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Processo nº 321/94
2ª Secção
Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
A CAUSA
1. A. interpôs, no Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra,
recurso contencioso de anulação de uma deliberação da Câmara Municipal de
Coimbra, indeferindo um pedido de loteamento de uma sua propriedade situada
nesse concelho. Imputou ao acto impugnado o vício de violação de lei,
relativamente às disposições do artº 77º, do DL nº 100/84, de 29 de Março e 47º
do DL nº 267/85, de 16 de Julho (Lei do Processo nos Tribunais Administrativos -
LPTA), por alegada revogação extemporânea de acto tácito constitutivo de
direitos.
Por sentença de 29 de Outubro de 1992, foi negado provimento ao
recurso. Nesta decisão, após se consignar, na matéria de facto, não ter sido
promovida pela recorrida, relativamente ao loteamento em causa, 'consulta à
Direcção-Geral do Orçamento do Território', escreveu-se :
' ... para deliberar sobre a operação de loteamento no prazo aludido no artigo
29º, nº1, o processo haveria de estar instruído com parecer técnico que
compatibilizasse os pareceres das entidades consultadas nos termos do nº 2 do
artigo 24º.
Não tendo consultado a Direcção Regional de Ordenamento do Território, tal
pressuposto não existia.
Por isso, a recorrida não tinha o dever legal de decidir no prazo estabelecido
no artigo 29º, nº1 do DL 400/84.
E, a inexistência de tal dever legal afigura-se-nos manifestamente expressa no
artigo 65º, n1 deste diploma quando estatui que, 'são nulos os actos das Câmaras
Municipais respeitantes a operações de loteamento ou a obras de urbanização
quando não sejam precedidos da audiência das entidades que devam ser
consultadas, quando não sejam conformes com qualquer dos respectivos pareceres
vinculativos ou resoluções ou quando não tenham sido submetidos 'ratificação ou
a contrariem, conforme os casos.'
1.1. Desta sentença foi, pelo recorrente, interposto recurso para o
Supremo Tribunal Administrativo, formulando, entre outras, as seguintes
conclusões :
'6ª. A douta sentença recorrida ao decidir que não tendo a Câmara
consultado a Direcção-Geral do Ordenamento do Território, no processo de
loteamento em apreço, não tinha o dever legal de decidir no prazo estabelecido
no artigo 29º, nº1, do Decreto-Lei nº 400/84, porquanto, no entender do
julgador, e por aplicação do artigo 65º, nº1, do mesmo diploma legal, nenhuma
relação jurídica se constitui, modifica ou extingue em virtude de acto nulo,
aplicou uma norma que é inconstitucional.
7ª. O artigo 65º do Decreto-Lei nº 400/84, ao restringir a esfera de
competências das Câmaras Municipais sem se fundamentar em autorização
legislativa que o permitisse é orgânicamente inconstitucional (artigos 243º, nº
2, 168º, nº 112 [ter-se-á querido escrever : nº 1, alínea s) ], e 168º, nº 2, da
Constituição).
8ª. O artigo 65º, nº 1, do Decreto-Lei nº 400/84, ao sujeitar as
deliberações municipais sobre loteamento a parecer ou autorização de entidades
estranhas ao município enferma de inconstitucionalidade material.
9ª. O artigo 65º, nº 1, do Decreto-Lei nº 400/84, ao consagrar uma
medida tutelar restritiva da autonomia local sem a prévia consulta do órgão
autárquico, enferma de inconstitucionalidade formal.
10ª. A douta sentença recorrida deve, pois, ser revogada, quer por
errada aplicação do artigo 65º, nº 1, do Decreto-Lei nº 400/84, quer por
aplicação de uma norma inconstitucional e, em sua consequência, deve ser dado
provimento ao recurso contencioso de anulação do acto administrativo objecto
deste, por vício de ilegalidade.'
Por Acórdão de 14 de Abril de 1994, foi negado provimento a tal
recurso e confirmada a sentença recorrida.
2. Inconformado com esta decisão, recorreu, de novo o impugnante do
acto, desta feita para este Tribunal, baseando-se na alínea b), do artigo 70º,
nº 1, da Lei nº 38/82, de 15 de Novembro, indicando como norma objecto o artigo
65º, do DL nº 400/84, ' por violação do princípio da autonomia das autarquias
locais consagrado nos artigos 6º e 237º , da Constituição da República
Portuguesa'.
2.1. Admitido o recurso apresentou as respectivas alegações que
rematou com as seguintes conclusões :
1ª - O artigo 65º do DL 400/84 ao restringir a esfera de
competências das Câmaras Municipais sem se fundamentar em autorização
legislativa que o permitisse é organicamente inconstitucional (artigos 243º nº2,
168 nº1 - s) e 168 nºs 2 da Constituição).
2ª - O artigo 65º nº 1 do Decreto-Lei nº 400/84, ao sujeitar as
deliberações municipais sobre loteamento a parecer ou autorização de entidades
estranhas ao município enferma de inconstitucionalidade material.
3ª - O artigo 65º nº 1 do Decreto-Lei nº 400/84 ao consagrar uma
medida tutelar restritiva da autonomia local sem a prévia consulta do órgão
autárquico, enferma de inconstitucionalidade formal.
Corridos os pertinentes vistos, importa decidir.
II
FUNDAMENTAÇÃO
3. O recurso reporta-se à norma constante do artigo 65º, do DL
400/84, diploma relativo ao regime jurídico das operações de loteamento urbano.
A circunstância deste diploma ter sido revogado pelo artigo 71º, nº 1, do DL nº
448/91, de 29 de Novembro, que entrou em vigor no dia 28 de Março de 1992 ('120
dias após a sua publicação' - artigo 73º, nº 1), não apresenta qualquer
relevância na presente situação. Com efeito, como estabelece o nº 2, do artigo
71º, do DL nº 448/91, nos três anos subsequentes à sua entrada em vigor, 'o
licenciamento de operações de loteamento ou de obras de urbanização cujo pedido
tenha sido recebido na Câmara Municipal até àquela data, rege-se pelas normas
aplicáveis no momento da recepção do referido pedido'. Sendo certo estar em
causa um pedido de loteamento datado de 28.6.90 (ver o processo administrativo
apenso), não oferece dúvidas a aplicação ao caso das normas do DL nº 400/84 e,
consequentemente, a plena relevância do artigo 65º respectivo.
3.1. Estabelece a norma impugnada no trecho que nos interessa:
ARTIGO 65º
1 - São nulos os actos das câmaras municipais respeitantes a
operações de loteamento ou a obras de urbanização quando não sejam precedidos da
audiência das entidades que devam ser consultadas, quando não sejam conformes
com qualquer dos respectivos pareceres vinculativos ou resoluções ou quando não
tenham sido submetidos a ratificação ou a contrariem, conforme os casos.
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Esta disposição decorre na lógica do DL nº 400/84, entre outras
disposições semelhantes, do seu artigo 24º, ao estabelecer que :
ARTIGO 24º
1 - A câmara municipal promoverá a tempestiva instrução do processo
com parecer técnico sobre a operação de loteamento que se pretende realizar.
2 - A câmara municipal deverá promover consulta à Direcção-Geral do
Planeamento Urbanístico para emitir parecer sobre o pedido, bem como às demais
entidades cujos pareceres, autorizações ou aprovações condicionam a
localização ou a realização da operação de loteamento.
3 - Sem prejuízo do disposto no artigo 4º, os pareceres das
entidades referidas no número anterior só têm carácter vinculativo quando se
fundamentem em condicionamentos legais ou regulamentares.
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Uma caracterização em termos gerais do DL 400/84 mostra-se útil à
abordagem dos problemas de constitucionalidade suscitados. Trata-se de um
diploma de natureza marcadamente adjectiva, estabelecendo processamentos de
natureza administrativa de concretização de operações de loteamento urbano.
Tomando por base a definição de procedimento fornecida por Gomes Canotilho
['complexo de actos juridicamente ordenados de tratamento e obtenção de
informação que se estrutura e desenvolve sob a responsabilidade de titulares de
poderes públicos e serve para a preparação da tomada de decisões
(legislativas, jurisdicionais, administrativas)'. Boletim da Faculdade de
Direito, Vol LXVI, Coimbra 1990, pág. 163] diremos que o DL 400/84, partindo da
formulação de certa pretensão de realizar uma «operação de loteamento», organiza
uma sequência de actos de tratamento e obtenção de informação, visando preparar
uma decisão final, por parte de uma autoridade administrativa autárquica,
autorizando ou não a mencionada operação de loteamento. Traduz o artigo 24º
acima transcrito um desses actos de aquisição de informação, posicionando-se
relativamente a ele o artigo 65, nº 1, como uma norma de segurança, ou se
quisermos garantia : uma norma que assegurando que o artigo 24º seja
efectivamente cumprido, teleologicamente o que pretende é garantir que a
decisão a tomar sobre a operação de loteamento seja não só suficientemente
informada, como também, conforme ao teor da informação trazida. Daí que se
sancione com a nulidade o acto não precedido dessa informação ou aquele que,
não obstante dela precedido, a não teve em conta nos aspectos relativamente aos
quais ela legalmente vinculava a decisão a tomar.
Importa ainda ler a norma impugnada no contexto, onde sem dúvida se
integra, do «direito do urbanismo»: 'o sistema das normas jurídicas que, no
quadro de um conjunto de orientações em matéria de ordenamento do território,
disciplinam a actuação da Administração Pública' (seja ela central, regional,
local ou institucional) 'e dos particulares com vista a obter uma ordenação
racional das cidades e da sua expansão' (Diogo Freitas do Amaral, Revista
Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, nº 1, Coimbra 1994, pág. 17).
É partindo desta base que as questões de inconstitucionalidade
material, orgânica e formal suscitadas devem ser abordadas. Vejamo-las então.
4. Comecemos pela invocada desconformidade material do artigo 65º,
nº 1 ao princípio da autonomia local consagrado nos artigos 6º, nº 1 e 237º, da
Lei Fundamental.
O argumento do recorrente é simples : a matéria de loteamentos
urbanos é, basicamente, uma competência das autarquias; uma intervenção, nos
termos decorrentes do artigo 65º, nº 1, da Administração Central nesse domínio
vem reduzir inconstitucionalmente - é o ponto de vista do recorrente - esse
espaço de autodeterminação conatural à ideia de autonomia.
A base em que assenta 'a prossecução dos interesses próprios das
populações respectivas', de que fala o artigo 237º, nº 2, da Constituição, é a
autonomia local, entendida - e citamos Gomes Canotilho e Vital Moreira - como 'a
liberdade de condução dos assuntos autárquicos (autodeterminação), na esfera de
atribuições legalmente reconhecidas como suas, não podendo a lei conferir ao
governo (...) o poder de lhe dar ordens ou instruções nem um controlo de
mérito dos seus actos'. Daí - como acrescentam os mesmos autores - ' a redução
da tutela ao controlo da legalidade e a impossibilidade de revogação ou
substituição dos actos das autarquias pelas entidade tutelares ' (Constituição
da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. Coimbra 1993, pág. 882).
Assume-se, assim, a tutela administrativa sobre as autarquias
locais, à qual se refere o artigo 243º, da Constituição (v. também o artigo
202º, al. d)), estritamente como tutela de legalidade que Casalta Nabais define
como 'uma «faculté d'empêcher», «un frein» admissível para obstar a que as
decisões das autarquias extravazem das suas atribuições e invadam as atribuições
da administração estadual ou as atribuições de outras autarquias ou
administrações autónomas' (A autonomia local, in Estudos em Homenagem ao Prof.
Doutor Afonso Rodrigues Queiró, II, Coimbra 1993, pág. 172).
Ora, o urbanismo é - paradigmaticamente como se refere
na decisão recorrida - daqueles domínios reconhecidamente abertos à intervenção
concorrente das autarquias e do Estado/administração central (v. artigos 65º,
nº4 e 66º, nº 2, al. b), da Constituição e o Acordão do Tribunal Constitucional
nº 432/93, publicado no Diário da República, II Série, de 18.8.93; cfr. Fernando
Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra 1989,
pág. 165/166; Rui Machete, Estudos de Direito Público e Ciência Política, pág.
519). É no sentido da harmonização desse espaço comum de actuação que a norma
impugnada deve ser lida. Trata-se de estabelecer, em termos claramente
respeitadores da autonomia local, que o procedimento conducente à decisão de
licenciamento seja apto a habilitar a autoridade autárquica, a quem cabe o poder
de licenciar, à ponderação de toda a multiplicidade de interesses, sejam eles
públicos e particulares, locais e gerais, envolvidos por uma decisão daquela
natureza. Sendo certo que, se o entendimento contrário poderia tornar o
procedimento nesta matéria apto à defesa de interesses locais específicos,
torná-lo-ia, porém, imune aos interesses gerais postos a cargo da administração
central. É essa ponderação justa de interesses que a norma questionada promove.
É, pois, correcta a conclusão da decisão impugnada no sentido da
conformidade material à Constituição do artigo 65, nº 1, do DL 400/84.
5. Segue-se a questão, também suscitada pelo recorrente, de saber se
uma norma como a constante do artigo 65, nº 1, editada pelo Governo ao abrigo de
uma autorização legislativa (a Lei nº 25/84, de 13 de Julho) que fala na
definição de 'ilícitos criminais ou contravencionais consistentes na violação de
normas constantes de diplomas aprovados no exercício da competência do
Governo'(artigo 1º, al. a)) trata-se de saber, dizíamos, se uma tal norma
invade a reserva relativa do Parlamento no que concerne ao «Estatuto das
autarquias locais» reserva expressa actualmente na al. s), do nº1, do artigo
168º, da Constituição e, com a mesma formulação, na al. r), da mesma norma na
versão vigente ao tempo a edição do DL nº 400/84 (que, note-se, a haver
diferenças de texto, seria a versão relevante para a detecção de eventuais
inconstitucionalidades orgânicas: v. Acordãos do Tribunal Constitucional nº
352/92, ainda inédito; nº 240/90, no DR-II, de 22.1.91; nº 330/90, no DR-II, de
19.3.91).
Já atrás se sublinhou a dimensão caracteristicamente processual do
DL nº 400/84 e o papel que o artigo 65º, nº 1 assume nessa lógica. Verdadeiro
«Código de Processo dos Loteamentos Urbanos», deste diploma decorrem (são
regulamentados), como se indica no Acórdão recorrido, os 'concretos
procedimentos administrativos' respeitantes aos loteamentos urbanos. Ora, como
justamente sublinha o Supremo Tribunal Administrativo a matéria processual
administrativa, no que não toque (e não é esse manifestamente o caso do artigo
65º, nº 1, do DL 400/84) as 'garantias dos administrados' (artigo 168º, nº 1,
al. u) e al. t) na versão anterior) não integra a reserva legislativa da
Assembleia da República, contrariamente ao que sucede com o processo perante o
Tribunal Constitucional (que integra a reserva absoluta: artigo 167º, al. c)),
o processo criminal e o processo disciplinar e relativo aos ilícitos de mera
ordenação social (que integram a reserva relativa : artigo 168º, nº 1, al. c) e
d)).
O Estatuto das autarquias locais, que a al. s) reserva ao
Parlamento, tem que ver com a respectiva organização, atribuições e competência
dos seus órgãos, estrutura dos seus serviços e regime do respectivo
funcionalismo (v. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob.cit., pág. 676), mas não
abrange seguramente, como se refere na decisão impugnada, os 'concretos
procedimentos administrativos através dos quais se exercitam' essas
atribuições.
Não colhe, assim, também ele, o argumento da inconstitucionalidade
orgânica.
6. E, finalmente, o mesmo se pode dizer da invocação de
inconstitucionalidade formal da norma em causa. A precedência 'de parecer de um
órgão autárquico' relativamente às medidas tutelares restritivas da autonomia
local referida no artigo 243º, nº 2, da Constituição, não traduz um direito de
participação (como o resultante do artigo 54º, nº 5, al. d) que assuma a
natureza de elemento vinculado de actos legislativos reportados à autonomia
local. Na lógica interna do artigo 243º, que é a de caracterizar o tipo de
tutela administrativa sobre as autarquias locais, a precedência de parecer tem
de ser vista tal como a fixou o Acórdão recorrido : que, 'em termos a definir
por lei, as medidas tutelares restritivas da autonomia local, como, por
exemplo, a dissolução dos orgãos autárquicos (...) sejam precedidas de parecer
de um órgão autárquico'. Esse o sentido - como justamente sublinha a mesma
decisão - do artigo 13º, nº 3, da Lei nº 87/89, de 9 de Setembro (v. António
Francisco de Sousa, Direito Administrativo das Autarquias Locais, Lisboa 1992,
pág. 34).
III
DECISÃO
7. Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso,
confirmando-se o acórdão recorrido quanto ao julgamento a questão de
constitucionalidade.
Lisboa, 23 de Novembro de 1995
José de Sousa e Brito
Luís Nunes de Almeida
Guilherme da Fonseca
Bravo Serra
Messias Bento
José Manuel Cardoso da Costa