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Processo nº 342/95
2ª secção Relator: Cons. Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A, B, C e D responderam no Tribunal de Competência Genérica de Macau, acusados da prática dos crimes de associação de malfeitores
(previsto e punível pelos artigos 263º do Código Penal, conjugado com os artigos
2º e 4º da Lei nº 1/78/M, de 4 de Fevereiro), mútuo oneroso para jogo (previsto e punível pelos artigos 13º e 14º da Lei nº 9/77/M, de 27 de Agosto) e cárcere privado (previsto e punível pelo artigo 330º do Código Penal).
Os dois primeiros arguidos foram condenados por dois crimes de mútuo oneroso para jogo, cada um deles, na pena de 4 meses de prisão e
4 meses de multa, à taxa diária de 20 patacas, o que perfaz a multa de 2.400,00 patacas, com alternativa de 80 dias de prisão; e, pela prática de um crime de cárcere privado, cada um deles também, na pena de 4 meses de prisão. Pelo crime de associação de malfeitores foram eles absolvidos. Depois, de
declaradas perdoadas as penas de prisão e multa relativas ao primeiro dos crimes de mútuo, cada um deles ficou condenado na pena única de 6 meses de prisão e multa de 2.4000,00 patacas, com a alternativa de 20 dias de prisão.
Os arguidos C e D foram condenados pela prática de um crime de cárcere privado, cada um deles, na pena de 4 meses de prisão, e absolvidos dos crimes de mútuo oneroso para jogo e de associação de malfeitores.
2. Do acórdão do Tribunal Colectivo, recorreu o arguido B para o Tribunal Superior de Justiça de Macau, pedindo que a pena de prisão que lhe fora aplicada pelo crime de cárcere privado fosse substituída por multa.
No Tribunal Superior de Justiça de Macau, o Ministério Público, na vista do artigo 664º do Código de Processo Penal, defendeu a alteração das qualificações jurídico-penais e, bem assim, das penas aplicadas.
Disse, em síntese, que os dois crimes de empréstimo ilícito para jogo constituem um só crime, na forma continuada; e que - para além do crime de cárcere privado por que foram
condenados - os arguidos cometeram uma tentativa de roubo, prevista e punível pelo artigo 434º, § 2º, do Código Penal.
Os arguidos foram ouvidos sobre o parecer do Ministério Público, tendo dito, no que aqui importa, que aceitavam a tese deste Magistrado no que concerne ao crime de empréstimo ilícito para jogo, mas que a alteração da qualificação por ele proposta do crime de cárcere privado (artigo 330º do Código Penal) para o crime de tentativa de roubo com cárcere privado (artigo 434º, §
2º, do Código de Penal), traduzir-se-ia na aplicação do artigo 447º do Código de Processo Penal, o que configura a inconstitucionalidade material deste preceito, por infracção da regra consignada no artigo 32º, nº 1, da Constituição e do princípio do contraditório, expressamente consagrado no artigo 32º, nº 5, da mesma Lei Fundamental.
O Tribunal Superior de Justiça de Macau - depois de ponderar que, dos artigos 447º e 667º, § 1º, nº 1, do Código de Processo Penal, se extrai a norma segundo a qual 'o Tribunal de última instância pode condenar por infracção diversa daquela por que o réu foi condenado no tribunal recorrido, ainda que seja mais grave, desde que os seus elementos constitutivos sejam factos que constem do despacho de pronúncia ou equivalente' -
acrescentou que essa norma não é inconstitucional, 'sempre que, numa interpretação conforme à Constituição , pressuponha que essa condenação não seja ditada sem prévia audição do réu'. E concluiu condenando os arguidos: todos eles, por um crime de cárcere privado e por um outro de tentativa de roubo; e os dois primeiros, ainda por um crime de mútuo oneroso para jogo.
3. É deste acórdão do Tribunal Superior de Justiça de Macau (de 27 de Abril de 1995) que vem o presente recurso, interposto pelos arguidos A e B, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade do artigo
447º do Código de Processo Penal de 1929, 'na medida em que permite a alteração da qualificação do crime pelos tribunais superiores'.
Neste Tribunal, alegaram os recorrentes, que formularam as seguintes conclusões: a) O Acórdão recorrido fez aplicação da norma contida no artigo 447º do CPP, ainda que conjugadamente com a disposição da norma do artigo 667º parágrafo 1º, nº 1, do mesmo diploma legal; b) Ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido violou o artigo 207º da Constituição da República Portuguesa que determina que nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam a Constituição ou os princípios nela consignados;
c) Violou também o artigo 18º daquela Constituição segundo o qual os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas; d) Violou, finalmente, o artigo 32º, nºs 1, da Constituição, que assegura todas as garantias de defesa, assim como o nº 5 do mesmo dispositivo legal, consagrador do princípio do contraditório.
O Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal, por sua parte, formulou as seguintes conclusões:
1. A norma constante do artigo 447º do Código de Processo Penal de 1929, que, por força da remissão que para ela faz o artigo 667º, § 1º, 1º, do mesmo Código, permite que o tribunal superior condene, na sequência de recurso interposto somente pelo réu, por infracção diversa daquela por que o réu foi acusado, ainda que seja mais grave, desde que os seus elementos constitutivos sejam factos que constem do despacho de pronúncia ou equivalente, viola o princípio constante do artigo 32º, nº 1 da Constituição.
2. Deverá, assim, ser julgado procedente o presente recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de inconstitucionalidade.
4. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentos:
5. O objecto do recurso:
O artigo 447º do Código de Processo Penal de 1929 preceitua como segue:
Artigo 447º (Convolação para infracção diversa) O tribunal poderá condenar por infracção diversa daquela por que o réu foi acusado, ainda que seja mais grave, desde que os seus elementos constitutivos sejam factos que constem do despacho de pronúncia ou equivalente.
§§ 1º e 2º [...]
Esta norma é aplicada nos recursos, por força da remissão que para ela faz o artigo 667º, § 1º, 1º,do mesmo Código que, na parte que aqui importa, prescreve: Artigo 667º (Proibição de reformatio in pejus) Interposto recurso ordinário de uma sentença ou acórdão somente pelo réu [...], o tribunal superior não pode, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrente:
1º. Aplicar pena que, pela sua espécie ou medida, deva considerar-se mais grave do que a constante da decisão recorrida;
4º. Modificar, de qualquer modo, a pena aplicada pela decisão recorrida.
§ 1º. A proibição estabelecida neste artigo não se verifica:
1º Quando o tribunal superior qualificar diversamente os factos, nos termos do artigo 447º [...], quer a qualificação respeite à incriminação, quer a circunstâncias modificativas da pena.
De acordo com os preceitos acabados de transcrever, num recurso interposto unicamente pelo réu, o tribunal superior pode condenar por infracção diversa daquela por que ele foi condenado no tribunal recorrido, ainda que seja mais grave, desde que os seus elementos constitutivos sejam factos que constem do despacho de pronúncia ou equivalente.
É esta norma que os recorrentes têm por inconstitucional, como claramente se vê da identificação que dela fizeram na resposta ao parecer do Ministério Público junto do Tribunal Superior de Justiça de Macau e, depois, no requerimento de interposição de recurso para este tribunal, onde precisaram que o artigo 447º viola a Constituição, 'na medida em que permite a alteração da qualificação do crime pelos tribunais superiores'.
Simplesmente, o tribunal recorrido não aplicou a norma assim identificada 'a seco'. Aplicou-a sim, mas mandando ouvir os réus sobre o parecer do Ministério Público que propugnava por uma alteração da qualificação jurídico-penal dos factos constantes da pronúncia. E, por isso, o acórdão aqui sob recurso precisou que a norma em causa 'não é inconstitucional, sempre que, numa interpretação conforme à Constituição, pressuponha que essa condenação não seja ditada sem prévia audição do réu'. E acrescentou: 'tendo sido com esse sentido que a norma foi aplicada no caso sub judice, não há que considerá-la inconstitucional'.
Isto, porém, não significa que, no recurso, os arguidos questionem, sub specie constitutionis, norma diversa
daquela que o tribunal recorrido aplicou - caso em que, por falta de verificação dos respectivos pressupostos, dele não devia conhecer-se. Significa, isso sim, que o acórdão recorrido fez dessa norma uma interpretação que disse ser conforme
à Constituição, dando aos arguidos a possibilidade de se defenderem da nova qualificação jurídico-penal dos factos constantes da pronúncia e por que tinham sido condenados.
Há, então, que averiguar se é inconstitucional o artigo
447º do Código de Processo Penal (aplicável na fase do recurso, por força do disposto no artigo 667º, § 1º, 1º, do mesmo Código), interpretado - e aplicado - como foi pelo tribunal recorrido. Ou seja: interpretado no sentido de permitir que o tribunal de recurso condene os réus por infracção diversa, e mais grave, daquela por que foram condenados na 1ª instância, desde que os elementos constitutivos dessa outra infracção constem da acusação e da pronúncia e desde também que os réus sejam ouvidos sobre a possibilidade de vir a fazer-se essa outra qualificação jurídica dos factos, assim se lhes dando oportunidade de se defenderem quanto a ela.
6. A questão de constitucionalidade:
A resposta à pergunta que por último se formulou é negativa.
Reportando-se ao artigo 447º, atrás transcrito, BELEZA DOS SANTOS (Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 63º, páginas 385 e seguintes), escrevia: 'compreende-se bem a razão de ser da independência que possui a sentença final na qualificação jurídica dos factos constantes da pronúncia ou equivalente.
'Desde que esses factos constam da acusação formulada contra o réu, este tem possibilidade de organizar a sua defesa contra eles; não
é colhido de surpresa por uma acusação que não esperava, por factos com que não contava e que, por isso, não pôde contestar a tempo.
'Quanto à qualificação jurídica - isto é, à aplicação e interpretação da lei -, é manifesto que o réu não pode contar com aquela que o despacho de pronúncia adoptou.
'Ela pode evidentemente ser alterada, sem que se prejudiquem os legítimos interesses do réu, a quem fica sempre aberto o caminho de discutir livremente a qualificação jurídica dos factos e de recorrer contra sentenças que façam uma apreciação ou interpretação da lei que julgue erróneas.
'Seria exorbitante e injustificado que se atribuísse ao réu a vantagem de beneficiar com qualquer erro de apreciação jurídica feita no despacho de pronúncia ou equivalente. Da mesma maneira seria injustificado e vexatório que se vinculasse o tribunal que tem de julgar a certa interpretação da lei seguida pelo juiz que pronunciou'. (Cf., em termos idênticos, FREDERICO ISASCA, Sobre a alteração da qualificação jurídica em processo penal, separata da Revista Portuguesa de Ciência Criminal, sp. página 399)
EDUARDO CORREIA (Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, Coimbra, 1948, páginas 140 e seguintes), subscrevendo, embora, as considerações feitas por BELEZA DOS SANTOS a respeito do artigo 447º, escrevia, no entanto, que 'toda a actividade defensiva e contraditória olha os factos nas sua relações com aquelas qualificações jurídicas em que se enquadram na acusação'. E acrescentava: 'Deste modo, qualquer alteração do ponto de vista jurídico pode vir a reflectir-se na importância que tenha sido atribuída na prova e na defesa a determinados elementos de facto, e, portanto, a prejudicar o arguido'. E, a seguir, ponderava: 'É verdade que o defensor deve conhecer o direito e organizar a sua contestação considerando todas as possíveis qualificações de que os factos acusados podem ser objecto. Mas também é certo que o natural é ele partir do rigor
da subsunção jurídica feita na pronúncia e que com base nela organize a sua defesa. Mas assim, a modificação da qualificação jurídica importará, ou poderá importar, um desfavor para o réu (sublinhado acrescentado). Justamente por isso o § 265º do Código de Processo Penal alemão dispõe que 'não pode ter lugar uma condenação com base num preceito legal diferente do apontado no despacho de pronúncia, sem que o arguido seja prevenido da modificação do ponto de vista jurídico e lhe seja dada oportunidade de defesa'.
Este Tribunal já teve ocasião de afrontar esta questão: primeiro, a propósito do artigo 418º, nº 2, do Código de Justiça Militar, de teor idêntico ao do artigo 447º do Código de Processo Penal, no acórdão nº
173/92 (publicado no Diário da República, II série, de 18 de Setembro de 1992); e, mais recentemente, no acórdão nº 279/95 (publicado no Diário da República, II série, de 28 de Junho de 1995), a propósito do artigo 1º, alínea f), do actual Código de Processo Penal, conjugado com os artigos 120º, 284º, nº 1, 303º, nº 3,
309º, nº 2, 359º, nºs 1 e 2, e 379º, alínea b), e interpretado nos termos constantes do assento nº 2/93.
No acórdão nº 173/92, o Tribunal decidiu que - por violação das garantias de defesa - a disposição do artigo 418º,
nº 2, do Código de Justiça Militar - que prescreve que 'o tribunal apreciará sempre especificamente na sua decisão os factos alegados pela acusação e pela defesa ou que resultarem da discussão da causa, podendo condenar por infracção diversa daquela por que o réu foi acusado, ainda que seja mais grave, desde que os seus elementos constitutivos sejam factos que constem do libelo' - é inconstitucional, 'na parte em que permite ao tribunal condenar por infracção diversa daquela de que o arguido foi acusado (caso os factos que integrem o respectivo tipo incriminador constem do libelo acusatório), quando a diferente qualificação jurídico-penal dos factos conduzir à condenação do arguido em pena mais grave, mas tão-só na medida em que não prevê que se previna o arguido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa'.
No acórdão nº 279/95, o Tribunal decidiu - também por violação do princípio das garantias de defesa - que é inconstitucional 'o disposto no artigo 1º, alínea f), do Código de Processo Penal, conjugado com os artigos 120º, 284º, nº 1, 303º, nº 3, 309º, nº 2, 359º, nºs 1 e 2, e 379º, alínea b), e interpretado nos termos constantes do assento nº 2/93, como não constituindo alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), mas tão-só na medida em
que, conduzindo a diferente qualificação jurídico-penal dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que o arguido seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa'.
Questão com algum parentesco com a que aqui nos ocupa é a que este Tribunal decidiu no seu acórdão nº 402/95 (publicado no Diário da República, II série, de 16 de Novembro de 1995). Aí julgou não ser inconstitucional a norma do artigo 351º, § único, do Código de Processo Penal de
1929, interpretado no sentido de que, em caso de recurso do despacho de pronúncia, a 2ª instância pode agravar a qualificação jurídico-penal dos factos já constantes da acusação e da pronúncia, mesmo quando o recurso é interposto só pelo arguido e no interesse da sua defesa.
É que, ponderou-se aí, 'não se pode falar [..] aqui numa agravação da posição do recorrente, no recurso que ele interpôs no seu interesse. E muito menos numa reformatio in pejus [...]'. E não pode falar-se numa agravação - disse-se - 'quando se considere o processo no seu conjunto', pois que o arguido 'ficou desde já precavido contra a possibilidade dessa convolação'.
De toda esta jurisprudência, é de reter a seguinte ideia: não há qualquer preceito constitucional que proíba o tribunal do julgamento ou o do recurso de qualificar os factos por que o arguido foi acusado e pronunciado de modo diverso daquele por que os qualificou o tribunal recorrido, ainda que essa diferente qualificação importe agravação da sua posição (scilicet, a sua condenação por crime diferente ou em pena mais grave).
Essa liberdade de dizer o direito com independência é, de resto, uma das essentialia da função jurisdicional.
Simplesmente - frisou-se no citado acórdão nº 173/92 -,
'o arguido não tem que ser sacrificado no altar da correcta qualificação jurídico-penal da matéria de facto; e uma eventual alteração final do enquadramento jurídico desta não tem necessariamente de fazer-se à custa do sacrifício dos seus direitos de defesa'.
Ora, se o tribunal de recurso optar por qualificar os factos da acusação de modo diferente daquele por que os qualificou o juiz do julgamento, o réu pode ver a sua defesa ser gravemente prejudicada, pois que uma tal surpresa processual pode fazer frustrar inteiramente a estratégia de defesa por si montada e, bem assim, a utilidade da defesa entretanto produzida na 1ª instância e nas alegações de recurso.
Na verdade - como se anotou no citado acórdão nº 173/92
-, 'se soubesse que corria o risco de vir a ser condenado por um crime mais grave, ou até simplesmente por um crime diverso, ainda que de igual ou até de menor gravidade, o arguido podia ter preferido constituir advogado em vez de se contentar com o defensor oficioso nomeado pelo tribunal; podia ter escolhido um outro advogado especializado na matéria em causa; podia ter-se ocupado a carrear para os autos elementos de prova que achou desnecessários face à incriminação constante da acusação, designadamente em matéria de circunstâncias atenuantes; podia, inclusive, ter assentado o seu esforço probatório e argumentativo em afastar a relevância de determinados elementos de facto que, se bem que indicados na acusação, eram de todo em todo inúteis face ao tipo criminal indicado na acusação ou na pronúncia'.
Em síntese, pois, e citando uma vez mais o acórdão nº
173/92: 'a faculdade de alteração da incriminação constante da acusação, quando consentida sem que o arguido tenha sido oportunamente prevenido da possibilidade de tal alteração, de modo a dar-lhe a oportunidade de modificar a sua defesa tendo em conta o novo enquadramento jurídico, pode implicar um grave prejuízo para a defesa, em violação do princípio constante do artigo 32º, nº 1, da Constituição'.
Tal violação, porém, só existe, se não se previr um mecanismo processual capaz de permitir ao arguido que se defenda de uma nova incriminação, muito principalmente, quando a esta corresponder pena mais grave do que a que lhe foi aplicada na sentença recorrida
Por conseguinte, desde que o arguido seja prevenido da possibilidade de uma diferente qualificação jurídico-penal dos factos constantes da pronúncia; e desde que, quanto a ela, se lhe dê oportunidade de defesa, o tribunal pode proceder a essa diferente qualificação e condená-lo por crime diverso ou em pena mais grave, sem que viole o princípio das garantias de defesa ou qualquer outro princípio ou preceito constitucional (maxime, o princípio do contraditório ou o artigo 18º da Constituição).
Constando do parecer do Ministério Público a proposta de uma diferente qualificação jurídico-penal dos factos, proporciona-se essa oportunidade de defesa, sempre que ao réu se notifica esse parecer, dando-se-lhe possibilidade de o contraditar.
Na verdade, estando os factos assentes, basta-lhe discuti-los juridicamente.
É esta a solução que este Tribunal adoptou para os casos em que, no visto (artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929), o Ministério Público emite parecer que, de qualquer modo, desfavorece a posição do réu. O Tribunal decidiu que o que a Constituição exige em tal ocorrência é que ao réu se dê oportunidade de se pronunciar sobre esse parecer do Ministério Público
(cf. acs. nºs 150/87, 398/89, 495/89, 496/89, 350/91, 356/91 e 150/93, publicados no Diário da República, II série, de 18 de Setembro de 1987, de 14 de Setembro de 1989, de 28 de Janeiro de 1991, de 1 de Fevereiro de 1990, de 3 de Dezembro de 1991, de 24 de Abril de 1992 e de 29 de Março de 1993, respectivamente).
Pois bem: in casu, o tribunal recorrido interpretou - e aplicou - o artigo 447º do Código de Processo Penal de 1929, em termos de prevenir o arguido da possibilidade de vir a qualificar os factos de forma diferente do que fizera o tribunal de 1ª instância, indicando-lhe essa outra possível qualificação jurídico-penal, a fim de ele se poder defender, como, de resto, fez, respondendo ao parecer do Ministério Público.
Assim interpretada, a norma do artigo 447º do Código de Processo Penal de 1929 não é, pois, inconstitucional. Daí que
não mereça censura o acórdão recorrido quanto ao julgamento por ele feito da questão de constitucionalidade. Não são, de facto, procedentes as razões invocadas em sentido contrário.
III. Decisão:
Isto posto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade.
Lisboa, 16 de Janeiro de 1996 Messias Bento José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Fernando Alves Correia Bravo Serra Luis Nunes de Almeida