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Proc. nº 151/94
1ª Secção
Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em 18 de Outubro de 1993, foi lavrado o auto
de captura nº 42/93 (Proc. 222.03) em Macau, na sequência da detenção do casal
A. e B., residentes na Avenida ----------------, edifício ----------, --------,
dessa cidade, em flagrante delito pelo crime de acolhimento de imigrante legal,
uma vez que o mesmo casal tinha a residir no referido andar a mãe da detida
mulher, C., que entrara ilegalmente no Território, alegadamente para vir tratar
de um neto que se encontrava doente.
No mesmo dia foram ainda libertados, tendo sido
notificados para comparecerem no Tribunal no dia seguinte, a fim de serem
julgados.
Em 19 de Outubro do mesmo ano foram os arguidos
julgados em processo sumário no Tribunal Administrativo de Macau. Da acta da
audiência consta que o magistrado do Ministério Público pediu a palavra e veio
arguir a nulidade do julgamento nos seguintes termos:
'A realização deste julgamento a efectuar pelo Juiz do Tribunal Administrativo
fundamenta-se na deliberação do Conselho Judiciário de Macau que «afectou ao
Juiz do Tribunal Administrativo, para além dos processos da sua especial
competência, os sumários, os de transgressão ou equiparados, os de menores e os
de execução de penas».
Em meu entender, tal deliberação que se aplica aos próprios
processos pendentes, salvo nos que já tenha sido iniciado o julgamento, [...]
viola lei expressa.
Efectivamente, o anterior Tribunal Administrativo Fiscal e de
Contas do Território foi extinto, tendo as suas competências sido distribuídas
pelo Tribunal Administrativo de Macau - cfr. arts. 5º nº 1, 9º e 36º da Lei nº
112/91 de 29/8, e 60º nº 4 do Decreto Lei nº 17/92/M de 2/3.
Ao novo Tribunal Administrativo, o qual apenas tem um Juiz,
compete «o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto
dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, fiscais e
aduaneiras» - art. 9º nº 1 da Lei nº 112/91, de 29/8 e 31º do Decreto-Lei nº
17/92/M, de 2/3.
O reduzido número de processos que vêm sendo distribuídos ao
mesmo Tribunal aconselha a que o Conselho Judiciário determine que o respectivo
juiz exerça, em acumulação, as suas funções - cfr. art. 99º alínea f) do
Decreto-Lei nº 55/92/M de 18/8.
Vedado está, porém, ao Conselho ou a outra entidade proferir
deliberação ou despacho, cujo alcance seja, como no caso é, o de subtrair
determinado número de processos-crime ao Tribunal comum, o competente segundo a
lei vigente.
Trata-se, no fundo, da observância do clássico princípio do Juiz
natural ou do Juiz legal, consagrado no art. 32º nº 7 da Constituição e no art.
15º do Decreto-Lei nº 17/92/M de 2/3.
Para além de infringir essas normas, de carácter imperativo, a
deliberação em causa também não atende ao regime constante dos arts. 5º nºs 1 e
3 e 7º nº 2 da Lei nº 112/91 de 29/8, 12º nº 3 e 18º nº 2 do Decreto-Lei nº
17/92/M de 2/3.
O objectivo pretendido com aquela deliberação só poderá ser
alcançado por via legal e abstracta, criando-se algum ou alguns dos tribunais de
competência especializada a que alude a parte final do citado art. 18º nº 2 do
Decreto-Lei nº 17/92/M de 2/3' (a fls 10 e 11 dos autos).
O magistrado do Ministério Público requereu, por
isso, que o juiz do Tribunal Administrativo se declarasse absolutamente
incompetente e determinasse a remessa dos autos ao Tribunal de Competência
Genérica, declarando desde logo, para a eventualidade de o juiz se considerar
competente, prescindir do recurso quanto à matéria de facto, mas não quanto à
matéria de direito, nos termos do art. 561º do Código de Processo Penal de 1929,
em vigor no Território de Macau.
A arguição de nulidade foi desatendida,
considerando o Juiz do Tribunal Administrativo que a deliberação do Conselho
Judiciário de Macau de 23 de Setembro de 1993 não tinha retirado os processos em
causa da jurisdição comum, fazendo a afectação dos mesmos ao Juiz do Tribunal
Administrativo 'apenas por razões ligadas ao volume de serviço do Tribunal
Administrativo e no intuito [...] de assegurar um mais eficaz e pronto andamento
dos processos de outra natureza das secções do Tribunal' (a fls. 11 vº).
Realizado o julgamento, veio a ser julgada a
acusação improcedente, por se considerar que aos arguidos não era exigível outro
comportamento que não fosse o de aceitar a mãe e sogra destes últimos na casa
deles, sendo, por isso, absolvidos.
Desta sentença interpôs recurso o Ministério
Público, o qual foi aceite. Foram apresentadas alegações por este.
Subiram os autos ao Tribunal Superior de Justiça
de Macau. Foram ainda remetidos os mesmos ao tribunal recorrido, a fim de ser
nomeado advogado oficioso aos recorridos.
O Procurador elaborou parecer em que propugnou
pelo atendimento da nulidade suscitada, não com fundamento em
inconstitucionalidade, mas antes com fundamento em ilegalidade (a deliberação do
Conselho Judiciário de Macau seria ilegal por vício de incompetência,
mostrando-se violado o art. 19º do Decreto-Lei nº 23/85/M, de 23 de Março).
Através de acórdão de 23 de Fevereiro de 1994,
lavrado com um voto de vencido, o Tribunal Superior de Justiça de Macau revogou
a decisão recorrida, tendo recusado a aplicação da norma contida na resolução do
Conselho Judiciário de Macau de 23 de Setembro de 1993 - norma que determina que
os processos sumários, de transgressões ou equiparados, de menores e de execução
de penas passem a ser da competência do Juiz do Tribunal Administrativo de
Macau, dada a sua inconstitucionalidade - por violação do nº 7 do art. 115º da
Constituição da República Portuguesa, invocando-se o disposto no art. 207º da
mesma Constituição, 'vertido em termos de legislação ordinária no art. 3º do DL
17/92/M' (a fls. 46 dos autos).
Na fundamentação deste acórdão pode ler-se:
'A segunda deliberação [do Conselho Judiciário de Macau], que, na prática, cria
um tribunal de competência especializada para o conhecimento dos processos
sumários, de transgressões e equiparados, de menores e de execução de penas, em
conformidade com a previsão do nº 2 do art. 18º do DL 17/92/M (sem cuidar agora
de saber se era por esta via e através do CJM que tal criação podia ocorrer)
apresenta-se como um regulamento, por se configurar como uma norma jurídica
geral e abstracta, dimanada de um órgão administrativo no desempenho da função
administrativa [...].
No que concerne à sua ligação com a lei desconhece-se se o
referido regulamento é, por um lado, um regulamento complementar ou de execução
ou, por outro, um regulamento independente ou autónomo, sabendo-se que os
primeiros são os que desenvolvem ou aprofundam a disciplina jurídica constante
de uma lei e os segundos os que os órgãos administrativos elaboram para
assegurar a realização das suas atribuições específicas, sem cuidar de
desenvolver ou de completar nenhuma lei em especial.
A estes dois tipos de regulamentos se refere o nº 7 do art. 115º
da CRP que, ao consagrar o princípio da primariedade ou precedência da lei,
estabelece, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira: «a) a precedência da
lei relativamente a toda a actividade regulamentar; b) o dever de citação da lei
habilitante por parte de todos os regulamentos. Esta dupla exigência torna
ilegítimos não só os regulamentos carecidos de habilitação legal, mas também os
regulamentos que, embora com provável fundamento legal, não individualizem
expressamente este fundamento [...]' (a fls. 45 e vº)
Notificado deste acórdão, interpôs recurso de
constitucionalidade do mesmo o Delegado da República, ao abrigo do disposto no
art. 70º, nº 1, als. a) e b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, e ainda dos
arts. 39º, al. a), do Decreto-Lei nº 17/92/M, de 2 de Março e 37º, nº 2, al. b),
da Lei nº 112/91, de 29 de Agosto. O recurso foi admitido por despacho de fls.
53 de Senhor Relator, considerando-se interposto ao abrigo da alínea a) do art.
70º, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional.
2. Remetidos os autos ao Tribunal Constitucional,
apenas o Ministério Público apresentou alegações, sustentando a confirmação do
decidido, embora com fundamento diverso. Formulou as seguintes conclusões:
'1º - Não vigorando no Território de Macau a norma constante do nº 7 do artigo
115º da Constituição - preceito não atinente aos direitos, liberdades e
garantias estabelecidos na Constituição da República Portuguesa e não consagrado
nem «devolvido» à Lei Fundamental pelo Estatuto Orgânico de Macau - não padece
de inconstitucionalidade formal, por omissão do dever de citação da lei
habilitante, o acto genérico de índole regulamentar, consubstanciado na
deliberação do CJM de 23 de Setembro de 1993.
2º - Porém, a norma constante de tal deliberação, na parte em que determinou que
fossem cometidos ao juiz do Tribunal Administrativo de Macau os processos
sumários penais, inseridos no âmbito da competência do Tribunal de Competência
Genérica desse Território, infringe o princípio constitucional do juiz natural,
consagrado no nº 7 do artigo 32º da Constituição, aplicável ao Território de
Macau, nos termos do artigo 2º do respectivo Estatuto Orgânico.
3º - Na verdade, tal norma - emitida pelo órgão de administração judiciária do
território - posterga as regras que, nos termos das leis de processo e de
organização judiciária aplicáveis, devem reger a distribuição de processos entre
os vários juízos e juízes colocados no Tribunal de Competência Genérica de
Macau, traduzindo a directa afectação, por via administrativa, de certas
categorias de causas a determinado juiz, titular de um tribunal de competência
especializada - o Tribunal Administrativo de Macau.' (a fls. 72-74)
3. Foram corridos os vistos legais.
Passa, por isso, a apreciar-se o mérito de
recurso, começando por fixar o seu objecto.
II
4. A norma - como tal qualificada - desaplicada
pelo acórdão recorrido consta de uma deliberação do Conselho Judiciário de Macau
de 23 de Setembro de 1993, que se acha documentada em acta, transcrita em ofício
dirigido ao Juiz do Tribunal de 1ª Instância de Macau, datado de 24 de Setembro
do mesmo ano, onde lhe é comunicada a sua nomeação como Presidente do Tribunal
de 1ª Instância de Macau:
'Propôs o senhor presidente, e o Conselho aceitou e assim o deliberou que em
razão de o Tribunal Administrativo ter sido grandemente aliviado das suas
competências pela entrada em funcionamento do Tribunal de Contas, fossem
cometidas ao respectivo juiz, para além dos processos da sua específica
competência, os sumários ou de transgressão ou equiparados, os de menores e os
de execução das penas.
E como o quadro de funcionários do Tribunal Administrativo é
reconhecidamente exíguo, deverão, todavia, aqueles processos correr pelas
secções do tribunal de jurisdição comum, conforme distribuição equitativa ou
como o presidente desse tribunal melhor entenda.
Mais deliberam que todos os processos daquela natureza, salvo
aqueles em que, eventualmente, tenha sido iniciado o julgamento, passem ao juiz
do Tribunal Administrativo logo que este seja empossado no cargo' (a fls. 26-27
dos autos).
5. Importará, antes de tudo, examinar em que quadro
constitucional e legal surge a referida deliberação.
Como se sabe, o Território de Macau, enquanto se
mantiver sob administração portuguesa, rege-se por estatuto adequado à sua
situação especial (art. 292º, nº 1, da Constituição). Esse estatuto, na sua
versão em vigor, consta hoje do anexo à Lei nº 13/90, de 10 de Maio, que alterou
a Lei nº 1/76, de 17 de Fevereiro, por seu turno, já alterada pela Lei nº 53/79,
de 14 de Setembro.
Nos termos do nº 5 do art. 292º da Constituição, o
Território de Macau 'dispõe de organização judiciária própria, dotada de
autonomia e adaptada às suas especificidades, nos termos da lei, que deverá
salvaguardar o princípio de independência dos juízes'. Essa organização
Judiciária consta da Lei de Bases da Organização Judiciária de Macau de 1991
(Lei nº 112/91, de 29 de Agosto), desenvolvida por legislação do Território
(nomeadamente e no que se refere a tribunais com competência criminal, o
Decreto-Lei nº 17/92/M, de 2 de Março).
Nos termos do art. 2º do Estatuto Orgânico de Macau,
este Território constitui uma pessoa colectiva de direito público interno 'e
goza, com ressalva dos princípios e no respeito dos direitos, liberdades e
garantias estabelecidas na Constituição da República e no presente Estatuto, de
autonomia administrativa, económica, financeira e legislativa'.
O Território de Macau não constitui parte do
território nacional, estando sob administração portuguesa até 20 de Dezembro de
1999, por força do acordo luso-chinês de 1987. A Constituição da República
Portuguesa não se aplica directamente no Território de Macau, precisamente
porque este não integra o território daquela República (arts. 5º e 292º, nº 1,
do mesma Constituição).
Certos preceitos da Constituição aplicam-se, todavia,
neste território sob administração portuguesa, por força da remissão do Estatuto
orgânico, nomeadamente do seu art. 2º, acima transcrito (cfr. Vitalino Canas,
Relações entre o Ordenamento Constitucional Português e o Ordenamento Jurídico
do Território de Macau, in Boletim do Ministério da Justiça nº 365, págs. 75 e
segs.; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo II, 3ª ed.
totalmente revista e actualizada, Coimbra, 1991 págs. 303 e segs.; Tomo III, 3ª
ed., Coimbra, 1994, págs. 249-251; J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, A
Fiscalização da Constitucionalidade das Normas de Macau, Lisboa, 1991, separata
da Revista do Ministério Público nº 48, págs. 14 e segs.; dos mesmos autores,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, págs.
1676-1678; Acórdão nº 292/91, in Diário da República, II Série, nº 250, de 30 de
Outubro de 1991).
6. Não suscita dúvidas a competência do Tribunal
Constitucional para conhecer deste recurso.
De facto, no Estatuto Orgânico de Macau são
atribuídas competências ao Tribunal Constitucional (arts. 11º, nº 1, alínea e),
30º, nº 1, alínea a), e 40º, nº 3), do mesmo passo que o art. 41º, nº 1, desse
Estatuto dispõe que, nos feitos submetidos a julgamento, 'não podem os tribunais
aplicar normas que infrinjam as regras constitucionais ou estatutárias ou os
princípios nelas consignados'. Por outro lado, a Constituição portuguesa dispõe
que a lei ordinária pode atribuir funções e competências ao Tribunal
Constitucional (art. 225º, nº 3).
Nos termos do art. 1º da Lei do Tribunal
Constitucional, este 'exerce a sua jurisdição no âmbito de toda a ordem
jurídica portuguesa'. Ora, a ordem jurídica vigente em Macau até 1999 é
indiscutivelmente uma ordem portuguesa (art. 292º da Constituição). Por outro
lado, a Lei de Bases da Organização Judiciária de Macau ressalva
transitoriamente as competências de diferentes tribunais portugueses, entre os
quais as do Tribunal Constitucional (veja-se o seu art. 34º).
É, de resto, pacífica na jurisprudência do Tribunal
Constitucional a aceitação da sua competência para conhecer de recursos de
constitucionalidade, em fiscalização concreta, interpostos de decisões dos
tribunais de Macau, bem como de reclamações previstas no art. 76º, nº 4, daquela
mesma lei (veja-se a análise da jurisprudência mais antiga em António Vitorino,
Macau na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, in Estado & Direito, nºs
5-6, 1990, págs. 99 a 114; na mais recente, veja-se, por exemplo, o Acórdão nº
481/94, publicado no Diário da República, II Série, nº 288, de 15 de Dezembro de
1994).
7. Revestir-se-á de carácter normativo a regra
desaplicada pelo acórdão recorrido?
A maioria que fez vencimento no acórdão recorrido
considerou que a resolução do Conselho Judiciário de Macau atrás transcrita
continha efectivamente duas deliberações distintas:
'a) O Exmo Juiz do Tribunal Administrativo de Macau, por ter sido grandemente
aliviado das suas competências com a entrada em funcionamento do Tribunal de
Contas, passa a acumular as suas funções com as do «Tribunal de jurisdição
comum»;
b) Os processos sumários, os de transgressões ou equiparados, os de menores e os
de execução de penas passam a ser da competência do Juiz do Tribunal
Administrativo de Macau, apoiado pelas secções do «Tribunal de jurisdição
comum»' (a fls. 44 dos autos).
A primeira deliberação deveria ser qualificada
como um 'acto interno' (do tipo das ordens 'cujos efeitos se produzem apenas no
âmbito das relações inter-orgânicas, sem qualquer projecção na esfera jurídica
dos outros sujeitos de direito, insusceptível de recurso contencioso por não
afectar direitos ou interesses legítimos dos particulares, situando-se no plano
da relação orgânica ou de funcionamento. Já a segunda deliberação teria
verdadeira natureza regulamentar:
'A segunda deliberação, que, na prática, cria um tribunal de competência
especializada para o conhecimento dos processos sumários, de transgressões ou
equiparados, de menores e de execução de penas, em conformidade com a previsão
do nº 2 do art. 18º do DL 17/92/M (sem cuidar agora de saber se era por esta via
e através do CJM que tal criação podia ocorrer) apresenta-se como um
regulamento, por se configurar como uma norma jurídica geral e abstracta,
dimanada de um órgão administrativo no desempenho da função administrativa.
Com efeito, o CJM, face às funções que lhe são atribuídas pelo
art. 28º da Lei 112/91 e 99º do DL 55/92/M é um órgão da administração
judiciária e exerce necessariamente a função administrativa quando ordene que
certos processos passem a ser julgados por um determinado juiz.
A deliberação em causa contém uma regra geral por ter como
destinatários um número indeterminado e indeterminável de pessoas, definidas
através de certas características (in casu, todas aquelas que se coloquem na
situação de serem submetidas a quaisquer dos processos nela previstos). E contém
igualmente uma regra abstracta por regular não um caso ou hipótese determinada,
mas um número indeterminado e indeterminável de casos, uma pluralidade de
hipóteses reais que venham a verificar-se no futuro [...]
Quanto ao âmbito da sua aplicação é o regulamento em apreciação
um regulamento local, por dirigido apenas ao território de Macau'. (a fls. 44
vº - 45)
Outro entendimento foi perfilhado no voto de vencido
do Conselheiro Rodrigues da Silva, de fls. 47 a 49, por se ter interpretado a
deliberação como um acto de 'gestão dos magistrados dos tribunais de Macau',
previsto no art. 97º do Decreto-Lei nº 55/92/M, determinando uma mera
'acumulação de serviço' por parte de um certo magistrado. Tratar-se-ia de um
acto administrativo, 'complexo na medida em que compreende um acto interno, e
não um acto normativo que regule, por forma abstracta e permanente, a
distribuição do serviço entre os juízes de 1ª instância de Macau, com reflexos
na competência do Juiz do Tribunal Administrativo'.
Nas alegações apresentadas no Tribunal
Constitucional, o Exmo. Representante do Ministério Público, reconhecendo as
dificuldades de qualificação da deliberação em causa, sustenta que se está
perante uma figura de natureza híbrida, mas que se reveste de natureza
normativa. Depois de se analisarem as normas jurídicas relevantes sobre a
competência do Conselho Judiciário e a organização judicial do Território (arts.
26º a 28º da Lei nº 112/91, 97º a 99º do Decreto-Lei nº 55/92/M; arts. 18º e
27º do Decreto-Lei nº 17/92/M), afirma-se nas referidas alegações:
'A dita deliberação [do Conselho Judiciário de Macau] acaba, pois, por se
traduzir na criação da invulgar figura do Juiz - que não do «tribunal» - de
competência especializada e específica mista, cometendo ao magistrado judicial
colocado e a exercer funções num certo tribunal de competência especializada (o
tribunal administrativo) certas matérias (menores, execução de penas) ou tipos
de processos (sumário, transgressões) que não coincidem com o âmbito da
competência especificamente atribuída a nenhum dos órgãos judiciais ou
tribunais concretamente existentes [...].
Ora, se ainda será possível sustentar que a deliberação do CJM
não briga - ao menos de forma directa e explícita - com a fixação da
«competência externa» dos vários tribunais, não modificando a medida de
jurisdição atribuída a cada tribunal pelas leis de organização judiciária
(pressupondo obviamente que os processos cometidos adicionalmente ao Juiz do
Tribunal Administrativo permanecem no âmbito de competência legal do Tribunal
de Competência Genérica de Macau), o que é certo é que a solução adoptada vai
colidir frontalmente, pelo menos, com a «competência interna» dos tribunais,
resultante do mecanismo de distribuição dos processos e de definição das
atribuições cometidas a cada juiz' (a fls. 63-64 dos autos).
8. Crê-se não ser absolutamente indispensável
analisar todos os aspectos relativos à natureza da deliberação sub judicio,
tanto mais que não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar a questão da
legalidade da mesma, face ao estatuído nos diplomas reguladores da organização
judiciária de Macau (Lei nº 112/91 e Decretos-Leis nºs 17/92/M e 55/92/M).
A verdade, porém, é que se entende que tal
deliberação encerra uma norma, nos termos do conceito funcional de norma
adoptado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional. Em função deste juízo,
pode concluir-se pela competência deste Tribunal para conhecer do presente
recurso.
De facto, para efeitos da competência do Tribunal
Constitucional, na fiscalização abstracta e concreta de constitucionalidade e de
legalidade, adoptou este órgão jurisdicional, há muito, um conceito funcional de
norma:
'«Norma», para este efeito, é todo e qualquer preceito normativo,
independentemente do seu carácter geral e abstracto, ou individual e concreto,
e, bem assim, de possuir, neste último caso, eficácia consuntiva (isto é, de
dispensar um acto de aplicação). Necessário e suficiente, por outras palavras, é
que se esteja perante um preceito constante dum «acto normativo» público
(maxime, lei ou regulamento) e não perante um mero acto administrativo, judicial
ou político '(J.M. Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, 2ª
ed., Coimbra, 1992, págs. 24-25, nota 25; na jurisprudência, vejam-se os
Acórdãos nºs 26/85, 172/93 e 214/94, o primeiro publicado nos Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 7 e segs., o segundo e o terceiro no
Diário da República, II Série, nºs 141, de 28 de Junho de 1993, 165, de 19 de
Julho de 1994, respectivamente).
Ora, no caso sub judicio, estamos perante a
deliberação de um órgão colegial público com competências administrativas, o
Conselho Judiciário de Macau, a quem cabe, em especial, propor a nomeação e
exoneração de juízes, agentes do Ministério Público e auditores judiciais,
conceder autorizações e licenças, justificar faltas e praticar outros actos de
idêntica natureza relativamente àqueles titulares de cargos públicos, bem como
sobre eles exercer a acção disciplinar (art. 28º da Lei de Bases da Organização
Judiciária de Macau). Tal deliberação configura-se como um acto de criação
normativa, visto que a mesma, no seu teor literal, se destina a ampliar a
competência do Juiz do Tribunal Administrativo de Macau, dispondo para além do
que se acha estabelecido na Lei (arts. 9º da citada Lei de Bases; art. 18º, nº
3, do Decreto-Lei nº 17/92/M, de 2 de Março), actuando de forma heterónoma, uma
vez que vincula o juiz desse Tribunal, os agentes do Ministério Público, os
advogados, os funcionários judiciais, bem como os arguidos e outros
intervenientes processuais: a partir da sua aprovação e publicação, passa a ser
competente para julgar, para além dos processos da sua específica competência,
os processos sumários, os de transgressão ou equiparados, os de menores e os de
execução de penas'. Parece, por isso, inegável o seu carácter normativo e
genérico não podendo ser reconduzida a um acto administrativo de determinação de
acumulação de funções de um juiz (art. 21º do Decreto-Lei nº 17/92/M).
Concluiu-se, assim, que se está perante uma norma
susceptível de ser apreciada na sua constitucionalidade pelo Tribunal
Constitucional.
9. No acórdão recorrido, considera-se que a norma
em apreciação consta de um regulamento de administração judiciária que não
identifica a lei habilitadora, pelo que ocorreria inconstitucionalidade, por
violação do nº 7 do art. 115º da Constituição da República Portuguesa.
Não pode aceitar-se este entendimento quanto à
imputada violação constitucional.
De facto, a Constituição da República Portuguesa
não vigora qua tale, e no seu todo, no Território de Macau. O Tribunal
Constitucional, já o afirmou no seu acórdão nº 292/91, ao notar que este
território não integra o território de Portugal:
'... Macau não é território português: é unicamente território «sob
administração portuguesa», regendo-se por «estatuto adequado à sua situação
especial» (artigo 292º, nº 1, cit). Significa isto - como o Tribunal já teve
ocasião de dizer, seguindo a lição da doutrina - que, salvo quando ela própria
o diga, «a Constituição não rege directa e automaticamente para o território de
Macau e que este tem a sua 'Constituição', verdadeiramente no respectivo
Estatuto»: só, pois, onde o Estatuto «devolva», explícita ou implicitamente,
para a Constituição da República a mesma se aplicará a Macau (v., por último, o
Acórdão nº 245/90, Diário da República, 2ª Série, de 22 de Janeiro de 1991 e,
antes, o Acórdão nº 284/89, no Diário da República, 2ª Série, de 12 de Junho de
1989 e, na doutrina, Afonso R. Queiró, Lições de Direito Administrativo, 1976,
pp. 382 e segs.).
Há-de ser, pois, no Estatuto Orgânico de Macau que, em primeira
linha, terá de procurar-se o regime não apenas de produção de normas jurídicas
do próprio território, mas igualmente o seu controlo: só subsidiariamente, e por
devolução (explícita ou implícita) do Estatuto, a Constituição da República
intervirá na regulamentação de tal matéria.' (in Diário da República, II Série,
nº 250, de 30 de Outubro de 1991, pág. 10938).
Do art. 2º do Estatuto Orgânico já atrás citado,
retira-se, pois, que vigoram em Macau os princípios e as normas atinentes a
direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição da República
Portuguesa.
Jorge Miranda sustenta que a remissão feita nesse
art. 2º implica o seguinte regime:
'a) Os princípios constitucionais fundamentais aplicam-se em Macau,
imediatamente, sem interposições destas ou daquelas normas estatutárias;
b) As normas sobre direitos, liberdades e garantias aplicam-se também directa e
imediatamente em Macau, embora não sejam de excluir as adaptações (em face da
regulamentação legislativa vigente em Portugal) que não ponham em causa o seu
conteúdo essencial (art. 41º, nº 2, 2ª parte do estatuto) [...];
c) Ao estatuto cabe dispor sobre as demais matérias, tendo como critério e como
limite os princípios constitucionais' (Manual cit, tomo II, pág. 304).
António Vitorino, por seu turno, encontra quatro
diferentes níveis de vinculação pela Constituição da República Portuguesa, do
ordenamento jurídico de Macau. Num primeiro nível, agrupa as normas
constitucionais expressamente referentes a Macau [arts. 292º, 137º, alínea i),
164º, alínea c)], num segundo nível, reúne as normas e princípios
constitucionais a que, directa ou indirectamente, o Estatuto Orgânico faz apelo
(o essencial dos Princípios Fundamentais do ordenamento constitucional, as
normas sobre Direitos, Liberdades e Garantias e as referentes à fiscalização da
Constitucionalidade). Sobre os dois últimos níveis, escreve este
constitucionalista:
' - Terceiro nível: normas constitucionais cuja aplicação a Macau tem que ser
sempre integrada pelo valor materialmente constitucional do próprio E.O.M.
[Estatuto Orgânico de Macau] e pelos limites (substancialmente alargados em
1990) da autonomia política, legislativa, administrativa e económica do
território, autonomia essa concebida em função das especificidades próprias de
Macau: normas sobre direitos económicos, sociais e culturais, normas sobre
organização económica e normas sobre a organização judiciária. Neste terceiro
nível já não me parece ser possível falar de um critério geral ou sequer de uma
regra de tendencial aplicação, mas apenas pode relevar a necessária
compatibilização entre complexos normativos (de um lado a C.R.P., do outro o
E.O.M.) aferida caso a caso e em função dos fins últimos do estatuto autónomo de
Macau tal como é concebido pela Constituição e pelo Estatuto.
- quarto nível: normas constitucionais que, por natureza, não são aplicáveis a
Macau. Trata-se de todas as normas organizatórias referentes a instituições da
República [exceptuadas as referentes aos órgãos de soberania na parte em que
usufruam de competências específicas para Macau e aos Tribunais - mas estes,
mesmo assim, apenas nos termos da futura Lei de Bases da Organização Judiciária
de Macau - em que o limite constitucionalmente ressalvado é, apenas, o princípio
da independência dos juízes] e as regras sobre revisão constitucional'. (estudo
cit., revista cit., págs. 113-114; no mesmo sentido o seu voto de vencido anexo
ao citado acórdão nº 292/91).
Ainda segundo António Vitorino, do quadro traçado
resulta que, ao passo que nas normas do primeiro e segundo nível, haverá uma
presunção de aplicação ou vinculação directa do legislador do Território, 'e só
nas do terceiro nível é que haverá que ponderar caso a caso as condições da sua
aplicação em virtude das especiais características do Território' (ibidem;
vejam-se ainda J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, estudo cit, pág. 16,
autores que consideram o art. 292º da Constituição a verdadeira Grundnorm do
ordenamento do Território).
Em conformidade com os entendimentos transcritos
e não obstante a sua não coincidência integral, afigura-se com suficiente
clareza que se pode concluir que a norma do art. 115º, nº 7, da Constituição da
República Portuguesa é uma norma que não vigora em Macau, por se referir
tão-somente aos actos normativos emanados de órgãos de soberania, de órgãos da
autonomia regionais e de órgãos administrativos portugueses. Como sustenta o
Exmo. Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, a imposição constitucional de
que os regulamentos indiquem expressamente as leis que visam regulamentar ou
que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão não se
reveste de natureza de princípio geral da Constituição, não sendo, em si,
transponível para Macau. Bastará confrontar o art. 16º do Estatuto orgânico com
o art. 115º, nº 7, da Constituição portuguesa.
10. No caso sub judicio a norma desaplicada veio
a alterar regras de distribuição de competência em razão da matéria constantes
da legislação vigente no Território sobre organização judiciária. Nesse
particular, o acórdão recorrido diagnosticou de forma inteiramente correcta o
tipo de medida visada pela norma desaplicada.
Ora, e no que toca à organização judiciária, é
indubitável que é directamente aplicável a Macau a norma constitucional
constante do nº 5 do art. 292º da Constituição, cabendo à Assembleia da
República aprovar a lei aí prevista. Até à segunda revisão constitucional, Macau
não dispunha de organização judicial própria, estando os tribunais de Macau
integrados na organização judiciária nacional (veja-se o disposto no art. 104º
da Lei Orgânica dos Tribunais judiciais de 1987, Lei nº 38/87, de 23 de
Dezembro; e ainda o art. 64º do Decreto-Lei nº 214/88, de 17 de Junho).
E, assim, a Assembleia da República veio a
estatuir sobre as bases do sistema judiciário de Macau, como se acha, aliás,
previsto no nº 2 do art. 51º do Estatuto Orgânico.
Assim sendo, a competência para desenvolver essa
lei de bases cabia exclusivamente, nos termos do Estatuto Orgânico, ao
Governador de Macau, através de decreto-lei (art. 13º, nº 3), não sendo
possível a um regulamento sem base legal alterar o disposto nessa normação
primária. Mostra-se, assim, violado o disposto nos arts. 292º, nº 5, da
Constituição e 13º, nº 3, do Estatuto Orgânico de Macau.
11. Alcançada esta conclusão, torna-se
desnecessário averiguar se a norma impugnada viola outros princípios
constitucionais, nomeadamente o do juiz natural ou do juiz legal, previsto no nº
7 do art. 32º da Constituição.
II
12. Nestes termos e pelas razões expostas, decide
o Tribunal Constitucional julgar improcedente o presente recurso, confirmando o
acórdão recorrido, embora por fundamentos diversos dos acolhidos neste último.
Lisboa, 22 de Novembro de 1995
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
José Manuel Cardoso da Costa