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Procº nº 711/95. ACÓRDÃO Nº 12/96
2ª Secção. Relator:- Consº BRAVO SERRA.
I
1. Tendo o Hospital Distrital de Tomar instaurado no Tribunal de comarca de Tomar e contra a Companhia de Seguros A. acção executiva fundando-se no disposto no Decreto-Lei nº 194/92 de 8 de Setembro foi a mesma liminarmente rejeitada por despacho de 6 de Outubro de 1995 proferido pelo Juiz daquele órgão de administração de justiça porquanto na sua óptica o título que servia de base à execução não possuía força executiva dado que as normas constantes da alínea a) do nº 2 do artº 2º e dos artigos 4º e 6º todos daquele diploma eram materialmente inconstitucionais visto violarem o nº 1 do artigo
205º da Constituição.
Deste despacho recorreram para o Tribunal Constitucional o Ministério Público e o mencionado Hospital tendo o Ex.mo Representante do primeiro aqui em funções concluído a sua alegação na qual preconiza que seja dado provimento ao recurso do seguinte modo:-
'1º - A certificação da existência de um crédito próprio emergente de tratamentos prestados em consequência de lesões decorren- tes de acidente de viação pelos órgãos de gestão dos estabelecimentos hospitalares contra os possíveis e eventuais obrigados a indemnizar não representa o exercício de qualquer tarefa ou função jurisdicional mas a mera criação de um título executivo adminis- trativo.
2º - A criação de tal título administrativo em nada preclude o direito de defesa dos executados que podem perfeitamente alegar através da dedução de embargos de exe- cutado todos os meios que lhes seria lícito deduzir em sede de acção declaratória'.
De seu turno o Hospital Distrital de Tomar na alegação que formulou na qual igualmente preconiza que seja dado provimento ao recurso apresentou as seguintes conclusões:-
'A) - O artº. 46 al. d) do C.P.C. dispõe que podem servir de base à execução os títulos a que por disposição especial seja atribuída força executiva. B) - Por disposição especial contida no artº. 2º do DL 194/92 de 08/09 o legislador confe- riu à Declaração elaborada nos termos aí pres- critos força executiva. C) - O título assim constituído em nada viola o princípio insito no artº. 205 nº
1 da Cons- tituição República Portuguesa. D) - Uma vez que para tal acontecer só as sen- tenças condenatórias teriam força executiva. E) - O DL em causa e em especial as invoca- das normas dos artºs 2º al. a) 4º e
6º do DL 194/92 não enfermam de qualquer inconstitu- cionalidade material'.
Tendo em atenção que neste Tribunal têm sido distribuídos inúmeros processos cujo objecto é constituído precisamente pelas normas cuja compatibilidade constitucional agora se solicita que seja apreciada foram dispensados os «vistos» dos Juízes da Secção.
Cumpre por isso decidir.
II
1. A Lei nº 48/90 de 24 de Agosto - Lei de Bases da Saúde - veio a estabelecer na alínea b) do nº 2 da Base XXXIII que os serviços e estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde podiam cobrar receitas a inscrever nos seus orçamentos próprios de entre estas se compreendendo '[o] pagamento de cuidados por parte de terceiros responsáveis legal ou contratualmente nomeadamente subsistemas de saúde ou entidades seguradoras'.
Com vista a regular a cobrança de dívidas às instituições e serviços públicos integrados no S.N.S. e ponderando que tais dívidas estão sujeitas a regime de prescrição presuntiva cujos respectivos prazos são muitos curtos e que a propositura de uma acção declarativa com o fim de tornar por via de uma sentença inequívoca a existência do crédito dessas instituições e serviços era uma via morosa que em face daquele regime de prescrição poderia acarretar na prática a não efectiva cobrança dos créditos editou o Governo em 8 de Setembro de 1992 o Decreto-Lei nº 194/92 diploma que inter alia veio a dispôr:-
Artigo 1º.
Âmbito de aplicação
O presente diploma regula a cobrança de dívidas às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde.
Artigo 2º.
Exequibilidade das certidões de dívida
1 - As certidões de dívida a qualquer das entidades a que se refere o artigo anterior por serviços ou tratamentos prestados são títulos executivos.
2- São condições de exequibilidade do título: a) A identificação do assistido e dos terceiros legal ou contratualmente responsáveis se os houver nos termos do presente diploma; b) A menção precisa e individualizada dos serviços prestados; c) A indicação da quantia exequenda cal- culada nos termos do presente diploma; d) A assinatura do presidente do órgão de administração da entidade credora ou de quem legitimamente o substitua; e) A autenticação do título de dívida com a aposição do selo branco em uso na instituição credora.
Artigo 4.º
Dívidas resultantes de tratamentos a si-
nistrados por acidentes de viação
1- Em caso de dívidas resultantes de assistência ou tratamentos prestados a sinis- trados em acidentes de viação a execução corre solidariamente contra o transportador e a respectiva entidade seguradora se seguro houver.
2 - Se o sinistrado não circular em qualquer veículo a execução corre contra a entidade seguradora do veículo ou veículos que tenham intervido no sinistro salvo se ocorrer qualquer das causas de exclusão da responsabi- lidade a que se refere o artigo 505.º do Códi- go Civil.
Artigo 5.º
Responsabilidade solidária do Fundo de Garantia Automóvel
Não havendo contrato de seguro válido ou eficaz ou não sendo possível proceder à iden- tificação dos responsáveis pelo acidente a execução corre contra o Fundo de Garantia Automóvel.
Artigo 6.º
Dívidas resultantes de tratamentos de sinistrados em acidentes de trabalho ou equiparado
1 - Se as dívidas resultarem de tratamento de sinistrados por acidentes de trabalho a execução corre contra aquele a quem o sinistrado prestava os seus serviços no momento da ocorrência do sinistro indepen- dentemente da natureza jurídica do vínculo nos termos do qual eram prestados tais serviços.
2 - Havendo contrato de seguro a execução corre contra a entidade seguradora respectiva.
Artigo 10.º
Foro competente para a execução
As acções de execução por dívida a que se refere o presente diploma são instauradas no tribunal da comarca em que se encontra sediada a entidade exequente.
2. Segundo o despacho recorrido as normas constantes dos transcritos artigos 2º nº 2 alínea a) e 4º enfermariam de vício de desconformidade com a Lei Fundamental visto que violariam o disposto no artigo
205º deste último diploma.
Impõe-se por isso em primeira linha analisar se normação criadora de um título executivo de índole administrativa ou mais latamente se a criação de um título executivo não decorrente de sentença judicial é algo que vai ferir o princípio da «reserva de juiz» ínsito na Constituição.
2.2. Como é sabido a dação de exequibilidade a um título não resulta unicamente da circunstância de ele provir de uma sentença judicial
(cfr. Eurico Lopes Cardoso Manual da Acção Executiva 1964 32 e segs. Castro Mendes Manual de Processo Civil 1963 74 e segs. Manuel de Andrade Noções Elementares de Processo Civil 1976 58 e segs. e Anselmo de Castro A Acção Executiva Singular Comum e Especial 1977 14 e segs.). Necessário é que a especial força detida pelo título e que serve de base ao processo executivo lhe seja conferida pela lei e que ele obedeça a determinados requisitos (cfr. artigos 46º e segs. do Código de Processo Civil).
No caso sujeito à apreciação deste Tribunal e já que dúvidas não há em como pela prestação de serviços prestados pelas instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde estas e estes se constituiram em credoras dos montantes correspondentes a tais serviços não se poderá de todo dizer que não consta de lei (em sentido material) a conferência de exequibilidade às certidões que atestam a efectivação daqueles montantes a isto sendo de aditar que nenhuma norma constitucional s divisa da qual resulte que se insere na competência reservada da Assembleia da República a enunciação e tipificação dos títulos executivos.
3. Isto posto haverá que equacionar se de uma banda a certificação da dívida pela entidade administrativa representa a prossecução de uma actividade que visa quer a definição do responsável quer a composição de um conflito entre credor e devedor e de outra se ficam patentemente diminuídos os direitos de defesa do que no título figura como devedor.
3.1. Quanto ao primeiro aspecto a resposta é obviamente negativa.
Efectivamente já por diversas vezes que este Tribunal se debruçou sobre aquilo por que se deva considerar a «função jurisdicional» (cfr. por entre muitos os Acórdãos números 104/85 - in Acórdãos do Tribunal Constitucional 5º Vol. 633 a 643 - 182/90 - publicado na 2ª Série do Diário da República de 11 de Setembro de 1990 - 443/91 - idem idem de 2 de Abril de 1992 - e 396/95 - idem idem de 15 de Novembro de 1995) tornando-se fastidioso estar-se aqui de modo exaustivo a enunciar o que em tais arestos com desenvolvimento foi dito a esse respeito.
Bastará em síntese definir que para o Tribunal e tal como se escreveu no mencionado Acórdão nº 182/90 a função jurisdicional consubstancia-se 'numa composição de conflitos de interesses lavada a cabo por um órgão independente e imparcial de harmonia com a lei ou com critérios por ela definidos tendo como fim específico a realização do Direito e da Justiça'.
Perante estas características da função jurisdicional claro é que os poderes conferidos pelas disposições conjugadas dos artigos 2º números 1 e 2 alínea a) 4º e 6º nelas se não integram.
Na verdade a emissão da certidão levada a cabo por uma entidade pertencente à Administração e que lhe vai conferir a característica de título executivo mais não é que uma simples operação de certificação de um crédito detido por essa mesma entidade em razão da actividade que dispendeu em benefício de outrem não representando por isso qualquer forma de composição de litígio ou de definição dos direitos de determinado credor.
3.2. Tocantemente ao segundo ponto (recorde-se: saber se os direitos de defesa daquele que no título figura como devedor ficam patentemente diminuídos) também a resposta é de índole negativa.
É que ainda que no título se mencione quem é ou deva ser considerado 'terceiro legal ou contratualmente responsável' pela satisfação do crédito certificado daí não resulta minimamente que fique irremediavelmente definido esse responsável e isso pela simples razão perante a qual o mencionado
(responsável) poderá dispôr de todos os meios de defesa ao seu alcance - embargos de executado - que lhe seriam facultados caso se estivesse perante um processo declaratório visando a sua condenação (cfr. artº 815º do Código de Processo Civil).
A norma ínsita no artº 2º do D.L. nº 194/92 representa desta arte apenas a atribuição de uma especial fé a uma declaração de crédito (e correspondente débito) sem minimamente pôr em causa a possibilidade de questionar quer a obrigação exequenda (aí se compreendendo o respectivo montante) quer o responsável pelo seu cumprimento caso se poste nestes campos um verdadeiro litígio.
Sequentemente haverá que concluir que um tal normativo não só não intenta dirimir qualquer conflito (e por isso se não divisa ofensa do nº 1 do artigo 205º da Constituição) como ainda não preclude os meios de defesa dos executados (pelo que desta sorte não se verifica ferimento do artigo 20º nº
1 da Lei Fundamental) que apenas para os exercitarem haverão de seguir um formalismo processual diferente (os embargos de executado) daquele que normalmente é usado (a contestação na acção declaratória).
Termos em que se não mostram violados os princípios decorrente daquelas normas constitucionais.
4. Alega a Companhia de Seguros B que os normativos sub specie vêm estabelecer uma dispariedade de tratamento referentemente às seguradoras por isso que as mesmas só se poderão defender mediante a dedução de embargos.
É por demais evidente que uma tal argumentação não pode proceder.
Efectivamente em todos os casos em que o credor munido de título dotado de parata executio instaure directamente execução a defesa dos executados é somente alcançável mediante embargos não se divisando qualquer diferenciação entre os meios de defesa postos à disposição das seguradoras que figuram como executadas no título ora em apreço e aqueloutros que são conferidos
àqueles que como devedores constam de outras espécies de títulos executivos.
A diversidade - tão somente em relação a meios processuais e não quanto à substância da validade de defesa - deparada relativamente a quem é demandado em acções declarativas e em acções executivas tem justificação bastante pela incorporação do crédito no próprio título razão pela qual tal diversidade não constitui arbitrária desigualdade.
E por isso não se mostra afrontado o artigo 13º da Constituição.
Aliás nem sequer se vê como é que - deduzidos que venham a ser pelas seguradoras em autos de execução instaurados com base nos preceitos em análise cabidos embargos nos quais se venha a alegar verbi gratia a inexistência de factualidade de onde decorra a responsabilidade civil extra-contratual do segurado - se pode dizer que nestes as regras sobre o ónus da prova que impendem sobre os lesado e lesante (in casu a instituição ou serviço de saúde e o condutor e ou proprietário do veículo interveniente no acidente) se vão postar de jeito diferente relativamente a uma acção declarativa.
5. Refira-se ainda que embora sendo verdade que recebidos os embargos a suspensão da execução só tem lugar se o executado prestar caução (cfr. nº 1 do artº 818º do Código de Processo Civil) nem por isso relativamente ao exequente se desenhará uma posição desigualitária já que na hipótese de a execução embargada prosseguir o mesmo só poderá obter pagamento se prestar caução (nº 1 do artº 819º do mesmo corpo de leis).
Por outro lado tendo em atenção o montante no caso da quantia exequenda nunca a exigência de caução - como condição de suspensão da execução - se pode vislumbrar como algo que acentuada ou patentemente vai dificultar a defesa em termos tais que conduzissem a um visionamento de negação do direito de acesso à justiça.
E seja como fôr ainda que diversa perspectiva fosse acolhida quanto ao particular de que nos ocupamos - o da exigência de caução como forma de suspensão da execução embargada - então há-de convir-se que a eventual deferenciação resultaria não das normas que constituem objecto do presente recurso mas sim daquela que tal exigência prescreve (o citado nº 1 do artº 818º).
III
Em face do exposto concedendo-se provimento ao recurso determina-se a revogação da decisão impugnada a fim de a mesma ser reformada em consonância com o ora decidido quanto à questão de inconstitucionalidade.
Lisboa 16 de Janeiro de 1996 Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca Luis Nunes de Almeida