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Processo n.º 471/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, com o n.º 471/12, veio o arguido A. interpor recurso para este Tribunal Constitucional, ao abrigo da al. b) do n.º1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa preferido em 6 de dezembro de 2011.
2. Neste Tribunal, o relator proferiu decisão sumária de não conhecimento do recurso, com o seguinte teor:
« (...)
1. Nos presentes autos, por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 06/12/2011, foi negado provimento ao recurso e confirmado o acórdão da 3ª Vara Criminal de Lisboa que condenou A., pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º, n.º1 e 218.º, n.º2, alínea a), do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão e, igualmente, a pagar ao B., S.A., a quantia de 1 246 994,74€ (um milhão, duzentos e quarenta e seis mil, novecentos e noventa e quatro euros e setenta e quatro cêntimos), acrescidos de juros moratórios, à taxa legal, desde a data da prática dos factos e até integral pagamento.
2. Inconformado, o arguido A. interpôs recurso para este Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
«1 - A interposição do presente recurso para o Tribunal Constitucional é feita ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º1 do art. 70.º da Lei n.º 28/82 de 15 de novembro – Lei Orgânica Sobre a Organização Funcionamento e processo do Tribunal Constitucional.
2 - Nessa conformidade, pretende o Recorrente ver apreciada a inconstitucionalidade do disposto no n.º 1 do artigo 333.º do Código de Processo Penal, no sentido de que a mera emissão de mandado de detenção e condução de arguido faltoso à audiência de julgamento – o qual não é cumprido por se apurar que este aí não reside, estando o imóvel devoluto – e envio de notificações seguintes designando data para julgamento para essa mesma morada quando já está documentado nos autos que o arguido aí não se encontra, integra o conceito de “medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência”.
3 - Assim, entende o Recorrente que posição contrária constitui interpretação inconstitucional do referido preceito à luz do disposto no n.º6 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa na medida em que viola os direitos de defesa de arguido constitucionalmente garantidos.
4 - Pretende o Recorrente que seja apreciada a inconstitucionalidade do n.º1 do artigo 166.º do Código de Processo Penal, no sentido de que o uso da língua portuguesa nos atos processuais é obrigatório, devendo ter sido ordenada a sua tradução, sob pena de nulidade e devendo entender-se que a expressão “sempre que necessário” se reporta pelo menos aos casos em que os documentos são examinados e valorados na decisão condenatória, como aconteceu no caso em apreço.
5 – Assim, não tendo sido feita a tradução escrita de documentos em que o Tribunal a quo se baseou para formar a sua convicção, entende o Recorrente que, a aplicação da referida norma do CPP, assim interpretada, viola o disposto no art.º 32.º e art.º 204.º, ambos da CRP.
6 - Pretende ainda o Recorrente que seja apreciada a inconstitucionalidade do disposto no artigo 340.º, n.º1 do Código de Processo Penal e do artigo 120.º, n.º2, alínea d) do mesmo Diploma, na interpretação dada pelo tribunal no sentido de não considerar uma omissão posterior (em julgamento) de diligências probatórias (apurar o paradeiro dos documentos apreendidos) que se reputam como essenciais para a descoberta da verdade.
7 – Tal preceito, assim interpretado, torna-o inconstitucional por violação do art. 32.º da Lei Fundamental.
8 – Entende ainda o Recorrente suscitar a apreciação da inconstitucionalidade do artigo e 370.º do Código de Processo Penal no sentido em que deveria ter sido solicitado pelo Tribunal a quo a elaboração do relatório social atualizado, tanto mais que não se permitiu nem possibilitou o cumprimento rigoroso dos artigos 70.º, 71.º e 50.º do Código Penal – que assim se mostram violados.
9 – Pelo que, outro entendimento a dar ao artigo 370.º do CPP torna-o inconstitucional por violação do artigo 32.º da CRP.
10 – Todas estas questões de inconstitucionalidade materiais que constituem a base fundamental do inconformismo do Recorrente foram suscitadas nas suas alegações de recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa».
3. O recurso foi subsequentemente admitido.
(...)
4. De acordo com o disposto no n.º3, do artigo 76.º, da Lei n.º28/82, de 15 de novembro (doravante Lei do Tribunal Constitucional ou LTC), a decisão que admita o recurso não vincula o Tribunal Constitucional, pelo que cumpre, em primeiro lugar, apreciar da verificação de todos os seus pressupostos, gerais e específicos.
5. O recurso incide sobre acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º da LTC.
Essa modalidade de recurso de constitucionalidade, como resulta, desde logo, da alínea b), do n.º1, do artigo 280.º, da CRP, pese embora incida sobre decisões dos tribunais, conforma-se como recurso normativo, ou seja, visa a apreciação da conformidade constitucional de normas, e não das decisões judiciais, em si mesmas consideradas. Nessa medida, e como este Tribunal Constitucional tem afirmado, recai sobre o recorrente o ónus de enunciar, de forma clara e percetível, o exato sentido normativo do preceito que considera inconstitucional quando questiona a constitucionalidade de uma norma segundo certa interpretação, sob pena de não conhecimento do objeto do recurso interposto.
O conhecimento deste tipo de impugnações pressupõe a observância de diversos pressupostos, exigindo-se, designadamente, que sejam interpostas pela parte que, durante o processo, suscitou, prévia e adequadamente, a questão de constitucionalidade, bem como que o seu objeto incida sobre a razão determinante (ratio decidendi) da decisão recorrida, em obediência à natureza instrumental do recurso de constitucionalidade.
6. A primeira questão que se pode identificar no requerimento formulado pelo arguido é referida ao disposto no artigo 333.º, n.º1, do Código de Processo Penal (doravante CPP), norma essa inscrita no regime do julgamento na ausência do arguido, com o seguinte teor:
«1. Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência e a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência».
Numa primeira aproximação, na tarefa de perceção e delimitação da questão vazada no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, verificamos que o recorrente aponta a impugnação ao segmento normativo medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência, numa certa interpretação ou sentido. Nessa dimensão interpretativa, sustenta o recorrente, estaremos perante violação do disposto no n.º6, do artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) e dos «direitos de defesa constitucionalmente garantidos».
Qual, então, a dimensão interpretativa, o sentido do segmento medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência, infratora de preceitos ou princípios constitucionais?
A resposta a essa interrogação encontra-se na referência à «mera emissão de mandado de detenção e condução do arguido faltoso à audiência de julgamento», em particular no adjetivo «mera». Não se trata, assim, de questionar a emissão de mandados de detenção, em si mesma, antes de argumentar a partir do isolamento dessa medida, desacompanhada de outra ou de outras, capazes de assegurar a presença do arguido.
Na verdade, e em sintonia com o que havia sustentado nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa (cfr. conclusões 1ª e 10ª, em especial a conclusão 8ª), o recorrente não coloca em crise que o recurso à detenção do arguido para assegurar a presença do arguido no decurso do julgamento (e não desde o seu início, pois o recorrente não coloca em crise o juízo de indispensabilidade previsto na parte final do artigo 333.º, n.º1, do CPP), mereça a qualificação de medida necessária para obter a comparência do arguido; questiona, sim, que fosse medida suficiente (cfr. a conclusão 5ª, onde se reclama de diferente procedimento e o recurso a «uma nova dimensão de diligências» quando se tratou de notificar o acórdão condenatório, as quais, aponta o recorrente, «claramente demonstram que as diligências anteriores à leitura do acórdão foram claramente insuficientes»).
Porém, numa leitura mais aprofundada, verifica-se que recorrente conexiona estreitamente o apontado sentido interpretativo com a sua leitura das circunstâncias do caso concreto, designadamente quanto às condicionantes de facto que impediram a ordenada detenção e, por consequência, inviabilizaram a apresentação do arguido sob detenção em julgamento.
Com efeito, o recorrente inclui na questão enunciada, em oração intercalada, o não cumprimento dos mandados, em virtude do arguido não residir no imóvel que indicou no TIR, que se encontrava devoluto. Ou seja, assim delimitado o sentido da impugnação em apreço, revela-se que o recorrente não pretende discutir o plano da exigência constitucional de emissão de mandados de detenção no âmbito do julgamento na ausência em qualquer caso, mas sim ver apreciada a (in)eficácia dessa medida no caso concreto. Na sua valoração, a medida seria insuficiente, porque inidónea para atingir a sua finalidade, naquelas circunstâncias de facto.
Importa ainda notar que o recorrente não aponta essa idoneidade como adquirida nos autos no momento em que foi proferida a decisão de emissão de mandados de detenção para a sua comparência. Ao invés, o «apuramento» vem referido ao momento de execução dos mandados, o que significa que o conhecimento do afastamento do arguido do local indicado como de residência teve lugar depois da determinação judicial. Por outro lado, a alusão a «documentado nos autos», igualmente inscrita na questão colocada a este Tribunal, refere-se a outro ato, posterior (notificações seguintes), sem inscrição na previsão do artigo 333.º, n.º1, do CPP.
Este percurso permite compreender que o recorrente não coloca à apreciação deste Tribunal Constitucional verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, com referência a interpretação do apontado segmento do artigo 333.º, n.º1, do CPP. Dirige-se, sim, à decisão judicial, enquanto puro ato de julgamento, o que escapa ao alcance do recurso de constitucionalidade.
Como se esclareceu no Acórdão deste Tribunal n.º 633/08 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt):
«(…) sendo o objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas jurídicas, que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em si própria, mesmo quando esta faça aplicação direta de preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correção, no plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto (correção do juízo subsuntivo)».
Ora, e como se demonstra pela necessidade sentida pelo recorrente de aduzir os parâmetros de facto do caso em apreço, a questão colocada não ultrapassa a concreta e casuística apreciação pelo julgador da medida idónea a assegurar a comparência do arguido ou, no plano negativo, da inexistência de qualquer medida alternativa ou complementar àquela a que o Tribunal lançou mão, como vem afirmado no acórdão recorrido Não se encontrando, na questão formulada, a delimitação de qualquer «regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica» (Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, pág. 32), e não cabendo nos poderes deste Tribunal apreciar da bondade da solução encontrada pelo julgador na valoração das condicionantes específicas do caso em apreço, cumpre concluir pela inadmissibilidade desse fundamento do recurso de constitucionalidade.
Resta esclarecer que, porque a questão levada ao requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional não se poderia afastar substantivamente do alcance da sua previa suscitação, praticamente com a mesma formulação (cfr. conclusão 8ª da motivação do recurso perante o Tribunal da Relação de Lisboa), mostra-se insuscetível de aperfeiçoamento, o que elimina o recurso ao convite previsto pelo n.º6 do artigo 75.ºA da LTC, em função da sua inutilidade.
Face ao exposto, porque não se encontra colocada questão de inconstitucionalidade normativa, não pode este Tribunal Constitucional, em aplicação da alínea b), do n.º 1, do art.º 280º, da CRP e da alínea b), do n.º1, do artigo 70.º, da LTC, conhecer de tal vertente do recurso interposto.
7. A segunda questão colocada no requerimento apresentado pelo arguido tem como referente o disposto no n.º1, do art.º 166.º, do CPP, e apresenta formulação pouco clara e precisa.
Denota-se, porém, com algum esforço, que o recorrente considera que esse normativo foi interpretado na decisão recorrida como não impondo a tradução escrita para língua portuguesa de todos os documentos em que o Tribunal se baseou para formular a sua convicção probatória e que essa interpretação violaria o disposto nos artigos 32.º e 204.º da CRP.
Ora, a decisão recorrida não contempla essa interpretação. Basta, para tanto, e de forma evidente, cotejar o seguinte segmento do aresto do Tribunal da Relação de Lisboa de que se recorre:
«Ora no caso, compulsados os autos, verificamos que todos os documentos em língua estrangeira referidos no acórdão recorrido, como tendo contribuído, de forma decisiva, para a formação da convicção do Tribunal, se encontram devidamente traduzidos».
Acresce que, como decorre das conclusões do recurso dirigido ao Tribunal da Relação de Lisboa, essa questão de constitucionalidade não foi colocada (cfr. conclusões 11.ª a 15ª).
Nesses termos, falecem, de forma manifesta, os pressupostos de aplicação na decisão recorrida da interpretação normativa cuja constitucionalidade vem questionada, assim como como o respeito pelo ónus de suscitação prévia (artigo 72.º, n.º2, da LTC), pelo que, também nesta questão, o recurso não reveste condições para ser conhecido.
8. Prosseguindo, a questão de seguida enunciada pelo recorrente envolve a aplicação do disposto nos artigos 340.º, n.º1, e 120.º, n.º2, alínea d), ambos do CPP, quando interpretados no sentido de que não constitua omissão de diligências probatórias a ausência de apuramento do paradeiro de documentos apreendidos reputados pelo recorrente de essenciais para a descoberta da verdade. Aponta-se a essa interpretação violação do artigo 32.º da CRP.
Desde logo, encontra-se nesta questão, de forma bem evidente, o mesmo obstáculo material apontado à primeira questão formulada. Não se encontra colocada questão de inconstitucionalidade normativa, mas sim de discordância relativamente ao casuístico exercício do poder-dever contemplado no artigo 340.º, n.º1, do CPP, pois o juízo de necessidade para a descoberta da verdade e boa decisão da causa encontra-se invariavelmente no cotejo com os concretos contornos do objeto do processo, de expressão singular.
E, num segundo momento, também aqui, o cotejo com a motivação de recurso apresentado dirigido ao Tribunal da Relação de Lisboa permite verificar que, em nenhum momento da argumentação recursória, com tradução nas conclusões formuladas, foi colocado problema de inconstitucionalidade radicado em interpretação, quer do disposto no n.º1, do artigo 340.º, do CPP, quer da alínea d), do n.º2, do artigo 120.º, do mesmo código.
Mas, quanto a esta questão, verifica-se um terceiro obstáculo ao conhecimento do recurso. É que, em nenhum momento, a decisão recorrida reconheceu o desaparecimento de documentos apreendidos. Com efeito, de forma clara, conclui-se que «(...) compulsados os autos não se verifica que faltem alguns dos documentos apreendidos (...)». Nessa medida, mesmo que estivéssemos, e não estamos, perante objeto normativo na questão colocada no recurso formulado para este Tribunal, sempre cumpriria afastar o conhecimento da questão, pois não encontra consonância com a decisão recorrida.
9. A última questão suscitada pelo recorrente radica na ausência de solicitação de relatório social atualizado, para concluir pela inconstitucionalidade do artigo 370.º, n.º1 do CPP, por violação do artigo 32.º da CRP.
Repete-se, aqui, a colocação de questão estritamente infraconstitucional, inteiramente dirigida a critério normativo de aplicação pelo Tribunal do normativo contido no n.º1 do art.º 370.º do CPP. Neste plano, o recorrente nem sequer ensaia a enunciação de qualquer interpretação normativa, pois a formulação utilizada reconduz-se inteiramente à desaplicação do normativo processual penal, acompanhada da alusão genérica a preceito constitucional.
Por outro lado, e mais uma vez, não corresponde à realidade que o problema tenha sido colocado para apreciação pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Em nenhum momento das motivações vem colocada questão de inconstitucionalidade a esse propósito, encontrando-se apenas, a propósito da obtenção e ponderação de relatório social, arguida nulidade e a verificação de vício na decisão em matéria de facto (cfr. conclusão 29ª).
10. Aqui chegados, cumpre, como obriga o n.º 1, do artigo 78.ºA, da LTC, por se entender que o Tribunal Constitucional não pode conhecer do objeto do recurso quanto a todas as questões colocadas, proferir decisão sumária.
(...)
11. Pelo exposto, ao abrigo do nº 1, do artigo 78ºA, da Lei do Tribunal Constitucional, e por aplicação do disposto na alínea b) do n.º 1, do artigo 280.º, da CRP; da alínea b), n.º 1, do artigo 70.º; e do n.º 2, do artigo 72.º, estes últimos da LTC, decide-se:
a) Não conhecer do recurso interposto para este Tribunal Constitucional pelo arguido A.;
b) Condenar o recorrente nas custas, que se fixam, atendendo à dimensão e complexidade do objeto do recurso, em 7 (sete) Ucs».
3. Inconformado, o recorrente A. reclamou para a conferência, nos seguintes termos:
« (...)
O Digníssimo Conselheiro Relator entendeu não conhecer do recurso interposto pelo arguido por entender que não pode conhecer de nenhuma das questões suscitadas.
Com o devido respeito, o arguido não pode concordar, senão vejamos.
1. Quanto à primeira questão suscitada pelo reclamante (com referência à constitucionalidade do art. 333.º n.º 1 do CPP) não está em causa a bondade da solução encontrada pelo julgador, conforme alega o Digníssimo Conselheiro Relator, com o devido respeito, mas sim a interpretação do disposto no n.º 1 do artigo 333.º do Código de Processo Penal, à luz do preceituado no n.º 6 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, no sentido de que a mera emissão de mandado de detenção e condução de arguido faltoso à audiência de julgamento – o qual não é cumprido por se apurar que este aí não reside, estando o imóvel em causa devoluto – e envio de notificações seguintes designando data para julgamento para essa mesma morada quando já está documentado nos autos que o arguido aí não se encontra, integra o conceito de “medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência”.
O simples envio de notificações simples, com mera prova de depósito, quando o Tribunal já sabia que o mesmo não se encontrava nessa morada, não pode constituir meio legal de notificação do arguido da notificação do arguido da designação de data para julgamento.
Impunha-se, assim, ao Tribunal conduta diferente, materializada na tentativa de localização do mesmo, o que claramente não sucedeu, sendo insuficientes as notificações enviadas.
Essa insuficiência foi expressamente reconhecida após a prolação do acórdão, momento a partir do qual o Tribunal recorrido entendeu finalmente ser importante encontrar o arguido, dando início a uma nova dimensão de diligência, que claramente demonstram que as que realizou em momento anterior à leitura do acórdão foram manifestamente insuficientes.
Destarte, na esteira dos conceitos de medidas necessárias e legalmente admissíveis propugnados pelo Supremo Tribunal, sendo verdade que o arguido prestou TIR e faltou à audiência, uma vez iniciada na data designada, deveria, pois, o Tribunal a quo ter tomado todas as diligências adequadas, necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência (artigo 333.º, n.º 1 do Código de Processo Penal).
Foi, assim, o arguido julgado na ausência porquanto se partiu do pressuposto – errado – de que este estaria regularmente notificado, dando-se início à audiência sem a sua presença e com violação dos artigos 32.º, n.º 6 da Constituição da República Portuguesa e 333.º e 334.º, ambos do Código de Processo Penal.
Não o tendo feito, interpretou inconstitucionalmente o disposto no n.º 1 do art. 333.º do CPP, à luz do n.º 6 do art. 32.º da CRP.
2. Quanto à segunda questão submetida ao escrutínio deste Digníssimo Tribunal (com referencia à interpretação dada ao n.º 1 do art. 166.º do CPP) e pese embora esta questão tenha sido suscitada ainda que acessoriamente no requerimento de nulidade do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, consta da motivação de facto do aresto em apreço que “o tribunal formou a sua convicção na concatenação critica do conjunto da prova [...] documental junta aos autos, toda ela apreciada com o seu valor probatório e as regras da experiência”.
Ora, consultados aqueles documentos constatou-se que do acervo documental junto aos autos, mesmo excetuando aquele que foi carreado para os mesmos pelo recorrente, constam inúmeros documentos em língua estrangeira e não traduzidos, o que configura uma nulidade que se deixou arguida.
Com efeito, o uso da língua portuguesa nos atos processuais é obrigatório sob pena de nulidade.
Assim ocorreu, designadamente, com os documentos que constam de fls. 26 e 271, de fls. 404 a 4092 e de fls. 549 a 651 dos autos, de fls. 12 a 19 do Apenso I.
Pelo que, a norma do n.º 1 do art. 166.º do CPP foi interpretada no sentido de não ser exigível para tradução em língua portuguesa de todos os documentos em que o Tribunal se baseou para formular a sua convicção probatória, violando assim o disposto nos arts. 32.º e 204.º da CRP.
3. Quanto à terceira questão da apreciação [da] constitucionalidade suscitada pelo reclamante (com referência à interpretação dada ao n.º 1 do art. 166.º do CPP) e pese embora esta questão tenha sido suscitada ainda que acessoriamente no requerimento de nulidade do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, a verdade é que conforme o reclamante alertou, anteriormente e por diversas e repetidas vezes, foram suscitados pedidos de informação ao Ministério Público e ao Tribunal de Instrução Criminal sobre o paradeiro dos documentos.
Ora, na esteira do princípio do investigatório e do disposto no artigo 340.º do Código de Processo penal, o presente caso materializa, para efeitos do disposto no artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do mesmo Diploma, uma omissão posterior (em julgamento) de diligências probatórias que se reputam como essenciais para a descoberta da verdade, nulidade que também se deixou devidamente arguida».
4. Em resposta, o Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação.
Considerou, em síntese, quanto à primeira questão colocada, que a argumentação constante da reclamação reforça a conclusão que se chegou na decisão sumária reclamada; quanto à segunda questão, que a sua alegação junto do Tribunal da Relação ocorreu apenas depois de proferido o acórdão recorrido e que a decisão recorrida não acolhe a interpretação que se pretende sindicar junto deste Tribunal Constitucional; e, por fim, quanto à terceira, e última questão, que a sua suscitação foi igualmente tardia e, paralelamente, que se mantêm válidas as observações constantes da decisão sumária reclamada.
II. Fundamentação
5. O reclamante inscreve na reclamação discordância dirigida à decisão de não conhecimento das três questões que formulou no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal.
Diga-se, desde já, que não lhe assiste razão relativamente a qualquer dessas três distintas vertentes recursórias.
5.1. No que concerne à primeira das questões formuladas, sustenta o reclamante que não questiona a bondade da solução encontrada pelo julgador, mas sim - e apenas - «a interpretação do disposto no n.º 1 do artigo 333.º do Código de Processo Penal, à luz do preceituado no n.º 6 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa».
Todavia, e no desenvolvimento argumentativo que se segue a essa asserção, nota-se que o reclamante alicerça o seu raciocínio no entendimento dos conceitos de medidas necessárias e de medidas legalmente admissíveis, com alusão genérica a entendimento do «Supremo Tribunal», o que denota a discussão da dimensão aplicativa ao caso concreto do preceito inscrito no n.º 1 do artigo 333.º do Código de Processo Penal.
Fica, assim, e como bem observa o Ministério Público, ainda mais claro que o recorrente não coloca à apreciação deste Tribunal Constitucional verdadeira questão de interpretação normativa, com referência a segmento do referido n.º 1 do artigo 333.º, antes - e apenas - procura a censura do ato de julgamento, na dimensão da aplicação às circunstâncias do caso da imposição legal de esgotamento de medidas, necessárias e legalmente admitidas, para obter a comparência do arguido faltoso. Na verdade, o que o recorrente pretende ver sindicado não se reconduz ao enunciado de qualquer regra abstratamente enunciada, mas sim ao que, em sua opinião, traduz incumprimento judicial do preceituado processual penal, como emerge com nitidez do segmento da reclamação em que elabora sobre o comportamento devido, nos seguintes termos:
« (...) deveria, pois, o Tribunal a quo ter tomado todas as diligências adequadas, necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência (artigo 333.º, n.º 1 do Código de Processo Penal»
Estamos, como se disse na decisão sumária, perante discussão da correção, no plano infraconstitucional, da forma como o critério normativo estabelecido no referido preceito foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto.
Mantém-se, assim, inteiramente procedente o fundamento de não conhecimento do recurso, na dimensão em que vem questionada interpretação do n.º 1 do artigo 333.º do Código de Processo Penal.
5.2. Dito isto, verifica-se que, no afã de fundar a admissibilidade do recurso nesta vertente, o reclamante inscreve na reclamação a sindicância de dimensão aplicativa inovatória, distinta daquela censurada no requerimento de interposição de recurso.
Com efeito, enquanto na formulação conferida à questão, emerge como ato judicial questionado a emissão de mandados de detenção para comparência em julgamento, na sua correlação com a interpretação da injunção legal de tomada das medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a presença do arguido no julgamento, a reclamação procura deslocar a discussão para o ato de dar início à audiência sem a presença do arguido, como também para a decisão de que o arguido se encontrava, nesse momento, regularmente notificado. Relativamente a ambos – pressuposto de notificação regular do arguido e início da audiência – dirige agora o reclamante a crítica de «violação dos artigos 32.º, n.º 6 da Constituição da República Portuguesa e 333.º e 334.º, ambos do Código de Processo Penal».
Porém, fixado o objeto do recurso no requerimento de interposição, encontra-se vedado ao recorrente ampliá-lo em momento posterior, mormente em sede de reclamação de decisão sumária.
Aliás, em bom rigor, porque se trata de questão nova, não conhecida na decisão sumária proferida, não estamos perante reclamação, enquanto impulso de reapreciação da cognição desenvolvida pelo Tribunal.
Pelo exposto, não se conhece dessa vertente da pretensão do recorrente.
5.3. No que toca à segunda questão colocada, o reclamante procura demonstrar que constam dos autos documentos não traduzidos e que todos foram tidos em conta pelo Tribunal, para concluir que a norma do n.º 1 do artigo 166.º do Código de Processo Penal foi efetivamente interpretado no sentido de não ser exigível a tradução em língua portuguesa de todos os documentos em que o Tribunal se baseou para formular a sua convicção probatória.
Porém, esse entendimento não pode ser acolhido.
Com efeito, porque o objeto do recurso de constitucionalidade não comporta a discussão da correcção do ato de julgamento, incumbe ao Tribunal Constitucional aceitar como dado a asserção do Tribunal a quo transcrita na decisão sumária e que aqui se repete:
«Ora no caso, compulsados os autos, verificamos que todos os documentos em língua estrangeira referidos no acórdão recorrido, como tendo contribuído, de forma decisiva, para a formação da convicção do Tribunal, se encontram devidamente traduzidos».
Mostra-se, então, infirmada a premissa em que assenta a reclamação, a saber, que o juízo probatório decorreu da ponderação de documentos redigidos em idioma distinto do português e sem que tenham sido traduzidos para a língua portuguesa.
No que tange ao outro fundamento da decisão de inadmissibilidade do recurso neste particular - incumprimento do ónus de prévia suscitação (artigo 72.º, n.º 2 da LTC) – o recorrente limita-se a dizer que suscitou «a nulidade». Fê-lo, porém, em incidente pós-decisório – arguição de nulidade do acórdão recorrido – o que não satisfaz a referida exigência.
Como se disse no Acórdão n.º 165/2012 (acessível no sítio www.tribunalconstitucional.pt)
«De acordo com um princípio sempre reiterado pela jurisprudência do Tribunal, os incidentes pós decisórios não devem ser configurados como momento processual oportuno para que seja discutido, pela primeira vez, qualquer questão de inconstitucionalidade. Assim é pelo facto destes incidentes servirem, por regra, para conhecer da aplicação das normas reguladoras da admissibilidade e do próprio âmbito dos pedidos de reforma ou nulidade, que não têm qualquer influência na formação da decisão, e não para conhecer de questões de mérito.
Este princípio associa-se logicamente a um outro que é, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, pressuposto insuprível da admissibilidade dos recurso de constitucionalidade, e que se traduz na necessária suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo, ou seja, antes que seja proferida a decisão [de mérito] de que se pretende recorrer».
Também aqui, cumpre manter a decisão sumária.
5.4. A ordem de considerações que se vem formular encontra igualmente aplicação no que tange à reclamação dirigida à decisão de não conhecimento da terceira questão colocada. Também aí, a questão apenas foi colocada em momento posterior à prolação da decisão recorrida, como, aliás, o reclamante reconhece.
Tanto basta para confirmar a decisão sumária, por ausência do pressuposto de suscitação da questão de constitucionalidade, em termos de conduzir ao seu conhecimento na decisão recorrida.
Diga-se, ainda, que o reclamante nada diz quando ao primeiro dos fundamentos em que assentou a decisão sumária quanto a esta questão: colocação de questão estritamente infraconstitucional, inteiramente dirigida a critério de aplicação pelo Tribunal a quo do normativo constante do n.º 1 do artigo 370.º do CPP.
III. Decisão
6. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, tendo em atenção os critérios seguidos por este Tribunal e a dimensão do impulso desenvolvido.
Notifique.
Lisboa, 20 de novembro de 2012.- Fernando Vaz Ventura – Pedro Machete – Joaquim de Sousa Ribeiro.