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Proc. nº 43/95
1ª Secção
Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
Relatório
1. A., cidadão indiano, requereu, no Supremo Tribunal
Administrativo, ao abrigo do disposto nos artigos 1º, nº 1, 7º, nº 1, 8º, 15º,
22º, nº 2, e 23º do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro, a nomeação de
advogado ou de advogado estagiário, bem assim como a dispensa do pagamento dos
respectivos serviços, a fim de interpor recurso contencioso do despacho
proferido pelo Senhor Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração
Interna, em 10 de Maio de 1994, que recusou a admissão do pedido de asilo que o
requerente havia formulado.
2. Depois de admitido liminarmente o pedido e de o
Ministério Público se haver pronunciado sobre ele, veio a ser proferido despacho
no qual, após se recusar, 'com fundamento em inconstitucionalidade, por violação
dos artigos 15º, nºs 1 e 2, e 20º, nºs 1 e 2, da Constituição, a aplicação das
normas dos artigos 7º, nº 2, do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro, e
1º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 391/88, de 26 de Outubro, na parte em que vedam
a concessão de apoio judiciário, na modalidade de patrocínio judiciário, ao
estrangeiro que, tendo impetrado asilo político, pretenda impugnar
contenciosamente a decisão administrativa que lho denegou', foi concedido ao
requerente o solicitado apoio judiciário, na modalidade indicada.
3. Na sequência de reclamação apresentada pelo
Ministério Público para a conferência, veio a ser proferido acórdão que
confirmou o despacho reclamado.
Em síntese, fundamentou-se a decisão nos seguintes
termos:
'o art. 15º da Constituição afirma, como princípio geral, a equiparação de
direitos e deveres entre, por um lado, cidadãos portugueses e, por outro lado,
estrangeiros e apátridas, quer estes residam ou apenas se encontrem em
Portugal';
Embora a Constituição estabeleça excepções a este princípio da
equiparação, prevendo que certos direitos sejam reservados para os cidadãos
portugueses, tal não acontece com o direito de acesso aos tribunais, que é
garantido a todos, o que inculca a ideia da universalidade do seu
reconhecimento;
'no que respeita a direitos fundamentais que não sejam reservados em termos
absolutos ou relativos, pela Constituição ou pela lei, exclusivamente a cidadãos
portugueses, a Lei Fundamental não consente que a lei ordinária estabeleça
discriminações entre estrangeiros residentes e não residentes em Portugal';
'o direito de asilo é concebido como um direito subjectivo (art. 33º, nº 6) a
que não pode deixar de estar associada a garantia de acesso aos tribunais para
impugnar as decisões administrativas que o deneguem';
'são constitucionalmente inválidas as normas que recusem o apoio judiciário ao
requerente de asilo', pelo menos 'no próprio processo em que se discute a
concessão do estatuto de asilado';
'tais normas violam ainda a proibição de discriminação em razão da situação
económica'.
4. Foi desse acórdão que o Ministério Público, ao abrigo
do disposto nos artigos 70º, nº 1, alínea a), 71º, nº 1, alínea a), e nº 3, e
75º-A da Lei no 28/82, de 15 de Novembro, interpôs o presente recurso para o
Tribunal Constitucional.
5. Nas alegações apresentadas neste Tribunal, o
Ministério Público mostrou concordância com a argumentação constante do acórdão
recorrido, que parcialmente transcreveu, entendendo que a decisão proferida pelo
Supremo Tribunal Administrativo devia ser confirmada.
6. Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II
Fundamentação
7. Constituem objecto do presente recurso as normas
contidas nos artigos 7º, nº 2, do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro, e
1º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 391/88, de 26 de Outubro, na parte em que vedam
a concessão de apoio judiciário, na modalidade de patrocínio judiciário, ao
estrangeiro que, tendo impetrado asilo político, pretenda impugnar
contenciosamente a decisão administrativa que lho denegou.
8. Dispõe o artigo 7º, nº 2, do Decreto-Lei nº 387‑B/87,
de 29 de Dezembro:
'Os estrangeiros e os apátridas que residam habitualmente em
Portugal gozam do direito a protecção jurídica.'
Por seu turno, estatui o artigo 1º do Decreto-Lei nº
391/88, de 26 de Outubro:
1 - Para efeito de protecção jurídica, a residência habitual de
estrangeiros ou apátridas titulares de autorização de residência válida a que se
refere o nº 2 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro,
implica a sua permanência regular e continuada em Portugal por período não
inferior a um ano, salvo regime especial decorrente de tratado ou convenção
internacional que Portugal deva observar.
2 - O estrangeiro a quem for concedido o asilo ou que goze de
estatuto de refugiado pode usufruir de protecção jurídica a partir da data da
concessão do direito de asilo ou do reconhecimento do estatuto de refugiado.
9. Transcritas as normas desaplicadas, analisemos então
o problema.
A questão colocada pode ser encarada e resolvida por
duas vias distintas.
Uma primeira funda-se na consagração constitucional da
garantia do direito de asilo. Independentemente da posição que seja assumida
sobre o âmbito do princípio do tratamento nacional e, mais concretamente, sobre
os limites que a Constituição impõe ao legislador ordinário quanto à
possibilidade de criar outras excepções a tal princípio para além das
constitucionalmente consagradas, sempre se poderá dizer que o direito de asilo é
um daqueles direitos fundamentais que tem, necessariamente, por destinatários o
estrangeiro e o apátrida.
Gozando o estrangeiro e o apátrida de direito de asilo e
estando regulado o processo de concessão de tal direito como um processo de
natureza administrativa, que termina pela prolação de uma decisão administrativa
de concessão ou recusa do estatuto de refugiado, não se pode deixar de entender
que o direito ao recurso contencioso contra o acto administrativo que recuse a
concessão do estatuto requerido, como direito instrumental que é do próprio
direito de asilo, está também assegurado, necessariamente, ao estrangeiro e ao
apátrida.
Assim, o direito ao recurso contencioso, consagrado pelo
artigo 268º, nº 4, da Constituição, não pode ser recusado ao estrangeiro e ao
apátrida, pelo menos quando eles pretenderem impugnar a decisão que lhes denegou
o estatuto de asilado. É o que reconhece, implicitamente, a Lei nº 70/93, de 29
de Setembro, ao estabelecer, no seu artigo 17º, nº 2, o direito de recurso para
o Supremo Tribunal Administrativo.
Parte-se, assim, do reconhecimento ao estrangeiro e ao
apátrida do direito ao asilo para a garantia de que ele não pode ser excluído à
justiça administrativa, não de uma forma ampla, mas limitada à impugnação do
acto relacionado com aquele direito.
Se o não nacional tem assegurado, nesta situação e com
este fim, o acesso ao direito e aos tribunais, tem de o ter em condições de
igualdade, 'não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios
económicos' (artigos 20º, nº 1, e 13º da Constituição). Por esta via se chega à
conclusão de que as normas referidas, na parte em que vedam a concessão de apoio
judiciário, na modalidade de patrocínio judiciário, ao estrangeiro e ao apátrida
que pretendam impugnar a decisão administrativa que lhes negou o estatuto de
refugiado são inconstitucionais na medida em que lhe negam a titularidade de um
direito que é garantido pela Constituição.
10. A idêntica conclusão, se bem que alicerçada em
pressupostos de âmbito mais amplo, se chega seguindo uma outra linha de
argumentação.
A Constituição, no seu artigo 15º, estabelece o
princípio da equiparação entre nacionais e não nacionais quanto ao gozo de
direitos fundamentais. É o chamado princípio do tratamento nacional.
Porém, a Constituição prevê excepções a essa
equiparação. Reserva certos direitos, que ela própria enumera, aos cidadãos
portugueses e permite que, para além desses, a lei inclua outros na titularidade
exclusiva dos cidadãos nacionais.
Não é, porém, livre o legislador ordinário na criação de
novas excepções ao mencionado princípio. Não o é, em primeiro lugar, porque não
pode desvirtuar o próprio princípio, criando um tal número de excepções que
alterem a regra da equiparação constitucionalmente consagrada (Jorge Miranda,
Manual de Direito Constitucional, tomo III, 3ª ed., 1994, p. 142). Mas, para
além disso, entende a doutrina (Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na
Constituição Portuguesa de 1976, 1983, p. 184, Jorge Miranda, ob.cit., p. 142, e
Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
3ª ed., 1993, p. 135) que as excepções criadas pelo legislador, pelo menos no
que respeita aos direitos, liberdades e garantias, porque se apresentam como
restrições a estes, estão sujeitas ao regime imposto pelo artigo 18º da
Constituição, carecendo, para além do mais, de lei formal. Estamos no domínio da
reserva relativa de competência da Assembleia da República [artigo 168º, nº 1,
alínea b), da Constituição].
Tendo o Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro, sido
aprovado pelo Governo no uso da autorização legislativa conferida pela Lei nº
41/87, de 23 de Dezembro, sempre se teria, assim, de encontrar nesta a permissão
para a restrição operada pelo artigo 7º, nº 2, daquele diploma. Da análise das
disposições da citada lei de autorização legislativa resulta, porém, que a
restrição operada pelo artigo 7º, nº 2, do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de
Dezembro, não tem credencial parlamentar.
Estamos, deste modo, perante uma inconstitucionalidade
orgânica da norma referida, o que acarreta, consequentemente, a
inconstitucionalidade das normas regulamentadoras insertas no Decreto-Lei nº
391/88, de 26 de Outubro (artigo 1º, nºs 1 e 2).
Mas não só de inconstitucionalidade orgânica padecem as
referidas normas. São, também, materialmente inconstitucionais.
Tal vício deriva do facto de se pretender excluir certas
categorias de estrangeiros e de apátridas, que por princípio estão equiparados
aos nacionais, do gozo de um direito que, pela Constituição, é assegurado a
todos, o que inculca, como se diz na decisão recorrida, a ideia de
universalidade do seu reconhecimento.
Nunca poderia ser este um caso de restrição autorizado
pela Constituição (artigo 18º, nº 2).
11. Do exposto se conclui que o nº 2 do artigo 7º do
Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro, e o artigo 1º, nºs 1 e 2, do
Decreto‑Lei nº 391/88, de 26 de Outubro, na parte em que negam ao peticionário
do direito de asilo o apoio judiciário, na modalidade de patrocínio judiciário,
para impugnar contenciosamente o acto administrativo de recusa de admissão do
pedido de asilo, enfermam de inconstitucionalidade por violação dos artigos 13º,
15º, nºs 1 e 2, 20º, nº 1, 33º, nº 6, 168º, nº 1, alínea b), e 268º, nº 4, da
Constituição. A idêntica conclusão já chegaram, também, os Acórdãos deste
Tribunal nºs 338/95 (D.R., II, de 1 de Agosto de 1995) e 340/95 (inédito).
III
Decisão
12. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o
Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso.
Lisboa, 5 de Dezembro de 1995
Maria Fernanda Palma
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
José Manuel Cardoso da Costa