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Processo: n.º 274/90.
Plenário
Relator: Conselheiro Alves Correia.
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I — Relatório
1 — Um grupo de Deputados do Partido Comunista Português requereu ao Tribunal
Constitucional, ao abrigo do artigo 281.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea f),
da Constituição e do artigo 51.º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro), a declaração, com força obrigatória geral, da
inconstitucionalidade das normas constantes das Bases IV, n.º 1, XII, n.º 1,
XXXIII, n.º 2, alínea d), XXXIV, XXXV, n.º 1, e XXVII, n.º 1, da Lei n.º 48/90,
de 24 de Agosto (Lei de Bases da Saúde).
O pedido alicerça-se nos seguintes fundamentos:
a) O direito à protecção da saúde é reconhecido constitucionalmente,
encontrando-se previsto no artigo 64.º da Lei Fundamental, que estipula as
formas de realização deste direito, as incumbências prioritárias do Estado para
o assegurar e enuncia ainda os princípios da descentralização e participação
para o serviço nacional de saúde.
b) A II Revisão Constitucional introduziu alterações em duas alíneas
deste artigo, sem, no entanto, descaracterizar os princípios nele contidos.
c) A primeira alteração, largamente discutida em sede de revisão
constitucional, prende-se com a gratuitidade do Serviço Nacional de Saúde. A
Constituição de 1976, revista em 1982, caracterizava o Serviço Nacional de Saúde
como «universal, geral e gratuito». Na II Revisão esta norma foi alterada,
introduzindo a expressão «tendencialmente gratuito, tendo em conta as condições
económicas e sociais dos cidadãos» [alínea a) do n.º 2 do artigo 64.º].
d) A segunda verificou-se na alínea c) do n.º 3 do artigo 64.º Assim,
para assegurar o direito à protecção da saúde, incumbe prioritariamente ao
Estado «orientar a sua acção para a socialização dos custos dos cuidados médicos
e medicamentos» (e não, como antes se dispunha, para a socialização da medicina
e dos sectores médico-medicamentosos), alteração esta que não modifica a
imposição constitucional que já existia de disciplinar e controlar o exercício
da medicina privada e as actividades industriais e comerciais a ela ligadas, nem
o princípio de que a medicina privada deve desempenhar uma função social e de
interesse público.
e) Também em sede de revisão constitucional, foi rejeitada a proposta,
apresentada e defendida pelo PSD, que visava substituir o Serviço Nacional de
Saúde por um «sistema nacional de saúde», de contornos a definir livremente por
lei ordinária.
f) Tal proposta não mereceu vencimento e a Constituição continua a
dispor que o direito à protecção da saúde é realizado «através de um serviço
nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e
sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito» [alínea a) do n.º 2 do artigo
64.º].
g) No entanto, o legislador ordinário, ignorando o imperativo
constitucional, vem consagrar na lei aquilo que não conseguiu impor na revisão
constitucional: o sistema de saúde responsável pela efectivação do direito à
protecção da saúde (Base IV, n.º 1).
h) Na Constituição, o Serviço Nacional de Saúde está ligado ao direito
à protecção da saúde e é responsável pela sua realização. Na nova Lei de Bases,
ele aparece desligado da sua concretização. Aqui, o Serviço Nacional de Saúde é
apenas um subsistema do sistema de saúde «constituído pelo Serviço Nacional de
Saúde e por todas as entidades públicas que desenvolvem actividades de promoção,
prevenção e tratamento na área da saúde, bem como por todas as entidades
privadas e por todos os profissionais livres que acordem com o primeiro a
prestação de todas ou de algumas daquelas actividades» (Base XII, n.º 1).
i) Sistema de saúde que não tem, da forma como está caracterizado no
capítulo ii (Bases XII a XXIII), as características do SNS: não é nacional, nem
universal, nem geral e muito menos é tendencialmente gratuito.
j) Relacionado com este problema da gratuitidade interessa observar
que, quando se define o estatuto dos utentes do sistema de saúde na Base XIV, se
institui como regra o pagamento dos encargos que derivam da prestação dos
cuidados da saúde [alínea e) do n.º 23].
1) O direito à protecção da saúde não pode ser garantido eficazmente se
a sua realização não é confiada a uma estrutura organizativa pública, da
responsabilidade do Estado, como é aliás imposição constitucional.
m) Incumbências prioritárias do Estado como a garantia do acesso de
todos os cidadãos aos cuidados da medicina, a garantia de uma racional e
eficiente cobertura médica e hospitalar de todo o país e a socialização dos
custos dos cuidados médicos e medicamentosos [alíneas a), b) e c) do n.º 3 do
artigo 64.º] não podem ser prosseguidas sendo o serviço nacional de saúde um
mero subsistema (nem sequer o principal) do sistema de saúde.
n) Se atentarmos na conjugação deste capítulo (capítulo II) com o
capítulo IV, que trata «das iniciativas particulares de saúde», ficaremos com o
desenho do quadro de relações entre o sector público e o sector privado na área
da medicina e teremos de concluir que o Estado, segundo o que dispõe a presente
Lei de Bases, faz muito mais do que «disciplinar e controlar as formas
empresariais e privadas da medicina, articulando-as com o serviço nacional de
saúde» [alínea d) do n.º 3 do artigo 64.º da Constituição da República
Portuguesa], antes «apoia», «incentiva», «subsidia» este mesmo sector privado.
o) Conclui-se, assim, pela inconstitucionalidade material da Lei n.º
48/90, no que toca às Bases IV, n.º 1, e XII, n.º 1, quando estas não
salvaguardam o papel preponderante do Estado na realização do direito à
protecção da saúde, como é imperativo constitucional — artigo 64.º da
Constituição da República Portuguesa, n.º 2, alínea a), e n.º 3.
p) Outra questão prende-se com a interpretação da expressão
«tendencialmente gratuito» do serviço nacional de saúde. Quando foi votada a
alteração da alínea a) do n.º 8 do artigo 64.º da Constituição, os deputados do
PS co-responsáveis por esta alteração declararam defender «a manutenção do
Serviço Nacional de Saúde regido pelos princípios que sempre defenderam», que «a
sua gratuitidade será sempre regra e nunca a excepção e quando aceitámos a
expressão tendencialmente gratuito quisemos com isto significar que a situação
actual deve ir caminhando para a gratuitidade, não havendo nenhum retrocesso no
sentido de agravar os pagamentos que já hoje são feitos pelos cidadãos»,
interpretando ainda a expressão «tendo em conta as condições económicas dos
cidadãos» como significando «que a gratuitidade integral deverá desde já começar
a ser aplicada aos grupos sociais mais carenciados» (vide declaração de voto do
PS, publicada no Diário da República, I Série, n.º 83, de 19 de Maio de 1989, p.
4061).
q) Ora, de acordo com as disposições constantes das Bases XXXIII,
alínea d), n.º 1, e XXXV, n.º 1, a gratuitidade não é a regra, mas sim a
excepção. A regra é o pagamento das prestações dos cuidados de saúde.
Tão-pouco se vislumbra uma tendência para a gratuitidade. A filosofia deste
diploma parece ser outra e bem diferente do espírito da norma constitucional.
r) O facto de se fixarem dois tipos de taxas, umas moderadoras e outras
estranhas a este objectivo e finalidade, consubstancia, por si só uma
inconstitucionalidade material.
s) Deputados do PS e do PSD, responsáveis pela introdução da expressão
«tendencialmente gratuito» na Constituição, afirmaram, repetiram e declararam a
final que esta alteração não poderia importar qualquer retrocesso no sentido de
agravar os pagamentos que já hoje são feitos pelos cidadãos e que a regra é a
gratuitidade do SNS, só havendo excepções na medida em que seja necessário
garantir a racionalização dos serviços e do acesso aos cuidados médicos de saúde
com a aplicação das taxas moderadoras.
t) Não é isto que faz a Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto, nas suas Bases
XXXIII, n.º 2, alínea d), XXXIV e XXXV, n.º 1, violando, por isso, o artigo
64.º, n.º 2, alínea a), da Lei Fundamental.
u) Outra característica do Serviço Nacional de Saúde é ele ter gestão
descentralizada e participada, nos termos do n.º 4 do artigo 64.º da
Constituição.
v) Esta característica é reafirmada pela Lei de Bases, na alínea e) da
Base XXIV. No entanto, não basta afirmar os princípios da descentralização e
participação para que eles se encontrem assegurados, sendo até deficiente
técnica legislativa a mera reprodução na lei ordinária de normas da Lei
Fundamental.
x) O Serviço Nacional de Saúde, tal como está definido na Lei de Bases,
organiza-se em Administrações Regionais de Saúde que «são responsáveis pela
saúde das populações da respectiva área geográfica, coordenam a prestação dos
cuidados de saúde de todos os níveis e adequam os recursos disponíveis às
necessidades, segundo a política superiormente definida e de acordo com as
normas e directivas emitidas pelo Ministério da Saúde».
z) Uma verdadeira gestão descentralizada pressupõe um certo grau de
autonomia do Serviço Nacional de Saúde face à administração directa do Estado.
Que autonomia têm as Administrações Regionais de Saúde? Que poderes de decisão
detêm que permitam caracterizá-las como órgãos de gestão descentralizada? A Lei
de Bases não esclarece e não prevê nem consagra um grau de autonomia que permita
falar de descentralização. Ao contrário, o preceito citado indicia um poder de
direcção do Ministério da Saúde, que é o poder típico do superior hierárquico na
administração directa do Estado.
aa) Quanto ao princípio da participação, para além de estar enunciado na
alínea e) da Base XXIV, não se encontra previsto em nenhum outro preceito. Não
há na Lei de Bases nenhuma referência aos órgãos onde se efectuará a
participação dos cidadãos e ao modo como são designados os gestores dos órgãos
do SNS.
bb) Tem-se, assim, como materialmente inconstitucional a norma contida no
n.º 1 da Base XXVII, por violação do n.º 4 do artigo 64.º da CRP, quando enuncia
o princípio da descentralização.
2 — Notificado o Presidente da Assembleia da República, nos termos e para os
efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional,
ofereceu o mesmo o merecimento dos autos e juntou os Diários da Assembleia da
República relativos à discussão e aprovação da Lei de Bases da Saúde.
3 — Tudo visto e ponderado, cumpre, então, apreciar e decidir.
II — Fundamentos
4 — Natureza do direito à protecção da saúde.
O artigo, 64.º, n.º 1, da Constituição proclama que «todos têm direito à
protecção da saúde e o dever de a defender e promover». Por sua vez, a alínea
a) do n.º 2 do mesmo preceito determina que «o direito à protecção da saúde é
realizado através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em
conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito».
Nos termos do n.º 3 do artigo 64.º da Constituição, «para assegurar o direito à
protecção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado:
a) Garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua
condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de
reabilitação;
b) Garantir uma racional e eficiente cobertura médica e hospitalar de
todo o país;
c) Orientar a sua acção para a socialização dos custos dos cuidados
médicos e medicamentosos;
d) Disciplinar e controlar as formas empresariais e privadas da
medicina, articulando-as com o serviço nacional de saúde;
e) Disciplinar e controlar a produção, a comercialização e o uso dos
produtos químicos, biológicos e farmacêuticos e outros meios de tratamento e
diagnóstico.
Finalmente, de harmonia com o n.º 4 do artigo 64.º da Lei Fundamental, «o
serviço nacional de saúde tem gestão descentralizada e participada».
Antes de se confrontarem as normas objecto do pedido com os preceitos
constitucionais que constituem o seu parâmetro de validade, importa,
preliminarmente, deixar uma nota sobre a natureza do direito à saúde.
O direito à protecção da saúde, consagrado no Título iii, Capítulo ii, da
Constituição, não é, como acentuou este Tribunal nos seus Acórdãos n.os 39/84 e
330/89 (publicados no Diário da República, I Série, n.º 104, de 5 de Maio de
1984, e II Série, n.º 141, de 22 de Junho de 1989, respectivamente), um dos
«direitos, liberdades e garantias», previstos no Título ii da Parte i da
Constituição, nem um direito de natureza análoga a estes, para efeitos de
sujeição ao mesmo regime jurídico, nos termos do disposto no artigo 17.º da Lei
Fundamental. É antes, um direito social típico e, enquanto tal, configura-se
como um direito a acções ou prestações do Estado, de natureza jurídica (medidas
legislativas), de carácter material (bens e serviços) e de índole financeira,
necessárias à respectiva satisfação. Assim, ao contrário dos «direitos,
liberdades e garantias», cujo âmbito e conteúdo são essencialmente determinados
ao nível das opções constitucionais, e, por isso, são directamente aplicáveis,
(cfr. o artigo 18.º, n.º 1, da Constituição), o direito à protecção da saúde,
como direito social, está dependente de uma «interposição legislativa», isto é,
de uma actividade mediadora e subsequente do legislador, com vista à criação dos
pressupostos materiais indispensáveis ao seu exercício efectivo. Esta
característica, que é comum à generalidade dos direitos económicos, sociais e
culturais, põe com acuidade o problema da efectivação do direito à saúde.
Fala-se aqui de uma efectivação «sob reserva do possível», para significar a sua
dependência dos recursos económicos existentes (cfr., neste sentido, J. J. Gomes
Canotilho, Direito Constitucional, 6.ª ed., Coimbra, Almedina, 1993, pp.
667-668, e J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976, Coimbra, Almedina, 1987, p. 201).
A produção de uma tal normação «secundária», concretizadora dos direitos sociais
(e agora, em particular, do direito à protecção da saúde), não é, porém, algo
que a Constituição deixe à livre iniciativa (à plena liberdade) do legislador:
representa para este um verdadeiro «dever» ou «obrigação» — obrigação que, por
isso, leva a doutrina portuguesa, generalizadamente, a qualificar as normas
constitucionais relativas aos direitos sociais como «normas impositivas de
legislação» (cfr. o citado Acórdão n.º 330/89 e ainda: Jorge Miranda, Manual de
Direito Constitucional, tomo iv, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1993, p.
345; J. J. Gomes Canotilho, ob. e loc. cits.; e J. C. Vieira de Andrade, ob.
cit., p. 206). No cumprimento desta obrigação constitucional, goza o
legislador, em princípio, de uma mais ou menos ampla «liberdade constitutiva»,
quer quanto às concretas soluções normativas a adoptar (eventualmente, quanto à
escolha, mesmo, do «modelo» organizatório-normativo a seguir), quer quanto ao
próprio quando e ritmo da legislação. Mas, quando a Constituição traçar
indicações mais ou menos claras e precisas, do sentido que aquelas soluções
deverão assumir, não poderá o legislador, ao intervir, deixar de respeitá-las e
acatá-las, sob pena de inconstitucionalidade (cfr. o mencionado Acórdão n.º
330/89).
5 — As normas das Bases IV, n.º 1, e XII, n.º 1, da Lei n.º 48/90, de 24 de
Agosto, e o artigo 64.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, da Constituição.
As normas da Lei de Bases da Saúde (Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto) assinaladas
em epígrafe dispõem como segue:
— Base IV, n.º 1: «O sistema de saúde visa a efectivação do direito à protecção
da saúde».
— Base XII, n.º 1: «O sistema de saúde é constituído pelo Serviço Nacional de
Saúde e por todas as entidades públicas que desenvolvam actividades de promoção,
prevenção e tratamento na área da saúde, bem como por todas as entidades
privadas e por todos os profissionais livres que acordem com o primeiro a
prestação de todas ou de algumas daquelas actividades».
Na óptica dos requerentes, as normas acabadas de transcrever infringem o artigo
64.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, da Constituição, na medida em que instituem um
Serviço Nacional de Saúde como um subsistema do sistema de saúde — constituído
pelo Serviço Nacional de Saúde e por todas as entidades públicas que desenvolvam
actividades de promoção, prevenção e tratamento na área de saúde, bem como por
todas as entidades privadas e por todos os profissionais livres que acordem com
o primeiro a prestação de todas ou de algumas daquelas actividades —, sistema
esse que, tal como está caracterizado no Capítulo ii (Bases XII a XXIII), não
tem as características que o artigo 64.º, n.º 2, alínea a), da Lei Fundamental
aponta ao Serviço Nacional de Saúde: não é nacional, nem universal, nem geral,
nem é tendencialmente gratuito. Referem ainda os subscritores do presente
pedido de declaração de inconstitucionalidade que as incumbências prioritárias
do Estado, previstas nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 do artigo 64.º da Lei
Fundamental, não podem ser prosseguidas sendo o Serviço Nacional de Saúde um
mero subsistema (nem sequer o principal) do sistema de saúde.
Entende, no entanto, o Tribunal que estas objecções à conformidade com a
Constituição das normas das Bases IV, n.º 1, e XII, n.º 1, da Lei n.º 48/90, de
24 de Agosto, não são procedentes e que estas normas não infringem os preceitos
constitucionais invocados.
5.1 — O artigo 64.º, n.º 2, alínea a), da Constituição impõe ao Estado a criação
de um serviço nacional de saúde como instrumento da realização do direito à
saúde. Nas palavras do Acórdão deste Tribunal n.º 39/84, o serviço nacional de
saúde é elemento integrante de um direito fundamental dos cidadãos e uma
obrigação do Estado — obrigação esta que resulta de uma verdadeira e própria
imposição constitucional quanto à criação daquele serviço.
Ainda segundo aquele aresto do Tribunal Constitucional, «o Serviço Nacional de
Saúde, cuja criação a Constituição determina, não é apenas um conjunto de
prestações e uma estrutura organizatória; não é apenas um conjunto mais ou menos
avulso de serviços (hospitais, etc.) —, é um serviço em sentido próprio. É, por
isso, uma estrutura a se, um complexo de serviços, articulado e integrado».
Embora da alínea a) do n.º 2 do artigo 64.º da Constituição não possa retirar-se
um modelo único de organização do Serviço Nacional de Saúde, cuja criação aí se
prescreve (cfr. o Acórdão n.º 330/89), certo é que a «liberdade» deferida ao
legislador para a sua conformação sofre dos limites estabelecidos nesse mesmo
preceito e que são a universalidade do Serviço Nacional de Saúde, a sua
generalidade e a sua gratuitidade tendencial, tendo em conta as condições
económicas e sociais dos cidadãos.
Como salientam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (cfr. Constituição da
República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1993, pp.
342-343), «as características do serviço nacional de saúde (SNS) contidas no
texto constitucional vinculam directamente as entidades (sobretudo legislativas
e administrativas) que têm o dever constitucional de criar este serviço. Ele
terá de ser universal, ou seja dirigido à generalidade dos cidadãos; geral, isto
é, deve abranger todos os serviços públicos de saúde e todos os domínios e
prestações médicos; tendencialmente gratuito, tendo as pessoas direito a este
serviço sem qualquer encargo ou através do pagamento de «taxas», as quais, de
qualquer forma, não podem impedir o acesso ao SNS em virtude de condições
económicas e sociais.
A universalidade confere a todos o direito de recorrer ao SNS, não impedindo
naturalmente a existência e o recurso aos serviços particulares de saúde. A
generalidade traduz a necessidade de integração de todos os serviços e
prestações de saúde. A gratuitidade tendencial significa rigorosamente que as
prestações de saúde não estão em geral sujeitas a qualquer retribuição ou
pagamento por parte de quem a elas recorra, pelo que as eventuais taxas (v. g.
as chamadas «taxas moderadoras») são constitucionalmente ilícitas se, pelo seu
montante ou por abrangerem as pessoas sem recursos, dificultarem o acesso a
esses serviços».
Para além das características referidas, o Serviço Nacional de Saúde deve ter
ainda, conforme determinação do n.º 4 do artigo 64.º da Constituição, gestão
descentralizada e participada.
Apontadas em traços breves, as características que a Constituição impõe ao
legislador na modelação do Serviço Nacional de Saúde, é ocasião de afirmar que a
Lei de Bases da Saúde instituiu um Serviço Nacional de Saúde, que satisfaz
plenamente os requisitos constitucionalmente estabelecidos.
Assim, a Base XII, n.º 2, da Lei n.º 48/90 prescreve que «o Serviço Nacional de
Saúde abrange todas as instituições e serviços oficiais prestadores de cuidados
de saúde dependentes do Ministério da Saúde e dispõe de estatuto próprio». O
Estatuto do Serviço Nacional de Saúde consta actualmente do anexo ao Decreto-Lei
n.º 11/93, de 15 de Janeiro. Segundo o artigo 1.º do Estatuto, o Serviço
Nacional de Saúde (SNS) «é um conjunto ordenado e hierarquizado de instituições
e de serviços oficiais prestadores de cuidados de saúde, funcionando sob a
superintendência ou a tutela do Ministro de Saúde». O objectivo do SNS é «a
efectivação, por parte do Estado, da responsabilidade que lhe cabe na protecção
de saúde individual e colectiva» (artigo 2.º). O SNS organiza-se em regiões de
saúde, que se dividem em sub-regiões de saúde, integradas por áreas de saúde
(artigo 3.º daquele Estatuto). Em cada região de saúde há uma administração
regional de saúde (ARS), a qual tem personalidade jurídica, autonomia
administrativa e financeira e património próprio (artigo 6.º). As regiões de
saúde (Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve — cfr. o artigo
4.º do Estatuto) regem-se por um regulamento próprio, cuja aprovação foi operada
pelo Decreto-Lei n.º 335/93, de 29 de Setembro.
Retornando à Lei n.º 48/90, importa realçar que as Bases XXIV a XXXVI contêm as
linhas gerais disciplinadoras do Serviço Nacional de Saúde, as quais abarcam as
seguintes matérias: características (Base XXIV), beneficiários (Base XXV),
organização do Serviço Nacional de Saúde (Base XXVI), administrações regionais
de saúde (Base XXVII), coordenador sub-regional de saúde (Base XXVIII),
comissões concelhias de saúde (Base XXIX), avaliação permanente (Base XXX),
estatuto dos profissionais de saúde do Serviço Nacional de Saúde (Base XXXI),
Médicos (Base XXXII), financiamento (Base XXXIII), taxas moderadoras (Base
XXXIV), benefícios (Base XXXV) e gestão dos hospitais e centros de saúde (Base
XXXVI). Do conjunto daquelas normas merecem destaque as respeitantes às
características do SNS, aos beneficiários deste, à sua organização, ao
financiamento e às taxas moderadoras.
No respeitante às características do SNS, a Base XXIV da Lei n.º 48/90 indica as
seguintes: ser universal quanto à população abrangida; prestar integralmente
cuidados globais ou garantir a sua prestação; ser tendencialmente gratuito para
os utentes, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos;
garantir a equidade no acesso dos utentes, com o objectivo de atenuar os efeitos
das desigualdades económicas, geográficas e quaisquer outras no acesso aos
cuidados; e ter organização regionalizada e gestão descentralizada e
participada. A Base XXV estabelece que são beneficiários do SNS todos os
cidadãos portugueses, os cidadãos nacionais de Estados-membros das Comunidades
Europeias nos termos das normas comunitárias aplicáveis e, bem assim, os
cidadãos estrangeiros residentes em Portugal, em condições de reciprocidade, e
os cidadãos apátridas residentes em Portugal.
De harmonia com o que estatui a Base XXVI, o SNS é tutelado pelo Ministério da
Saúde e é administrado a nível de cada região de saúde pelo conselho de
administração da respectiva administração regional de saúde, existindo ainda, em
cada sub-região, um coordenador sub-regional de saúde e em cada concelho uma
comissão concelhia de saúde. Quanto ao financiamento do SNS, é este assegurado
pelo Orçamento do Estado (Base XXXIII, n.º 1), podendo ainda os serviços e
estabelecimentos do SNS cobrar as receitas indicadas no n.º 2 daquela norma, a
inscrever nos seus orçamentos próprios, contando-se entre elas: o pagamento de
cuidados em quarto particular ou outra modalidade não prevista para a
generalidade dos utentes; o pagamento de cuidados por parte de terceiros
responsáveis, legal ou contratualmente, nomeadamente subsistemas de saúde ou
entidades seguradoras; o pagamento de cuidados prestados a não beneficiários do
SNS quando não há terceiros responsáveis; e o pagamento de taxas por serviços
prestados ou utilização de instalações ou equipamentos nos termos legalmente
previstos. Finalmente, permite a Base XXXIV que, com o objectivo de completar
as medidas reguladoras do uso dos serviços de saúde, sejam cobradas taxas
moderadoras, que constituem também receita do Serviço Nacional de Saúde, ficando
delas isentos os grupos populacionais sujeitos a maiores riscos e os
financeiramente mais desfavorecidos, nos termos da lei.
Ressalta, pois, dos preceitos da Lei de Bases da Saúde citados e, bem assim, da
legislação complementar indicada que o legislador criou um Serviço Nacional de
Saúde, como «um conjunto ordenado e hierarquizado de instituições e de serviços
oficiais prestadores de cuidados de saúde» de âmbito nacional, ao qual cabe a
responsabilidade da «efectivação, por parte do Estado, da responsabilidade que
lhe cabe na protecção da saúde individual e colectiva», de carácter universal,
porque dele pode beneficiar toda a população residente no território nacional, e
geral, na medida em que abrange todos os serviços públicos de saúde e presta
integralmente todos os cuidados de saúde (cuidados primários e diferenciados) ou
garante a sua prestação, estendendo-se, por isso, a todos os domínios da
protecção da saúde — dando, assim, satisfação ao preceituado no artigo 64.º, n.º
2, alínea a), e n.º 3, da Constituição. O Serviço Nacional de Saúde instituído
pela Lei n.º 48/90 preenche ainda os requisitos de gratuidade tendencial e de
gestão descentralizada e participada, como se verá, mais desenvolvidamente, um
pouco mais à frente.
5.2 — É certo que das normas das Bases IV, n.º 1, e XII, n.º 1, da Lei n.º 48/90
resulta que o conceito de «sistema de saúde» é mais amplo do que o de Serviço
Nacional de Saúde, já que engloba não apenas este, mas também todas as entidades
públicas que desenvolvam actividades de promoção, prevenção e tratamento na área
da saúde bem como todas as entidades privadas e todos os profissionais livres
que acordem com o primeiro a prestação de todas ou de algumas daquelas
actividades. Mas a concepção vertida naquelas normas do Serviço Nacional de
Saúde como uma estrutura de serviços públicos, que tem um papel predominante na
prestação de cuidados de saúde, mas que não esgota, nem absorve todas as
instituições públicas e privadas e profissionais que desenvolvam actividades de
promoção, prevenção e tratamento na área da saúde, e, desde logo, como uma
realidade que não é incompatível com a existência de um sector privado de
cuidados de saúde, não infringe o artigo 64.º, n.º 2, alínea a), da Lei
Fundamental. Com efeito, o texto constitucional não perfilhou um modelo de
monopólio do sector público de prestação de cuidados de saúde — tendencialmente
coincidente com o Serviço Nacional de Saúde —, antes admite a existência de um
sector privado de prestação de cuidados de saúde em relação de complementaridade
e até de concorrência com o sector público.
Como salientam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (cfr. ob. cit., p. 343), «a
Constituição não proíbe a medicina privada, mesmo a que assume carácter
empresarial, cumprindo, todavia, ao Estado discipliná-la, controlá-la e
articulá-la com o serviço nacional de saúde». Isto mesmo resulta expressamente
da alínea d) do n.º 3 do artigo 64.º da Constituição.
O diploma que regulamenta a disciplina e controlo das normas empresariais e
privadas de medicina, bem como a sua articulação com o Serviço Nacional de Saúde
é o Decreto-Lei n.º 13/93, de 15 de Janeiro. Nos termos deste diploma legal,
são unidades privadas de saúde «os estabelecimentos não integrados no Serviço
Nacional de Saúde que tenham por objecto a prestação de quaisquer serviços
médicos ou de enfermagem, com internamento ou sala de recobro» (artigo 1.º, n.º
2), estando o seu funcionamento dependente de obtenção de uma licença a conceder
por despacho do Ministro de Saúde (artigos 4.º a 9.º). As unidades privadas de
saúde — cujos requisitos relativos a instalações, organização e funcionamento
são definidos no Decreto Regulamentar n.º 63/94, de 2 de Novembro — «devem
colaborar com as autoridades sanitárias nas campanhas e programas de saúde
pública, nos termos que vierem a ser definidos por portaria do Ministro da
Saúde» (artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 13/93), sendo reguladas por
decreto-lei a sua colaboração e integração no sistema de saúde, designadamente
através do regime de medicina convencionada (artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei
n.º 13/93). Por seu lado, o artigo 13.º, n.º 1, do mesmo diploma legal
determina que a fiscalização das unidades privadas de saúde cabe à
Direcção-Geral de Saúde, devendo esta avaliar e promover a qualidade técnica,
assistencial e humana dos cuidados e tratamentos prestados.
Em face do exposto, deve concluir-se que as normas constantes das Bases IV, n.º
1, e XII, n.º 1, da Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto, não violam o artigo 64.º,
n.º 1, alínea a), e n.º 3, da Lei Fundamental, nem quaisquer outras normas ou
princípios constitucionais.
6 — As normas das Bases XXXIII, n.º 2, alínea d), XXXIV e XXXV, n.º 1, da Lei
n.º 48/90 e o artigo 64.º, n.º 2, alínea a), da Constituição.
A Base n.º XXXIII da Lei n.º 48/90, depois de referir no n.º 1 que o Serviço
Nacional de Saúde é financiado pelo Orçamento do Estado, estabelece no n.º 2,
alínea d):
Os serviços e estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde podem cobrar as
seguintes receitas, a inscrever nos seus orçamentos próprios:
a) ..............................................................
b) ..............................................................
c) ..............................................................
d) O pagamento de taxas por serviço prestados ou utilização de
instalações ou equipamentos nos termos legalmente previstos.
e) ..............................................................
f)
..............................................................
g) ..............................................................
A Base XXXIV, n.º 1, estatui que «com o objectivo de completar as medidas
reguladoras do uso dos serviços de saúde, podem ser cobradas taxas moderadoras
que constituem também receita do Serviço Nacional de Saúde». O n.º 2 da
mencionada Base preceitua que «das taxas referidas no número anterior são
isentos os grupos sujeitos a maiores riscos e os financeiramente mais
desfavorecidos, nos termos determinados na lei». Finalmente, a Base XXXV, n.º
1, prescreve que «a lei pode especificar as prestações garantidas aos
beneficiários do Serviço Nacional de Saúde ou excluir do objecto dessas
prestações cuidados não justificados pelo estado de saúde».
Na opinião dos requerentes, as normas transcritas da Lei n.º 48/90, de 24 de
Agosto, infringem a gratuitidade tendencial do Serviço Nacional de Saúde, tendo
em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, prescrita na alínea a)
do n.º 2 do artigo 64.º da Lei Fundamental, já que elas estabelecem a regra do
pagamento — e não a da gratuitidade — das prestações dos cuidados de saúde.
Mas não assiste também neste ponto razão aos deputados requerentes. Vejamos
porquê.
6.1 — Antes da Revisão Constitucional de 1989, o artigo 64.º, n.º 2, da
Constituição impunha ao legislador ordinário a criação de um Serviço Nacional de
Saúde «universal, geral e gratuito».
Analisando o sentido e o alcance do conceito de «gratuitidade» do Serviço
Nacional de Saúde, referido naquele dispositivo constitucional, na redacção
anterior à Lei Constitucional n.º 1/89, salientou o Tribunal Constitucional, no
Acórdão n.º 330/89, que aquele conceito não podia ser entendido de forma
absoluta, no seu sentido puramente etimológico, o qual excluía, de facto,
radicalmente, a possibilidade de ser exigido aos utentes do Serviço Nacional de
Saúde um qualquer pagamento.
Nos termos daquele aresto do Tribunal Constitucional, o conceito de
«gratuitidade», assumido pela Constituição, ganha uma conotação «normativa»
(lato sensu), pelo que é possível entendê-lo de uma forma menos rígida, «como
visando, essencial e fundamentalmente, garantir aos mesmos utentes que não terão
eles de suportar individualmente os custos daquelas prestações, pelo que, isso
sim, não lhes há-de poder ser exigida por cada uma de tais prestações uma
contraprestação destinada directamente a transferir (ainda que só parcialmente)
para eles o custo da prestação em causa — uma contraprestação, isto é, que tenha
como objectivo o «pagamento» (o pagamento do «preço») do serviço prestado — ou
então tal que (designadamente por força do seu montante) venha a ter,
praticamente, um efeito equivalente (e subverta, desse modo, o que poderá
qualificar-se como conteúdo essencial mínimo de qualquer ideia de
«gratuitidade»).
Ainda segundo o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 330/89, o conceito
constitucional de «gratuitidade» do Serviço Nacional de Saúde comporta, afinal,
um certo halo de indeterminação, no qual cabe, designadamente, a exigência de
taxas «moderadoras» no acesso a tal serviço, dispondo o legislador de
legitimidade para incluir entre as bases do Serviço Nacional de Saúde a
exigibilidade de taxas moderadoras.
Ponto é que o legislador, ao estabelecer tais taxas, no âmbito da sua «liberdade
constitutiva» para preencher aquele conceito, não subverta o conteúdo mínimo da
gratuitidade, traduzido no direito de cada um de «acesso ao serviço nacional de
saúde sem que tenha de pagar o preço da sua própria utilização», nem ponha em
causa os princípios da «universalidade» e «generalidade» constitucionalmente
fixados para o Serviço Nacional de Saúde.
Assim sendo, o que se proíbe ao legislador é a fixação de taxas que, seja pelo
seu montante demasiadamente elevado e excessivo, seja porque na sua fixação não
se atendeu ao particularismo de certas situações (por exemplo, carências
económicas ou de outra ordem), constituam impedimento ou restrição do acesso ao
Serviço Nacional de Saúde por parte de certos cidadãos ou grupos de cidadãos.
6.2 — A partir da Lei Constitucional n.º 1/89, o Serviço Nacional de Saúde
deixou de ser «gratuito», para passar a ser «tendencialmente gratuito, tendo em
conta as condições económicas e sociais dos cidadãos».
A alteração ao texto do n.º 2 do artigo 64.º da Constituição foi acordada entre
o Partido Social Democrata (PSD) e o Partido Socialista (PS). Do debate travado
na Comissão Eventual de Revisão Constitucional e no Plenário da Assembleia da
República ressalta a ideia de que a expressão «tendencialmente gratuito» não
pode ser entendida no sentido de inverter a regra geral da «gratuitidade» do
Serviço Nacional de Saúde, mas apenas como comportando excepções, na medida em
que seja necessário racionalizar a procura de cuidados de saúde, através da
aplicação de taxas moderadoras. Por sua vez, a locução «tendo em conta as
condições económicas e sociais dos cidadãos» significa que a graduação da
gratuitidade tem de tomar em consideração a situação económica e social dos
cidadãos, devendo a gratuitidade integral ser garantida aos grupos sociais mais
carenciados (cfr. «Acta n.º 21 da Comissão Eventual para a Revisão
Constitucional», in Diário da Assembleia da República, II Série, n.º 23-RC, de 7
de Julho de 1988, pp. 664-680, e Diário da Assembleia da República, I Série, n.º
83, de 19 de Maio de 1989, p. 4061).
Analisando o significado da expressão gratuitidade tendencial, contida na alínea
a) do n.º 2 do artigo 64.º da Constituição, J. J. Gomes Canotilho e Vital
Moreira salientam que ela «significa rigorosamente que as prestações de saúde
não estão em geral sujeitas a qualquer retribuição ou pagamento por parte de
quem a elas recorra, pelo que as eventuais taxas (v. g., as chamadas «taxas
moderadoras») são constitucionalmente ilícitas se, pelo seu montante ou por
abrangerem as pessoas sem recursos, dificultarem o acesso a esses serviços»
(cfr. ob. cit., p. 343). Seja qual for o verdadeiro sentido da modificação
operada pela Lei Constitucional n.º 1/89, através da introdução da expressão
«gratuitidade tendencial, tendo em conta as condições económicas e sociais dos
cidadãos», a mesma teve, pelo menos, o efeito de «flexibilizar» a fórmula
constitucional anterior (a da «gratuitidade» tout court), atribuindo, assim, ao
legislador ordinário uma maior discricionaridade na definição dos contornos da
gratuitidade do Serviço Nacional de Saúde. O artigo 64.º, n.º 2, alínea a), da
Lei Fundamental não veda, pois, ao legislador a instituição de «taxas
moderadoras ou outras», desde que estas não signifiquem a retribuição de um
«preço» pelos serviços prestados, nem dificultem o acesso dos cidadãos mais
carenciados aos cuidados de saúde.
6.3 — A Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto, determina, na Base XXXIII, n.º 1, que o
Serviço Nacional de Saúde é basicamente financiado pelo Orçamento do Estado,
dando, deste modo, cumprimento à prescrição constitucional da sua gratuitidade
tendencial. Daí que as «taxas moderadoras», previstas na norma da Base XXXIV
como receita do Serviço Nacional de Saúde, não visem pagar os serviços
prestados, mas tão-só exercer uma «função meramente desmotivadora, em termos
psicológicos, do abuso injustificado do consumo de cuidados (médicos)» cfr.
Diário da Assembleia da República, I Série, n.º 47, de 23 de Fevereiro de 1990,
p. 1644). De facto, de acordo com a norma n.º 1 da Base XXXIV da Lei n.º 48/90,
«as taxas moderadoras» podem ser cobradas «como objectivo de completar as
medidas reguladoras do uso dos serviços de saúde», estando, de harmonia com o
n.º 2 da mesma Base, delas, isentos «os grupos populacionais sujeitos a maiores
riscos e os financeiramente mais desfavorecidos, nos termos da lei».
A disciplina das «taxas moderadoras» consta actualmente do Decreto-Lei n.º
54/92, de 11 de Abril, preceituando o n.º 1 do artigo que as taxas moderadoras —
as quais são aprovadas por portaria do Ministro da Saúde, sendo revistas e
actualizadas anualmente, em função do índice da inflação, não podendo nunca
exceder um terço dos valores constantes da tabela de preços do Serviço Nacional
de Saúde (n.os 2 e 3 do artigo 1.º) —, são pagas pelos utentes do Serviço
Nacional de Saúde relativamente ao acesso a meios complementares de diagnóstico
e terapêutica por exame em regime de ambulatório, bem como pela prestação de
cuidados de saúde nos serviços de urgência hospitalares e nos serviços de
urgência dos centros de saúde, e ainda nas consultas nos hospitais, nos centros
de saúde e em outros serviços de saúde públicos ou privados convencionados (cfr.
a Portaria n.º 338/92, de 11 de Abril, que fixou o montante actualmente em vigor
das «taxas moderadoras»). Por seu lado, o artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 54/92
contém um alargado elenco de isenções, justificadas por razões de ordem médica
ou económica, de modo a não restringir o acesso dos cidadãos mais carenciados
aos cuidados de saúde» (cfr. o preâmbulo daquele diploma legal) — sendo de
referir que a titularidade do direito de isenção do pagamento das taxas
moderadoras e respectivo limite temporal são assinalados no cartão de
identificação do utente do Serviço Nacional de Saúde (artigo 8.º do Decreto-Lei
n.º 198/95, de 29 de Julho).
Tendo as taxas moderadoras, criadas pela Base XXXIV da Lei n.º 48/90, como
finalidade apenas a racionalização da utilização do Serviço Nacional de Saúde e
não o pagamento do «preço» dos serviços de saúde prestados, nem resultando delas
qualquer impedimento ou restrição do acesso dos cidadãos economicamente mais
desfavorecidos aos cuidados de saúde, tem de concluir-se que aquela norma não
ofende a alínea a) do n.º 2 do artigo 64.º da Constituição. Ela não é, por
isso, inconstitucional.
6.4 — Além das «taxas moderadoras», previstas na Base XXXIV, refere a norma da
alínea d) do n.º 2 da Base XXXIII outra espécie de taxas, que podem ser cobradas
pelos estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde «por serviços prestados ou
utilização de instalações ou equipamentos nos termos legalmente previstos».
Sustenta-se no pedido que «o facto de se fixarem dois tipos de taxas, umas
moderadoras e outras estranhas a este objectivo e finalidade, consubstancia, por
si só, uma inconstitucionalidade material».
Mas a norma da alínea d) do n.º 2 da Base XXXIII da Lei n.º 48/90 também não
infringe o artigo 64.º, n.º 2, alínea a), da Constituição.
A razão é simples: as taxas referidas naquele preceito da Lei de Bases da Saúde
não são pagas directamente pelos utentes beneficiários do Serviço Nacional de
Saúde. De facto, da discussão na generalidade da Proposta de lei n.º 127/V e
dos Projectos de lei n.os 481/V (PS), 484/V (PRD), 485/V (PCP) e 486/V (CDS), de
que veio a emergir a Lei de Bases da Saúde, ressalta que as únicas taxas a pagar
directamente pelos beneficiários do Serviço Nacional de Saúde são as «taxas
moderadoras».
As taxas a que alude a alínea d) do n.º 2 da Base XXXIII da Lei n.º 48/90 foram
pensadas como retribuição pelos serviços prestados ou pela utilização de
instalações ou equipamentos de estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde por
parte de estabelecimentos privados ou profissionais liberais que tenham
celebrado contratos com o Ministério da Saúde ou com as administrações regionais
de saúde a prestação de cuidados de saúde e que fazem parte do sistema de saúde,
nos termos do n.º 1 da Base XII da Lei n.º 48/90. Trata-se, pois, de taxas
pagas directamente pelo sector privado de prestação de cuidados de saúde — e
indirectamente pelos respectivos utilizadores —, em consequência da obtenção de
serviços ou da utilização de instalações ou equipamentos pertencentes ao Serviço
Nacional de Saúde [cfr., por exemplo, os n.os 11.º a 13.º da Portaria n.º 122/94
(2.ª Série), publicada no Diário da República, II Série, n.º 200, de 30 de
Agosto de 1994, que criou o Centro de Responsabilidade de Medicina Nuclear dos
Hospitais da Universidade de Coimbra (CRMN), bem como os artigos 12.º a 14.º do
Regulamento Interno deste Centro, aprovado por Despacho do Ministro da Saúde,
publicado no mesmo Jornal Oficial, que disciplinam o exercício de medicina
privada naquele organismo e os encargos correspondentes a cobrar pelos Hospitais
da Universidade de Coimbra (HUC) e, bem assim, os n.os 11.º a 14.º da Portaria
n.º 123/94 (2.ª Série), publicada no mencionado Diário da República, que criou
nos HUC o Centro de Responsabilidade de Oftalmologia (CRO), assim como os
artigos 11.º a 13.º do Regulamento Interno deste Centro, publicado no citado
Jornal Oficial, que regulam o exercício da clínica privada no CRO e as receitas
que daí derivam para os HUC].
6.5 — A norma do n.º 1 da Base XXXV da Lei n.º 48/90, não viola, de igual modo,
qualquer norma ou princípio constitucional. Com efeito, ela limita-se a
habilitar o governo-legislador, através de um decreto-lei de desenvolvimento, a
«especificar as prestações garantidas aos beneficiários do serviço nacional de
saúde» ou a «excluir do objecto dessas prestações cuidados não justificados pelo
estado de saúde». Com base nesta norma, poderá o legislador determinar, por
exemplo, que o Serviço Nacional de Saúde não garante a realização de
intervenções cirúrgicas com objectivo exclusivamente estético, isto é, sem
reflexos no estado de saúde, ou outras prestações não exigidas ou justificadas
pelo estado de saúde do utente.
Com aquela dupla habilitação dirigida ao governo-legislador, a norma do n.º 1 da
Base XXXV da Lei n.º 48/90 não infringe, por si mesma, os princípios da
generalidade da prestação integrada de cuidados globais de saúde e da
gratuitidade tendencial do Serviço Nacional de Saúde, não violando, por isso, a
alínea a) do n.º 2 do artigo 64.º da Lei Fundamental.
7 — A norma do n.º 1 da Base XXVII da Lei n.º 48/90 em confronto com o artigo
64.º, n.º 4, da Constituição.
O conteúdo da norma do n.º 1 da Base XXVII é o seguinte:
As administrações regionais de saúde são responsáveis pela saúde das populações
da respectiva área geográfica, coordenam a prestação de cuidados de saúde de
todos os níveis e adequam os recursos disponíveis às necessidades, segundo a
política superiormente definida e de acordo com as normas e directivas emitidas
pelo Ministério da Saúde.
Nos termos do pedido dirigido a este Tribunal, a norma transcrita viola o n.º 4
do artigo 64.º da Constituição, que determina que «o Serviço Nacional de Saúde
tem gestão descentralizada e participada». Ofende, em primeiro lugar, o
princípio da «gestão descentralizada» do Serviço Nacional de Saúde, já que, para
além de não definir qual o grau de autonomia das administrações regionais de
saúde, que permita caracterizá-las como órgãos de gestão descentralizada —
limita-se, de facto, a Lei de Bases a enunciar na alínea e) da Base XXIV as
características da organização regionalizada e gestão descentralizada do Serviço
Nacional de Saúde —, parece, ao contrário, apontar para um poder de direcção do
Ministério da Saúde, que é típico do superior hierárquico na administração
directa do Estado. Infringe, em segundo lugar, o princípio da «gestão
participada», dado que, para lá de uma mera referência a este princípio na
alínea e) da Base XXIV, não se encontra naquela norma, nem em qualquer outro
preceito da Lei de Bases, nenhuma referência aos órgãos onde se efectuará a
participação dos cidadãos e ao modo como são designados os gestores dos órgãos
do Serviço Nacional de Saúde.
Será assim? Vejamos então.
7.1 — O n.º 4 do artigo 64.º da Lei Fundamental prescreve que o Serviço Nacional
de Saúde deve ter gestão descentralizada. Antes de se averiguar se a norma da
Lei de Bases da Saúde identificada é ou não compatível com o princípio da
«gestão descentralizada», importa analisar, ainda que em traços breves, o
significado daquele princípio.
O termo «descentralização» designa, em termos gerais, a transferência de
poderes, atribuições e competências do Estado para outros entes públicos. A
«descentralização» em sentido estrito significa descentralização territorial ou
geográfica, isto é, a transferência de funções do Estado para entes públicos
territoriais. Esta modalidade de «descentralização» surgiu, nas palavras de A.
R. Queiró, como uma afirmação da autonomia ou da fundamental distinção dos
interesses locais ante os interesses gerais, e do consequente direito
(subjectivo público) dos componentes das comunidades locais, perante o Estado, a
geri-los ou administrá-los de forma autónoma (autogoverno), self-government,
(Selbstverwaltung), sendo, além disso, uma «expressão de democracia no âmbito
das comunidades locais» (cfr. «Descentralização», in Dicionário Jurídico da
Administração Pública, vol. iii, Lisboa, 1988, p. 570).
Mas num sentido menos rigoroso, considera-se também «descentralização» a criação
de entidades públicas, as quais desenvolvem, com personalidade jurídica própria
e autonomia administrativa e financeira, uma actividade administrativa destinada
à realização de fins do Estado (cfr. Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito
Administrativo, vol. i, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 1994, pp. 331-342, e J. M.
Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo, vol. i, Lisboa, Danúbio,
1982, pp. 127-128). Estamos perante o fenómeno a que se chama «descentralização
por serviços», «descentralização material», «descentralização objectiva»,
«descentralização funcional», «descentralização técnica», «descentralização
institucional», «descentralização especial» ou ainda «devolução de poderes».
Todas estas expressões são utilizadas para significar «que o legislador pode
destacar da organização administrativa do Estado certos serviços especiais,
conferindo-lhes individualidade jurídica, competência própria para a tomada de
deliberações definitivas, bem como atribuindo-lhes ou reconhecendo-lhes um
património juridicamente autónomo em relação ao património geral do Estado»
(cfr. A. R. Queiró, ob. cit., p. 572).
A descentralização territorial constitui a administração autónoma de carácter
territorial (existem ainda as de carácter corporativo e institucional), em
relação à qual o Governo exerce apenas um controlo de tutela. A
descentralização técnica ou por serviços integra a denominada administração
indirecta ou mediata do Estado, a qual está sujeita ao poder de superintendência
do Governo [cfr. o artigo 202.º, alínea d), da Constituição]. Ambas se
distinguem da administração directa do Estado, a qual abarca todos os órgãos e
serviços integrados na pessoa colectiva Estado, hierarquicamente dependentes do
Governo e sujeitos ao poder de direcção deste [cfr. o artigo 202.º, alínea d),
da Lei Fundamental], quer se localizem na capital do país e estendam a sua
competência a todo o território nacional (administração concentrada do Estado),
quer se situem em vários pontos do território nacional e tenham a sua
competência restringida a determinada circunscrição (administração
desconcentrada do Estado).
Aqui chegados, estamos em condições de afirmar que a gestão «descentralizada»
que o n.º 4 do artigo 64.º da Constituição impõe ao Serviço Nacional de Saúde só
pode significar que este não deve fazer parte da administração directa do Estado
— não sendo, por isso, constituído por órgãos e serviços integrados na pessoa
colectiva Estado, hierarquicamente dependentes do Governo e sujeitos ao poder de
direcção deste —, mas antes da administração indirecta do Estado, constituindo
uma ou várias pessoas colectivas distintas deste, e sujeito ao poder de
superintendência do Governo. Por outras palavras, o Serviço Nacional de Saúde
deve ser uma manifestação da «descentralização técnica ou por serviços».
7.2 — Analisando as normas da Lei de Bases da Saúde respeitantes à organização e
gestão do Serviço Nacional de Saúde, verifica-se que este está em sintonia com o
modelo de organização e gestão traçado no n.º 4 do artigo 64.º da Constituição.
Assim, em primeiro lugar, na alínea e) da Base XXIV da Lei n.º 48/90, refere-se
expressamente que o Serviço Nacional de Saúde tem organização regionalizada
(cfr. a Base XVIII) e gestão descentralizada. Em segundo lugar, a norma do n.º
1 da Base XXVI determina que «o Serviço Nacional de Saúde é tutelado pelo
Ministro da Saúde e é administrado a nível de cada região de saúde pelo conselho
de administração da respectiva administração regional de saúde», donde resulta
que aquele serviço, constituído por várias administrações regionais de saúde,
não integra a administração directa do Estado, não estando, por isso,
subordinado hierarquicamente ao Governo. Em terceiro lugar, a norma do n.º 1 da
Base XXVII — a norma aqui directamente questionada —, ao estatuir que «as
administrações regionais de saúde são responsáveis pela saúde das populações da
respectiva área geográfica, coordenam a prestação de cuidados de saúde de todos
os níveis e adequam os recursos disponíveis às necessidades, segundo a política
superiormente definida e de acordo com as normas e directivas emitidas pelo
Ministério da Saúde», aponta claramente para a personalização jurídica das
administrações regionais de Saúde, as quais são dirigidas por um conselho de
administração (n.º 2 da Base XXVII), dotado de amplos poderes de gestão (n.º 3
da Base XXVII). A referência que na norma do n.º 1 da Base XXVII se faz à
subordinação das administrações regionais de saúde «às normas e directivas
emitidas pelo Ministério da Saúde» é elucidativa da pertinência das
administrações regionais de saúde à administração indirecta do Estado, em
relação às quais o Governo exerce tão-só um poder de superintendência [artigo
202.º, alínea d), da Constituição], traduzido na possibilidade de emanação
apenas de directivas genéricas, em contraste com a administração directa do
Estado, em relação a cujos órgãos e serviços o governo pode ditar ordens
concretas (cfr. J. Baptista Machado, Participação e Descentralização,
Democratização e Neutralidade na Constituição de 76, Coimbra, Almedina, 1982,
pp. 12-13). Esta mesma ideia de que o Serviço Nacional de Saúde não está
subordinado ao poder hierárquico do Governo, com todo o cortejo de poderes de
controlo que lhes estão associados, é ainda claramente assumida no n.º 4 da Base
VI da Lei n.º 48/90, onde se refere que os serviços centrais do Ministério da
Saúde exercem, em relação ao Serviço Nacional de Saúde, apenas funções de
regulamentação, orientação, planeamento, avaliação e inspecção [cfr. ainda o
artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/93, de 15 de Janeiro (Lei Orgânica do
Ministério da Saúde) e o artigo 1.º do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde,
onde se refere que o Serviço Nacional de Saúde funciona «sob a superintendência
ou a tutela do Ministro da Saúde»].
Acrescente-se que as características da «organização regionalizada» e da «gestão
descentralizada» do Serviço Nacional de Saúde, delineadas na Lei n.º 48/90 [cfr.
as normas das Bases XVIII, XXIV, alínea e), XXVI e XXVII], são retomadas e
desenvolvidas no Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de Janeiro, e, bem assim, no Regulamento das
Administrações Regionais de Saúde, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 335/93, de 29
de Setembro. Assim, de acordo com o primeiro, o Serviço Nacional de Saúde
organiza-se em regiões de saúde (Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo
e Algarve), que se dividem em sub-regiões de saúde (correspondentes às áreas dos
distritos do continente), integradas por áreas de saúde (coincidentes com as
áreas dos municípios) (cfr. os artigos 3.º, 4.º e 5.º). Ainda segundo o
referido Estatuto, em cada região de saúde há uma administração regional de
saúde, dotada de personalidade jurídica, autonomia administrativa e financeira e
património próprio, que exerce funções de planeamento, distribuição de recursos,
orientação e coordenação de actividades, gestão de recursos humanos, apoio
técnico e administrativo e ainda de avaliação do funcionamento das instituições
e serviços prestadores de cuidados de saúde (cfr. o artigo 6.º, n.os 1, 2 e 3).
E, nos termos dos artigos 1.º, n.º 1, e 4.º do citado Regulamento, as
administrações regionais de saúde são pessoas colectivas públicas, dotadas de
autonomia administrativa e financeira e de património próprio, sob a tutela do
Ministro da Saúde, tendo como órgãos de administração os conselhos de
administração, os presidentes dos conselhos de administração e os coordenadores
sub-regionais e como órgãos de consulta os conselhos regionais de saúde e as
comissões concelhias de saúde.
Verifica-se, assim, que o Serviço Nacional de Saúde é constituído por um
conjunto de pessoas colectivas públicas distintas do Estado — as administrações
regionais de saúde —, dotadas de autonomia administrativa e financeira e de
património próprio, que têm como atribuições a prestação de cuidados de saúde a
nível da área de cada região de saúde.
Deve, pois, concluir-se que a norma do n.º 1 da Base XXVII da Lei n.º 48/90, de
24 de Agosto, não infringe o princípio da «gestão descentralizada» do Serviço
Nacional de Saúde, plasmado no n.º 4 do artigo 64.º da Constituição.
7.3 — O n.º 4 do artigo 64.º da Lei Fundamental exige também que o Serviço
Nacional de Saúde tenha uma «gestão participada». Este princípio apresenta-se
como uma tradução, no domínio do Serviço Nacional de Saúde, do princípio geral,
constante do n.º 1 do artigo 267.º da Constituição, da participação dos
interessados na gestão efectiva dos serviços administrativos, o qual, por sua
vez, é uma densificação do princípio constitucional da democracia participativa,
positivado nos artigos 2.º e 9.º, alínea c), da Constituição (cfr. J. J. Gomes
Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 927).
Aquele preceito constitucional não especifica quais as formas e os graus de
intensidade ou de profundidade da participação dos particulares na gestão do
Serviço Nacional de Saúde (sobre as formas e os níveis de intensidade da
participação do particular nos domínios da organização e actividade
administrativa, cfr. F. Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da
Igualdade, Coimbra, Almedina, 1990, pp. 250-259). O princípio da «gestão
participada» do Serviço Nacional de Saúde, condensado no n.º 4 do artigo 64.º da
Lei Fundamental, tem, no entanto, um conteúdo mínimo preceptivo, que é o de
impor a criação, naquele serviço, de órgãos, nos quais tenham assento
representantes dos utentes do Serviço Nacional de Saúde e dos profissionais de
saúde, para poderem ser consultados acerca das orientações a seguir ou mesmo
para tomarem parte nas decisões a adoptar. Noutros termos, o artigo 64.º, n.º
4, da Constituição determina que o Serviço Nacional de Saúde seja gerido, pelo
menos, de acordo com o mecanismo da representação de interesses, através da
presença, em órgãos consultivos, de representantes dos principais interessados
no funcionamento daquele serviço.
Ora, a Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto, ao consagrar as opções
político-legislativas fundamentais e ao definir a disciplina básica do regime
jurídico do sistema de saúde, não deixou de incluir algumas normas consagradoras
da participação dos cidadãos, dando, assim, cumprimento à exigência
constitucional da «gestão participada» do Serviço Nacional de Saúde. Assim, em
primeiro lugar, a Base II, n.º 1, alínea g), dispõe que a política de saúde tem
âmbito nacional e obedece, entre outras, à directriz da promoção da
«participação dos indivíduos e da comunidade organizada na definição da política
de saúde e planeamento e no controlo do funcionamento dos serviços». Em segundo
lugar, a Base VII institui o Conselho Nacional de Saúde, que representa os
interessados no funcionamento das entidades prestadoras de cuidados de saúde e é
um órgão de consulta do Governo, incluindo representantes dos utentes (eleitos
pela Assembleia da República), nomeadamente dos subsistemas de saúde, dos seus
trabalhadores, dos departamentos governamentais com áreas de actuação conexas e
de outras entidades (cfr. também o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 10/93, de 15 de
Janeiro: Lei Orgânica do Ministério da Saúde). Em terceiro lugar, a alínea i)
do n.º 1 da Base XIV estabelece que os utentes têm direito a «constituir
entidades que colaborem com o sistema de saúde, nomeadamente sob a forma de
associações para a promoção e defesa da saúde ou de grupos de amigos de
estabelecimentos de saúde». Em quarto lugar, a alínea e) da Base XXIV proclama
que o Serviço Nacional de Saúde caracteriza-se por ter «gestão participada».
Finalmente, a Base XXIX preceitua que «as comissões concelhias de saúde são
órgãos consultivos das administrações regionais de saúde em relação a cada
concelho da respectiva área de actuação».
Desenvolvendo o regime jurídico constante da Lei de Bases da Saúde, o Estatuto
do Serviço Nacional de Saúde (Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de Janeiro) e o
Regulamento das Administrações Regionais de Saúde (Decreto-Lei n.º 335/93, de 29
de Setembro) disciplinaram os «conselhos regionais de saúde» e «as comissões
concelhias de saúde». Os primeiros são órgãos consultivos dos conselhos de
administração das respectivas administrações regionais de saúde,
competindo-lhes, em geral, pronunciar-se sobre os planos regionais de
actividades, orçamentos e relatórios anuais apresentados pelo respectivo
conselho de administração e sobre outras matérias em relação às quais lhes seja
solicitado parecer, bem como propor as medidas que julguem adequadas à melhoria
dos níveis de saúde da região. São compostos pelos coordenadores sub-regionais
de saúde, um representante de cada um dos hospitais integrados no Serviço
Nacional de Saúde, um representante de cada centro de saúde, um representante
dos municípios situados na área correspondente à da respectiva administração
regional de saúde, designado pela Associação Nacional dos Municípios
Portugueses, dois representantes das entidades privadas integradas no sistema de
saúde e dois representantes dos profissionais em regime liberal integrados no
sistema de saúde (cfr. os artigos 10.º do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde
e 11.º do Regulamento das Administrações Regionais de Saúde).
As segundas — as «comissões concelhias de saúde» — são órgãos consultivos dos
conselhos de administração das administrações regionais de saúde em relação a
cada área de saúde, tendo como competência dar parecer sobre todas as questões
que lhes forem solicitadas pelo conselho de administração da respectiva
administração regional de saúde relativas à sua área de saúde. A sua composição
é a seguinte: os directores dos hospitais, quando os houver, os directores dos
centros de saúde, os dirigentes máximos dos serviços oficiais de saúde com sede
no concelho e não integrados em hospitais ou centros de saúde, um representante
do município, um representante da misericórdia ou, não a havendo, de outra
instituição particular de solidariedade social, a designar pela União das
Instituições Particulares de Solidariedade Social, e um representante dos
interesses dos utentes, eleito pela assembleia municipal (cfr. os artigos 11.º
do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde e 12.º do Regulamento das
Administrações Regionais de Saúde).
Há, pois, que concluir que a Lei de Bases da Saúde, bem como os dois diplomas
legais de desenvolvimento que aprovaram o Estatuto do Serviço Nacional de Saúde
e o Regulamento das Administrações Regionais de Saúde contêm uma tradução
suficiente do princípio da «gestão participada» do Serviço Nacional de Saúde,
inserto no n.º 4 do artigo 64.º da Lei Fundamental. A norma do n.º 1 da Base
XXVII da Lei n.º 48/90 não é, assim, inconstitucional.
III — Decisão
8 — Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide
não declarar a inconstitucionalidade das normas constantes das Bases IV, n.º 1,
XII, n.º 1, XXXIII, n.º 2, alínea d), XXXIV, XXXV, n.º 1, e XXVII, n.º 1, da Lei
n.º 48/90, de 24 de Agosto (Lei de Bases da Saúde).
Lisboa, 14 de Dezembro de 1995. — Fernando Alves Correia — Antero Alves Monteiro
Diniz — Messias Bento — Maria Fernanda Palma — José de Sousa e Brito — Maria da
Assunção Esteves — Alberto Tavares da Costa — Vítor Nunes de Almeida — Bravo
Serra — Armindo Ribeiro Mendes — Luís Nunes de Almeida — Guilherme da Fonseca
[vencido em parte, quanto às normas das Bases XXXIII, n.º 2, alínea d), e XXXIV]
— José Manuel Cardoso da Costa.
DECLARAÇÃO DE VOTO
1 — Concordando, em geral, com a tese do acórdão, apontando no sentido da
constitucionalidade das normas questionadas da Lei de Bases da Saúde (Lei n.º
48/90, de 24 de Agosto), em especial porque no aresto se destaca o
desenvolvimento que a elas foi dado em legislação complementar — e por essa via,
a dos diplomas legais de desenvolvimento identificados ao longo do acórdão, as
dúvidas que poderiam suscitar-se ficaram mais esbatidas —, discordei no entanto,
da solução quanto às normas das Bases XXXIII, n.º 2, alínea d), e XXXIV,
estatuíndo sobre o pagamento ou a cobrança de taxas («o pagamento de taxas por
serviços prestados ou utilização de instalações ou equipamentos» e a cobrança de
«taxas moderadoras»).
2 — São estas as razões que, em pura síntese, poderei adiantar:
A. A aferição da conformidade daquelas normas com normas e princípios
constitucionais tem de fazer-se, é certo, à luz do texto constitucional revisto
em 1989, tendo como parâmetro o artigo 64.º, n.º 2, alínea a), desse texto, com
a substituição do «gratuito» por «tendencialmente gratuito».
Todavia, tal substituição não tem o alcance que o acórdão pretende extrair,
quase como se fosse uma viragem de 180 graus.
É o próprio acórdão a registar a «ideia de que a expressão ‘tendencialmente
gratuito’ não pode ser entendida no sentido de inverter a regra geral da
‘gratuitidade’ do Serviço Nacional de Saúde, mas apenas como comportando
excepções», mas é exactamente essa inversão que se obtém com a previsão de
taxas, sejam elas quais forem, abrindo logo caminho aos aplicadores e aos
utilizadores da Lei para fixarem os seus montantes, sem preocupação alguma com
«as condições económicas e sociais dos cidadãos», talqualmente consta da
directiva constitucional do n.º 2, alínea a), do artigo 64.º O direito
subjectivo público de obtenção de cuidados de saúde, de acordo com a incumbência
constitucional de promover a gratuitidade do sistema nacional de saúde, não se
compadece com uma política de sinal contrário, proibida pela Constituição (cfr.
as considerações do Acórdão deste Tribunal Constitucional n.º 92/85, publicado
no Diário da República, n.º 168, de 24 de Julho de 1985, a respeito dos direitos
económicos, sociais e culturais). O carácter «tendencialmente gratuito» proíbe
desde logo outra política que não seja a da gratuitidade possível do sistema de
saúde: a gratuitidade é obrigatoriamente o fim para que tende essa política
(citando Böckenförde: «‘a efectiva vinculação jurídica, que se alcança com tais
incumbências constitucionais’ implica nomeadamente que o ‘objectivo ou programa
como tal é retirado à livre escolha do objectivo ou do fim pelos órgãos
políticos, que noutros casos existe, e é-lhes prefixado como obrigatório’» —
«Die sozialen Grundrechte im Verfassungsgefüge», 1975, do mesmo, Staat,
Verfassung, Demokratie, 1991, p. 146).
Aceitar, por via legal, o pagamento ou a cobrança de taxas, sejam elas quais
forem, é abrir caminho a uma política de saúde de sinal contrário, proibida pela
Constituição, quando assegura um Serviço Nacional de Saúde «tendencialmente
gratuito», pois passa antes a ser esse serviço tendencialmente oneroso, pago
pelos utentes, ao contrário do que a própria Lei n.º 48/90 dispõe quando
assegura o financiamento do Serviço Nacional de Saúde pelo Orçamento do Estado
(n.º 1 da Base XXXIII). Mais: é abrir caminho para exigir aos utentes por cada
uma das prestações de cuidados de saúde uma contraprestação destinada
directamente a transferir para eles o respectivo custo, pagando, assim, com as
taxas, o preço do serviço prestado, total ou parcialmente.
Daqui resulta uma subversão do que poderá qualificar-se como conteúdo essencial
mínimo de qualquer ideia de gratuitidade (cfr. o Acórdão n.º 148/94, publicado
no Diário da República, I Série-A, n.º 102, de 3 de Maio de 1994, a propósito de
normas relativas ao sistema de propinas, e, nomeadamente, alguns votos de
vencido).
Na verdade, a exigência aos utentes do Serviço Nacional de Saúde de taxas
implica um sistema de cobrança e pagamento para o futuro, em crescendo e sem
qualquer limitação temporal — o regime legal das taxas moderadoras prevê até a
sua revisão e actualização anual —, o que é indiscutivelmente um retrocesso
social, invertendo a tendência para a gratuitidade, que está traçada pelo
legislador constituinte e a que o legislador ordinário deve acatamento. Se,
como acontece, na prática, com aquelas taxas moderadoras — e o mesmo será o
quadro das demais taxas —, elas vão sendo sempre revistas e actualizadas, de
acordo com a abertura e cobertura legais concedidas pela Lei de Bases da Saúde,
o que fica do respeito pela incumbência constitucional de um Serviço Nacional de
Saúde «tendencialmente gratuito»?
Rigorosamente nada: é a única resposta que pode dar-se.
É o total esquecimento de um direito originário, isto é, direito fundado na
Constituição, na vertente da sua gratuitidade.
Como se pode ler no voto de vencido do Conselheiro Vital Moreira, ainda que
anterior à revisão constitucional de 1989: «a gratuitidade do Serviço Nacional
de Saúde é expressamente uma garantia constitucional do direito à protecção da
saúde» (acórdão deste Tribunal Constitucional n.º 330/89, publicado no Diário da
República, n.º 141, de 22 de Junho de 1989); e acrescenta:
A Constituição não se limitou a reconhecer o direito à protecção da saúde;
entendeu que a garantia desse direito exige a gratuitidade das prestações
públicas de saúde. Não pode vir o aplicador na Constituição sobrepor-se ao
juízo constitucional e entender que, afinal, o direito à protecção da saúde é
melhor garantido pela não gratuitidade!… Constitucionalmente, a gratuitidade
dos serviços de saúde é tanto garantia do direito à protecção da saúde quanto a
gratuitidade do ensino básico é garantia do direito ao ensino e quanto a
proibição de despedimentos sem justa causa é garantia do direito à segurança no
emprego, etc.
E noutro passo:
Um serviço público gratuito sujeito a taxas é uma verdadeira e própria
contradição nos termos. Aquilo que é gratuito não pode estar sujeito a qualquer
pagamento, obtém-se grátis, sem pagar; uma prestação pública sujeita a taxa é
necessariamente onerosa, já que a taxa é, por definição, um preço, uma
contrapartida pela prestação (ainda que só parcialmente cubra o custo do serviço
ou da prestação).
Não existe «conceito normativo» de gratuitidade que permita fazer passar por
gratuito um serviço sujeito ao pagamento de taxas. As taxas moderadoras tornam
o Serviço Nacional de Saúde tão «gratuito» como seria «gratuito» um ensino
público básico sujeito a propinas [cfr. artigo 74.º, n.º 3, alínea a), da
Constituição], coisa que, suponho, ninguém ousará sustentar.
Nenhum «conceito normativo» de gratuitidade pode conciliá-la com a exigência de
taxas, tal como nenhum «conceito normativo» de liberdade pode conciliá-la com a
prisão (cfr. artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa) e nenhum
«conceito normativo» de liberdade de expressão pode conciliá-la com a censura
(cfr. artigo 37.º da Constituição da República Portuguesa).
Tudo isto mantém ainda valimento para a fórmula actual do artigo 64.º, n.º 2,
alínea a), pois a moderação da garantia da gratuitidade do Serviço Nacional de
Saúde, que passou a ser apenas «tendencialmente gratuito», não pode deixar de
continuar a corresponder ao significado na língua portuguesa de gratuito (o que
é grátis, o que é concedido ou feito de graça, sem pagar).
B. Não se diga, como faz o acórdão, que a expressão «gratuitidade tendencial»
«teve, pelo menos, o efeito de ‘flexibilizar’ a fórmula constitucional anterior
(a da ‘gratuitidade’ tout court), atribuindo, assim, ao legislador ordinário uma
maior discricionaridade na definição dos contornos da gratuitidade do Serviço
Nacional de Saúde», pois não se trata aqui, no plano legislativo, de «uma maior
discricionaridade na definição dos contornos da gratuitidade», mas de respeitar
simplesmente a imposição constitucional de uma gratuitidade possível do sistema
nacional de saúde, uma gratuitidade como fim obrigatório para o legislador
(seria o caso, por exemplo, de uma norma legislativa prevendo a cobrança e o
pagamento de taxas, mesmo de taxas moderadoras, a extinguir no tempo e com
valores progressivamente mais baixos).
E, também não colhe dizer, como o faz o acórdão, que «as taxas referidas naquele
preceito da Lei de Bases da Saúde não são pagas directamente pelos utentes
beneficiários do Serviço Nacional de Saúde», tratando-se «de taxas pagas
directamente pelo sector privado de prestação de cuidados de saúde — e
indirectamente pelos respectivos utilizadores —, em consequência da obtenção de
serviços ou da utilização de instalações ou equipamentos pertencentes ao Serviço
Nacional de Saúde», pois se reconhece expressamente ainda um pagamento a cargo
dos «utentes beneficiários do Serviço Nacional de Saúde» (e, se há pagamento,
valem as razões expostas quanto à gratuitidade possível daquele Serviço).
3 — Por tudo isto — e outras razões poderiam ainda adiantar-se, sobretudo
ligadas ao sentido da revisão constitucional de 1989 —, votaria no sentido da
inconstitucionalidade das citadas normas das Bases XXXIII, n.º 2, alínea d), e
XXXIV, por violação do artigo 64.º, n.º 2, alínea a), da Constituição. —
Guilherme da Fonseca.
(1) - Acórdão publicado no Diário da República, II Série, de 26 de Março de
1996.