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Proc. nº 110/95
1ª Secção
Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A., casado empregado bancário, reformado,
residente na Rua ------------, nº ------, em --------, propôs no Tribunal do
Trabalho da Guarda, em 14 de Junho de 1993, acção declarativa de condenação, com
processo sumário, contra o banco B., pedindo a condenação deste, na qualidade de
ex-entidade patronal (fora admitido como empregado em 1976 e passou à situação
de invalidez em 1 de Setembro de 1992), a pagar-lhe a quantia de 1.603.739$00,
acrescida de correcção monetária de 18% e de juros de mora até integral
cumprimento, correspondendo à soma dos montantes de subsídio de valorização a
que tinha direito por força de deliberação do Conselho de Gestão do Banco réu de
5 de Janeiro de 1983, numa altura em que o mesmo banco tinha o estatuto de
empresa pública. Alegou factos que indiciavam ser ilegal a recusa de pagamento
pela antiga entidade patronal desses subsídios de valorização. Juntou com a
petição inicial um parecer jurídico da autoria dos Drs. Jorge Leite e João Leal
Amado, bem como cópia de decisões de diferentes tribunais proferidos em litígios
idênticos.
A acção foi contestada, tendo o Banco réu
invocado que a deliberação invocada fora suspensa por nova deliberação, por
força de um despacho do Secretário de Estado do Tesouro de 19 de Janeiro de
1983, sendo certo que já na altura estava em vigor a Resolução nº 163/80 do
Conselho de Ministros, de 15 de Abril de 1980, pela qual se proibia que os
órgãos de gestão das empresas públicas concedessem aumentos genéricos de
remuneração fora da contratação colectiva. Com a contestação, juntou pareceres
jurídicos da autoria dos Profs. Doutores Sérvulo Correia, António Menezes
Cordeiro, e Dr. Bernardo da Gama Lobo Xavier, além de cópia de decisões
judiciais proferidas em acções idênticas e outros documentos.
O autor respondeu à contestação, juntando novos
documentos. Mais tarde juntou ainda pareceres da autoria do Dr. Rui Machete, do
Prof. Doutor Freitas do Amaral e Drª Maria da Glória Ferreira Pinto Dias Garcia
e do Prof. Doutor Gomes Canotilho, além de outros documentos. O Banco juntou
novos pareceres, da autoria dos Profs. Doutores Marcelo Rebelo de Sousa, José
Carlos Vieira de Andrade e Jorge Miranda.
Realizou-se o julgamento, vindo, por sentença de
1 de Março de 1994, a ser julgada improcedente a acção.
O autor, inconformado, interpôs dela recurso de
apelação, o qual foi admitido.
Nas respectivas alegações, suscitou a questão de
inconstitucionalidade da alínea g) do nº 2 do art. 13º do Decreto-Lei nº 260/76,
se interpretado de tal forma que pudesse conferir-se ao tribunal de trabalho ou
a outra entidade o poder de se substituir ao legislador, fixando de forma
casuística a lista de actos dos conselhos de gestão dos bancos nacionalizados
que careciam de tutela correctiva pelo Governo (conclusões 16ª e 17ª, a fls. 882
e vº). O recorrido sustentou a legalidade da decisão recorrida nas suas
contra-alegações.
Por acórdão da Relação de Coimbra, proferido em
10 de Novembro de 1994, foi negado provimento ao recurso de apelação.
Nesse acórdão, depois de se considerar que o
subsídio de valorização profissional contemplado na deliberação do Conselho de
Gestão do Banco recorrido de 5 de Janeiro de 1983 tinha a natureza de
retribuição paga pela entidade patronal ao respectivo trabalhador, que, por
isso, não podia ser diminuída unilateralmente por aquela, e que a atribuição
desse subsídio era válida à luz do disposto no Decreto-Lei nº 729-F/75, de 22 de
Dezembro, diploma que regulava a orgânica das instituições de crédito
nacionalizadas, visto neste último não se prever uma intervenção tutelar na
matéria do Governo, veio a entender-se que o quadro normativo se alterara a
partir de 1977, uma vez que o Decreto-Lei nº 353-A/77, de 29 de Agosto, tinha
aditado um novo nº 2 ao art. 49º do Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de Agosto (Bases
Gerais das empresas públicas). Ora, o sentido de introdução desse novo nº 2
teria sido o de tornar claro que todos os princípios previstos no Decreto-Lei nº
260/76, sem excepção, seriam igualmente aplicáveis às instituições de crédito
nacionalizadas, não obstante a sua orgânica se reger por diploma especial.
Depois, afirmou-se na referida decisão judicial:
'O estatuto do pessoal no que diz respeito à fixação de remunerações passou
então a ficar dependente de autorização ou aprovação do ministro da tutela, nos
termos prescritos pela alínea g) do nº 2 do art. 13º [do Decreto-Lei nº 260/76].
E, nos termos do nº 4 deste mesmo artigo passou a ser também
necessária a autorização ou aprovação, além do Ministro das Finanças, do
Ministro do Trabalho.
A essa tutela não obsta o nº 1 do art. 14º do Decreto-Lei
729-F/75 [...].
Com efeito o nº 1 do art. 9º do Decreto-Lei nº 260/76 não difere,
no essencial, daquele preceito [...].
Tal como a atribuição destes poderes e o seu normal exercício não
excluem a tutela económica e financeira estabelecida pelo art. 13º, do mesmo
modo a actuação do Conselho de Gestão no exercício dos poderes conferidos pelo
nº 1 do art. 14º do Decreto-Lei 729-F/75 não contraria a possibilidade de o
Governo intervir em matéria respeitante à fixação de remunerações.
Como se disse no citado acórdão de 15/06/94, «tendo em conta as regras de
interpretação das leis, definidas no art. 9º nº 3 do C. Civ., terá de
presumir-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube
exprimir o seu pensamento em termos adequados». [...]
À expressão «princípios» utilizada no nº 2 do art. 49º [do
Decreto-Lei nº 260/76] não pode, sob pena de se sacrificar a utilidade e a
unidade do preceito, atribuir-se significado diferente do que lhe foi dado pelo
próprio legislador no número 1 da mesma norma.
Se a intenção do legislador não fosse a de mandar aplicar às
instituições de crédito as bases gerais das empresas públicas não se
compreenderia que as tivesse dispensado de adaptar os respectivos estatutos a
essas bases gerais [...].
Estas normas [alínea g) do nº 2 e nº 4 do art. 13º do Decreto-Lei
nº 260/76] não padecem de qualquer inconstitucionalidade uma vez que, como já
foi dito, se contêm dentro das competências do governo do qual emanaram, sendo
irrelevante nesse sentido a interpretação que delas se possa fazer'.
Notificado deste acórdão, dele veio o autor
interpor recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art.
70º da Lei do Tribunal Constitucional. Nos termos do requerimento de
interposição, este recurso teria 'por âmbito o apuramento da
inconstitucionalidade do entendimento nele dado à norma constante do art.
13-2-g) do DL 260/76 (8.4), na redacção do D.L. 353-A/77 (29.8), que o
recorrente reputa violador do art. 114º da CRP, questão esta suscitada, nas suas
alegações de recurso e consubstanciada nas conclusões nºs 13ª, 14ª, 15ª, 16ª e
17ª' (a fls. 934).
Este recurso foi admitido por despacho de fls.
935.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Concedidos prazos para alegações, vieram a
apresentar esta peça processual quer o recorrente, quer o Banco recorrido.
Das conclusões da alegação do recorrente
respigam-se as que se referem à questão de constitucionalidade:
'11. Todas as empresas públicas estão sujeitas aos mesmos princípios - os
princípios do DL 260/76 - mas não são as mesmas as regras que os concretizam e
desenvolvem.
12. Às empresas públicas em geral aplicam-se as regras e os princípios do DL
260/76, pelo que os seus estatutos os não podem contrariar.
13. Quanto às instituições bancárias, parabancárias e seguradoras aplicam-se
apenas os princípios enformadores do DL 260/76
------------------------------------------------.
21. O DL 729-F/75 não contém qualquer norma que estabeleça um regime de tutela
correctiva «a priori ou a posteriori» semelhante à prevista no art. 13-2-g do DL
260/76 (8.4).
22. Os poderes de tutela não se presumem, antes têm de resultar de preceito
legal expresso.
23. A regra constante do art. 13º-2-g) do DL 260/78 (8.4), para se tornar
exequível, no tocante às instituições de crédito, necessita de mediação
concretizadora do legislador.
24. Caberia, em consequência, ao Governo, através da aprovação dos estatutos de
cada empresa, estabelecer, de entre os actos da lista constante da alínea g) do
nº 2 do art. 13º do DL 260/76, quais os actos que ficam sujeitos a controlo «a
priori» (sujeitos a autorização) e quais os que ficariam sujeitos a controlo «a
posteriori» (sujeitos a aprovação).
25. Não pode qualquer outra entidade, designadamente o Tribunal de Trabalho,
pela voz do seu juiz, substituir-se ao legislador e fixar de forma casuística
essa lista de actos e nem pode escolher de forma arbitrária o tipo de controlo a
que fica sujeito cada acto de uma determinada empresa.
-------------------------------------------------
33. O acórdão ora recorrido ao apontar para uma nulidade absoluta com recurso a
meras regras de interpretação e integração de lacunas, justifica uma «escolha»
que manifestamente ultrapassa os seus poderes (art. 114º da CRP) e assim
representa sempre uma manifesta ultrapassagem dos limites que o DL 260/76
estabelecia (reserva de estatuto).
34. Por outro lado, interpretada esse sentido, a Res. CM 163/80 sempre violaria
o art. 13º do DL 260/76 pelo que seria «contra legem» e, por isso, nesse plano,
nula.
35. Interpretada em sentido diverso a norma constante do art. 13º nº 2, alínea
g) daquele diploma terá de haver-se por inconstitucional, por violação do
princípio da separação de poderes (art. 114º da CRP).
36. Na verdade, a decisão recorrida esta atingida por uma dupla
inconstitucionalidade:
- sabendo-se que só existe tutela onde a lei a estabelecer de forma expressa,
sendo tal matéria de reserva legislativa do legislador, não pode o tribunal
escolher casuisticamente os casos em que, à falta de tal prescrição legislativa,
se deveria impor ou não uma tutela do tipo da invocada pelo R. (interpretação do
Art. 13-2-g), do DL 260/76 que aplicada na situação concreta dos presentes
autos, viola o princípio da separação dos poderes legislativos e judicial fixado
no art. 114º da CRP).
- o despacho do SET pretendia «suspender» (e não extinguir) o negócio jurídico
laboral sub iudice, ao pretender ter efeito retroactivo viola o principio do
Estado de direito na sua dimensão concreta de protecção dos cidadãos e da
segurança jurídica (art. 2 e 53 da CRP).
---------------------------------------------
44. A Resolução do Conselho de Ministros 163/80 (9.5) não é fonte imediata de
direito.
-------------------------------------------------
52. Cabe ao Governo, através de aprovação dos estatutos de cada empresa,
estabelecer, de entre os actos da lista constante do art. 13-2-g), do DL 260/76
(8.4) quais os actos que ficam sujeitos a controlo «a priori» (autorização) e
quais os actos que ficariam sujeitos a controlo «a posteriori» (aprovação).
53. A Res. CM 163/80 pela sua natureza derivada («regulamentar») não poderia
substituir-se ao legislador estatutário que, só aí, nos Estatutos de cada
Empresa Pública, poderia e devia consagrar a modalidade de tutela mais
conveniente à sua especialidade.
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58. Bem como tal decisão [da Relação de Coimbra] é inconstitucional, nos termos
do art. 207º da CRP, pela interpretação que faz dos normativos aplicáveis e em
especial do art. 13º-2-g) ao DL 260/76, que se afigura violadora do princípio da
separação de poderes constitucionalmente previsto no art. 114º da CRP'. (a fls.
953 vº a 957 vº)
Com as alegações, juntou nova versão do anterior
parecer do Prof. Doutor Gomes Canotilho.
O Banco recorrido sustentou, por seu turno, que
não se devia tomar conhecimento do objecto do recurso, porque o recorrente se
limitara a impugnar a constitucionalidade da decisão judicial recorrida,
invocando um pretenso erro de julgamento da sentença de primeira instância, mas
sem atentar na interpretação acolhida nessa decisão e no acordão recorrido.
Nesse sentido, invocou uma exposição do relator no Tribunal Constitucional,
elaborada no Processo nº 144/95, da 2ª Secção deste órgão jurisdicional.
Notificado o recorrente para se pronunciar sobre
esta questão prévia, nada veio dizer no prazo legal. O recorrido, por seu turno,
veio juntar aos autos cópia do Acórdão nº 243/95, da 2ª Secção do Tribunal, que
acolheu a doutrina da exposição do relator atrás referida.
3. Foram corridos os vistos legais.
Cumpre, pois, delimitar o objecto do recurso e
verificar se o Tribunal Constitucional pode conhecer do seu objecto, isto é, se
procede ou não a questão prévia suscitada.
II
4. De harmonia com o requerimento de interposição
do recurso de fls. 934, o ora recorrente pretende que o Tribunal Constitucional
apure a invocada inconstitucionalidade do entendimento perfilhado no acórdão da
Relação de Coimbra de 10 de Novembro de 1994 relativamente à norma do art. 13º,
nº 2, alínea g), do Decreto-Lei nº 260/78, de 8 de Abril, na redacção
introduzida pelo Decreto-Lei nº 353-A/77, de 29 de Agosto, entendimento esse que
o recorrente reputa ser violador do art. 114º da Constituição.
Dispõe o preceito em causa (cuja redacção
remonta, aliás, à versão primitiva do diploma, uma vez que as redacções
introduzidas pelos Decretos-Leis nºs 353-A/77, de 29 de Agosto e 25/79, de 19 de
Fevereiro não alteraram a versão primitiva dessa alínea. Acrescente-se que não
haverá que considerar a actual redacção do art. 13º do Decreto-Lei nº 260/76,
uma vez que a mesma resulta de alterações introduzidas por legislação posterior
à vigente no momento relevante para a situação dos autos, ou seja, o mês de
Janeiro de 1983 - cfr. Decreto-Lei nº 29/84, de 20 de Janeiro, e Lei nº 16/90,
de 20 de Julho):
'nº 2. Da lista de actos dependentes de autorização ou aprovação do Ministro da
Tutela, nos termos da alínea b) do número anterior, devem necessariamente
constar:
-------------------------------------------------
g) O estatuto do pessoal, em particular no que respeita à fixação de
remunerações.'
Para cabal entendimento deste preceito, importa
referir que o nº 1 do artigo 13º do Decreto-Lei nº 260/76 (na redacção vigente
nas datas de aprovação das duas deliberações do Conselho de Gestão do Banco
recorrido que estão em causa no presente processo) dispunha que a tutela das
empresas públicas, a cargo do Ministro da Tutela, compreende '[o] poder de
autorizar ou aprovar os actos expressamente indicados em lista constante do
estatuto de cada empresa que não sejam os de carácter financeiro contempladas no
nº 2 deste artigo'.
Por outro lado, importa ainda ter em conta -
porque o Banco réu era, nas datas relevantes de Janeiro de 1983, um banco
nacionalizado, que não dispunha de estatutos próprios, mas se regia pelo
diploma que estabelece o estatuto legal das instituições de crédito
nacionalizadas, Decreto-Lei nº 729-F/75, de 22 de Dezembro, com as alterações
introduzidas pelos Decretos-Leis nºs 513/77, de 14 de Dezembro, 2/78, de 9 de
Janeiro, 51/79, de 22 de Março, e 176/79, de 7 de Junho - que o art. 49º, nº 2,
do Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de Abril (na redacção introduzida pelo
Decreto-Lei nº 353-A/77, de 29 de Agosto), dispõe que 'as empresas públicas
exceptuadas no número anterior ficam, porém, sujeitas aos princípios fixados no
presente diploma' (o nº 1 deste artigo estabelece que o Banco de Portugal, as
instituições bancárias, parabancárias e seguradoras eram as únicas empresas
públicas existentes que ficavam excluídas legalmente da obrigação de adaptarem
os respectivos estatutos aos princípios consagrados no Decreto-Lei nº 260/76, no
prazo de 120 dias a partir da sua entrada em vigor).
5. Segundo a tese do recorrente, o acórdão ora
sub judicio teria interpretado a norma que constitui objecto do recurso de forma
inconstitucional, violando o art. 114º da Constituição.
A questão de inconstitucionalidade objecto do
recurso foi suscitada nas alegações no recurso de apelação nos seguintes termos.
'14ª - A regra constante do art. 13º nº 2 al. g) do DL 260/76 de 8/4, [para ser
aplicável] às instituições de crédito, para se tornar exequível, necessita da
mediação concretizadora do legislador.
15ª - Caberia, em consequência, ao Governo, através da aprovação dos estatutos
da cada empresa, estabelecer, de entre os actos da lista constante da al. g) do
nº 2 do art. 13º do DL 260/76, de 8/4, quais os actos que ficam sujeitos a
controle «a priori» (sujeitos a autorização) e quais os que ficariam sujeitos a
controlo «a posteriori» (sujeitos a aprovação).
16ª - Não pode qualquer outra entidade, designadamente o Tribunal de Trabalho
pela voz do seu Juiz, substituir-se ao legislador e fixar de forma casuística
essa lista de actos e nem pode escolher de forma arbitrária o tipo de controlo a
que fica sujeito cada acto de uma determinada empresa.
17ª Interpretada em sentido diverso a norma constante do art. 13º nº 2 al. g)
terá de haver-se por inconstitucional, por violação do princípio da Separação de
Poderes (Art. 114º da CRP' (a fls. 882 e vº)
6. Importa, face ao exposto, averiguar se se
verificam no caso sub judicio os pressupostos de admissibilidade do recurso de
constitucionalidade, interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 70º da
Lei do Tribunal Constitucional, de modo que este Tribunal possa conhecer do
objecto desse recurso, ou, por outras palavras, apreciar se é procedente a
questão prévia suscitada pelo Banco recorrido.
Não restam dúvidas de que o recorrente suscitou
durante o processo uma questão de inconstitucionalidade normativa, imputando o
vício de inconstitucionalidade não a todas as dimensões da norma, mas a um
segmento ou dimensão, nos termos atrás transcritos.
Mas resta averiguar se se verifica um outro
pressuposto de admissibilidade do recurso: o pressuposto que consiste em a norma
identificada, com a interpretação alegadamente inconstitucional, ter sido
aplicada na decisão recorrida como verdadeira ratio decidendi ou, pelo menos,
como uma das possíveis rationes decidendi.
De facto, como decorre das conclusões 14ª a 17ª
da alegação apresentada no recurso de alegação, que agora se deixaram
transcritas, o recorrente considerou que a alínea g) do nº 2 do art. 13º do
Decreto-Lei nº 260/76 não é inconstitucional em todas as suas interpretações,
mas apenas numa certa interpretação: pressupondo que tal norma necessitaria da
mediação concretizadora do legislador governamentável, através da aprovação por
decreto-lei dos estatutos da empresa pública em questão, não poderia o tribunal
substituir-se ao legislador e fixar de forma casuística uma lista de actos de
tutela, nem poderia escolher de forma arbitrária o tipo de controlo a que
ficaria sujeito cada acto de uma determinada empresa, sob pena de haver violação
do art. 114º da Constituição (o nº 1 deste artigo determina que os órgãos de
soberania devem observar a separação e a interdependência estabelecidas na
Constituição).
Da leitura do acórdão impugnado pelo recorrente
não se alcança, porém, que a norma em causa haja sido aplicada com o sentido
alegadamente inconstitucional. Pelo contrário, aí se resolveu um problema
complexo de interpretação de várias normas de direito ordinário, sobre o qual
diversos jurisconsultos não lograram pôr-se de acordo.
Por uma lado, o Tribunal da Relação de Coimbra
não tomou qualquer posição sobre o pressuposto de que seria indispensável a
mediação concretizadora do legislador governamental para determinar quais os
actos sujeitos a tutela governamental, no que se refere às instituições
bancárias nacionalizadas (note-se, aliás, que, como se refere no parecer do
Prof. Doutor Gomes Canotilho junto aos autos pelo recorrente, o Decreto-Lei nº
260/76 previa que a Constituição de empresas públicas se fizesse por decreto
referendado pelo Primeiro-Ministro e por certos membros do Governo, decreto esse
que conteria em anexo os estatutos da empresa pública, sendo duvidoso na
doutrina se a Constituição impõe neste caso a reserva de lei).
Tendo em atenção o acórdão recorrido, daí se
retira que, por interpretação do nº 2 do art. 49º do Decreto-Lei nº 260/76, o
Tribunal da Relação de Coimbra entendeu que se aplicavam ao Banco ora recorrido
os princípios desse diploma, entre os quais o de sujeição à tutela em matéria de
fixação de remunerações do seu pessoal. E, segundo o mesmo acórdão, o subsídio
de valorização teria a natureza jurídica de uma retribuição remuneratória, pelo
que a respectiva atribuição teria de ter sido autorizada ou aprovada pelos
Ministros das Finanças e do Trabalho.
Verifica-se, pois, que o Tribunal da Relação de
Coimbra considerou que, por força do disposto no nº 2 do art. 49º do Decreto-Lei
nº 260/76, as instituições de crédito nacionalizadas (caso do Banco réu) - que
não dispunham de estatutos próprios nos termos da regulamentação constante do
Decreto-Lei nº 729-F/75 - estavam sujeitas a tutela do Governo, no que toca à
fixação de remunerações a pagar ao pessoal, sendo-lhes aplicável o princípio
legal constante da alínea g) do nº 2 do art. 13º do primeiro diploma, o qual não
tinha de ser particularizado por qualquer estatuto específico. Decorreria do nº
4 do art. 13º desse decreto-lei esta última conclusão.
É, assim, seguro que a interpretação de normas de
direito ordinário pela Relação de Coimbra - interpretação cuja bondade o
Tribunal Constitucional não tem competência para apreciar - não foi feita com o
sentido inconstitucional que o recorrente lhe imputa. A Relação não se arrogou
qualquer poder de, casuisticamente, suprir uma qualquer omissão estatutária, nem
se substituiu ao legislador, violando eventual reserva de estatuto. Considerou
que da concatenação das disposições legais referidas, resultava a necessidade de
autorização ou aprovação tutelar, cuja falta acarretava a ineficácia da decisão.
7. Ora, não tendo sido aplicada pelo acórdão
recorrido a norma que constitui objecto do presente recurso com a interpretação
que o recorrente reputa de inconstitucional, falta um pressuposto de admissão
do recurso, que impede que o Tribunal Constitucional conheça do seu objecto.
Repare-se, por outro lado, que o Tribunal
Constitucional não pode controlar - como sustenta, e bem, o Banco recorrido - a
eventual inconstitucionalidade da decisão judicial, enquanto aplica normas com
uma interpretação que não é contrária à Constituição. Só através de um recurso
do tipo do amparo espanhol ou da queixa constitucional alemã é que poderia
apreciar-se a inconstitucionalidade do próprio acto de aplicação do direito.
Ora, tal modalidade de recurso não é admitida no direito constitucional
português.
Procede, nesse ponto, plenamente a questão prévia
suscitada pelo Banco recorrido e que não mereceu resposta do recorrente.
8. Em recurso interposto para este Tribunal de
uma decisão proferida pela Relação de Coimbra, numa acção intentada por outro
trabalhador bancário contra o Banco ora recorrido, a 2ª Secção de Tribunal
Constitucional absteve-se igualmente de conhecer do objecto desse recurso. Na
exposição do relator confirmada pelo Acórdão nº 243/95, ainda inédito, pode
ler-se:
'Não foi, assim, por apelo às directivas constantes de qualquer Resolução do
Conselho de Ministros (particularmente a Resolução nº 163/80) que o acórdão sub
specie veio a entender que a deliberação em causa, tomada pelo Conselho de
Gestão da Ré, havia de estar sujeita à fiscalização tutelar. O que vale por
dizer que não interpretou a alínea g) do nº 2 do art. 13º do D.L. nº 260/76 por
forma a daí decorrer que seria por uma intervenção resolutiva do Conselho de
Ministros que se iria saber quais os actos dos cabidos órgãos das «instituições
públicas de crédito» que seriam objecto de intervenção tutelar (de fiscalização,
enfim)'.
E daí se retirou a conclusão de que o acórdão sub
judicio não havia interpretado a norma impugnada com o sentido invocadamente
inconstitucional, pelo que não se verificaria o requisito exigido para a
abertura de via de recurso contemplada na alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei
do Tribunal Constitucional.
As considerações feitas nesse acórdão são
transponíveis para a presente situação, sendo certo que, entretanto, a 1ª Secção
do Tribunal Constitucional já tirou quatro acórdãos, ainda inéditos, no sentido
de que não pode conhecer do objecto do recurso, em recursos idênticos ao
presente.
III
9. Termos em que decide o Tribunal Constitucional
não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de
justiça em quatro (4) unidades de conta.
Lisboa, 5 de Dezembro de 1995
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
José Manuel Cardoso da Costa