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Proc. nº 380/91
Plenário
Cons. Ribeiro Mendes
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
I
1 – A. interpôs em 17 de Junho de
1991 recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão de 5 do mesmo mês e ano
do Supremo Tribunal de Justiça proferido na sequência de um acórdão do Tribunal
Constitucional que dera provimento a um anterior recurso de constitucionalidade
(Acórdão nº 77/91, da 2ª Secção deste último Tribunal).
O recurso foi interposto ao abrigo do artigo 70º
, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, declarando o recorrente
pretender que fosse 'apreciada a inconstitucionalidade do artigo 665 do Código
de Processo Penal [de 1929] que viola os artigos 32 e 208 da Constituição da
República Portuguesa bem como o artigo 6 da Convenção Europeia dos Direitos do
Homem, o artigo 14 do Pacto Internacional de Direitos Cívicos [pretende-se dizer
'Civis'] e Políticos de 16 de Dezembro de 1966 e o artigo 11 da Declaração
Universal dos Direitos do Homem e ainda o Princípio do Duplo Grau de Jurisdição
de Facto admitido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional' (a fls. 1232).
O recorrente sustentou ainda que o recurso devia ter efeito suspensivo.
Simultaneamente pediu a concessão de apoio judiciário, abrangendo a dispensa
total de pagamento de preparos e custas, solicitando a manutenção de anterior
decisão que já lhe concedera apoio judiciário, em momento em que se encontrava
ainda detido, atendendo às condições económicas em que se encontra após a
restituição à liberdade.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 1234.
2 - Subiram os autos ao Tribunal Constitucional,
tendo sido determinado pelo Presidente deste, antes da distribuição do processo,
que o julgamento do recurso se fizesse com a intervenção do plenário, obtida
previamente a concordância do Tribunal nesse sentido, nos termos do art. 79º-A,
nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
3 - Distribuído o processo, foi proferido
despacho a fixar prazo para alegações.
O recorrente, nas suas alegações, preconizou que
fosse concedido provimento ao seu recurso, revogando-se o segundo acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça, a fim de que fosse dado cumprimento ao disposto no
art. 80º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional, e fosse ordenada 'a repetição
do julgamento, com reapreciação de toda a matéria de facto' no Tribunal da
Relação de Lisboa. Nessa peça processual, formularam-se as seguintes
conclusões:
'1 - O actual sistema de recursos em processo penal é notoriamente insuficiente
e viola o princípio do duplo grau de jurisdição de facto.
2 - O actual sistema de recursos é um absurdo enquanto não se verificar uma das
seguintes hipóteses:
a) A gravação ou filmagem de todo o julgamento efectuado pelo
Tribunal Colectivo de modo a ser visionada pelo tribunal ad quem ... ou;
b) A repetição - novo julgamento - no tribunal que, investido
mediante a interposição de recurso - reaprecia novamente toda a prova:
interrogatório de arguidos, inquirição de testemunhas, do assistente, leitura
e exame da prova documental, alegações do M.P. e do defensor ...etc....etc..
3 - Só mediante a verificação de uma das hipóteses descritas na conclusão 2. se
verificará existir um verdadeiro recurso de facto digno de tal nome e se
observará o respeito pelo princípio do duplo grau de jurisdição de facto
consagrado no nº 5 do artigo 14 do pacto internacional dos direitos civis e
políticos, aprovado para ratificação pela Lei 29/78 de 12 de Junho.
4 - Nas garantias de defesa que o processo penal deve assegurar nos termos do
artigo 32 da Constituição da República inclui-se o recurso das decisões do
tribunal colectivo em matéria de facto.
5 - O artigo 665 do CPP de 1929 na interpretação que lhe foi dada pelo assento
do STJ de 29 de Junho de 1934 não constitui uma garantia suficiente para os
efeitos do citado preceito constitucional se conjugado com os artigos 466 - a
prova produzida perante o tribunal colectivo não é reduzida a escrito - e 469 do
mesmo CPP - as respostas aos quesitos não são fundamentadas.
6 - Só com a reapreciação integral de toda a matéria de facto na II instância se
respeitará o princípio do duplo grau de jurisdição de facto admitido pela
jurisprudência do Tribunal Constitucional.
7 - O acórdão recorrido não refutou os argumentos em que o ora recorrente
analisou a inconstitucionalidade supra citada.
8 - O acórdão recorrido não deu cumprimento à disposição legal estabelecida na
Lei nº 28/82 - artigo 80, 2 - de 15 de Novembro pois que tendo o recorrente
solicitado novo, [julgamento] - repetição do julgamento na II instância -
deveria o STJ ter ordenado à Veneranda Relação de Lisboa e em consonância com
tal normativo que se procedesse à repetição do julgamento.
9 - Deve assim em obediência ao princípio do duplo grau de jurisdição de facto
e ao consignado no art. 80 - 2 da Lei 28/82 ser determinado que a Veneranda
Relação proceda a novo julgamento consoante aliás o alegado pelo recorrente'. (a
fls. 1249-1250)
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, por
seu turno, subscreveu as alegações do recorrido Ministério Público, formulando
as seguintes conclusões:
'1º Não se deve tomar conhecimento do recurso, porque a decisão recorrida não
aplicou a norma impugnada pelo recorrente; na verdade, enquanto este questiona a
norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, com a interpretação
(restritiva) do Assento de 29 de Junho de 1934, aquela decisão fez aplicação da
norma daquele artigo, sem a interpretação do Assento, antes integrada com as
pertinentes disposições do Código de Processo Penal de 1987;
2º - Caso assim se não entenda, deve julgar-se não inconstitucional a norma do
artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929 tal como foi aplicada ao caso
concreto pelo acórdão da Relação de Lisboa, confirmado pelo acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça, ora recorrido, ou seja, sem a interpretação do Assento de
29 de Junho de 1934, antes integrada pelas disposições do Código de Processo
Penal de 1987 [por lapso, indica-se 1929], que conferem às Relações amplo
conhecimento da matéria de facto, inclusive com renovação, perante elas, da
prova reputada pertinente.' (a fls. 1297-1298).
Notificado para se pronunciar, querendo, sobre a
questão prévia suscitada, limitou-se o recorrente a declarar que mantinha 'na
íntegra todas as conclusões das alegações de recurso apresentadas em 6 de
Novembro de 1991' (a fls. 1300).
4. Foram corridos os vistos legais.
5. Como havia sido suscitada a questão prévia de
não conhecimento do recurso, o Tribunal Constitucional veio, através do Acórdão
nº 189/94, proferido em 23 de Fevereiro de 1994, a desatender a mesma, fixando
do seguinte modo o objecto do presente recurso: a questão de constitucionalidade
da norma efectivamente aplicada no acórdão recorrido, a saber, a norma
construída a partir 'do art. 665º do Código de Processo Penal de 1929, sem a
sobreposição interpretativa do Assento de 29 de Junho de 1934, integrada pelas
disposições do novo Código de Processo Penal que disciplinam o recurso das
decisões proferidas pelo tribunal singular de primeira instância'.
II
6. Conforme se referiu no citado Acórdão nº
189/94, o ora recorrente interpôs recurso do acórdão do tribunal colectivo da
comarca de Sintra que o condenou, em cúmulo jurídico, a uma pena única de onze
anos e seis meses de prisão e a pagar diversas indemnizações, pela prática de
seis crimes de furto qualificado e de um crime de falsificação de documentos.
Nas alegações apresentadas no recurso interposto
para a Relação de Lisboa, o ora recorrente suscitou como 'questão prévia' a
violação do princípio constitucional do duplo grau de jurisdição pelo art. 665º
do Código de Processo Penal de 1929 (C.P.P. 1929), com a sobreposição
interpretativa do Assento de 29 de Junho de 1934, bem como a violação do
princípio da fundamentação ou motivação das decisões judiciais. Considerou
igualmente que não se haviam provado os elementos objectivos e subjectivos das
infracções que lhe haviam sido imputadas, sustentando que seria patente a falta
de fundamentação e até a total oposição nas respostas aos quesitos formulados
pelo tribunal colectivo, sendo obscura tal formulação quanto a diferentes
quesitos, e pondo em destaque a circunstância de ele próprio e de outros dois
arguidos não terem confessado os crimes mais graves que lhes eram imputados.
Alegou ainda que a circunstância de ser agente da Polícia de Segurança Pública
tinha constituído um factor de discriminação durante a investigação levada a
cabo pela Polícia Judiciária e no tratamento dado no acórdão condenatório (a
fls. 1019 a 1030 dos autos).
Apreciando este recurso, o Tribunal da Relação de
Lisboa levou em conta o julgamento do Tribunal Constitucional no sentido da
inconstitucionalidade do art. 665º C.P.P. 1929, com a sobreposição
interpretativa do referido Assento de 1934, constante do Acórdão nº 219/89, e
ponderou o seguinte:
'Independentemente da discussão, sempre possível em virtude de a orientação
indicada não possuir, neste momento, força obrigatória geral, da doutrina desse
acórdão [nº 219/89 do Tribunal Constitucional] a leitura do mesmo conduz,
linearmente, aos seguintes resultados:
a) A interpretação dada ao artigo 665º do Código de 1929 pelo Assento de 29 de
Junho de 1934 sofre de inconstitucionalidade posterior à sua prolação (só
verificada pouco antes de passados 13 anos sobre a entrada em vigor da actual
Constituição ...);
b) A declaração de tal inconstitucionalidade implica a inaceitabilidade da
doutrina do Assento e, porque a lei de 1929, e as suas alterações posteriores
não prevêem a hipótese, implica a necessidade do recurso à interpretação
analógica para suprir a lacuna;
c) A interpretação analógica acabada de referir obriga, por seu lado, à
aplicação, aos julgamentos efectuados em tribunal colectivo criminal (ou com
júri), de um regime semelhante ao que, no actual Código de 1987, foi
estabelecido para a possibilidade de repetição do julgamento pelo Tribunal de
recurso (artigos 363º e 364º, nº 3, 410º, nº 2, e 430º).
Nessa medida, e para que o Tribunal de recurso possa proceder à renovação
da prova, será necessário:
a) que, antes do interrogatório do arguido, tenha sido requerido que se
procedesse à documentação da prova;
b) que o recurso tenha como fundamento, e desde que o vício resulte do texto da
decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, o
erro notório na apreciação da prova, ou a insuficiência dos factos;
c) que o recorrente indique, a seguir às conclusões, as provas que ele entenda
deverem ser renovadas perante o tribunal de recurso, com menção, em relação a
cada uma, dos factos que se destina a esclarecer e as razões que justificam a
renovação'. (a fls. 1054 e vº dos autos)
Estabelecido este regime de preenchimento da
lacuna decorrente de um juízo de inconstitucionalidade do art. 665º CPP 1929,
com a interpretação dada pelo Assento de 1934, o acórdão da Relação em análise,
proferido em 30 de Maio de 1989, concluiu que não podia haver renovação da
prova, no caso concreto, perante o tribunal de segunda instância, visto o
recorrente não ter requerido em devido tempo a documentação da prova, nem ter
agido de harmonia com o modelo construído para preenchimento da lacuna:
'Nestas circunstâncias, e mesmo a admitir-se constituir princípio geral de
direito a possibilidade de reapreciação da prova oral produzida perante um
tribunal colectivo, quando tenha sido interposto recurso, tem de se reconhecer
que, no caso concreto, não só não é patente a existência de vício que conduza à
reapreciação da prova, como também que o recorrente, por culpa sua, não agiu por
forma a permitir que esta Relação pudesse proceder a uma tal reapreciação, em
harmonia com os moldes e parâmetros de interpretação analógica definidos pelo
Tribunal Constitucional.
Desta forma, e dentro dos parâmetros suscitados pelo recorrente e
com a interpretação dada pelo Tribunal Constitucional, a invocada
inconstitucionalidade do regime processual do artigo 665º do Código de Processo
Penal, na forma dada pelo Assento de 29 de Junho de 1934, a eventual declaração
de inconstitucionalidade desse regime não teria quaisquer efeitos na apreciação
de prova.
Por tal motivo, e porque não compete a esta instância qualquer
declaração abstracta de inconstitucionalidade de normas, não há que decidir esse
ponto neste Tribunal, por apenas haver que referir que, quer se considere ainda
em vigor aquele regime, quer se considere aplicável o regime analógico indicado
por aquele Alto Tribunal, não é possível, no caso concreto, proceder-se a
qualquer renovação da prova.' (a fls. 1054 vº - 1055)
O acórdão condenatório de primeira instância veio
a ser integralmente confirmado pela Relação de Lisboa, após análise detalhada
dos restantes fundamentos do recurso.
Ainda inconformado, o ora recorrente interpôs
recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, mas este último confirmou
integralmente as decisões das instâncias, sustentando que o art. 665º C.P.P.
1929, interpretado pelo Assento de 1934, não sofria de inconstitucionalidade
(acórdão de fls. 1100 a 1105, proferido em 28 de Março de 1990).
Deste acórdão, foi interposto recurso para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo do art. 70º, nº 1, alínea b), da Lei do mesmo
Tribunal.
Através do seu Acórdão nº 77/91, o Tribunal
Constitucional concedeu provimento ao recurso, julgando o art. 665º C.P.P. 1929,
na interpretação do Assento de 29 de Junho de 1934, inconstitucional, pelas
razões constantes do Acórdão nº 340/90, proferido pelo plenário do Tribunal, de
harmonia com o art. 79º - D da respectiva lei.
7. O Supremo Tribunal de Justiça teve então de
reformar o seu anterior acórdão, para dar cumprimento à citada decisão do
Tribunal Constitucional (acórdão de 5 de Junho de 1991, a fls. 1221 a 1227).
E considerou, nessa ocasião, que não tinha de
decretar a anulação do acórdão da Relação de Lisboa, porque este último Tribunal
não se tinha escusado da apreciação da matéria de facto por limitações legais:
'Porém, não é essa a situação que se verifica neste processo: o Tribunal da
Relação, conhecedor já da posição do Tribunal Constitucional, recusou
expressamente a aplicação ao caso do art. 665º, na interpretação do Assento.
Já partiu do princípio de que isso ofendia a nossa Constituição
e, assim, aceitou que tinha poderes para entrar num conhecimento amplo da
matéria de facto e até para proceder à renovação da prova.' (a fls. 1226 dos
autos)
E, mais à frente, escreveu o Supremo Tribunal de
Justiça:
'Conforme o art. 665º, as Relações conhecerão de facto das decisões finais dos
tribunais colectivos e das proferidas nos processos em que intervenha o júri,
«baseando-se para isso, nos documentos, respostas aos quesitos e em quaisquer
outros elementos constantes dos autos».
Ora, não só porque no recurso que apresentou o recorrente não
indicou qualquer facto concreto que devesse ter tido uma decisão diferente, e,
muito menos, os elementos de prova que pudessem contrariar a decisão de facto
que foi tomada, a Relação entendeu que não devia ela ser alterada.
+++++++++
Por outro lado, era nítido, face às alegações, inclusive às
conclusões do recurso, que o recorrente apenas pretendia a renovação de toda a
prova perante o Tribunal da Relação [...]
Ora, não é isso que o art. 665º do C.P. Penal de 1929 permite,
assim como o não permite o actual C.P. Penal [...]
Ora, foi precisamente isso que o Tribunal da Relação decidiu.
Que é possível a renovação de prova, a fazer nesse Tribunal, nos
casos e nas condições definidas pelo actual C.P. Penal, a aplicar por analogia,
face aos termos em que o princípio do duplo grau de jurisdição deve ser aplicado
e à omissão, no C.P. Penal de 1929, de regulamentação desses termos.
O Tribunal da Relação podia até ter singelamente decidido que o
art. 665º não permite, de qualquer forma, a renovação de prova na 2ª instância;
porém, até entendeu, neste processo, que ela podia ser de admitir, mas, apenas,
nos termos e condições em que é concedida no actual C.P. Penal, que respeita as
nossas bases constitucionais.
O Tribunal da Relação extravasou, pois, a interpretação mais
literal do art. 665º e, para garantir os direitos dos recorrentes, adaptou-lhe
as regras do actual C.P.Penal.
Como o recorrente, no seu recurso, não agiu por forma a permitir
à Relação a reapreciação de prova produzida perante o Tribunal colectivo e, por
outro lado, não é patente a existência de qualquer vício da decisão sobre a
matéria de facto, julgou improcedente o recurso.
Ora, nos termos expostos, essa decisão tem de ser confirmada
neste momento'. (a fls. 1226-1227 dos autos)
Em consonância com a fundamentação transcrita, o
Supremo Tribunal de Justiça considerou que os seus poderes de cognição estavam
limitados à matéria de direito, nos termos do art. 666º C.P.P. 1929. Concluiu
ainda que não ocorria nenhuma nulidade no acórdão da Relação, relativamente ao
pedido de renovação de toda a prova produzida, porquanto este último Tribunal
agira 'dentro dos poderes' que lhe eram conferidos pelo art. 665º C.P.P. 1929,
'admitindo até uma actualização, por integração analógica da lacuna, no sentido
desejado pelo recorrente, embora sem atingir a latitude que o recorrente
pretendia'. (fls. 1227 vº). Nessa medida, julgou improcedente o recurso,
confirmando a decisão da Relação de Lisboa.
8. O Tribunal Constitucional, através do seu
Acórdão nº 401/91 (publicado no Diário da República, I Série - A, nº 6, de 8 de
Janeiro de 1992), declarou 'a inconstitucionalidade, com força obrigatória
geral, da norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, na
interpretação que lhe foi dada pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29
de Junho de 1934, por violação do disposto no artigo 32º, nº 1, da
Constituição.'
Dispunha o art. 665º em causa (redacção do
Decreto nº 20.147, de 1 de Agosto de 1931):
'As Relações conhecerão de facto e de direito nas causas que julguem em 1ª
instância, nos recursos interpostos das decisões proferidas pelos juízes de 1ª
instância, das decisões finais dos tribunais colectivos e das proferidas nos
processos em que intervenha o júri, baseando-se para isso, nos dois últimos
casos, nos documentos, respostas aos quesitos e em quaisquer outros elementos
constantes dos autos.'
Por seu turno, o Assento do Supremo Tribunal de
Justiça de 29 de Junho de 1934 (publicado no Diário do Governo, I Série, de 11
de Julho de 1934), veio interpretar aquele artigo nos seguintes termos:
'O artigo 665º do Código de Processo Penal, modificado pelo Decreto nº 20 147,
de 1 de Agosto de 1931, relativamente à competência das relações em matéria de
facto, tem de entender-se no sentido de as mesmas relações só poderem alterar as
decisões dos tribunais colectivos de 1ª instância em face dos elementos do
processo que não pudessem ser contrariados pela prova apreciada no julgamento e
que haja determinado as respostas aos quesitos' (veja-se o texto do acórdão in
Revista dos Tribunais, ano 52º, 1934, págs. 200-201, com anotação concordante).
9. Perante a referida declaração de
inconstitucionalidade com força obrigatória geral, cabe perguntar, num primeiro
momento, se o art. 665º do Código de Processo Penal de 1929, sem a sobreposição
interpretativa do Assento de 1934, se pode ter por conforme à Constituição
vigente.
A esta pergunta, já deu o Tribunal Constitucional
resposta negativa, nos seus recentes Acórdãos nºs 190/94, e 430/94 (o primeiro
ainda inédito, e o segundo publicado no Diário da República, II Série, nº 8, de
10 de Janeiro de 1995) tirados por maioria, em processos julgados com a
intervenção do seu plenário, ao abrigo do art. 79º -A da Lei do Tribunal
Constitucional. Escreveu-se no primeiro desses arestos:
'O recurso das decisões do tribunal colectivo em matéria de facto inclui-se
nesse elenco de garantias, como expressamente se reconheceu no anterior Acórdão
proferido nestes autos - o nº 236/91 - alicerçado já no Acórdão nº 340/90.
Reiterando-se o então decidido, importará sublinhar que a
articulação do artigo 665º com outros preceitos do mesmo Código, maxime o artigo
469º, sobre a não fundamentação das respostas aos quesitos, enfraquece, desde
logo, intoleravelmente o poder das Relações previsto na norma apreciada, tal
como redigida ficou pelo Decreto nº 20 147.
Para o Supremo, na decisão recorrida, e numa linha de
desenvolvimento argumentativo que se harmoniza com a citada jurisprudência do
Tribunal Constitucional, a norma do artigo 665º, como tal considerada,
configura-se inconstitucional, dado subsistirem, perante ela, as limitações dos
poderes das Relações na apreciação da matéria de facto constante das decisões
do colectivo.
Na verdade, essa alteração só é admissível se apoiada em
elementos que não pudessem ter sido alterados pela prova produzida em julgamento
e não reduzida a escrito e se (e quando) esses elementos autorizem legalmente a
modificação.
De outro modo, o conteúdo essencial da defesa do arguido será
posto em causa, ao negar-se-lhe a faculdade de recorrer, de facto e de direito
(ou reconhecendo-a só em parte). O que, não significando poder recorrer-se de
todo e qualquer acto judicial, não é passível de limitações perante decisões
condenatórias ou respeitantes à situação do arguido, face à privação ou
restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais [...]'.
10. No caso sub judicio, o Supremo Tribunal de
Justiça, ao reformar o seu anterior acórdão, em cumprimento do decidido pelo
Acórdão nº 77/91, - tal como sucedera, de resto, no processo em que foi tirado o
Acórdão nº 190/94 do Tribunal Constitucional acabado de citar - entendeu que a
Relação de Lisboa agira correctamente ao considerar que um juízo de
inconstitucionalidade sobre o art. 665º C.P.P. 1929, com a sobreposição
interpretativa do Assento de 1934, implicava a existência de uma lacuna de
regulamentação que tinha de ser preenchida através do recurso à analogia (cfr.
art. 10º do Código Civil). Como se viu atrás, neste acórdão considerou-se que a
Relação de Lisboa não se limitara 'singelamente a admitir que o art. 665º
C.P.P. 1929 não permitia, de qualquer forma, a renovação da prova perante a
segunda instância, indo mais longe, isto é, até ao ponto de admitir tal
renovação de prova, por entender que tal imposição decorria das «nossas bases
constitucionais»'.
11. De facto, logo no Acórdão nº 219/89 (in
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13º vol., Tomo II, págs. 717 e segs.), o
Tribunal Constitucional - ao julgar pela primeira vez inconstitucional o art.
665º do CPP 1929, com a sobreposição do Assento de 1934 - considerou que
incumbiria 'naturalmente' ao tribunal recorrido 'determinar as medidas - de
acordo com os cânones pertinentes em matéria de integração - que, com vista a
garantir um verdadeiro recurso em matéria de facto, permitam à Relação
reapreciar essa mesma matéria, não cabendo, obviamente, ao Tribunal
Constitucional resolver tal questão' (pág. 771).
Deve notar-se que - a ter-se o art. 665º do CPP
de 1929 como inconstitucional sem a sobreposição do Assento de 1934, como tem
vindo a ser julgado pelo Tribunal Constitucional - não poderia encarar-se a
repristinação da redacção primitiva do artigo, visto que, nessa redacção, as
Relações apenas conheciam de matéria de direito, nos recursos interpostos das
decisões finais dos tribunais colectivos e das proferidas nos processos em que
interviesse o júri. Tal solução contrariaria, aliás, o art. 32º, nº 1, da
Constituição em grau ainda mais intenso.
Acrescente-se que a redacção introduzida no art.
665º pelo Decreto nº 20147 foi criticada pela doutrina por alegada incoerência.
Luís Osório, por exemplo, afirmava que tal alteração não se compreendia, nem se
justificava: '[s]e não há confiança nos tribunais colectivos modifiquem-se ou
suspendam-se; se quer manter-se o recurso sobre matéria de facto escrevam-se os
depoimentos e acabe-se com a oralidade, ou reproduza-se oralmente a prova no
segundo julgamento' (Comentário ao Código de Processo Penal Português, 6º vol.,
Coimbra, 1934, pág.375).
12. No acórdão sob recurso, o Supremo Tribunal de
Justiça pronunciou-se no sentido de que a pretensão do recorrente, de renovação
de toda a prova anteriormente produzida perante o tribunal de segunda instância,
não decorria de uma imposição da própria Constituição, como de resto o Tribunal
Constitucional considerara no seu Acórdão nº 340/90 (in Diário da República, II
Série, nº 65, de 19 de Março de 1991): o julgamento de inconstitucionalidade do
art. 665º C.P.P. 1929, com a sobreposição interpretativa do Assento de 1934, não
poderia ser entendido - escreveu-se neste último acórdão - como significando que
outra solução, que não fosse a repetição da prova em audiência pública perante
as Relações, estaria em conflito com a Constituição, isto porque, entre o
sistema em questão, que, na prática, e na grande maioria das situações,
reduziria a zero os poderes das Relações nos recursos penais em matéria de
facto, e o que ordenasse a repetição da prova em audiência pública perante o
tribunal de recurso, outros haveria certamente - não competindo ao Tribunal
Constitucional indicá-los - que não poriam em causa as garantias de defesa que o
processo criminal deve assegurar, por força do art. 32º, nº 1, da Constituição
(recorda-se que o Tribunal Constitucional considerara no seu Acórdão nº 219/89,
em passo transcrito no Acórdão nº 340/90, que o sistema complexo previsto no
art. 665º C.P.P. 1929, com a interpretação do Assento de 1934, violava o art.
32º, nº 1, da Constituição, porque, independentemente de outras razões, a prova
produzida perante o tribunal colectivo não era reduzida a escrito, de harmonia
com o art. 466º desse diploma, nem as respostas aos quesitos haviam de ser
fundamentadas, de harmonia com o art. 469º do mesmo Código).
13. Pode desde já adiantar-se que não assiste
razão ao ora recorrente quando sustenta que o art. 32º, nº 1, da Constituição,
integrado pelas disposições de direito internacional convencional que cita (em
especial, pelo art. 14º, nº 5, do Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos), impõe em todos os casos a reapreciação de toda a prova pelo tribunal
de segunda instância, quando tal seja solicitado pelo arguido, quer pelo acesso
às actas do julgamento onde foi registada a prova produzida, ou ainda através da
reprodução na Relação da gravação ou da filmagem do julgamento realizado perante
o tribunal de primeira instância, quer pela repetição de toda a prova em novo
julgamento a realizar perante o tribunal de segunda instância.
De facto, no actual Código de Processo Penal, no
recurso interposto de decisões do tribunal singular para as Relações, prevê-se
que estes tribunais conheçam de facto e de direito (art. 428º, nº 1): para tal,
exige-se que 'as declarações prestadas oralmente em audiência que decorre
perante tribunal singular' sejam documentadas na acta sempre que, até ao início
das declarações do arguido previstas no art. 343º, 'o Ministério Público, o
defensor ou o advogado do assistente declararem que não prescindem da
documentação' (art. 364º, nº 1). A falta desta declaração vale como renúncia ao
recurso em matéria de facto (art. 428º, nº 2), só podendo, neste caso, o
Tribunal da Relação conhecer de certos fundamentos respeitantes a matéria de
facto, 'desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou
conjugado com as regras da experiência comum', quando se sustente a
insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada, a
contradição insanável de fundamentação e o erro notório na apreciação da prova
(art. 410º, nº 2, ressalvado pelo nº 2 do art. 428º; também este artigo ressalva
o nº 3 do mesmo art. 410º, ou seja, a relevância da 'inobservância de requisito
cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada').
E, no que toca aos recursos interpostos das
decisões finais dos tribunais colectivos ou de júri para o Supremo Tribunal de
Justiça, o Tribunal Constitucional, embora com votos de vencido, tem considerado
que não sofrem de inconstitucionalidade os arts. 410º, nºs 2 e 3, e 433º do
Código de Processo Penal de 1987, acentuando o papel central que cabe ao dever
de fundamentação do acórdão desses tribunais, imposto pelo art. 374º, nº 2, do
mesmo diploma, pois que, além da enumeração dos factos provados e não provados,
da decisão de primeira instância há-de constar 'uma exposição, tanto quanto
possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que
fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a
convicção do tribunal' (vejam-se, entre outros, os Acórdãos nºs 322/93 e 172/94,
das segunda e primeira secções respectivamente, in Diário da República, II
Série, nº 254, de 29 de Outubro de 1993, e nº 165, de 19 de Julho de 1994).
No Acórdão nº 172/94, pode ler-se o seguinte,
para fundamentar a afirmação de que este regime de recursos preserva o núcleo
essencial do direito ao recurso em matéria de facto:
'Ora, o sistema de revista ampliada, previsto no Código de 1987, deve
considerar-se como um desses sistemas constitucionalmente compatíveis, pois que
protege o arguido dos perigos de um erro de julgamento (designadamente, de erro
grosseiro na decisão da matéria de facto) e, em concomitância, defende-o do
risco de uma sentença injusta.
Estando em causa o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça dos
acórdãos finais dos tribunais colectivos, há-de desde logo assinalar-se que o
tribunal colectivo (tendo em conta as regras do seu próprio modo de
funcionamento e as que presidem à audiência de julgamento) constitui, ele
próprio, uma primeira garantia no julgamento da matéria de facto [...].
Por outro lado, o Supremo Tribunal de Justiça poderá decretar a
anulação da decisão recorrida ou determinar o reenvio do processo para novo
julgamento, sempre que apurar a existência de insuficiência da matéria de facto,
contradição insanável da fundamentação ou erro notório na apreciação da prova.
O quadro de garantias que derivam de conjugação destas duas
vertentes de apreciação do processo criminal oferece aos cidadãos uma protecção
constitucionalmente adequada e defende-os, tanto quanto é legítimo extrair dos
princípios, da prolação de sentenças injustas'.
14. Acrescente-se que, no domínio do processo
civil, foi recentemente repensado o sistema de oralidade que vigora entre nós
desde 1939, abrindo-se a possibilidade de uma das partes optar sempre pela
documentação ou pelo registo da prova produzida em audiência perante juiz
singular, impondo o afastamento da intervenção do tribunal colectivo, quando
este devesse, em princípio, julgar a causa. A opção pela documentação ou registo
da prova abre a via do recurso amplo em matéria de facto perante o tribunal de
segunda instância, sendo certo que a lei impõe ao recorrente o ónus de
especificação de quais os concretos pontos de facto que considere
incorrectamente julgados, bem como os concretos meios probatórios, constantes do
processo ou de registo ou gravação nele realizada, que entenda imporem decisão
sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (art.
690º-A, nº 1, do Código de Processo Civil, redacção introduzida pelo Decreto-Lei
nº 39/95, de 15 de Fevereiro).
De harmonia com o que consta do preâmbulo deste
Decreto-Lei nº 39/95, a defesa da inovação do registo das provas produzidas, na
audiência de discussão e julgamento na primeira instância, é feita apontando
para o triplo objectivo visado:
- na perspectiva das garantias das partes no processo, 'as soluções ora
instituídas implicarão a criação de um verdadeiro e efectivo 2º grau de
jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando às partes na causa uma
maior e mais real possibilidade de reacção contra eventuais - e seguramente
excepcionais - erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da
matéria de facto relevante para a solução jurídica do pleito';
- o registo dos depoimentos prestados configura-se 'como meio idóneo para
afrontar o clima de quase total impunidade e da absoluta falta de controlo que -
precisamente por força do referido peso excessivo da oralidade e da audiência -
envolve o possível perjúrio do depoente que intencionalmente deturpe a verdade
dos factos';
- 'o registo das audiências e da prova nelas produzida configura-se ainda como
instrumento adequado para satisfazer o próprio interesse do tribunal e dos
magistrados que o integram, inviabilizando acusações de julgamento à margem (ou
contra) da prova produzida [...], [permitindo] ainda auxiliar de forma relevante
o próprio julgador a rever e confirmar no momento da decisão, com maior
segurança, as impressões pessoais que foi colhendo ao longo de julgamentos
demorados, fraccionados no tempo e comportando a inquirição de numerosos
depoentes sobre matérias complexas'.
Mas, ainda quando decorra o julgamento perante
tribunal colectivo, a manutenção tendencial de um sistema de oralidade (veja-se
a faculdade prevista no art. 522º-B do Código de Processo Civil) é acompanhada
por uma alteração legislativa muito importante do nº 2 do art. 653º deste
diploma, no sentido de tornar mais exigente a fundamentação do acórdão
relativamente às respostas à matéria de facto. O texto alterado dispõe como
segue:
'A matéria de facto é decidida por meio de acórdão [...]; de entre os factos
quesitados, o acórdão [...] declarará quais o tribunal julga provados e quais os
que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os
fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador.'
Como se vê, institui-se como núcleo essencial do
direito ao recurso em matéria de facto, num sistema de oralidade, o dever de
fundamentação da decisão sobre matéria de facto. E, por isso, altera-se
correlativamente o disposto nos nºs 2 a 4 do art. 712º do Código de Processo
Civil.
No preâmbulo do citado Decreto-Lei nº 39/95,
descreve-se deste modo a insuficiência do disposto no Código de Processo Civil
no recurso quanto à matéria de facto (art. 712º na versão agora revogada):
'É bem sabido que tal garantia [do duplo grau de jurisdição em matéria de
facto], no sistema em vigor, se mostra, em larga medida, insuficiente já que -
salvo naturalmente nos casos excepcionalíssimos em que toda a prova relevante
consta dos autos - a relação, apesar de teoricamente conhecer de facto e de
direito, se limitará, para além de reapreciar questões puramente jurídicas, a
uma mera cassação de vícios lógicos ou intrínsecos patentes face ao texto da
própria decisão recorrida e seus fundamentos, sendo, porém, perfeitamente
inviável, perante o estatuído no artigo 712º do Código de Processo Civil, que o
erro, ainda que manifesto, na livre apreciação das provas possa ser sindicado
pelo tribunal ad quem, desde que não tenha inquinado as respostas à matéria de
facto e a respectiva motivação, em termos de determinar a anulação do
julgamento.'
15. Revertendo ao caso sub judicio e levando em
consideração os elementos jurisprudenciais e de natureza legal referidos,
importa ver se é susceptível de censura o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
em análise.
Antes de responder a esta questão, vale a pena
referir a síntese que o Conselheiro Monteiro Diniz faz, em recente declaração de
voto, da orientação jurisprudencial do Tribunal Constitucional nos julgamentos
de inconstitucionalidade proferidos a propósito do art. 665º CPP 1929 e que
culminaram na declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral
constante do citado Acórdão nº 401/91:
'Tanto no primeiro caso [o do art. 665º CPP de 1929 com a sobreposição
interpretativa do Assento de 1934] como no segundo caso [o do mesmo artigo, sem
tal sobreposição interpretativa], embora de modo muito mais significativo na
situação reportada à norma complexa resultante da sobreposição do assento com o
preceito do Código de Processo Penal, foi entendido que as limitações
decorrentes para as Relações na apreciação da matéria de facto, nos recursos
interpostos das decisões condenatórias dos tribunais colectivos, colidiam com as
garantias constitucionalmente asseguradas em termos de duplo grau de jurisdição.
Sendo certo que na segunda hipótese - norma do artigo 665º
isoladamente considerada - as Relações dispunham de um âmbito mais vasto pois
que se podiam basear «nos documentos, respostas aos quesitos e em quaisquer
outros elementos constantes dos autos» ao contrário do que acontecia na primeira
situação, na qual as decisões dos tribunais colectivos de 1ª instância só podiam
ser alteradas «em face de elementos do processo que não pudessem ser
contrariados pela prova apreciada no julgamento e que haja determinado as
respostas aos quesitos», de todo o modo foi entendido não constituir ainda um
sistema compatível com a exigência das garantias constitucionais' (Declaração
anexa ao Acórdão nº 48/95, ainda inédito).
E, na mesma declaração, ao comparar-se o sistema
do CPP 1987, de fundamentação do acórdão do tribunal colectivo ou de júri, com o
sistema do código precedente, de proibição de fundamentação das respostas aos
quesitos, torna-se clara a razão última dos referidos juízos de
inconstitucionalidade:
'... a fundamentação do tribunal colectivo, no quadro das exigências que lhe são
impostas na lei, deve permitir ao tribunal superior uma avaliação dos motivos da
decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo
decisório, não constituindo para tanto impedimento, (cfr. os cit. Acórdãos nºs
322/93 e 172/94), a circunstância de o vício sobre o facto haver de resultar «do
texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência
comum» (artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, de 1987).
Ora, no quadro de estatuição da norma do artigo 665º, as
Relações, podendo embora conhecer da matéria de facto através dos «documentos,
respostas aos quesitos e de quaisquer outros elementos constantes dos autos», só
excepcionalmente e em casos pontuais disporão no processo de elementos
susceptíveis de conduzir à infirmação dos factos dados como provados pelos
tribunais de 1ª instância, sendo por isso insuficiente e deficitário, face ao
conteúdo que deve atribuir-se à garantia constitucional do segundo grau de
jurisdição, os poderes que neste sistema lhes são atribuídos'.
16. Com os elementos carreados, é possível agora
responder à questão deixada em suspenso.
Recorda-se que a norma que constitui
objecto do recurso de constitucionalidade é a que foi aplicada no segundo
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, ou seja, a norma do art. 665º do Código
de Processo Penal, sem a sobreposição interpretativa do Assento de 29 de Junho
de 1934, integrada pelas disposições do novo Código de Processo Penal que
disciplinam o recurso das decisões proferidas pelo tribunal singular de primeira
instância. Tal norma complexa, porém, impunha que só pudesse haver renovação da
prova se, antes do interrogatório do arguido, este tivesse requerido que se
procedesse à documentação da prova, exigência que traduzia um ónus muito
gravoso, na medida em que tal possibilidade era proibida pelo Código de Processo
Penal de 1929 e não era provável que, em 1988, ao realizar-se o julgamento de
primeira instância, o recorrente pudesse ter requerido tal documentação, numa
altura em que não havia decisões do Tribunal Constitucional sobre a
inconstitucionalidade do art. 665º do referido diploma. Por outro lado, sem se
fazer qualquer adaptação dos dois regimes dos Códigos de 1929 e de 1987, a
circunstância de não serem fundamentadas as respostas aos quesitos formulados
pelo tribunal colectivo em matéria de facto, nem de haver uma fundamentação
detalhada na sentença de primeira instância como a exigida no nº 2 do art. 374º
do Código de Processo Penal de 1987, sempre impossibilitaria que o tribunal de
segunda instância pudesse detectar, ao menos em boa parte dos caso, o vício
ocorrido na decisão de facto, a partir do texto da decisão recorrida, por si só
ou conjugado com as regras de experiência comum, ou seja, o erro notório na
apreciação da prova, ou a insuficiência dos factos.
Ora, entende-se que esta norma
complexa sofre de inconstitucionalidade, por violação do art. 32º, nº 1, da
Constituição, na medida em que, na interpretação acolhida no acórdão recorrido,
impõe ao recorrente o ónus de requerer a documentação da prova desde o início do
julgamento e prescinde da fundamentação da decisão de facto da primeira
instância,quando é certo que a fundamentação das respostas aos quesitos se acha
proibida pelo art. 469º do Código de Processo Penal de 1929, na leitura uniforme
desta norma pela jurisprudência dos tribunais superiores.
Na prática, a norma construída pelo Supremo
Tribunal de Justiça no acórdão recorrido, na interpretação acolhida, é
equivalente à do art. 665º do Código de Processo Penal sem a sobreposição do
Assento de 1934 pois, ambas só admitem um limitado poder de cognição dos
tribunais de segunda instância relativamente a decisões sobre matéria de facto
não fundamentadas, não admitindo, nomeadamente, a possibilidade de as Relações
apreciarem todos os elementos probatórios por si sós ou conjugados com as regras
de experiência comum, ou poderem determinar oficiosamente a renovação da prova
pela primeira instância para evitar a anulação de decisão do tribunal colectivo
(remete-se para as normas construídas pelo Supremo Tribunal de Justiça, no seu
acórdão de 18 de Dezembro de 1991, acórdão confirmado, no seu juízo de
inconstitucionalidade, pelo citado Acórdão nº 190/94).
17. Assim sendo, impõe-se que se lhe aplique o
juízo de inconstitucionalidade constante dos Acórdãos nºs 190/94 e 430/94.
III
18. Termos em que decide o Tribunal
Constitucional julgar procedente o recurso, revogando o acórdão recorrido, o
qual deverá ser reformulado em conformidade com o decidido em matéria de
constitucionalidade.
Lisboa, 29 de Novembro de 1995
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma
José de Sousa e Brito
Luís Nunes de Almeida
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Guilherme da Fonseca
Messias Bento (vencido pelo essencial
das razões da declaração de voto que apus ao Acórdão nº 340/90, publicado no
Diário da República, II Série, de 19 de Março de 1991)
Vítor Nunes de Almeida (Vencido,
pelas razões constantes do voto de vencido aposto ao Acórdão nº 340/90, aqui
aplicáveis no essencial dos seus fundamentos).
Bravo Serra (vencido pelo essencial
das razões da declaração de voto que apus aos Acórdãos nºs 190/94 e 430/94)
José Manuel Cardoso da Costa
(vencido, em sintonia com a posição assumida, entre outros, nos Acórdãos nºs
124/90, 340/90 e 190/94)