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Proc. nº 557/94 ACÓRDÃO Nº 4/96
1ª Secção Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A, com os sinais dos autos, instaurou em 9 de Outubro de 1992, no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, uma acção de despejo contra B, pretendendo denunciar o contrato de arrendamento celebrado em 9 de Março de 1978 com este último, para nele passar a habitar o filho, C, de 18 anos, por ir casar. Invocou o disposto nos arts. 69º, nº 1, al. a), e 71º do Regime do Arrendamente Urbano para fundamentar o seu pedido.
A acção foi contestada, invocando o réu que o autor tinha outros andares arrendados e por arrendar, indicando mesmo um em que o arrendamento era posterior ao seu, e dois no prédio onde residia, de que um estava encerrado e o outro era indevidamente utilizado para vestiário do pessoal de um centro
comercial, embora destinado a habitação. Invocou que o autor litigava contra lei expressa, com dolo grosseiro, pedindo a sua condenação como litigante de má fé. Houve ainda resposta à contestação.
Foi proferido despacho saneador e elaborados especificação e questionário. A acção veio a ser julgada improcedente, sendo absolvido o réu do pedido (sentença do 2º Juizo Cível de Lisboa, proferida em 21 de Dezembro de 1993, a fls. 75 a 78 dos autos).
Inconformado, recorreu o autor. Nas suas alegações, além de discutir os fundamentos jurídicos da decisão recorrida, o apelante suscitou a questão de inconstitucionalidade do art. 71º, nº 2, do Regime do Arrendamento Urbano, por violação do disposto nos arts. 62º e 65º da Constituição ( a fls. 92).
A apelação veio a ser julgada improcedente por acórdão da Relação de Lisboa de 13 de Outubro de 1994. Sobre a questão de inconstitucionalidade suscitada, pronunciou-se assim o Tribunal da Relação:
'Aliás, o que se faz naquele nº 2 do art. 71º do R.A.U. é procurar o possível equilíbrio no domínio de um natural conflito de interesses entre o senhorio e o inquilino, que em nada afecta o direito de propriedade do autor, mas que regula esse seu direito, em termos de não serem afectadas a segurança e a paz social, indispensáveis a uma sociedade civilizada.
Nenhuma inconstitucionalidade se vislumbra.
Por sua vez, o art. 65º da Constituição estabelece o direito a habitação para todos e aquilo que incumbe ao Estado, para assegurar esse direito.
Sendo assim, como afirmam Pires de Lima e Antunes Varela (in Código Civil Anotado II, pg. 572), «o interesse social que está na base da renovação obrigatória do contrato - a necessidade de habitação - tanto se satisfaz, entregando a casa ao senhorio, se não tiver outra, como ao inquilino».
Todavia, sob pena de serem afectados valores importantes, do ponto de vista individual e social (A segurança e a paz social aludidas), a regulamentação dos conflitos que necessariamente podem surgir, quando a lei retira a casa ao inquilino para a entregar ao senhorio ou ao filho deste, tem de ser rigorosamente estabelecida, como é o caso do art. 71º, nº 2, do R.A.U.. Por isso, este preceito e a interpretação que dele é feita nada têm de inconstitucional, antes traduzindo o exacto cumprimento das directrizes determinadas, nesse domínio, no próprio texto constitucional.
Também não existe qualquer violação do art. 65º da C.R.P.' (a fls. 106 e 107 dos autos)
Inconformado ainda, interpôs o recorrente recurso de constitucionalidade, nos termos da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, invocando a inconstitucionalidade dos arts. 71º, nº 2, e 55º do R.A.U., por violação dos arts. 62º e 65º da Constituição (a fls. 110). Este recurso foi admitido por despacho de fls. 112.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Nas suas alegações, formulou o recorrente as seguintes conclusões:
'1 - O art. 71-2 do Dec. Lei 321/B/90 [na realidade, quer-se referir ao Regime de Arrendamento Urbano, R.A.U., aprovado por aquele decreto-lei] ao estabelecer uma prioridade de denúncia do arrendamento impõe uma limitação inaceitável ao proprietário e senhorio.
2 - O art. 71-2 do DL 321/B/90 [isto é, do R.A.U.] viola os arts. 62 e 65 da Constituição da República Portuguesa' (a fls. 117 dos autos).
Concluiu pela procedência do recurso, julgando-se inconstitucional aquela norma.
O recorrido preconizou o improvimento do recurso, nas suas contra-alegações, sustentando que as normas alegadamente inconstitucionais não padeciam desse vício.
3. Foram corridos os vistos legais.
Por não haver motivos que a tal obstem, impõe-se conhecer do objecto do recurso.
II
4. Importará começar por delimitar o objecto do recurso.
Embora, no requerimento de interposição, o recorrente suscitasse a questão de inconstitucionalidade de duas normas do R.A.U., as dos arts. 71º, nº 2, e 55º, veio a restringir o objecto do recurso à primeira, nas respectivas alegações.
Independentemente de outros considerandos, tal restrição, só por si, implica que o objecto do recurso seja constituído pela norma do nº 2 do art. 71º do R.A.U.
5. Depois do nº 1 do art. 71º da R.A.U. estabelecer quais os requisitos de cuja verificação está dependente a constituição do direito de denúncia para habitação do senhorio (ser proprietário, comproprietário ou usufrutuário do prédio há mais de cinco anos, ou, independentemente deste prazo, se o tiver adquirido por sucessão; não ter, há mais de um ano, na área das comarcas de Lisboa ou do Porto e suas limítrofes ou na respectiva localidade quanto ao resto do País, casa própria ou arrendada que satisfaça as necessidades de habitação própria ou dos seus descendentes em
1º grau), estatui o nº 2 deste artigo, norma que constitui objecto do presente recurso:
'O senhorio que tiver diversos prédios arrendados só pode denunciar o contrato relativamente àquele que, satisfazendo as necessidades de habitação própria e da família, esteja arrendado há menos tempo'.
Esta norma corresponde ao disposto no nº 2 do art. 1098º do Código Civil de 1966, repetindo a sua formulação literal.
Acrescente-se que a mesma solução material vigora no nosso ordenamento jurídico, pelo menos, desde 1948 (veja-se o art. 69º, alínea b), parte final, da Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1948).
6. O escopo da norma cuja inconstitucionalidade é impugnada é facilmente alcançável.
Como refere Manuel Januário da Costa Gomes, com essa norma o legislador pretende 'que, com a denúncia pelo senhorio, não sejam, em princípio, atingidos os arrendatários mais antigos, aqueles que criaram mais raízes no lugar e que têm, por força do tempo decorrido, uma maior expectativa na perenidade da relação do arrendamento. Mas o legislador não se limitou a fornecer um critério de tempo do contrato: se assim fosse, estariam em grande número de casos inutilizadas as razões que presidiram à norma excepcional da alínea a) do nº 1 do art. 69º [do R.A.U.]: a denúncia deve incidir sobre o arrendamento mais recente, dentre todos os relativos a prédios que satisfaçam as necessidades de habitação própria do inquilino incluindo o seu agregado familiar' (Arrendamentos para Habitação, Coimbra, 1994, pág. 275; cfr. comentário de A. Menezes Cordeiro e F. Castro Fraga, Novo Regime do Arrendamento Urbano Anotado, 1990, pág. 116).
E Pires de Lima e Antunes Varela, comentando o art. 1098º, nº 2, do Código Civil, afirmam que, com o disposto nesse nº 2, o legislador procurou 'evitar o arbítrio na escolha do inquilino a sacrificar com a denúncia ou, até, a fraude de se arrendar uma nova casa para despejar uma outra' (Código Civil Anotado, II vol., 3ª ed., Coimbra, 1986, pág. 579).
7. Padecerá a norma aplicada pelo acórdão recorrido de inconstitucionalidade, como sustenta o recorrente?
Impõe-se resposta decididamente negativa.
O recorrente sustenta a inconstitucionalidade da norma baseando-se em que, 'estando em causa a propriedade privada sobre um imóvel e o direito à habitação do recorrente que pretende assegurar ao seu filho uma casa condigna e que satisfaça as suas necessidades para constituir família', seria 'irreal e ilógica a Decisão sob recurso' (alegações de apelação, a fls.
92). E, nas alegações do recurso de constitucionalidade, fala de 'grave limitação à propriedade privada e ao direito de habitação consignados nos arts.
62º e 65º da Lei Fundamental' (a fls. 114), afirmando que, face a esse direito de propriedade e às necessidades do filho do senhorio, se tornaria 'irreal discutir a prioridade de arrendamento' (ibidem) ou que 'o direito à propriedade privada é sagrado', havendo na norma impugnada uma restrição e um 'limite inaceitável ao Direito à propriedade privada que é garantido constitucionalmente no art. 62º do CRP' (a fls. 115).
8. A sua leitura da Constituição não é, porém, correcta.
De facto, o art. 62º, nº 1, da Lei Fundamental não protege de forma absoluta e ilimitada tal direito de propriedade, que é um direito fundamental de natureza económica.
Na verdade, aí se lê que 'a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição'. A referência à garantia 'nos termos da Constituição' não é supérflua: no dizer de Gomes Canotilho e Vital Moreira, 'trata-se de sublinhar que o direito de propriedade não é garantido em termos absolutos, mas sim dentro dos limites e nos termos previstos e definidos noutros lugares da Constituição' (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra,
1993, pág. 332).
Não sendo ilimitado o direito de propriedade privada - que é reconhecido 'nos termos da Constituição' - a verdade é que o mesmo há-de ser compatibilizado com um outro direito fundamental de natureza social, o direito à habitação, justamente invocado também pelo recorrente.
Sendo controvertido se tal direito à habitação é um verdadeiro direito subjectivo ou antes um direito a uma 'prestação não vinculada', a verdade é que o grau de realização do mesmo depende, como se observou no acórdão nº 311/93 do Tribunal Constitucional (in Diário da República, II Série, nº 170, de 22 de Julho de 1993), 'das opções que o Estado fizer em matéria de política de habitação. E estas são, desde logo, condicionadas pelos recursos materiais (financeiros e outros) de que o Estado, em cada momento, possa dispor': sendo assim todavia, 'o direito à habitação, por se fundar na dignidade da pessoa humana, enquanto ser livre com direito a viver dignamente', implica que haja um mínimo que o Estado deva sempre satisfazer. Por isso, pode o Estado até, 'se tal for necessário, impor restrições aos direitos do proprietário privado. Nesta medida, também o direito à habitação vincula os particulares, chamados a serem solidários com o seu semelhante (princípio da solidariedade social); vincula, designadamente, a propriedade privada, que tem uma função social a cumprir'.
É, por isso, que o Tribunal Constitucional tem julgado conformes à Lei Fundamental várias regras restritivas do direito de propriedade privada, que traduzem uma concepção vinculística da relação de arrendamento urbano para habitação (cfr., para a indicação da jurisprudência, Ana Paula Ucha, 'Direitos Sociais', in Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, ob. colect., 1993, págs. 234 a 242).
Simplesmente, no que toca à denúncia do contrato de arrendamento para habitação do senhorio ou de descendentes de primeiro grau, a lei resolve uma situação de colisão ou conflito de pretensões quanto ao exercício do direito a habitação a favor do senhorio. Como se escreveu no acórdão nº 131/92, 'em face desse conflito, a lei atribui preferência ao direito à habitação sobre o prédio urbano [ao proprietário], direito este garantido pelo artigo 62º, nº 1, da Constituição, sobre o direito à habitação do inquilino - o qual se baseia no contrato de arrendamento urbano, que é obrigatoriamente renovável nos termos da lei [referência à regulamentação do Código Civil]' (in Diário da República, II Série, nº 169, de 244 de Julho de
1992).
9. Não é constitucionalmente aceitável que o senhorio tenha um direito de denúncia ad nutum e em todos os casos do arrendamento vinculatístico por si celebrado.
Para denunciar o contrato de arrendamento para o senhorio ou o seu agregado familiar habitarem no imóvel locado, o mesmo senhorio tem de demonstrar o preenchimento dos requisitos previstos na lei, nomeadamente a necessidade desse espaço habitacional (esse requisito é conforme à Constituição - nesse sentido, vejam-se os acórdãos nºs 131/92, 151/92 e, em especial, o 174/92, este último publicado no Diário da República, II Série, nº
216, de 18 de Setembro de 1992).
A norma impugnada visa, por seu turno, estabelecer um critério objectivo e não arbitrário para determinar qual dos arrendamentos, em igualdade de circunstâncias (nomeadamente quanto à aptidão do locado para satisfazer as necessidades habitacionais do senhorio ou do seu agregado familiar), deve cessar.
Não há qualquer vício de inconstitucionalidade relativamente a tal solução, pois o critério escolhido é objectivo e não discriminatório.
9. No fundo, o recorrente acaba por suscitar a questão de constitucionalidade por não ter logrado provar, nos tribunais cíveis, que o andar locado em último lugar não satisfazia as necessidades de habitação de seu filho que pretendia casar.
É que - como se refere no acórdão da Relação ora recorrido - cabia ao autor recorrente o ónus de prova de que o arrendamento há menos tempo não satisfazia essas necessidades. Só por não ter feito essa prova, ficou 'de pé todo o condicionalismo, a que se reporta o nº 2 do art. 71º do R.A.U., a impedir que o Autor pudesse obter a denúncia do contrato de arrendamento dos autos (...)' (a fls. 106).
10. Improcede, por isso, o presente recurso de constitucionalidade.
III
11. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido quanto ao julgamento em matéria de constitucionalidade.
Lisboa, 16 de Janeiro de 1996
Ass) Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Dinis Maria Fernanda Palma Maria da Assunção Esteves Vitor Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa