assim, ainda um outro pressuposto processual
exigido pelos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea
b), da Lei do Tribunal Constitucional: concretamente, que a
inconstitucionalidade da norma aplicada na decisão recorrida seja suscitada
durante o processo. E a falta de tal requisito é igualmente determinante do não
conhecimento do objecto do recurso.
13. Em suma, ocorrem duas situações combinadas que
determinam a não verificação de dois pressupostos processuais cumulativos do
recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da
Lei do Tribunal Constitucional: não aplicação na decisão recorrida da norma cuja
inconstitucionalidade foi tempestivamente suscitada e não suscitação tempestiva
da inconstitucionalidade da norma efectivamente aplicada na decisão recorrida.
III
Decisão
14. Pelo exposto, decide-se não conhecer o presente
recurso, condenando-se os recorrentes em custas, cuja taxa de justiça se fixa em
4 unidades de conta.
Lisboa, 19 de Dezembro de 1995
Maria Fernanda Palma
Maria Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Diniz
José Manuel Cardoso da Costa