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Proc. nº 286/94
Plenário
Cons. Ribeiro Mendes
Acordam no plenário do Tribunal Constitucional:
I
1. Em 1 de Julho de 1994, deu entrada na secretaria
do Tribunal Constitucional um pedido de fiscalização sucessiva da
constitucionalidade da Portaria nº 351/94, de 3 de Junho, subscrito por vinte e
cinco Deputados do Partido Socialista.
2. Segundo o requerimento referido, o nº 1º da
Portaria nº 351/94, de 3 de Junho, diploma que estabelece os novos montantes das
portagens a cobrar pela utilização da ponte sobre o Tejo, violaria 'o princípio
da proibição do arbítrio - que decorre da própria ideia de Estado de Direito
Democrático, estabelecido no artigo 2º da C.R.P. - o princípio da adequação e o
princípio da igualdade perante os encargos públicos, como afloramento específico
do princípio da igualdade, estabelecido no artigo 13º da C.R.P.. Da
fundamentação e dos critérios invocados para a actualização das portagens
resulta ainda que estamos perante algo que não se configura já como uma «taxa»,
mas como um verdadeiro «imposto», pelo que a sua aprovação pelo Governo sem
autorização da Assembleia da República viola o nº 1, alínea i), do artigo 168º
da C.R.P., consubstanciando um vício de inconstitucionalidade orgânica' (a fls.
4 dos autos).
Transcreve-se a fundamentação do pedido:
'1. O critério do ajustamento de preços da portagem operado pela
Portaria nº 351/94, de 3 de Junho, não foi o da actualização de contrapartida de
um serviço, mas, como foi expressamente afirmado pelo Senhor Ministro das Obras
Públicas, Transportes e Comunicações, o actual e os futuros ajustamentos
baseiam-se na necessidade de equiparar a prazo os preços das portagens da actual
ponte sobre o Tejo e da futura ponte, a construir entre Sacavém e Samouco;
2. Dos estudos técnicos e de declaração do Senhor Ministro das Obras
Públicas, Transportes e Comunicações depreende-se que a nova ponte, a construir
entre Sacavém e Samouco, vai ter como função principal encaminhar o tráfego
rodoviário do eixo Norte/Sul, tendo, por isso, um impacto reduzido (cerca de
20%) na diversificação do tráfego da ponte já existente; o serviço a prestar
pela nova ponte não vai pois aproveitar aos utentes da ponte já existente;
3. O faseamento do aumento das portagens da ponte actual e os seus
montantes são determinados pela exigência de rentabilização da exploração da
nova ponte, cuja construção será financiada por um consórcio privado, que
rentabilizará o investimento através da obtenção em concessão da ponte já
construída e da ponte a construir; o esquema de aumento progressivo das
portagens da ponte actual foi estabelecido, pois, para viabilizar economicamente
a construção e exploração da ponte a construir entre Sacavém e Samouco;
4. Assim sendo, o critério de ajustamento que está na base da Portaria
nº 351/94, de 3 Junho, não decorre nem do valor do serviço prestado nem de uma
ideia de justa distribuição dos encargos públicos o que leva a ter de se
considerar que estamos perante um autêntico imposto, uma vez que se perde a
ideia de «contrapartida específica», confirmada pela possibilidade de o produto
das portagens não reverter exclusivamente para a gestão e administração da Ponte
25 de Abril e para a Junta Autónoma das Estradas;
5. Foi precisamente pelo facto de os utentes considerarem que o
critério não se baseia nem no valor do serviço prestado nem numa ideia de justa
distribuição dos encargos públicos que se criou um vasto movimento de
desobediência civil e de resistência ao pagamento das portagens;
6. Movimento que obrigou o próprio Governo a recuar na aplicação da
Portaria e a prometer introduzir derrogações em relação à obrigatoriedade de
pagamento dos novos montantes.' (a fls. 3-4 dos autos)
Os Deputados requerentes solicitaram a apreciação e
julgamento do respectivo pedido 'com carácter de máxima urgência', invocando que
a tentativa de cobrança dos novos montantes das portagens 'deu azo a repetidos
actos de resistência' e que o julgamento da questão se reveste de importância
para se determinar, nomeadamente, 'se relativamente a esses actos ocorre a causa
de exclusão de ilicitude estabelecida no artigo 21º da C.R.P. e também se, nos
casos de recusa de pagamento, se verifica a causa de justificação prevista no nº
3 do artigo 106º da C.R.P.' (ibidem).
3. Foi ordenada a notificação do Primeiro-Ministro,
nos termos e para os efeitos dos arts. 54º e 55º, nº 3, da Lei do Tribunal
Constitucional, por despacho do presidente deste último Tribunal, proferido em
11 de Julho de 1994 (a fls. 7 dos autos).
Em 16 de Setembro de 1994, deu entrada na
secretaria do Tribunal Constitucional a resposta subscrita pelo
Primeiro-Ministro, acompanhada da fotocópia de um excerto de uma obra publicada
em língua inglesa sobre economia e política de transportes, de um parecer
jurídico da autoria do Professor Doutor José Joaquim Teixeira Ribeiro e de um
parecer económico da autoria do Professor Doutor António Soares Pinto Barbosa
(fls. 8 a 77 dos autos). Nessa resposta, sustenta-se a plena conformidade
constitucional das normas da impugnada portaria.
A resposta do Primeiro-Ministro contém as seguintes
conclusões:
- Conclusões quanto à subsistência do pedido
' A) Porque da acumulação de eventuais inconstitucionalidades materiais não
resulta uma inconstitucionalidade orgânica, o pedido foi entendido como
alternativo: caso não fosse reconhecida a inconstitucionalidade orgânica,
decorrente da classificação dos «preços das portagens» (é uma expressão do
pedido) como «impostos», ainda se poderia tentar formular um juízo de
inconstitucionalidade sobre eles, enquanto taxas.
B) Porém, se se admite que uma realidade duradouramente incontroversa sob o
ponto de vista jurídico-constitucional se torna, a partir de certo momento,
duvidosa, é porque se está a admitir que o decurso do tempo - ou uma
intervenção relevante - podem alterar a sua natureza.
Mesmo deixando de lado que o que esta formulação plausível
envolve é a tese da metamorfose das taxas em impostos pela mera passagem do
tempo - ou pela variação do seu quantitativo - resta concluir que, por
identidade de razão, o inverso também pode ocorrer. Logo, qualquer conclusão a
que se chegue só é válida até à alteração do quadro regulamentar das portagens
operada pela Portaria nº 735-A/94, de 12 de Agosto.
C) Tendo o sistema de «preços de portagem» (expressão do pedido), previsto na
Portaria em causa, sido alterado escassas semanas depois de ter sido aprovado -
e tendo estado suspenso durante a maior parte do tempo intermédio - o juízo a
que esse venerando Tribunal é chamado, incidindo apenas sobre o sistema
original, não pode já produzir efeitos úteis relevantes, na medida em que, em
qualquer caso, os efeitos já produzidos teriam de ser salvaguardados.
D) Admitindo, alternativamente, e em mera tese, que as subsequentes
alterações da regulamentação fixada pela Portaria nº 351/94 são indiferentes,
por esta estar viciada de inconstitucionalidade orgânica, o que se não concede
nem concebe, teria de se concluir estarmos perante uma inconstitucionalidade
indirecta, que o Tribunal repetidamente entendeu não lhe caber declarar.
E) E, mesmo considerando que a verdadeira essência do problema não é
tanto a inconstitucionalidade suscitada ser directa ou indirecta, mas sim o ser,
ou não, «autónoma e principal» (cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª
Edição, Coimbra, 1991, p. 1076), sempre teria de se reconhecer que a única fonte
da eventual desconformidade constitucional - o artigo 3º do Decreto-Lei nº
265-A/92 (aliás não contestado e, portanto, beneficiando de presunção de
constitucionalidade) - está processualmente eximido de apreciação pelo Tribunal,
pelo que, também por esta via, se haveria de concluir no sentido de não
conhecimento do pedido.'
- Conclusões quanto à natureza da contrapartida
' Se se entender que o pedido deve ser conhecido, então:
F) A portagem paga na ponte sobre o Tejo é a contrapartida da
utilização, com um veículo automóvel, de um bem semipúblico.
G) Ainda que a generalidade dos bens do domínio público de uso comum seja de
utilização gratuita, isso não corresponde a um dever-ser que obrigue a
justificar as excepções. O que acontece é que há razões diversas para que uma
mais generalizada aplicação do princípio do benefício não ocorra.
H) O pagamento de portagens em pontes é um exemplo de escola: o seu montante
pode ser ligado aos custos marginais de curto ou de longo prazo. Neste último
caso, a consideração dos custos de reposição adita uma componente aos custos
marginais. Tal justifica o pagamento de uma taxa, necessariamente muito acima do
custo marginal. Porém, mesmo no caso de se considerarem só os custos marginais
de curto prazo, a cobrança de uma taxa justifica-se sobremaneira quando ocorram
fenómenos de congestionamento, devendo aquela ser tanto mais elevada quanto
maior for o congestionamento.'
- Conclusões quanto à natureza das portagens
'I) A cada passagem de um veículo na ponte corresponde um benefício resultante
da utilização de um bem semipúblico. A cada par de passagens em sentidos
inversos corresponde um pagamento. Logo, os utentes da actual ponte pagam os
benefícios contemporâneos resultantes da utilização da ponte e não quaisquer
benefícios futuros, sejam estes directos (decorrentes da existência de
alternativas) ou indirectos (decorrentes da diminuição da concentração da
procura).
J) Se a contraprestação específica nunca se alterou, as justificações reais ou
aparentes para o que cobrar, como cobrar e quando cobrar foram variando (do
'custeio dos encargos de financiamento e das despesas de conservação e
exploração da obra', ao enquadramento na 'política de rendimentos e de preços',
passando pela não diminuição de receitas do Estado).
L) Ora há uma falácia evidente em procurar, para cada aumento da taxa,
uma contrapartida diferente da que se estabelecia antes. Se assim fosse,
qualquer aumento teria de ter uma contrapartida específica - e, nessa lógica,
existiria um somatório de diferentes taxas em cada valor actualizado.
M) Até em comparação com a actualização das taxas estabelecidas em 1966
para as classes extremas (correspondentes, a preços de 1991, a 763$00 e
7.640$00), a pretensão de que a Portaria nº 351/94, de 3 de Junho, excedeu os
limites de fixação de taxas e configura um imposto é absolutamente irrazoável'.
(a fls. 29-30, 40-41 e 45 dos autos)
II
4. Descritos os termos do requerimento dos
Deputados do Partido Socialista e sumariada a resposta do Primeiro-Ministro,
importa começar por apreciar uma questão prévia suscitada por este último, a
saber, a falta de interesse no conhecimento do pedido, decorrente da alegada
insubsistência em vigor da Portaria nº 351/94, de 3 de Junho.
Para tal, dever-se-á fixar com rigor, antes de
tudo, o objecto do pedido.
5. A Portaria nº 351/94, de 3 de Junho, foi
publicada com o intuito, confessado no respectivo preâmbulo, de realizar o
'ajustamento das taxas de portagens em vigor na ponte sobre o Tejo, fixadas pela
Portaria nº 1089-A/92, de 26 de Novembro'.
Tal portaria foi publicada ao abrigo do art. 3º do
Decreto-Lei nº 265-A/92, de 26 de Novembro, e dispõe o seguinte:
'1º As portagens a cobrar pela utilização da ponte sobre o Tejo são as
seguintes, incluindo o IVA:
Classe 1-150$00;
Classe 2-370$00
Classe 3-550$00
Classe 4-720$00.
2º É revogado o nº 1º da Portaria nº 1089-A/92, de 26 de Novembro.
3º A presente portaria entra em vigor no dia imediato ao da sua publicação.'
Resulta do texto agora transcrito que o pedido de
fiscalização abstracta de constitucionalidade tem como objecto apenas o nº 1º
desta portaria, disposição que fixa os novos valores das portagens, referentes
às diferentes classes de veículos automóveis (o nº 2º limita-se a revogar o
preceito que fixava anteriormente as taxas, ao passo que o nº 3º estabelece a
data da entrada em vigor do novo regime de taxas de portagem).
6. Face à contestação dos utentes referida no
requerimento subscrito pelos Deputados do Partido Socialista, o Governo iniciou
'o estudo de um regime especial de pagamento das portagens para os utilizadores
habituais' (preâmbulo da Portaria nº 463-A/94, de 30 de Junho). Veio, assim, a
determinar a suspensão da cobrança de portagens na Ponte 25 de Abril 'durante o
mês de Julho de 1994' (nº 1º da Portaria nº 463-A/94), 'atendendo aos
interesses' dos utilizadores habituais. Para além da isenção de pagamento
durante o mês de Julho, manteve-se a isenção de cobrança durante o mês de Agosto
de 1994, por força do disposto no nº 4º da Portaria nº 1089-A/92, de 26 de
Novembro.
Em 12 de Agosto de 1994, foi publicada a Portaria
n.º 735-A/94, também ao abrigo do disposto no art. 3º do Decreto-Lei n.º
265-A/92, através da qual se criou um regime de pagamento com descontos para os
utilizadores habituais. Pode ler-se no preâmbulo desta portaria:
'A presente portaria vem fixar, em função do número de travessias da ponte sobre
o Tejo mensalmente efectuadas, o desconto de quantidade das tarifas de portagem
em vigor para cada uma das quatro classes de veículos, quer para os utentes que
utilizam a via verde, quer para aqueles que optem pela nova forma de pagamento
de cartão associado a senhas.
Para além do desconto de quantidade, os utentes podem ainda optar
por adquirir cadernetas de 20 senhas, beneficiando de um desconto global de 10%,
que podem utilizar independentemente do prazo de utilização'.
Os nºs 1º e 2º desta Portaria estabelecem os
descontos contemplados quanto ao pagamento das taxas de portagem para os
utilizadores frequentes. Transcrevem-se em seguida esses números:
'1º Os montantes em vigor da portagem na ponte sobre o Tejo devidos por cada
uma das travessias mensalmente efectuadas pelos utentes que utilizam o sistema
de pagamento da via verde são para os diferentes tipos de veículos os
seguintes:
veículos da classe 1:
Até à 13ª travessia - preço normal;
Da 14ª à 70ª travessia - redução de 50%;
A partir da 70ª travessia - redução de 100%;
Veículos das classes 2, 3 e 4:
Até à 12ª travessia - preço normal
Da 13ª à 70ª travessia - redução de 50%;
A partir da 70ª travessia - redução de 100%.
2º Os utentes que atravessam a ponte sobre o Tejo diariamente podem, em
alternativa à utilização da via verde, adquirir um cartão associado a um número
de senhas igual ao número de dias úteis desse mês, com os seguintes descontos de
quantidade, para os diferentes tipos de veículos:
Veículos da classe 1:
Primeiras 13 travessias - preço normal;
Restantes travessias (correspondente à diferença entre o número de dias úteis do
mês a que respeita o cartão e as 13 primeiras travessias acima mencionadas) -
redução de 50%;
Veículos das classes 2, 3 e 4:
Primeiras 12 travessias - preço normal;
Restantes travessias (correspondente à diferença entre o número de dias úteis do
mês a que respeita o cartão e as 12 primeiras travessias acima mencionadas) -
redução de 50%.'
Os restantes números desta Portaria nº 735-A/94
regulamentam a aquisição do cartão associado a senhas mensais, o regime das
senhas mensais sobrantes, o modo de arredondamento do valor global fixado no nº
2º, a equiparação dos feriados municipais a dias úteis no que toca à aplicação
da portaria, a aquisição de cadernetas de vinte senhas com desconto de 10% e sem
prazo de validade, a autorização dada à Junta Autónoma das Estradas (JAE) para
'pôr em execução os meios técnicos de pagamento da portagem, nomeadamente o
alargamento do sistema de via verde' (nº 8º), bem como a data de entrada em
vigor deste diploma regulamentar (1 de Setembro de 1994).
7. Do que fica exposto, logo se alcança que não é
procedente a questão prévia atrás referida.
De facto, mantêm-se plenamente em vigor os valores
das tarifas de portagem fixados pelo nº 1º da Portaria nº 351/94, como resulta
dos nºs 1º e 2º da Portaria nº 735-A/94.
As únicas diferenças actualmente existentes -
relativamente ao período inicial de vigência da Portaria n.º 351/94, que
terminou em 30 de Junho de 1994 - residem no seguinte: passaram-se a prever
descontos automáticos de quantidade para os utilizadores aderentes ao sistema
de pagamento da via verde e, além disso, permite-se que os utilizadores que não
sejam aderentes ao referido sistema da via verde possam aceder a descontos das
taxas fixadas, através de dois meios dependentes de um acto de vontade do
utente: ou a aquisição de 'um cartão associado a um número de senhas igual ao
número de dias úteis desse mês' ou, em alternativa, a aquisição de cadernetas de
senhas pré-compradas (em número de vinte), 'sem qualquer prazo de validade, cujo
preço beneficia de um desconto de 10% sobre a correspondente tarifa em vigor'.
Não pode, assim, pôr-se em causa a vigência das
normas impugnadas pelos Deputados requerentes. Só quanto aos utilizadores
aderentes ao sistema de pagamento de via verde - caso em que a aplicação do
desconto de quantidade é automática, não dependendo de um acto de vontade do
utilizador - se poderia pôr em dúvida o saber se não ocorreu - e isto, note-se,
apenas quanto aos utilizadores que, num mês, realizem mais de doze ou treze
travessias - uma 'modificação substancial significativa' do conteúdo prescritivo
daquele nº 1º da Portaria nº 351/94. Nos restantes casos, é óbvio que aquelas
normas permanecem integralmente em vigor, bastando atentar em que os descontos
de quantidade pressupõem sempre um acto voluntário de aquisição de cartões com
senhas associadas ou de cadernetas de senhas pré-compradas, implicando uma
antecipação de pagamento de travessias futuras, com manifestas vantagens
financeiras para a entidade vendedora, a JAE. Uma eventual declaração de
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, revestir-se-ia de interesse
jurídico, quanto mais não fosse pela alteração dos valores de referência, na
sequência de uma eventual repristinação do nº 1º da Portaria nº 1089-A/92.
Improcede, por isso, a questão prévia de falta de
interesse jurídico no conhecimento do objecto do pedido.
8. Numa outra linha de argumentação, mas insistindo
em que as normas do nº 1º da Portaria nº 351/94 se acham alteradas no seu
sentido pela superveniência da Portaria nº 735-A/94, suscita-se na resposta do
Primeiro-Ministro uma outra questão de natureza preliminar decorrente do vício
de inconstitucionalidade orgânica assacado pelos Deputados requerentes às normas
que fixaram os novos valores das tarifas de portagem.
Na verdade, os Deputados requerentes sustentam,
como se referiu, que da fundamentação e dos critérios invocados pelo Governo
para a actualização das portagens resultaria que já não se estaria perante uma
taxa, mas sim perante um imposto, 'pelo que a sua aprovação pelo Governo sem
autorização da Assembleia da República viola o nº 1, alínea i), do artigo 168º
da C.R.P., consubstanciando um vício de inconstitucionalidade orgânica' (a fls.
4 dos autos).
No entender do Primeiro-Ministro, a admitir-se que
assim fosse, estar-se-ia perante uma inconstitucionalidade indirecta,
insusceptível de ser conhecida pelo Tribunal Constitucional, na medida em que
tal conclusão haveria de implicar, como antecedente lógico e como pressuposto
material necessário, a convicção de inconstitucionalidade da norma do art. 3º do
Decreto-Lei nº 265-A/92, de 26 de Novembro (esta norma dispõe que '[o]s
montantes das portagens a cobrar pela utilização da ponte sobre o Tejo e os
meios e formas de pagamento serão aprovados por portaria conjunta dos Ministros
das Finanças e das Obras Públicas, Transportes e Comunicações'.) Pode ler-se
nessa resposta:
'De facto, uma vez que qualquer das Portarias se conforma com o ali prescrito, o
vício não nasce no plano regulamentar, mas sim no plano legal. Ora, o artigo 3º
do referido diploma nunca foi posto em causa - nem pelos requerentes - como o
não foram as normas que habilitaram as diferentes portarias que anteriormente
fixaram «preços da portagem» (a expressão é do pedido de declaração de
inconstitucionalidade). E sempre teria de o ser, caso estivesse em causa um
imposto: porque invadiria, não autorizadamente, área de reserva da Assembleia da
República e porque habilitaria a intervenção da Administração em termos
incompatíveis com a «reserva do Parlamento» (ver, por todos, Acórdão nº 174/93,
Diário da República, II Série, de 1 de Junho de 1993, p. 5695-5696)' ( a fls. 16
dos autos).
9. Entende-se que também não é procedente a presente
questão preliminar, não havendo razões que impeçam o conhecimento do pedido.
De facto - e se bem se interpreta o pedido dos
requerentes, neste ponto - a inconstitucionalidade verificar-se-ia quanto às
normas do nº 1º da Portaria nº 351/94, sem se pôr em causa a validade
constitucional da norma interposta (art. 3º do Decreto-Lei nº 265-A/92). No
requerimento referido, contesta-se que a actualização das taxas haja
correspondido a um mero 'ajustamento de preços de portagem', a uma 'actualização
de contrapartida de um serviço', considerando-se que a finalidade de equiparar a
prazo os preços das portagens da actual ponte sobre o Tejo e as da futura ponte
- equiparação exigida pela 'rentabilização da exploração de nova ponte, cuja
construção será financiada por um consórcio privado' - afastaria o recurso às
ideias de 'valor do serviço prestado' e de 'justa distribuição dos encargos
públicos', implicando a qualificação da 'taxa' actualizada como 'autêntico
imposto, uma vez que se perde a ideia de «contrapartida específica», confirmada
pela possibilidade de o produto das portagens não reverter exclusivamente para a
gestão e administração da Ponte 25 de Abril e para a Junta Autónoma das
Estradas' (a fls. 3 dos autos).
Nesta interpretação do pedido, bem se compreende que
não seja imputada à norma meramente habilitante do Decreto-Lei n.º 265-A/92
qualquer vício de constitucionalidade. O legislador determinou que ocorreria
através de regulamento, constante de portaria subscrita pelos dois ministros aí
indicados, a fixação dos montantes das portagens a cobrar pela utilização da
referida ponte, bem como os meios e formas do respectivo pagamento. A Portaria
n.º 351/94 procedeu à fixação de tais montantes. Simplesmente, as normas
regulamentares impugnadas teriam, na tese dos requerentes, fixado montantes de
valor excessivo, de tal modo que já não se estaria face a meras taxas, mas sim
perante verdadeiros impostos. A regulamentação impugnada violaria directamente,
no plano material, normas e princípios constitucionais (princípio da proibição
do arbítrio, decorrente da ideia de Estado de direito democrático; princípio da
adequação ou da proporcionalidade; princípio da igualdade perante os encargos
públicos) e, na medida em que estaria a criar um imposto, violaria igualmente
uma regra de repartição de competências constitucionalmente consagrada (art.
168º, n.º 1, alínea i), da Constituição).
10. Do que fica referido, há-de concluir-se que deverá
conhecer-se do objecto do pedido. Só no momento deste conhecimento se poderão
considerar as questões suscitadas na resposta do Primeiro-Ministro e que têm a
ver com a qualificação dos vícios imputados à norma regulamentar, a fim de se
determinar se se está perante inconstitucionalidade ou mera ilegalidade. Não é,
assim, possível autonomizar-se como questão preliminar ou prejudicial tal
qualificação para determinar a competência do Tribunal Constitucional para
conhecer do objecto do pedido.
11. Impõe-se, por isso, passar ao conhecimento do
objecto do pedido.
III
12. Começar-se-á por analisar o regime legal das
portagens desde a construção da ponte sobre o Tejo, em Lisboa.
Esta ponte foi aberta à exploração em 1966, no regime
de portagem. A regulamentação desse regime constou do Decreto-Lei n.º 47.107, de
19 de Julho de 1966. Vale a pena transcrever o que refere o preâmbulo deste
diploma legal:
'De harmonia com a orientação oportunamente estabelecida, a exploração da ponte
sobre o Tejo, em Lisboa, será feita no regime de portagem, destinando-se as
respectivas receitas ao custeio dos encargos do financiamento e das despesas de
conservação e exploração da obra. Estando o empreendimento em vias de conclusão,
há agora que dar expressão legal a esta orientação, definindo-se ao mesmo tempo
as condições em que deverá ser efectivada e, bem assim, as disposições gerais a
que terá de subordinar-se a utilização da ponte. A isto se destina o presente
diploma.
Os valores das taxas de portagem a cobrar foram determinados com
base na evolução provável do tráfego, dentro dos critérios de prudente avaliação
habituais.
Têm, assim, de considerar-se susceptíveis de ajustamento ulterior
na medida em que a evolução realmente verificada o justifique.
O importante esforço financeiro exigido por este empreendimento
implica a maior austeridade na concessão de isenções de pagamento da portagem,
que ficam limitadas às altas autoridades do Estado, às forças armadas e aos
serviços de ordem, de socorro e de fiscalização.
Não convindo precipitar a resolução definitiva do Governo sobre os
estudos oportunamente elaborados, relativamente ao problema da atribuição da
incumbência da exploração da obra, sendo certo que convirá dispor
preliminarmente dos resultados da experiência dos primeiros tempos do seu
funcionamento, fica por agora depositário dessa incumbência o Gabinete da ponte
sobre o Tejo, no seguimento da meritória actuação até agora desenvolvida por
este organismo'.
Nos termos do § único do art. 1º deste Decreto-Lei n.º
47107, 'as receitas da exploração da ponte destinam-se a fazer face às despesas
da sua conservação e exploração, à conservação da parte dos acessos que ficar a
cargo do Estado e aos encargos de ordem financeira assumidos com a construção de
obra'.
Para efeitos de aplicação das portagens,
consideraram-se dez classes de veículos: as nove primeiras referiam-se aos
diferentes tipos de veículos, em função das suas dimensões, peso bruto,
características técnicas, afectação ou destino económico, enquanto que a décima
englobava os veículos isentos (art. 2º). As portagens a cobrar por cada
travessia da ponte, em qualquer dos sentidos, variavam em função das nove
classes de veículos não isentos, entre 10$00 e 100$00 (art. 3º). Segundo o § 1º
do art. 3º do mesmo decreto-lei, 'nestes preços inclui-se o direito de
utilização total das lotações ou capacidades de carga dos veículos'. Criava-se
um desconto de quantidade através da permissão de emissão de 'séries de 100
bilhetes para o mesmo veículo automóvel, com um bónus de 5 por cento' (§ 2º do
art. 3º). De harmonia com o § 3º do mesmo artigo 3º, 'sempre que a evolução do
tráfego e da amortização da obra' o aconselhasse ou justificasse, a tabela de
preços da portagem poderia 'ser alterada por despacho do Conselho de Ministros,
sob proposta do Ministro das Obras Públicas'.
Segundo o corpo do art. 4º deste diploma, o
pagamento das portagens devidas pela passagem da ponte dava direito aos utentes
à 'assistência dada pelo pessoal da exploração da ponte em situações de
emergência decorrentes de avaria ou acidente, incluindo o reboque gratuito dos
veículos para o extremo da ponte'.
O Decreto nº 47.123, de 30 de Julho de 1966,
estabeleceu a regulamentação do trânsito na ponte sobre o Tejo em Lisboa e no
viaduto norte.
13. Em 1981, procedeu-se a uma primeira alteração
ao regime das portagens da ponte sobre o Tejo. Estabeleceu-se que só a
utilização num dos sentidos seria sujeita a portagem: 'a utilização da Ponte de
25 de Abril, no sentido sul-norte, deixa de estar sujeita ao pagamento da
portagem.' (art. 1º do Decreto-Lei n.º 117/81, de 15 de Maio). O art. 2º deste
Decreto-Lei n.º 117/81 deu nova redacção ao art. 3º do Decreto-Lei n.º 47.107,
fixando os valores das portagens no dobro dos valores de 1966, atendendo a que
só a travessia no sentido norte-sul passava a ser sujeita a tal portagem (a
variação dos valores situava-se entre 20$00, para os veículos da classe 1, e
200$00, para os veículos da classe 9).
Este diploma consagrou igualmente a dispensa de
pagamento de portagem nos domingos dos meses de Julho e Agosto (art. 3º do
Decreto-Lei n.º 117/81).
14. Em 1983, o Decreto-Lei n.º 35/83, de 24 de
Janeiro, estabeleceu que o regime e modalidades da emissão de bilhetes de
portagem (bilhetes pré-comprados) seriam fixados por portaria do Ministro da
Habitação, Obras Públicas e Transportes, abrindo-se, assim, caminho à revogação
do § 2º do art. 3º do Decreto-Lei n.º 47.107. A Portaria n.º 420/83, de 11 de
Abril, previu a venda de cadernetas de bilhetes, em séries de 20, com um
desconto de 10% (não seriam concedidas cadernetas de bilhetes aos veículos dos
concessionários dos transportes públicos urbanos, dadas as condições especiais
das portagens estabelecidas para esses veículos no n.º 4º da Portaria).
15. No mesmo ano, o Decreto-Lei n.º 365/83 procedeu
à primeira revisão substancial do regime de portagens, reduzindo de 9 para 6 as
classes de veículos, 'atendendo às suas características geométricas', em virtude
de estar 'em curso a instalação de novo sistema de cobrança e controle
automático'. Os novos valores das portagens foram fixados entre 30$00, para a
classe 1, e 250$00, para a classe 6. Na classe 1 verificou-se um agravamento de
50%, elevando-se a 100% na classe 2, e ultrapassando os 100% nas classes
subsequentes até à 5ª. Todavia, como passou a haver menos classes de veículos,
os agravamentos em concreto terão ficado aquém das percentagens indicadas,
relativamente aos veículos que mudaram de classe.
16. Em 1985, a Portaria n.º 894-J/85, de 23 de
Novembro, procedeu a nova actualização das portagens na ponte sobre o Tejo,
invocando pela primeira vez no seu preâmbulo que 'a revisão dos preços dos
serviços públicos deve enquadrar-se no âmbito da política de rendimentos e de
preços adoptada pelo Governo e que, entre outros objectivos, visa diminuir o
ritmo de inflação em Portugal'. A portagem da classe 1 manteve-se inalterável
(30$00), fixando-se a portagem de classe 6 em 280$00 (aumento de 12%).
17. A partir de 1985, a revisão das portagens
passou a fazer-se anualmente por portarias que invariavelmente invocam a
necessidade de ajustar os valores as orientações da política de rendimentos e
preços do Governo.
Indicam-se os valores fixados para as classes
extremas, 1 e 6:
- Portaria nº 733-0/86, de 4 de Dezembro - portagens
fixadas entre 35$00 e 310$00;
- Portaria nº 925-E/87, de 4 de Dezembro - portagens
fixadas entre 35$00 e 325$00;
- Portaria nº 805-H/88, de 15 de Dezembro - portagens
fixadas entre 40$00 e 350$00;
- Portaria nº 1110-M/89, de 28 de Dezembro - portagens
fixadas entre 40$00 e 385$00;
- Portaria nº 1248/90, de 31 de Dezembro - portagens
fixadas entre 45$00 e 420$00;
- Portaria nº 82/92 (publicada no Diário da República, II
Série, nº 72, de 26 de Março de 1992) - portagens fixadas entre 50$00 e 480$00.
18. Em 1992, o Decreto-Lei nº 265-A/92, de 26 de
Novembro, veio remodelar o regime de portagens na ponte sobre o Tejo, decorrente
da reorganização do perfil transversal do tabuleiro da mesma ponte, com a
introdução de uma quinta via reversível, e da necessidade de aumentar a barreira
da portagem para quinze cabinas. Por essa ocasião, foram reduzidas as seis
classes de veículos para apenas quatro, tendo o legislador o cuidado de referir
no preâmbulo do diploma que tal redução era feita 'sem afectar as receitas do
Estado'. A partir deste diploma, a cobrança de portagem passou a fazer-se no
sentido sul-norte (art. 1º, nº 2, do diploma).
A Portaria nº 1089-A/92, de 26 de Novembro, fixou os
valores das novas portagens, ao abrigo do art. 3º daquele Decreto-Lei nº
265-A/92.
Assim, segundo esta Portaria, na classe 1 o valor
passou a ser 100$00, ao passo que na classe 2 o valor se elevou a 250$00, na
classe 3 o valor fixado foi 370$00 e, na classe 4, 480$00. Os concessionários
de transportes colectivos de passageiros em regime de carreira continuarem a
beneficiar de um desconto de 30% (nº 3º da Portaria). A utilização da ponte no
mês de Agosto ficou dispensada de portagem (nº 4º da mesma Portaria).
Paralelamente a este aumento, a Portaria nº 521/93, de
15 de Maio, veio introduzir novos métodos de cobrança 'mais expeditos' das
portagens na ponte. Assim, a par do pagamento em numerário, admitiu-se o
pagamento automático sem paragem para os aderentes ao regime das chamadas 'Vias
verdes', o sistema 'por conta de crédito' e, ainda, o pagamento através do
cartão multibanco. Aboliu-se concomitantemente o sistema de utilização de
cadernetas de bilhetes pré-comprados com desconto (nº 2º desta Portaria).
Antes de abordar especificamente a questão de
constitucionalidade do nº 1º da Portaria nº 351/94, reveste-se de interesse
acentuar os traços marcantes do regime jurídico das portagens exigidas na
travessia da ponte sobre o Tejo em Lisboa, segundo a legislação presentemente em
vigor:
- A sujeição da travessia a portagem está prevista em decreto-lei emanado do
Governo (art. 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 265-A/92);
- O montante da portagem não é único relativamente a todos os veículos
automóveis, variando antes consoante o tipo de veículos em causa. Para esse
efeito, os veículos automóveis são divididos em quatro classes (1,2, 3 e 4),
achando-se definidas as características distintivas no mesmo diploma legal (art.
2º);
- A fixação dos montantes ou tarifas das portagens exigíveis para os veículos de
cada uma das classes, bem como as respectivas isenções, são fixadas por
portaria do Governo, emanada dos Ministros das Finanças e das Obras Públicas,
Transportes e Comunicações (art. 3º do Decreto-Lei nº 265-A/92; nº 1º da
Portaria nº 351/94 e nºs 3º, 4º e 5º da Portaria nº 1089-A/92, de 26 de
Novembro);
- A indicação dos direitos atribuídos aos utentes, decorrentes do pagamento da
portagem, acha-se fixada no diploma legal (art. 4º);
- O não pagamento da importância das portagens é punível com multa, 'cujo
montante mínimo será igual a 20 vezes o valor da portagem fixada para os
veículos de classe 1 e o máximo igual a 20 vezes o valor da portagem fixada para
os veículos de classe 4' (art. 5º, nº 1);
- O não pagamento em certo prazo da taxa de serviço de abastecimento de
carburante e do preço deste, no caso de paragem na ponte, viaduto norte e praça
da portagem por falta de combustível, implica a cobrança coerciva, com o
agravamento de 50% (art. 4º, nºs 3 e 4, do decreto-lei);
- O decreto-lei regula os procedimentos de detecção da passagem na ponte sem
pagamento e de levantamento do respectivo auto de notícia (arts. 5º, nº 2 e 3, e
6º do decreto-lei).
19. Importa ainda referir outro aspecto que é
abordado no requerimento formulado pelos Deputados do Partido Socialista.
A construção de uma nova ponte sobre o Tejo, em
Lisboa, vai ter implicações no futuro na exploração da ponte existente, indo
afectar a fixação do valor das portagens, visto que o concessionário da obra de
construção e exploração da nova ponte será também concessionário da exploração e
manutenção da actual ponte.
De facto, o Decreto-Lei nº 220/92, de 15 de
Outubro, fixou o essencial do regime aplicável ao concurso internacional com
vista à construção e financiamente da nova ponte, bem como da sua futura
exploração. Este diploma legal, depois de aprovar a localização da nova ponte
('situada entre as proximidades de Samouco, no município de Alcochete, e
Sacavém, no município de Loures'), dispôs no seu art. 2º:
'1 - A concepção, o projecto, a construção, o financiamento, a exploração e a
manutenção da nova travessia rodoviária sobre o Tejo serão objecto de contrato
de concessão em regime de portagem, a celebrar entre o Estado e uma empresa
concessionária a constituir para o efeito.
2 - Integrarão ainda o objecto da concessão, nas condições concretas a definir
pelas bases do respectivo contrato, a exploração e manutenção da actual Ponte de
25 de Abril'.
20. Depois da realização da fase de pré-qualificação
do concurso internacional (veja-se a Portaria nº 980-A/92, de 15 de Outubro),
veio a ser publicado o Decreto-Lei nº 168/94, de 15 de Junho, através do qual se
regularam os contratos de concessão a outorgar entre o Estado e um dos dois
consórcios pré-qualificados cuja proposta foi objecto de adjudicação pelo
Governo. Como se refere no preâmbulo deste último decreto-lei, o Governo
manteve-se fiel à decisão de 'transferir para a iniciativa privada, no quadro de
um contrato de concessão, em regime de portagem, a responsabilidade e os riscos
da concepção, do projecto, do financiamento, da construção, da exploração e da
manutenção da nova travessia, bem como da exploração e manutenção da actual'.
Assim, a par de um contrato de concessão inicial (designado como acordo
intercalar) - o qual tem 'por objecto a elaboração de estudos e de projectos da
nova travessia sobre o Rio Tejo até à celebração do segundo contrato' - o
segundo contrato de concessão terá por objecto, entre outras matérias, 'a
exploração e a manutenção da actual travessia' (art. 3º, nº 3).
21. Das 'Bases da Concessão' anexas a este Decreto-Lei
nº 168/94, consta a regulamentação que há-de integrar o segundo contrato, no que
se refere à exploração da actual travessia (capítulo VIII, Bases XLIV a LXIII).
A exploração da actual travessia tranferir-se-á às 0 horas do dia 1 de Janeiro
de 1996 da Junta Autónoma das Estradas para a concessionária, 'tornando-se sua
responsabilidade exclusiva a partir de então e podendo a partir desta data
iniciar-se a cobrança de portagens' (Base XLIV, nº 1). É reconhecido o direito
e o dever à concessionária 'de cobrar portagem nas travessias', não podendo
nunca as taxas de portagem na actual travessia ser mais elevadas do que na nova
travessia (Base LII). Além disso, no que toca às taxas de portagem aplicáveis às
quatro categorias de veículos aí contempladas, a relação entre as taxas de maior
valor tarifário, aplicáveis à classe 4, e as taxas aplicáveis à classe 1 'não
poderá ser superior a 5'. Quanto à actualização das taxas de portagem rege a
Base LII.
22. Ora, a verdade é que, nos termos da Base LII, nº
6, do anexo do Decreto-Lei nº 168/94, até 'à entrega da sua exploração, a
determinação das taxas de portagem a cobrar na actual travessia será da
exclusiva competência do concedente'. Quer isto significar que, no momento
presente, a determinação destas taxas - e a situação manter-se-á inalterada até
1 de Janeiro de 1996 - não depende de quaisquer obrigações contratuais assumidas
ou a assumir por força do contrato de concessão previsto nas mesmas Bases,
cabendo, assim, ao Governo.
Assim sendo, terá de se concluir que o regime das
taxas a partir de 1996 não se reveste de relevância jurídica no presente
processo, uma vez que o objecto deste é constituído apenas pela invocada questão
de inconstitucionalidade do nº 1º da Portaria nº 351/94, sendo certo que a
determinação dos valores das portagens para 1994 foi da exclusiva
responsabilidade do Governo, revertendo o produto da cobrança dessas portagens
para a Junta Autónoma das Estradas, como receitas próprias deste organismo (art.
7º do Decreto-Lei nº 265-A/92, de 26 de Novembro).
IV
23. Como atrás se deixou dito, os valores das
portagens fixados em 1992 foram actualizados em 1994, pelo nº 1º da Portaria nº
351/94. Posteriormente a esta regulamentação foram introduzidos 'descontos de
quantidade' pela Portaria nº 735-A/94.
Indicam-se a seguir os valores das portagens de 1992 e
de 1994, com referência a cada uma das classes de veículos, bem como a
percentagem da actualização introduzida pela Portaria nº 351/94:
Classes de Portaria nº 1089-A/92 Portaria nº 351/94 de veículos, actualização
1100$00150$0050%
2250$00370$0048%
3370$00550$0048,6%
4480$00720$0050%
24. As portagens que são pagas pelos utilizadores da
actual ponte sobre o Tejo são expressamente qualificadas como taxas em diplomas
legais àquela respeitantes.
Na verdade, no Decreto-Lei nº 47107, de 19 de Julho de
1966, aludia-se a 'regime do pagamento de portagens' (art. 1º, corpo) e
qualificavam-se as portagens como 'preços' (nestes preços incluía-se 'o direito
de utilização total das lotações ou capacidades de carga dos veículos' - art.
3º, § 1º), referindo-se as alterações futuras à respectiva 'tabela' (art. 3º, §
3º). No art. 8º deste diploma, distinguiam-se, a par das portagens, as taxas por
prestações dos serviços que o Gabinete da Ponte fosse autorizado a fazer e as
multas por transgressões. No preâmbulo, porém, fazia-se alusão às 'taxas de
portagem'.
A partir do Decreto-Lei nº 35/83, de 24 de Janeiro, o
legislador passou a falar de 'métodos de cobrança das taxas de portagem'
(preâmbulo), fórmula que foi repetida no preâmbulo da Portaria nº 420/83, de 11
de Abril. Mas, nas portarias publicadas ao abrigo do art. 4º do Decreto-Lei nº
894-J/85, alude-se sempre nos respectivos preâmbulos à 'revisão dos preços dos
serviços públicos', não se utilizando qualquer qualificação das portagens como
taxas.
No Decreto-Lei nº 265-A/92, de 26 de Novembro, o
legislador evitou a expressão 'taxa' para qualificar a portagem cobrada nas
travessias da ponte sobre o Tejo: 'a exploração da ponte sobre o Tejo é feita em
regime de portagem (...)' (art. 1º, nº 1). E o art. 7º deste diploma estatui que
são receitas próprias da JAE 'as portagens cobradas, as importâncias devidas
pela prestação do serviço a que se refere o nº 2 do artigo 4º [taxas de serviço
pelo fornecimento de carburante aos veículos parados na ponte, viaduto norte e
praça da portagem, por falta de combustível], bem como as importâncias
provenientes de serviços que aquele organismo esteja autorizado a prestar
(...)'. Já as multas revertem em percentagens diversificadas para o Estado e a
JAE (art. 8º). A Portaria nº 1089-A/92, de 26 de Novembro, refere-se às
portagens como 'preços'. Por seu turno, o preâmbulo da Portaria nº 735-A/94, de
12 de Agosto, alude ao 'desconto de quantidade das tarifas de portagem'.
Por último, nas 'Bases da Concessão' que constituem o
Anexo I ao Decreto-Lei nº 168/94, de 15 de Junho, o legislador qualifica
expressamente as portagens como taxas (Base LII, 'Taxas de portagens'; Base
LIII, 'Actualização das taxas de portagem'), como atrás já se havia referido.
25. Para além da flutuação de terminologia que se
deixou apontada, importa analisar, no plano do direito administrativo, o regime
da actual ponte sobre o Tejo e do serviço prestado pela entidade exploradora
desta ponte, a JAE, aos utilizadores da mesma.
No Decreto nº 47068, de 1 de Julho de 1966 - diploma
que regulou o regime dos transportes colectivos de passageiros na ponte e seus
acessos - aparece uma definição legal do conjunto 'ponte sobre o Tejo e seus
acessos'. No art. 2º, nº 1, deste diploma estabelecia-se que fazem parte 'do
conjunto «ponte sobre o Tejo e seus acessos», abreviadamente «ponte e acessos»,
para efeitos do estatuído neste diploma, as vias referenciadas na planta anexa',
ao passo que, no seu nº 2, se admitia que o então Ministro das Comunicações
pudesse determinar, em portaria, a inclusão, no conjunto, de 'novas vias
rodoviárias que constituam um prolongamento directo e natural dos acessos nele
integrados'. No mapa anexo ao diploma incluem-se no conjunto o viaduto norte, a
auto-estrada do Sul, a via rápida da Costa da Caparica, além da ponte
propriamente dita e da praça de portagem.
No Decreto-Lei nº 47.107, o conjunto 'ponte' aparece
delimitado de forma mais restritiva, aludindo-se, no seu art. 4º, § 1º, à
paragem de veículos por falta de combustível 'na ponte, viaduto norte e praça de
portagem'.
26. Não pode duvidar-se de que o conjunto 'ponte e
acessos' integra o domínio público do Estado.
Na verdade, segundo o artigo 84º da Constituição,
pertencem ao domínio público as 'estradas' (alínea d) do nº 1), realidade onde
se integram os acessos às pontes e as próprias pontes enquanto obras de arte que
ligam eixos viários. Trata-se de bens do chamado domínio público de circulação,
que é um domínio público artificial (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. revista, Coimbra, 1993,
págs. 411-413; Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. II, 9ª
ed., com a colaboração de Freitas do Amaral,Coimbra, 1980, reimpressão, págs.
897 e segs., máxime 909). Na verdade, as pontes e os viadutos são obras de arte
das vias de comunicação terrestre, sejam elas estradas ou vias férreas
nacionais.
27. Integrando a ponte sobre o Tejo em Lisboa o
domínio público de circulação, cabe perguntar a que título cobra a JAE
determinados montantes (portagens) aos condutores dos veículos automóveis que
atravessam a ponte no sentido sul-norte.
A resposta a esta questão reside em que uma pessoa
colectiva de direito público, como é a JAE (cfr. o art. 1º do Decreto-Lei nº
184/78, de 18 de Julho, diploma que aprova a orgânica deste serviço público
personalizado) tem o direito, conferido por lei, de cobrar uma contraprestação
pela utilização desse bem do domínio público, através da passagem em veículo
automóvel, bem como a de cobrar outras contraprestações por serviços conexos com
a exploração económica da travessia da ponte.
28. O uso comum do domínio público pode ser
gratuito ou oneroso. Pode mesmo dizer-se, entre nós, que, no momento presente e
nas sociedades contemporâneas, a gratuitidade constitui a regra geral do uso
comum de bens do domínio público: em regra, pode-se circular pelas ruas,
caminhos e estradas, a pé, de veículo automóvel ou de velocípede, sem se pagar
qualquer quantia monetária. Igualmente, pode-se 'gratuitamente tomar banho nas
praias, nadar, navegar nos rios ou nas águas do mar e, de uma maneira geral,
efectuar quaisquer outros usos directos e imediatos de que as coisas públicas
sejam susceptíveis' (Diogo Freitas do Amaral, A Utilização do Domínio Público
pelos Particulares, Lisboa, 1965, pág. 95).
29. De um ponto de vista histórico, nem sempre foi
assim. Na Idade Média europeia e nas monarquias absolutas do Antigo Regime, era
usual a cobrança de tributos pela passagem em certas estradas, caminhos ou
pontes. Após as revoluções liberais, houve em muitos países a preocupação de
proibir por lei a cobrança desses tributos, que dificultavam a liberdade de
circulação de pessoas e bens, embora episodicamente certas obras públicas fossem
financiadas por taxas (estradas, pontes, portos). É paradigmático o caso francês
em que a Lei de 30 de Julho de 1880, relativa ao resgate das pontes sujeitas ao
regime de portagem, estatuía que 'não mais serão construídas pontes com portagem
nas estradas nacionais e departamentais' (transcrito em A. Laubadère, J.C.
Venezia e Yves Gaudemet, Traité de Droit Admnistratif, vol. 2º, 11ª edição,
Paris, 1992, pág. 278).
A verdade é que, em épocas recentes, principalmente
após 1945, em diferentes países europeus o legislador afastou pontualmente o
princípio de gratuitidade do uso comum do domínio público de circulação viária,
nomeadamente no que toca a auto-estradas, pontes, túneis e viadutos, sujeitando
a circulação neles ao pagamento de um tributo, a portagem ou peagem (cfr.
Marcello Caetano, ob. cit., II, pág. 934). No final da década de 80 e no início
da presente década, em muitos países europeus, americanos ou asiáticos têm sido
lançadas construções de auto-estradas é pontes em regime de portagem.
Relativamente à utilização de pontes sujeitas a
regime de portagem, a jurisdição administrativa francesa tem considerado que
apenas é legal a cobrança dessas portagens quando uma lei especial o tivesse
autorizado, desde que tais pontes ligassem estradas nacionais ou departamentais.
Esta orientação levou a que fosse publicada em França uma lei (Lei de 12 de
Julho de 1979), que estatuiu que, por derrogação da lei de 1880, podiam ser
instituídas, a título excepcional e temporário, quando a utilidade, as dimensões
e o custo de uma obra de arte a construir na rede viária nacional ou
departamental bem como o serviço prestado aos utentes o justificassem, uma
contraprestação pecuniária (redevance) pelo seu uso. Esta redevance poderia
'comportar tarifas diferentes ou ser gratuita, consoante diversas categorias de
utentes (nomeadamente, para levar em conta uma domiciliação próxima)' (A.
Laubadère e outros, ob e vol. cits., pág. 279).
Entre nós, não foi publicada uma lei geral deste
tipo a proibir a cobrança de portagens, sendo certo que só o Decreto nº 17813,
de 30 de Dezembro de 1929, aboliu ou proibiu inúmeras taxas lançadas pelas
câmaras sobre a passagem de veículos automóveis. Depois disso, quer o Código de
Estrada de 1954 (art. 1º, nº 1), quer o actual Código da Estrada, aprovado pelo
Decreto-Lei nº 114/94, de 3 de Maio (art. 2º) estabeleceram o princípio da
liberdade de circulação nas vias do domínio público do Estado ou dos entes
territoriais. Mas leis especiais têm autorizado a cobrança de portagens
relativamente a pontes e auto-estradas, para não falar na tradicional cobrança
de taxas nos parques e zonas de estacionamento. Como escrevia em 1965 Freitas do
Amaral, a propósito de casos excepcionais de uso comum do domínio público não
gratuito, 'assim acontece, no domínio da circulação terrestre, com as portagens
de que se faz depender a utilização de certas pontes ou estradas. Temos, entre
nós, os exemplos bem recentes da ponte Marechal Carmona, em Vila Franca de Xira,
e da auto-estrada do Norte. E isto quer essas parcelas dominiais sejam
exploradas directamente, quer por um concessionário' (ob. cit., págs. 98-99;
entretanto foi sujeita ao regime de portagem a travessia da ponte sobre o Tejo
em Lisboa, tendo sido em anos mais recentes abolida a portagem na ponte de Vila
Franca de Xira).
As excepções à regra de gratuitidade - suposto que
a Constituição as não proibe - não são constitucionalmente ilícitas se estiverem
previstas na lei. A gratuitidade do uso comum do domínio público constitui, no
dizer de Yves Gaudemet, uma 'escolha de política administrativa, uma opção
aberta aos Poderes Públicos em cada caso particular entre duas técnicas de
financiamento: o imposto ou o preço pago pelo utente. A gratuitidade é apenas,
na sua essência, um procedimento técnico' (La Gratuité du Domaine Public, in
Études de Finances Publiques en l'honneur de Monsieur le Professeur Paul Marie
Gaudemet, ob. colectiva sob o patrocínio de Bernard Beck e Georges Vedel, Paris,
1984. p. 1024; entre nós, além da obra de Freitas do Amaral citada, vejam-se
Marcello Caetano, ob cit., 9ª ed., vol. IV, Coimbra, 1991, págs. 895 e segs. e
José Pedro Fernandes, voc. Domínio Público, in Dicionário Jurídico da
Administração Pública, vol. IV, Coimbra, 1991, págs. 185-187).
30. Em Portugal, é sabido que a utilização de redes
viárias e das respectivas obras de arte é, na quase totalidade dos casos,
gratuita. Constituem excepções a tal princípio de gratuitidade a maior parte das
auto-estradas, que são sujeitas a portagens cobradas pela entidade
concessionária aos utilizadores, e a actual ponte sobre o Tejo em Lisboa (bem
como a futura travessia na nova ponte). Nas duas maiores cidades do País, a
política financeira tem sido diversa quanto à utilização das pontes de travessia
dos rios Tejo e Douro: rodoviárias sujeita a portagem em Lisboa, gratuita quanto
às três pontes rodoviárias do Porto.
31. Passar-se-á agora a analisar a natureza
jurídica das portagens cobradas na ponte sobre o Tejo.
V
32. Já atrás se viu que, em alguns diplomas legais
relativos à ponte sobre o Tejo em Lisboa ou à futura ponte, as portagens são
qualificadas como taxas.
Na doutrina administrativista portuguesa, em regra
a propósito das portagens cobradas em pontes e auto-estradas, aceita-se que a
portagem tem a natureza de uma taxa, afastando-se a qualificação mais antiga
como preço, ligada à concepção da dominialidade como direito de propriedade
privada do Estado:
'Não há razão, com efeito, para conceber como tributo apenas a prestação
patrimonial feita por um particular a uma pessoa colectiva de direito público
«em virtude duma vantagem especial obtida por meio dum serviço público» [...],
deixando de fora as prestações efectuadas em retribuição da vantagem obtida pela
utilização de uma coisa do domínio público.
A verdade é que tanto os serviços públicos como os bens dominiais
são meios de acção administrativa, submetidos à disciplina do direito público. E
se não é lícita a confusão dos dois conceitos, também não o é, a nosso ver, a
total autonomia de ambos.
Porquê? Porque qualquer das realidades a que se reportam tais
conceitos se vêm a dinamizar, afinal de contas, numa prestação feita em
benefício do particular - uma prestação de facere, por via de regra, no caso de
serviço público; uma prestação de pati, na hipótese de domínio.
Não deve por isso recusar-se à prestação pecuniária que o
particular efectua para utilizar as coisas públicas a natureza tributária que se
reconhece à prestação que ele realiza para utilizar um serviço público.
É esta, aliás, a opinião professada pela maioria da doutrina
moderna [...]'(Diogo Freitas do Amaral, ob. cit., págs. 101-102; a formulação
transcrita entre aspas no texto é da autoria de P. Soares Martinez, A Obrigação
Tributária, pág. 667; em abono da sua tese quanto a qualificação, aquele autor
invoca, além de Marcello Caetano, os administrativistas italianos Santi Romano e
Zanobini. Ver ainda Marcello Caetano, ob. cit, II, págs. 934, 1083-1085).
33. No plano da doutrina financeira e fiscal, existe
em Portugal uma prática unanimidade na qualificação das taxas como modalidade de
tributos, a par dos impostos e, pelo menos, das chamadas contribuições especiais
(vejam-se, entre outros, J. Teixeira Ribeiro, Lições de Finanças Públicas, 4ª
ed., refundida e actualizada, Coimbra, 1991, págs. 208 e segs; do mesmo autor,
Noção Jurídica de Taxa in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 117º,
págs. 289 e segs; A. Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, 3º
ed., Coimbra, 1990, págs. 486 e segs.; J. M. Cardoso da Costa, Curso de Direito
Fiscal, 2ª ed. actualizada, Coimbra, 1972, págs. 11 e seguintes; Alberto Xavier,
Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 1979, págs. 43 e segs; P. Soares Martinez,
Manual de Direito Fiscal, Coimbra 1983, págs. 34 e segs.; Maria Margarida
Mesquita Palha, Sobre o Conceito Jurídico de Taxa, in, Centro de Estudos
Fiscais-Comemoração do XX Aniversário - Estudos, vol. II, Lisboa, 1983, págs.
582 e segs.; N. Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, I, Lisboa, 1992, págs. 73 e
segs.; P. Pitta e Cunha, J. Xavier Basto e A. Lobo Xavier, Os Conceitos de Taxa
e Imposto a propósito das Licenças Municipais, in Fisco, nº 51/52, 1993, p. 3 e
segs.)
Não há discrepância, assim, na qualificação das taxas
como receitas de direito público que, de um ponto de vista financeiro, se não
confundem com as receitas patrimoniais dos entes públicos. A par disso, é
acentuado o carácter 'sinalagmático' das taxas, face à 'unilateralidade' dos
impostos.
Quanto às portagens das pontes e auto-estradas, a
doutrina financeira corrobora a qualificação de taxa acolhida nos cultores de
Direito Administrativo. Para Teixeira Ribeiro - autor que sustenta que taxas são
'preços autoritariamente fixados' - a portagem é um tributo cobrado pela
utilização de um 'bem semipúblico' (bens semipúblicos são, no dizer deste
Professor, os que, além de satisfazerem necessidades colectivas, satisfazem
necessidades individuais):
'Mas o serviço das estradas, semipúblico sob o ponto de vista técnico, é
inteiramente público sob o ponto de vista financeiro. Porque as estradas
oferecem passagens; mas oferecem-nas em tal quantidade que normalmente excede a
da procura ao preço 0. [...].
A exigência de taxas nas estradas só se compreende, portanto, como
processo de repartir o custo pelos utentes, isto é, de repartir por estes as
despesas feitas com a abertura e conservação das estradas. Simplesmente, se o
Estado cobrasse taxas, não só embaraçaria o trânsito como teria de enxamear de
cobradores e fiscais os muitos milhares de quilómetros de vias públicas do
país, o que tornava a cobrança enormemente dispendiosa.
Com as pontes acontece algo de semelhante. Também a sua oferta de
passagens excede normalmente a procura ao preço 0, pelo que não há necessidade,
para efeitos de limitação da procura, de exigir quaisquer taxas aos possíveis
utentes, antes há conveniência em não as exigir, para que não fique desutilizada
parte da capacidade das pontes [...]. Se nestas se cobrarem taxas, será, pois,
com o fim de repartir o respectivo custo. Mas, aqui (como aliás, também nas
auto-estradas), sem o inconveniente da cobrança dispendiosa, uma vez bastarem
poucos funcionários, colocados em um topo das pontes ou em cada acesso às
auto-estradas, para a efectuar' (Lições cit., págs. 210-211).
Igualmente Sousa Franco - autor que nega que as taxas
sejam 'preços autoritários' - considera as quantias exigidas pelo uso de bens
dominiais como taxas, distinguindo esta figura dos preços pedidos pelo Estado
pela venda de bens ou prestação de serviços em regime de mercado. Para este
autor, 'os serviços ou bens que só o Estado produz, em relação aos quais pode
ser obrigatório o uso por parte dos particulares e cujas condições gerais de
utilização são definidos em termos genéricos (e não de forma contratual) darão
origem à cobrança de taxas, com natureza tributária, tanto mais que estes
caracteres decorrem da sua natureza de serviço de autoridade' (ob. cit., pág.
495). Em vez de bens semi-públicos, este autor fala de bens colectivos, que
podem ser públicos ou privados de uma perspectiva de provisão pública de bens,
falando de bens colectivos impuros quando o seu uso não seja necessariamente
colectivo, porque a exclusão se torna possível e a consequente imputação
individual das satisfações também. Seria, precisamente, o caso das auto-estradas
com portagem (ob. cit, 4ª ed., vol. I, Coimbra, 1992, pág. 33).
34. À taxa do direito financeiro português, enquanto
figura unitária, correspondem igualmente figuras unitárias nos direitos espanhol
(tasa), italiano (tassa) ou alemão (Gebühr). Isto não significa que,
relativamente às portagens de auto-estradas, não se dispute se se trata de
verdadeiras taxas ou de preços públicos, nomeadamente porque são muitas vezes
cobradas por entidades concessionárias e em que a respectiva fixação decorre de
estipulações contratuais entre o Estado concedente e o concessionário e em que
se apaga o seu carácter tributário (veja-se, quanto à Itália, Cesare Savastano,
voc. Pedaggio, in Enciclopedia del Diritto, vol. XXXII, 1982, págs. 661-662; e
também Claudio Saccheto, voc. Tassa, na mesma Enciclopedia, vol. XLIV, 1992,
págs. 4 e segs., autor que acentua a natureza de direito público deste rédito,
dando como exemplos típicos de figura as custas ou taxas judiciais e as propinas
escolares).
No direito francês, pelo contrário, as portagens de
auto-estradas têm sido diferentemente qualificadas ora como taxes, ora como
redevances. Não são consideradas como preços, visto serem exigidas aos
utilizadores pelos Poderes Públicos, de forma coactiva, através de lei ou de
regulamento. A jurisprudência administrativa tem seguido no tempo diferentes
critérios para distinguir estas duas formas de tributos. Num primeiro momento,
considerou-se que as taxes corresponderiam a um carácter obrigatório da
utilização do serviço público, surgindo as redevances como correspectivos de
utilização puramente facultativas dos bens ou serviços públicos. Mais tarde, o
Conseil d'État veio, em 1958, a considerar que as redevances são 'pedidas aos
utentes com vista a cobrir os encargos de um serviço público determinado ou os
custos do estabelecimento e de manutenção de uma obra pública' e 'encontram a
sua contrapartida directa nas prestações fornecidas pelo serviço ou na
utilização da obra' (caso do Syndicat des Transporteurs aériens, citado em P.M.
Gaudemet e J. Molinier, Finances Publiques, Emprunt/Fiscalité, tomo 2, Paris,
1988, pág. 117). No que toca às portagens das auto-estradas, numa decisão de
1977, o Conseil d'État considerou-as redevances e não taxes fiscales ou
parafiscales, visto servirem 'para reembolsar ou remunerar os capitais
investidos na construção, e assegurar a manutenção e exploração da auto-estrada'
(citado na mesma obra de Gaudemet e Molinier, pág. 118; numa anterior decisão do
Tribunal de Conflits, em 1965, as portagens haviam sido consideradas como taxes
- veja-se A. Laubadére e outros, ob. cit, Tomo I, 11ª ed., pág. 711). Pode
dizer-se que no presente a caracterização das taxas é a seguinte: 'uma taxa é um
tributo (prélèvement) pecuniário que opera em benefício do Estado, das
colectividades locais ou das empresas públicas (établissements publics) pela
via coactiva (o que a distingue dos preços) sobre o beneficiário de uma
vantangem particular obtida por ocasião do funcionamento de um serviço público
(o que a distingue do imposto), sem correlação necessária com o custo do serviço
(o que a distingue da redevance)' (Gaudemet e Molinier, ob. cit., págs.
118-119). Importa dizer que o debate doutrinário sobre a qualificação como taxe
ou redevance pour services rendus tem implicações constitucionais, visto caber
na reserva do Parlamento, segundo o art. 34º da Constituição francesa de 1958,
'les impositions de toute nature' (cfr. L. Favoreu e L. Philip, Les Grands
Décisions du Conseil Constitutionnel, 7ª ed., Paris, 1993, págs. 93 e segs.)
VI
35. É altura de entrar finalmente na apreciação da
questão de constitucionalidade submetida ao Tribunal Constitucional.
Qual o regime tributário aplicável às taxas na
Constituição vigente?
Diferentemente da última versão da precedente
Constituição de 1933 - em que, a partir da revisão constitucional de 1971, se
estabelecia, no seu art. 70º, uma reserva de lei (lei da Assembleia Nacional ou
decreto-lei do Governo) para a fixação dos princípios gerais relativos às taxas
a cobrar pelos serviços - a actual Constituição só estabelece a reserva de lei
(lei da Assembleia da República ou, por se tratar de uma reserva relativa de
competência, decreto-lei do Governo, autorizado por lei - art. 168º, nº 1,
alínea i) quanto à criação dos impostos e sistema fiscal. Da concatenação dos
nºs 1 e 2 do art. 106º da Constituição vigente resulta que o sistema fiscal é
constituído pelo conjunto dos impostos, visando aquele 'a satisfação das
necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição
justa dos rendimentos e da riqueza'. A criação dos impostos cabe à lei, a qual
'determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos
contribuintes' (art. 106º, nº 2, da Constituição). O nº 3 do mesmo art. 106º
estabelece uma garantia decorrente do velho princípio inglês de 'no taxation
without representation': 'Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não
tenham sido criados nos termos da Constituição e cuja liquidação e cobrança se
não façam nas formas prescritas na lei' (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 459;
J. Casalta Nabais, Jurisprudência do Tribunal Constitucional em Matéria Fiscal,
in Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, ob. col., Lisboa,
1993, págs. 249 e segs).
Apesar de ter havido uma proposta do Partido Comunista
Português, na segunda revisão constitucional, 'que previa que também ao
Parlamento coubesse definir o enquadramento da fixação de taxas pelas entidades
públicas, ordenando e harmonizando o caótico panorame actual' (José Magalhães,
Dicionário da Revisão Constitucional, Lisboa, 1989, voc. Parafiscalidade, pág.
81; veja-se o que o autor aí escreve quanto à alteração do nº 1 do art. 106º da
Constituição, destinado a integrar no sistema fiscal as receitas parafiscais),
tal proposta não triunfou, não havendo qualquer reserva parlamentar em matéria
de taxas.
36. Como se compreende, de um ponto de vista
constitucional, a distinção entre imposto e taxa torna-se 'verdadeiramente
importante' (Teixeira Ribeiro). E, como os impostos e as taxas têm a
característica da coactividade ou da imposição coactiva pelo Estado, nem sempre
é fácil - especialmente, perante regimes jurídicos atípicos - qualificar a
respectiva figura tributária.
Quer a Comissão Constitucional, quer o Tribunal
Constitucional tiveram, assim, de se ocupar da distinção entre impostos e taxas,
dada a relevância da respectiva qualificação para a determinação do regime
constitucional.
Pode dizer-se que a orientação acolhida pela
jurisdição constitucional reflecte a tradição jurídica nacional e as orientações
doutrinárias prevalentes: o que distingue nuclearmente o imposto da taxa é a
unilateralidade do primeiro, face à bilateridade ou carácter sinalagmático da
segunda.
No parecer nº 30/81 da Comissão Constitucional - de
que também foi relator o ora relator - houve ocasião de analisar a
constitucionalidade da entretanto abolida taxa de televisão, regulada por um
decreto-lei do Governo. Tratava-se da imposição de um tributo relativamente aos
possuidores ou detentores de aparelhos televisores, em que a lei considerava que
tal detenção, objecto de registo, constituía índice de utilização do serviço
público de televisão. Aquele órgão negou que a referida taxa tivesse
efectivamente a natureza de imposto, dada a atribuição de um carácter
sinalagmático à obrigação de pagamento da mesma: 'embora imposta unilateralmente
pelo Estado a vinculação de uma prestação aos particulares detentores de
televisores, o certo é que o mesmo Estado oferece como contrapartida a
existência e funcionamento de um serviço público de transmissão à distância de
imagens não permanentes e sons, efectuada por ondas electromagnéticas, destinada
à recepção directa pelo público [...]' (Pareceres da Comissão Constitucional,
17º vol., Lisboa, 1983, págs. 93-94). E, mais à frente: 'os elementos de que se
dispõe já apontam no sentido da negação da afirmação de que a taxa de utilização
televisiva é um imposto, sendo determinantes os argumentos de direito positivo
respeitantes ao carácter bilateral ou sinalagmático da figura' (ob. cit., pág.
94).
37. Por seu turno, o Tribunal Constitucional tem
reiteradamente feito a distinção entre imposto e taxa nos mesmos termos.
Assim, logo no Acórdão nº 348/86, foi acolhida a noção
de taxa propugnada por Sá Gomes (taxas, no dizer deste fiscalista, em passo
transcrito no acórdão, são 'receitas públicas estabelecidas por lei como
retribuição dos serviços prestados individualmente aos particulares no exercício
de uma actividade pública, ou como contrapartida da utilização de bens no
domínio público, ou da remoção de um limite jurídico à actividade dos
particulares' - cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8º vol., pág. 105),
aludindo igualmente à noção financeira de taxa sustentada por Teixeira Ribeiro.
E afirmou-se neste aresto: '...Sempre é certo que a diferença da taxa, como
tributação, distinguindo-a de imposto reside no vínculo sinalagmático,
bilateral, ínsito no seu conceito, como se depreende das definições
anteriormente dadas. A sinalagmaticidade encontra-se arredada do conceito de
imposto', chamando-se a atenção para que as taxas se situam 'no campo dos
serviços públicos de que os particulares colhem certas vantagens individuais
como contrapartida das importâncias pagas' (ibidem).
Este modo de ver as coisas tem sido repetidamente
afirmado (vejam-se, por exemplo, os Acórdãos nºs 205/87, 461/87, 76/88, 412/89,
67/90, 49/92, 379/94 e 382/94, publicados os cinco primeiros in Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 9º vol., págs. 209 e segs., 10º vol., págs. 181 e
segs., 11º vol., págs. 331 e segs., 13º vol., tomo II, págs. 1187 e segs., 15º
vol., págs. 241 e segs., respectivamente, e os três últimos no Diário da
República, II Série, nº 134, de 11 de Junho de 1992, nº 208, de 8 de Setembro de
1994; menos significativo é o caso do Acórdão nº 452/87, publicado nos Acórdãos,
10º vol., págs. 169 e segs., em que estava em causa o regime da taxa de registo
e de licenciamento de detenção, posse e circulação de cães. De facto, neste
acórdão não se tomou posição sobre a espécie de tributo que era essa 'taxa' - a
qual é considerada, por exemplo, por Teixeira Ribeiro como verdadeiro imposto,
cfr. Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 117º, artigo cit, pág. 292 -
uma vez que veio a ser decretada a inconstitucionalidade da norma impugnada por
violação da alínea r) do nº 1 do art. 168º da Constituição, texto da primeira
revisão, que corresponde hoje à alínea p), do mesmo número e artigo). Também
noutros arestos que têm incidido sobre tributos criados pelas autarquias
(encargos de compensação, tarifas de saneamento, etc.) tem o Tribunal
Constitucional acolhido uniformemente esta noção de taxa.
Em especial, no Acórdão nº 205/87 pode ler-se o
seguinte:
'É pacificamente aceite que a reserva parlamentar em matéria fiscal, consignada
na alínea i) do nº 1 do artigo 168º, se reporta aos impostos, mas já não às
taxas (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira ob. cit, 1º vol., p. 464, e 2º vol.,
p. 201) [...].
Na verdade, a doutrina vem entendendo com certa uniformidade, que
o que distingue a taxa do imposto é a natureza bilateral daquela, ou, se assim
melhor se entender, o seu carácter sinalagmático, pois que à prestação do
particular corresponderia uma contraprestação directa e específica por parte do
Estado [...].
Mas a mesma doutrina não exige que o montante da taxa deva
corresponder ao custo do bem ou serviço que constitui a contraprestação do
Estado'. (Acórdãos, 9º vol., pág. 22-224).
Vale a pena analisar de mais perto a situação
apreciada pelo acórdão nº 205/87. O Presidente da República suscitara, em
fiscalização preventiva, a dúvida sobre a constitucionalidade de várias normas
do Decreto nº 80/IV da Assembleia da República sobre o enquadramento do
Orçamento de Estado. O nº 3 do art. 19º desse Decreto estabelecia que o regime
legal 'dos impostos, contribuições, diferenciais e outros tributos cobrados
pelos serviços autónomos, pelos fundos autónomos e pela segurança social e pelos
organismos de coordenação económica e institutos públicos' só podia ser
modificado pela Assembleia da República, exceptuando-se desta regra, no número
seguinte, as taxas 'pagas pelos utilizadores directos dos bens e serviços
fornecidos por fundos e serviços autónomos, pela Segurança Social e pelos
organismos de coordenação económica e institutos públicos, contanto que o
respectivo montante corresponda ao custo dos referidos bens e serviços'. Face ao
teor da regra geral e da respectiva excepção, o Tribunal Constitucional entendeu
que o legislador ordinário pretendera, inconstitucionalmente, alargar o âmbito
de reserva relativa do órgão parlamentar, nomeadamente fazendo incluir nesta
reserva certas taxas, quando o montante das mesmas não fosse equiparável ao
custo do correspondente bem ou serviço. O Tribunal Constitucional pronunciou-se
pela inconstitucionalidade desses dois números, afirmando que não parecia que,
'de acordo com o conceito técnico de taxa, se [pudesse] razoavelmente defender
que em tal caso se não está perante uma verdadeira taxa, mas perante um imposto'
(Acórdãos cit., vol. 9º, pág. 223). Para esse juízo louvou-se no parecer de dois
fiscalistas, Teixeira Ribeiro e Alberto Xavier.
E a tese deste Acórdão nº 205/87 foi reafirmada no
Acórdão nº 461/87, onde se transcreveram estas afirmações. (sobre a
jurisprudência do Tribunal Constitucional na matéria, veja-se o citado estudo de
J. Casalta Nabais, ob. cit., págs. 254 e segs.).
38. Pode, assim, dizer-se que o Tribunal
Constitucional rejeita - seguindo a doutrina fiscalista portuguesa que se
exprime sem discrepâncias - o entendimento de que uma taxa cujo montante exceda
o custo dos bens e serviços prestados ao utente se deve qualificar como imposto
ou de que deve ter o tratamento constitucional de imposto. Não é, assim,
acolhida entre nós uma velha tese do clássico autor alemão do século XIX, Adolf
Wagner, de que uma taxa 'passa' a imposto quando dela decorrem lucros para a
entidade que a estabeleceu, princípio este 'da equivalência' que ainda hoje é
defendido na doutrina e jurisprudência alemãs (cfr., por exemplo, Heiko Faber,
Verwaltungsrecht, 2ª ed., Tübingen, 1989, págs. 221-222; Heinrich W. Kruse,
Derecho Tributário - Parte General, trad. espanhola da 3ª edição alemã, Madrid,
1978, pág. 71). Quando se verifica a correspectividade ou o carácter
sinalagmático entre a imposição e um serviço divisível prestado - como ocorre no
caso dos autos - não se está perante um imposto.
39. Deve notar-se que, até hoje, o Tribunal
Constitucional não teve de ocupar-se de um tributo cujo montante tivesse sido
impugnado com fundamento na alegada desproporção manifesta do mesmo.
No caso presente, a impugnação é feita nesses termos
pelos requerentes.
Pode, assim, formular-se a dúvida sobre se, num caso
de uma taxa de valor manifestamente desproporcionado, completamente alheio ao
custo do serviço prestado, não deverá entender-se que tal taxa há-de ser
tratada, de um ponto de vista jurídico-constitucional, como um verdadeiro
imposto, de tal forma que tenha de ser o órgão parlamentar a decidir sobre o seu
quantum.
Para responder a tal dúvida - de que se fazem eco os
requerentes - é preciso, antes de tudo, apreciar se os valores destas portagens
são manifestamente desproporcionados.
Assim, neste momento há-de manter-se o entendimento
sedimentado constante das espécies jurisprudenciais referidas, pelo que deve
provisoriamente concluir-se que o nº 1º da Portaria nº 351/94 não viola o artigo
168º, nº 1, alínea i), da Constituição.
Importa, por isso, analisar de seguida a questão da
invocada violação do princípio da proporcionalidade.
VI
40. Os Deputados requerentes sustentam igualmente que
o nº 1º da Portaria nº 351/94, de 3 de Junho, 'viola o princípio da proibição do
arbítrio - que decorre da própria ideia de Estado de Direito Democrático,
estabelecida no artigo 2º da C.R.P. - o princípio da adequação e o princípio da
igualdade perante os encargos públicos, como afloramento específico do princípio
da igualdade, estabelecido no artigo 13º da C.R.P.' (a fls. 4 dos autos).
Importa, por isso, averiguar se a norma que consagrou
as novas tarifas de portagem pela travessia da ponte viola os princípios
constitucionais da igualdade - na sua vertente da chamada 'igualdade justa', que
proíbe o arbítrio legislativo, no domínio da igualdade perante os encargos
públicos - e da proporcionalidade.
Para tal, importa analisar o quantum dos aumentos das
portagens e as finalidades confessadamente prosseguidas pelo legislador.
41. No que toca ao aumento das portagens,
recordar-se-á o que atrás ficou referido.
As portagens, fixadas em 1966 quanto às então
previstas nove classes de veículos automóveis, mantiveram-se inalteráveis
durante 17 anos. O Decreto-Lei nº 365/83, de 28 de Setembro, considerando
tornar-se 'indispensável proceder à revisão e ajustamento daqueles valores' e
invocando o § 3º do art. 3º do Decreto-Lei nº 47107, de 19 de Julho de 1966
(neste parágrafo previa-se que, sempre que a evolução do tráfego e a amortização
da obra o aconselhasse ou justificasse, poderia proceder-se à revisão da tabela
das portagens), estatuiu aumentos das portagens anteriores que oscilaram,
relativamente às cinco primeiras classes de veículos, entre 50% e 280%, sendo
certo que tal afirmação deverá ser corrigida pela consideração de que as
anteriores 9 classes de veículos foram reduzidas a apenas 6, o que introduz uma
distorção nas variações percentuais indicadas.
Entre 1985 e 1992, houve actualizações anuais
determinadas 'no âmbito da política de rendimentos e preços', tendo, por
exemplo, a taxa da classe 1 sido mantida inalterável no primeiro desses anos
(30$00), tendo depois subido sucessivamente, a partir de 1986 para 35$00, a
partir de 1988 para 40$00, a partir de 1990 para 45$00, elevando-se em 1992 a
50$00. A taxa da classe 6, fixada em 1983 em 250$00, teve os seguintes valores
sucessivos: 280$00 (1985), 310$00 (1986), 325$00 (1987), 350$00 (1988), 385$00
(1989), 420$00 (1990) e 480$00 (1992).
Em 1992, após a publicação do Decreto-Lei nº 265-A/92,
houve uma redução das classes de veículos para apenas 4, como se viu.
Considerando as duas primeiras classes, os valores de 1992 (50$00 e 110$00,
respectivamente) aumentaram, no fim do ano, consideravelmente (100$00 e 250$00,
respectivamente), mas tal subida percentual não leva em consideração a redução
de nómero de classes de veículos (praticamente todos os veículos ligeiros de
passageiros passaram para a classe 1, tendo a portagem diminuído mesmo para os
de maiores dimensões, pois a distinção entre as duas primeiras classes passou a
fazer-se pela altura na vertical do primeiro eixo: igual ou inferior a 1,10m; ou
superior a essa altura).
Em 1994, os valores das taxas relativas às quatro
classes de veículos tiveram um aumento percentual de cerca de 50% (veja-se o
quadro constante do nº 23, supra), por referência aos fixados menos de dois
anos antes.
Não pode deixar de reconhecer-se que se tratou de um
aumento percentual inusitado, pois deixou de estar relacionado com os aumentos
de preços dos serviços públicos em função da evolução do nível geral dos preços,
ao contrário do que sucedia desde 1985, sendo certo que não houve qualquer
mudança geral da política do Governo na matéria, nem tão-pouco qualquer
alteração das classes de veículos antes previstas.
42. Na sua resposta, o Primeiro-Ministro tomou posição
sobre as denunciadas violações dos princípios constitucionais da igualdade,
proibição do arbítrio e proporcionalidade por banda do nº 1º da Portaria nº
351/94, tecendo as seguintes considerações para explicar o aumento estatuído:
- A invocação do 'princípio da proibição do arbítrio a propósito de um preço,
ainda que autoritariamente fixado, não faz muito sentido', visto que um serviço
só será 'procurado enquanto o valor que lhe é atribuído exceder o seu custo,
pelo que o arbítrio não é maior do que o de qualquer outra transacção no
mercado'. Constitui um objectivo inevitável a prosseguir pelo Estado o
racionamento da procura de 'uma infra-estrutura que atingiu o seu limite de
utilização' (a fls. 21 dos autos);
- Se os peticionantes estiverem a invocar um vício de discricionariedade, isto
é, uma violação de limites positivos decorrentes da Constituição (relação de
meios e fins, ou seja , proporcionalidade: oportunidade do acto, ou seja, sua
exigibilidade), importa acentuar a 'ausência de previsão constitucional do
direito de circulação gratuita dos automobilistas pelas pontes (e por que não
pelas auto-estradas?)'. Fica, assim, sepultada 'a invocação do princípio de
proibição do arbítrio' (a fls. 23 dos autos);
- Relativamente à alegada ofensa dos princípios constitucionais da adequação e
da igualdade perante os encargos públicos, é salientado que 'qualquer preço - e
portanto também uma taxa - procede ao ajustamento da procura e da oferta, só
não é adequado quando cria desajustamentos entre uma e outra. Supõe-se que não
restam dúvidas de que durante várias horas do dia a procura de passagens de
veículos na ponte excede a sua capacidade de oferta. A portagem será, então,
tanto mais adequada quanto melhor opere o rateio do serviço que a pode prestar.
A conclusão só pode ser a de que não era muito adequada - e que face ao
comportamento típico da procura os novos preços o seriam mais' (a fls. 24). E
quanto ao princípio da igualdade, afirma-se que '[s]e algo se pode ter como
certo, é que a invocada igualdade na aplicação e criação do direito só tem aqui
relevo no que diz respeito à comparação de dois universos: o dos «automobilistas
utentes da ponte» e outro (seja este o dos automobilistas não utentes da ponte,
seja o dos não automobilistas, seja o dos utentes, automobilistas ou não, de
outras pontes) - e arbitrário será contrapor-lhe um universo específico' ( a
fls. 26). Mais à frente, afirma-se que, '[q]uanto à distinção - provavelmente
desejavelmente esquecida na lógica do pedido - entre os utentes da ponte (que
são os automobilistas e os que utilizam nela transportes públicos) e que é
mantida desde a primeira hora, essa está devidamente fundada em razões sociais
para estimular o uso de transportes públicos, razões sociais para presumir sobre
a condição económica de quem utiliza e não utiliza viatura própria e razões
técnicas.' (a fls. 27);
- São ainda feitas duas observações que 'têm a ver com a interiorização que o
mercado faz dos custos - e dos sacrifícios - que a travessia quotidiana do Tejo
implica'. A primeira tem a ver com uma hipótese de existência de dez pontes em
vez de uma: '[i]mediatamente o preço do imobiliário [de Lisboa] cairia, subindo
o da margem esquerda. Pela mesma razão - mas não com os mesmos efeitos - do
alargamento da actual ponte, da instalação do comboio no seu tabuleiro inferior
e da criação de uma alternativa com efeitos descongestionantes do tráfego
resultará também uma valorização dos imóveis da margem esquerda, beneficiando,
pois, o universo que se quis contrastar com outros'. A segunda observação reside
no seguinte: 'devido ao actual diferencial do preço do imobiliário nas duas
margens, os potenciais compradores/arrendatários de casa que trabalhem em Lisboa
adequam as suas escolhas de acordo com uma função de preferência em que os
gastos monetários acrescidos em transportes - e os custos psíquicos e temporais
da travessia do Tejo - são compensados pelos menores custos de
aquisição/arrendamento de uma habitação de características determinadas' (a fls.
28-29 dos autos). Em jeito de conclusão, nota-se que, '[uma vez que Lisboa
perdeu 18,4% da sua população residente entre 1981 e 1991 e a Área Metropolitana
de Lisboa ao Sul do Tejo ganhou, no mesmo período, 9,8%, é de concluir que,
apesar de tudo, os custos de travessia são preferidos aos outros';
-Afirma-se, ainda, que o pagamento das portagens em pontes é um exemplo de
escola: 'o seu montante pode ser ligado aos custos marginais de curto ou de
longo prazo. Neste último caso, a consideração dos custos de reposição adita uma
componente aos custos marginais. Tal justifica o pagamento de uma taxa,
necessariamente muito acima do custo marginal. Porém, mesmo no caso de se
considerarem só os custos marginais de curto prazo, a cobrança de uma taxa
justifica-se sobremaneira quando ocorram fenómenos de congestionamento, devendo
aquela ser tanto mais elevada quanto maior for o congestionamento.';
- Igualmente se esclarece que, 'face ao aumento [de 1994], só seria de esperar
obter mais 50% das receitas do ano anterior - e para financiar com isso a nova
ponte seriam necessários mais 100 anos. O outro efeito previsível desse aumento
- a contenção do crescimento da procura de passagens (cuja evolução se inclui
no quadro seguinte) - é muito mais relevante, uma vez que parecia insustentável
continuar a deixar crescer as filas de trânsito, que ultrapassam já,
frequentemente, a dezena de quilómetros (e que, note-se, não são provocadas pela
portagem, mas sim pelos limites físicos da ponte)' (a fls. 46-47 dos autos). No
quadro aludido, mostra-se que o trafego médio diário da ponte era de 9764
veículos em 1967, tendo quase quintiplicado dez anos depois (1977-42096
veículos), situando-se em 77680 veículos em 1987, para atingir 111.199 veículos
em 1991;
- Por último, põe-se em relevo que, com base na aplicação dos índices de preços
no consumidor, os valores nominais que corresponderiam aos valores fixados em
1966 seriam, a preços de 1991, para cada par de travessias, de 763$00 (valor
fixado - 10$00) e de 7.640$00 (valor fixado -100$00), nas classes extremas (cfr.
fls. 52 dos autos).
43. Em matéria tributária, não cabe ao Tribunal
Constitucional, em linha de princípio, controlar as opções do legislador ou da
Administração nas escolhas que estes fazem para estabelecer o quantum dos
tributos, quer se trate de impostos, de taxas ou de contribuições especiais. Do
mesmo modo e no que toca ao direito penal, não compete ao Tribunal
Constitucional, em regra, censurar a opção do legislador no que respeita à
fixação dos limites mínimo e máximo das penas que correspondem aos diferentes
tipos penais, nem tão-pouco fiscalizar a opção sobre a criminalização ou sobre a
descriminalização de certas condutas.
A propósito da exigência de quotização aos
advogados pelo facto de estarem obrigatoriamente inscritos na respectiva
associação pública, a Ordem dos Advogados, teve ocasião a 2ª Secção do Tribunal
Constitucional de se pronunciar sobre os limites do poder de cognição deste
Tribunal quanto às opções conformadoras do legislador:
'... em matéria de encargos e contribuições pecuniárias, de carácter público, a
que os cidadãos podem ser adstritos, a Constituição deixa ao legislador uma
muito larga «liberdade constitutiva» - e esta comporta, certamente, a
possibilidade de instituir, prever ou admitir figuras contributivas como a que
agora está em discussão. Ponto é, apenas, que não se ultrapassem, também aí,
certos princípios constitucionais de incidência genérica - como os da igualdade
ou da proibição do excesso (proporcionalidade): estes princípios, porém, logo se
mostra não serem afectados pela simples afirmação legal duma regra de quotização
obrigatória (recorde-se que é esse o único aspecto que agora estamos a
considerar) para certa associação pública, extensível a todos os respectivos
membros.' (Acórdãos, vol. 14º, págs. 243-244)
Por exemplo, no que toca à elevação das taxas de
justiça, o Tribunal Constitucional não declarou inconstitucionais várias
alterações ao Código das Custas Judiciais, em processo de fiscalização
abstracta, tendo ponderado então o seguinte:
'Um juízo sobre a proporcionalidade da decisão legislativa deverá ter presentes
a articulação das normas do Código de Custas Judiciais com o instituto do apoio
judiciário e a ideia de causalidade como fundamento da responsabilidade por
custas.
Na verdade, as taxas de justiça são a «contrapartida» da prestação
de um serviço público vinculado à garantia fundamental do acesso aos tribunais.
A inexistência de um princípio geral de gratuitidade da justiça
vai precisamente ligada aos limites objectivos da dimensão prestacional da
garantia consagrada no artigo 20º, nº 1, da Constituição, e à ideia de
equivalência de encargos que prescreve a transferência da responsabilidade
individual dos sujeitos processuais para a comunidade [...].
Tais alterações nem sempre comportam um aumento das taxas de
justiça, nos casos concretos, ou quando assim seja, ainda aí não é possível
falar de desproporcionalidade na tomada de decisão legislativa [...].
Neste plano de análise, as normas do Código das Custas Judiciais
não se revelam excessivas, irrazoáveis ou desproporcionadas, por isso não se
afigurando susceptíveis de inviabilizar o acesso igual e efectivo de todos os
cidadãos à justiça' (Acórdão nº 467/91, in Diário da República, II Série, nº 78,
de 2 de Abril de 1992).
Este juízo de não inconstitucionalidade, por não se
encontrar uma 'desproporção intolerável' nas soluções legislativas em
apreciação, não impediu que a aplicação imediata da nova tabela aos processos
pendentes viesse em alguns casos a ser julgada inconstitucional, por violação
do princípio da confiança que vai ínsito na ideia de Estado de direito (cfr.,
por exemplo, o Acórdão nº 339/90, in Diário da República, II Série, nº 154, de 8
de Julho de 1991). Mas houve sempre o cuidado de ressalvar, em linha de
princípio, a liberdade de conformação e a auto-revisibilidade das soluções
legislativas que pertencem ao próprio legislador.
Igualmente, em matéria penal, o Tribunal
Constitucional já julgou inconstitucionais certas normas incriminatórias ou as
sanções cominadas para certo crime por violação do princípio da
proporcionalidade. Fê-lo em vários acórdãos idênticos e, por último, no acórdão
de generalização nº 527/95 (in Diário da República, I Série-A, nº 260, de 10 de
Novembro de 1994), onde declarou inconstitucional, com força obrigatória geral,
a norma do art. 132º do Código Penal e Disciplinar da Marinha Mercante de 1943,
na parte em que estabelece a punição como desertor daquele que, sendo tripulante
de um navio e sem motivo justificado, o deixe partir para o mar sem embarcar,
quando tal tripulante não desempenha funções directamente relacionadas com a
manutenção, segurança e equipagem do navio. Na primeira destas decisões, o
Tribunal, reconhecendo a liberdade de conformação do legislador, afirmou que a
limitação dessa liberdade 'só pode, pois, ocorrer quando a punição criminal se
apresente como manifestamente excessiva', afirmando que, no caso de não embarque
de um pescador no respectivo navio de pesca, a criminalização da conduta
configurava-se como 'um recurso a meios desproporcionadamente gravosos para a
prossecução desse objectivo [regular desenvolvimento da actividade económica da
pesca de longo curso], só compreensível por se tratar de uma disposição
obsoleta, constante de um diploma pré-constitucional, elaborado à luz de
valores evidentemente contraditórios com os consignados na legislação vigente'.
E, no recente Acórdão nº 370/94 (in Diário da República, II Série, nº 207, de 7
de Setembro de 1994), foi julgada inconstitucional a alínea a) do art. 203º do
Código de Justiça Militar, por violação dos princípios de igualdade e da
proporcionalidade, lidos conjugadamente, na medida em que a moldura
sancionatória para o crime militar de abuso de confiança previa uma pena mínima
muito elevada, por comparação com a pena mínima estabelecida no Código Penal
para o mesmo tipo de crime.
Pode, assim, concluir-se que o Tribunal tem sempre
o poder de aferir as opções do legislador pelo crivo do princípio da
proporcionalidade. E tem-no feito em diferentes ocasiões, de que foram
recordadas algumas das mais significativas.
44. No caso sub judicio, importa decidir se o
aumento de portagens na proporção de 50%, relativamente aos valores fixados
cerca de dezanove meses antes, viola os princípios da proporcionalidade, da
proibição do arbítrio ou da igualdade de todos perante os encargos públicos.
Preliminarmente, deve dizer-se que o
Primeiro-Ministro tem razão quando afirma que, após 1 de Setembro de 1994, a
situação se modificou, relativamente aos utilizadores habituais da ponte.
Na verdade, desde que um utilizador atravesse, a
ponte sobre o Tejo, no sentido sul-norte, pelo menos uma vez em cada dia útil de
um certo mês, pode beneficiar de um desconto de quantidade, reduzindo-se a
portagem a 50%, a partir da 12ª ou da 13ª travessia, consoante o tipo de veículo
utilizado. Quer dizer, após a entrada em vigor da Portaria nº 735-A/94, passaram
a conceder-se benefícios aos utilizadores frequentes, dando-se relevância às
necessidades sociais de atravessamento da ponte relacionadas com a circunstância
de um elevado número das pessoas que trabalham em Lisboa habitarem na margem sul
do Tejo. Do mesmo passo, permitiu-se a aquisição de séries de bilhetes
pré-comprados, sem prazo de validade, com um desconto de 10%.
Relativamente ao momento presente - e após a
publicação da Portaria nº 735-A/94 - verifica-se que o grupo dos utilizadores
frequentes da ponte dispõe de um tratamento mais favorável, decorrente dos
descontos de quantidade - o que não acontecia quando os Deputados requerentes
apresentaram o presente pedido de fiscalização sucessiva de constitucionalidade.
No que toca aos valores vigentes das portagens, não
pode afirmar-se que os mesmos são manifestamente desproporcionados ou
inadequados. De facto, a comparação com os valores fixados para as portagens das
auto-estradas que dão acesso a Lisboa (auto-estrada do Norte, auto-estrada
Lisboa-Cascais; auto-estrada da Malveira-Lisboa) não aponta, em termos de
valores absolutos, para uma disparidade excessiva ou desrazoável dos valores do
acesso do Sul, ainda que se tenha de levar em conta que o acesso a Lisboa a
partir da margem sul do Tejo só pode fazer-se, em função da realidade
geográfica, ou por via fluvial ou pela ponte, não existindo quaisquer
alternativas viárias no presente.
Por outro lado, e uma vez que não integram o
objecto deste processo as normas do Decreto-Lei nº 168/94 sobre a concessão da
exploração da actual travessia à entidade concessionária da construção da nova
ponte, nomeadamente, o art. 3º, nº 3, e as disposições das Bases de Concessão
anexas respeitantes à fixação no futuro das taxas de portagem na actual
travessia, não pode tomar-se em consideração o que poderá passar-se no futuro e
em que medida as soluções do futuro poderão ter influência na fixação de
ulteriores actualizações das portagens antes da transferência da exploração da
Ponte de 25 de Abril da JAE para a entidade concessionária.
No presente, importa acentuar que o produto da
cobrança das portagens reverte para a Junta Autónoma das Estradas, constituindo
receita própria deste organismo personalizado da Administração directa do
Estado. Esta receita não está legalmente consignada a nenhuma finalidade
específica, pelo que não pode este Tribunal Constitucional afirmar que tais
receitas estão destinadas a cobrir despesas de construção da futura ponte. O
contrário resulta mesmo do citado Decreto-Lei nº 168/94 (veja-se o disposto na
Base XLVII, nºs 1 e 3, do Anexo I àquele decreto-lei).
Como resulta da resposta do Primeiro-Ministro,
estão projectados ou em vias de execução certos melhoramentos na actual ponte
que vão ser suportados pelos recursos públicos (reforço das estruturas da ponte;
ampliação do tabuleiro superior da mesma com a abertura de uma sexta via ao
tráfego; adaptação do tabuleiro inferior da ponte à travessia ferroviária - cfr.
a Base XLII do Anexo I do Decreto-Lei nº 168/94).
Por outro lado, é facto notório que o tráfego médio
de veículos não tem deixado de aumentar anualmente, ocorrendo frequentes
situações de congestionamento nas chamadas 'horas de ponta' (veja-se o quadro
numérico dessa evolução na resposta do Primeiro-Ministro, a fls. 47. dos autos).
Não existem, assim, indícios suficientemente fortes
de que o aumento estabelecido em 1994 seja manifestamente desadequado aos fins
de obtenção de receitas para custear obras de melhoramento da actual travessia -
seja o melhoramento directo decorrente na abertura da sexta via, seja o
indirecto decorrente da travessia ferroviária, susceptível de descongestionar o
tráfego - ou de regular a intensidade do tráfego, pela racionalização da
utilização de veículos particulares de passageiros, com evidentes vantagens para
a eficácia dos meios de transporte colectivo que nela circulam (sobre a fixação
do preço da portagem de uma ponte e a sua relação com a existência de um serviço
de transporte fluvial, por ferry boat, vejam-se as considerações de Richard A.
Posner, in Economic Analysis of Law, 3ª ed., Boston e Toronto, págs. 328 - 333).
Por outro lado, a introdução de descontos de
quantidade minorou indiscutivelmente os efeitos mais onerosos para os
utilizadores frequentes, em especial os moradores na margem sul do Tejo que se
deslocam diariamente a Lisboa para trabalhar. Não é, assim, possível - face aos
elementos fácticos atrás descritos, nomeadamente aos quadros de volume de
tráfego constantes da resposta do Primeiro-Ministro - ter por violado o
princípio normativo da proporcionalidade, com afloramentos nos arts. 18º, nº 2,
19º, nº 4, 266º e 272º, nº 1, da Constituição.
45. Tão-pouco pode o Tribunal Constitucional
afirmar que o nº 1º da Portaria nº 351/94 viola o princípio da proibição do
arbítrio, seja autonomamente encarado, seja como vertente do princípio da
igualdade perante os encargos públicos.
Os Deputados requerentes não contestam o carácter
oneroso da travessia na ponte, nem sustentam, por isso, a existência de um
princípio geral - com ou sem base constitucional - de gratuitidade no uso dos
bens do domínio público do Estado. Consideram que o critério de ajustamento dos
'preços de portagem' se baseou na necessidade de equiparar a prazo os preços das
portagens da actual ponte sobre o Tejo e da futura ponte, e de viabilizar
economicamente a construção e exploração da futura ponte, objectivos que
consideram constituir, no fundo, um desvio do exercício do poder regulamentar do
Governo.
A verdade é que não impugnaram a conformidade
constitucional das atrás citadas normas do Decreto-Lei nº 168/94, limitando a
fazê-lo quanto ao nº 1º da Portaria nº 351/94.
Ora, isoladamente encarada a Portaria nº 351/94 -
enquadrada pelo disposto no Decreto-Lei nº 265-A/92, em especial pela norma que
estabelece que as portagens constituem receitas próprias da JAE - não se pode
afirmar que os utentes da actual ponte estão no presente a financiar a nova
ponte, a qual só indirectamente os poderá beneficiar, na medida em que produza
um efeito de descongestionamento ou constitua mesmo, para alguns, uma
alternativa preferencial de percurso.
Não há, pois, elementos que apontem para que os
utentes esporádicos ou habituais da actual ponte sejam arbitrariamente tratados,
relativamente a outras categorias de cidadãos. Nomeadamente, a existência de uma
portagem e a fixação do seu quantum não podem ter-se como susceptíveis de violar
o princípio da igualdade quanto aos utentes que se deslocam diariamente da
margem sul do Tejo a Lisboa, por comparação, por exemplo, com os cidadãos que
habitam na margem sul do rio Douro e se deslocam diariamente ao Porto para
trabalhar. Importará nessa comparação acentuar que a construção das pontes
sobre o Douro de acesso ao Porto ocorreu em diversos momentos de tempo, que a
construção se revestiu de graus de dificuldade diversos em cada caso, que os
volumes de tráfego respectivos são diversos, que o investimento necessário e as
tecnologias utilizadas foram muito diferentes, etc.. É caso de recordar que,
como o tem acentuado o Tribunal Constitucional, o princípio de igualdade só
opera num plano sincrónico e não em planos diacrónicos.
Não pode, por isso, este Tribunal controlar se o
Governo, ao fixar as presentes portagens, encontrou a solução mais adequada ao
fim visado, a mais razoável ou a mais justa. Cabe-lhe tão-somente afirmar que o
nº 1º da Portaria nº 351/94 - lido em conjugação com o disposto na Portaria nº
735-A/94 - não estabelece um tratamento manifestamente injusto, flagrante e
intoleravelmente inaceitável num Estado de direito democrático (para uma
reafirmação da jurisprudência constante do Tribunal respeitante ao princípio da
igualdade, veja-se, por último, o Acórdão nº 335/94, in Diário da República, II
Série, nº 200, de 30 de Agosto de 1994, com referências a anteriores decisões na
matéria).
A política de fixação das tarifas de portagens é
traçada pelo Governo e cabe na sua esfera de actuação, havendo de ser
politicamente valorada pelos cidadãos, através de formas constitucionalmente
admissíveis. Escapa, porém, em regra, ao controlo do Tribunal Constitucional, o
qual é, neste matéria, essencialmente negativo: ora, face ao que foi exposto,
não se pode afirmar com segurança que não exista um fundamento sério para a
solução em apreciação, nem se pode concluir que não disponha ela de um sentido
legítimo ou vise consagrar fundamentos desrazoáveis de diferenciação. Tão-pouco
se pode afirmar que aos utentes habituais da ponte seja exigido um sacrifício
desproporcionado face aos utilizadores esporádicos, já que, a partir de Setembro
de 1994, foram consagrados mecanismos diferenciadores, tendentes a minorar os
sacrifícios pedidos a tais utentes habituais, isto sem se levar em conta, claro,
o quadro de perspectivas económicas ou de diferente natureza em que cada um
destes optou por residir em concelhos da margem sul do Tejo.
Não se verifica, pois, uma violação do princípio de
proibição do arbítrio, autonomamente considerado, ou do princípio da igualdade
perante os encargos públicos.
46. Face à conclusão de que não ocorre na situação
sub judicio uma violação do princípio da proporcionalidade, ocioso se tornaria
dilucidar a dúvida que atrás se deixou em aberto (cfr. nº 39, supra), sobre se a
criação das normas que estabeleceram as novas tarifas das portagens deveria
caber na competência do órgão parlamentar. Tudo o que se deixou dito quanto aos
montantes das portagens, em especial a sua evolução no tempo e os valores que
atingiriam se se operasse uma correcção pelos sucessivos índices de variação dos
preços no consumidor, dispensa o Tribunal de resolver agora essa dúvida, por se
tratar de mera questão académica no presente contexto.
VII
47. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o
Tribunal Constitucional não declarar a inconstitucionalidade, com força
obrigatória geral, do nº 1º da Portaria nº 351/94, de 3 de Junho.
Lisboa, 15 de Novembro de 1995
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Messias Bento
José de Sousa e Brito
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
Bravo Serra
Maria Fernanda Palma (com declaração de voto)
Guilherme da Fonseca (com declaração de voto)
Luís Nunes de Almeida
Declaração de voto
Votei a decisão constante do presente Acórdão sem concordar inteiramente com a
respectiva fundamentação (apesar de esta ser cuidadosa e profunda) e com a
convicção de que está em causa uma situação de fronteira com a violação pura e
simples do princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18º, nº 2, da
Constituição. Votei a decisão porque, na ponderação dos argumentos a favor e
contra um juízo de inconstitucionalidade, os primeiros me pareceram menos
sólidos. Não concordo inteiramente com a fundamentação do Acórdão, na medida em
que o raciocínio expendido sobre a proporcionalidade do aumento das portagens,
qualificadas correctamente como taxas, se restringe a uma espécie de análise
económica, visando concretizar o princípio da proporcionalidade e fundamentando
a conclusão pela não desproporcional idade numa racionalidade não
especificamente jurídica.
Em meu entender, não é dada suficiente relevância ao reconhecimento de que o
aumento é inusitado, segundo as expectativas dos utentes da Ponte 25 de Abril.
Factores de previsibilidade ou de acessibilidade à margem norte do Tejo para
quem diariamente trabalha em Lisboa ainda são integráveis, aliás, numa lógica de
análise económica e são relevantes, sem dúvida, na perspectiva da salvaguarda
das expectativas e da confiança dos cidadãos. Ora, tais factores não são
valorados com intensidade idêntica à de elementos mais abstractos e objectivos,
como a existência de outras portagens e outros custos.
Considero, deste modo, que o Acórdão foi demasiado convicto e restritivo na
formulação do princípio da proporcionalidade concretizado no caso, refugiando-se
na torre de marfim de uma certa lógica económica, mas olvidando outras formas de
abordagem relevantes, como a sociológica. Um aumento seria, a meu ver, ainda
desproporcional, na medida em que implicasse uma violação intolerável das
expectativas dos utentes da Ponte 25 de Abril, mesmo que, comparativamente com o
valor de outros bens, não fosse excessivo. Admito, todavia, que as correcções
introduzidas pela Portaria nº 735-A/94, de 12 de Agosto, modificaram
substancialmente a situação e vieram moderar o efeito do aumento inusitado que o
Acórdão reconhece. E esta última referência foi para mim decisiva na votação do
presente Acórdão. Ainda quanto à fundamentação, não concordo com o apelo a um
papel profundamente limitado do legislador constitucional, quanto ao controlo
dos poderes de conformação do legislador ordinário nesta matéria - tal como, por
exemplo, em matéria de limites das penas. Em direito penal não deve haver,
segundo penso, uma regra geral de contenção dos poderes de fiscalização do
Tribunal Constitucional. A contenção resultará apenas do carácter relativamente
vazio dos princípios constitucionais conformadores como a necessidade das penas
e das medidas da segurança e a culpa -, que o legislador ordinário poderá
desenvolver em diversos sentidos.
Por outro lado, a limitação dos pressupostos do juízo de inconstitucionalidade à
intenção legislativa declarada - que é até vaga e equívoca, sem atender a factos
ou declarações contemporâneos do pedido de controlo de constitucionalidade,
revela uma perspectiva jurídica a que não me vinculo. Enquanto públicos e
notórios, tais factos poderão contribuir para a decisão do processo.
Maria Fernanda Palma
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votei a decisão de não declaração de
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do nº 1 da Portaria
nº 351/94, de 3 de Junho, acompanhando, no essencial, a fundamentação largamente
desenvolvida do acórdão, sobretudo no que toca à apreciação da 'questão prévia
de falta de interesse jurídico no conhecimento do objecto do pedido' e de 'uma
outra questão de natureza preliminar decorrente do vício de
inconstitucionalidade orgânica (...)' e à descrição e à análise do 'regime legal
das portagens desde a construção da ponte sobre o Tejo, em Lisboa', apelidada
de PONTE DE 25 DE ABRIL, incluindo a conclusão de que 'o regime das taxas a
partir de 1996 não se reveste de relevância jurídica no presente processo', e
ainda à análise da natureza jurídica dessas portagens, com a conclusão de que,
sendo elas taxas, aquele nº 1 da Portaria nº 351/94 'não viola o artigo 168º, nº
1, alínea i), da Constituição'.
2. A minha divergência radica-se, na linha da
declaração de voto da Exmª Conselheira Maria Fernanda Palma, que acompanho, na
fundamentação usada pelo acórdão no ponto relativo à proporcionalidade do
aumento nas portagens, quase raiando a violação do princípio da
proporcionalidade com afloramentos nos artigos 18º, nº 2, 19º, nº 4, 266º, e
272º, nº 1, da Constituição.
Na verdade, partindo o acórdão da afirmação
acertada de um aumento percentual inusitado das portagens, deixando de estar
relacionado com os aumentos de preços dos serviços públicos em função da
evolução do nível geral dos preços, não extraiu dela as consequências que se
impunham, mesmo no plano de um princípio da confiança ínsito no Estado de
direito democrático e que se extrai do artigo 2º da Constituição, por serem
fortemente atingidas as expectativas dos utentes da PONTE, postas em confronto
com novos valores, que poderiam até qualificar-se como manifestamente
desproporcionados ou inadequados.
Enveredando por uma óptica puramente economicista
e financeira, com ponderação de custos, preços, investimentos e figuras afins,
com adesão à resposta do Primeiro-Ministro, largamente transcrita, em desfavor
de um tratamento sociológico do fenómeno da indignação que na ocasião suscitou a
entrada em vigor das novas portagens, traduzido em movimentos associativos, o
acórdão perdeu-se num sentido limitativo do princípio da proporcionalidade e
esqueceu-se do princípio da confiança.
E só a substituição da Portaria em causa pela
nova Portaria nº 735-A/94, de 12 de Agosto - pouco menos de dois meses
decorridos, sendo que em Julho foi suspensa a cobrança e em Agosto funcionou a
tradicional isenção de cobrança -, amortecendo por via de 'descontos de
quantidade' e corrigindo os novos valores das portagens que tanta indignação
provocaram, levou-me a ponderar que afinal não teria uma justificação sólida já
um juízo, de inconstitucionalidade, tanto mais que o pedido não foi reeditado
pelos requerentes relativamente àquela Portaria nº 735-A/94.
Acresce ainda a circunstância, de todos
conhecida, das promessas - vindas já da pré-campanha e da campanha eleitoral do
Partido Socialista nas recentes eleições legislativas de 1995 - de membros do
Governo do actual XIII Governo Constitucional de abolições de certas portagens,
a serem concretizadas em curto prazo, podendo elas estender-se eventualmente à
PONTE.
Guilherme da Fonseca