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Procº nº 13/95.
2ª Secção.
Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. A. cabo da Guarda Fiscal na reserva, impugnou,
perante a Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal
Administrativo, o despacho de 12 de Maio de 1992, proferido pelo Ministro da
Administração Interna, despacho esse por intermédio do qual foi negado
provimento ao recurso hierárquico interposto de um outro despacho, datado de 7
de Fevereiro de 1992 e da autoria do Comandante-Geral da Guarda Fiscal, que lhe
aplicou a pena de 30 dias de «Prisão Disciplinar Agravada», despacho este que,
por seu turno, não só indeferiu o recurso hierárquico que o A. efectuara do
despacho de 9 de Dezembro de 1991, prolatado pelo Comandante do Batalhão nº 4 da
Guarda Fiscal, e perante o qual lhe fora imposta a pena de 20 dias de «Prisão
Disciplinar Agravada», como a agravou ao abrigo do artº 8º do «Regulamento de
Disciplina Militar».
No petitório de recurso invocou desde logo o A. que os
artigos 2º, 4º e 5º do Decreto-Lei nº 143/80, de 21 de Maio, sofriam de
inconstitucionalidade orgânica por violação das alíneas b) e d) do nº 1 do artº
168º da Lei Fundamental.
2. O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 10
de Novembro de 1994, concedeu provimento ao recurso, 'declarando nulo o acto
recorrido', 'porque proferido sem apoio legal' e 'lesivo do conteúdo essencial
de um direito fundamental'.
Para tanto, foi entendido naquele aresto, após se dar
por assente que 'os deveres do RDM que o despacho punitivo considera violados
não são específicos do pessoal no activo, não pressupondo necessariamente o
exercício efectivo de funções', que 'a norma do artº 1º do Dec.Lei nº 143/80, na
parte em que torna aplicável aos membros da Guarda Fiscal na situação de reserva
as penas de prisão disciplinar e de prisão disciplinar agravada, previstas no
RDM, assim afectando o direito à liberdade consagrado no artº 27º da C.R.P.',
era organicamente inconstitucional, já que tal diploma tinha sido editado pelo
Governo sem autorização da Assembleia da República e, porque aquela norma
versava sobre matéria de direitos, liberdades e garantias, a respectiva
formulação era de exclusiva competência parlamentar.
E entendeu-se, igualmente, que o assinalado artº 1º
padecia de inconstitucionalidade material, por violação da alínea b) do nº 3 do
artigo 27º do Diploma Básico.
3. Do referido acórdão recorreu para o Tribunal
Constitucional o Representante do Ministério Público junto do S.T.A., vindo aqui
a produzir alegação o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, alegação na qual,
propugnando pelo improvimento do recurso, concluiu que '[a] norma do artigo 1º
do Decreto-Lei nº 143/80, de 21 de Maio, na parte em que torna aplicável aos
membros da Guarda Fiscal na situação de reserva as penas de prisão disciplinar e
de prisão disciplinar agravada previstas no Regulamento de Disciplina Militar é
organicamente inconstitucional, por violação do artigo 167º, alíneas c)
(referida ao artigo 27º) e m) da Constituição, na sua versão originária, e é
materialmente inconstitucional, por violação do artigo 27º, nº 3, alínea c), da
Constituição'.
Por seu turno, o A. também defendeu, na alegação que
apresentou, que o recurso não merecia provimento, já que a norma desaplicada na
decisão impugnada era orgânica e materialmente inconstitucional.
Cumpre decidir.
II
1. No Decreto nº 4, de 27 de Setembro de 1884,
estabeleceu-se que '[a] Guarda Fiscal, como parte integrante das forças
militares do Reino', estava submetida a 'deveres e direitos idênticos aos que
competem aos oficiais e praças de pré do Exército activo'.
Porém, em 1927, por intermédio do Decreto nº 13.461, de
23 de Março, foi aprovado um específico «Regulamento Disciplinar da Guarda
Fiscal», o qual veio, em 1966, a ser substituído por um outro, aprovado pelo
Decreto nº 49.969, de 23 de Abril.
Nos termos do prescrito no artº 5º deste último
«Regulamento», os deveres nele consagrados (elencados nos 68 números do artigo
anterior) deveriam ser cumpridos pelo 'pessoal da Guarda Fiscal em serviço
activo e na situação de reserva prestando serviço', ficando o 'restante pessoal
na situação de reserva' unicamente obrigado ao cumprimento dos deveres indicados
nos números 3º, 4º, 5º, 9º, 11º, 12º, 13º, 16º, 24º, 25º, 28º, 30º, 31º, 32º,
33º, 36º, 37º, 38º, 44º, 47º, 48º, 50º, 53º, 54º, 62º, 63º, 66º e 67º do
referido artº 4º.
De harmonia com o disposto nos artigos 10º e 11º desse
mesmo «Regulamento», as penas aplicáveis a cabos e soldados eram,
respectivamente: (a) as de «Repreensão», «Repreensão agravada», «Detenção até 40
dias», «Prisão disciplinar até 30 dias» e «Prisão disciplinar agravada até 60
dias» e, (b) as de «Repreensão», «Repreensão agravada», «Quartos de serviço até
12», «Detenção até 40 dias», «Prisão disciplinar até 30 dias» e «Prisão
disciplinar agravada até 60 dias».
Com a reestruturação da Guarda Fiscal, designadamente a
que foi operada a partir de 1974, foi entendido aplicar-se-lhe o «Regulamento de
Disciplina Militar», o que se operou por intermédio do Decreto-Lei nº 143/80, de
21 de Maio, atenta a característica daquela força como um 'corpo com estrutura
militar', e em que é de 'evidência a sua ligação às forças armadas, tanto em
tempo normal como em situação de emergência, de estado de sítio ou de guerra,
altura em que passa à subordinação dos comandos militares' (palavras do exórdio
desse diploma), consequentemente deixando o respectivo pessoal de estar sujeito
a um específico regulamento disciplinar.
Posteriormente, a Lei nº 29/82, de 11 de Dezembro (Lei
da Defesa Nacional e das Forças Armadas), veio consagrar no seu artº 32º, nº 1,
que '[a]s exigências específicas do ordenamento aplicável às Forças Armadas em
matéria de justiça e de disciplina serão reguladas, respectivamente, no Código
de Justiça Militar e no Regulamento de Disciplina Militar', tornando ( vide artº
69º, nº 1) essa disposição 'aplicável aos militares e agentes militarizados dos
quadros permanentes e dos contratados em serviço efectivo ... na Guarda Fiscal'.
Em 20 de Setembro de 1985 veio a lume o Decreto-Lei nº
373/85, que aprovou a «Lei Orgânica da Guarda Fiscal», definindo-a como 'um
corpo especial de tropas' (artº 1º), mandando aplicar aos respectivos militares
'as restrições ao exercício de direitos por militares, o Código de Justiça
Militar e o Regulamento de Disciplina Militar...' (artº 12º, nº 1), e relegando
para 'diplomas legais' a organização daquele corpo especial e dos seus
efectivos, bem como os respectivos deveres (artigos 16º, nº 1 e 22º, nº 1),
tendo, na sequência do assim estatuído, sido, na mesma data, publicado o
Decreto-Lei nº 374/85, aprovador do «Estatuto do Militar da Guarda Fiscal» e dos
«Estatutos do Oficial, do Sargento e da Praça» da aludida força.
Este último diploma considera (cfr. artº 28º) militar na
situação de «activo» aquele que reúne 'as condições legais para exercer ou vir a
exercer todas as funções próprias do seu quadro e posto e não abrangido pelas
situações previstas para a reserva e reforma', enquanto que «reserva» (cfr. artº
29º) é considerada a situação para a qual 'transita o militar do activo que, nos
termos do artigo 50.º, esteja em condições de exercer apenas algumas das funções
próprias do respectivo quadro e posto, sem prejuízo do estabelecido nos artigos
115.º' (desempenho de cargos ou funções que dispensem a plena validez por parte
de militares que no cumprimento da missão da Guarda Fiscal adquirirem uma
diminuição permanente na capacidade geral de ganho causada por lesão ou doença,
adquirida ou agravada) 'e 116.º' (prestação de serviços moderados por banda de
militares que, por motivo de acidente ou doença adquirida em serviço,
transitoriamente, só reúnam condições para o desempenho de funções que dispensem
a plena validez).
1.1. O «Regulamento de Disciplina Militar» (RDM),
aprovado pelo Decreto-Lei nº 142/77, de 9 de Abril, prevê (cfr. artigos 35º,
37º, 38º e 39º e Quadro anexo) a aplicação, das seguintes penas aos cabos: -
«Repreensão», «Repreensão agravada», «Detenção ou proibição de saída» (até um
máximo de 40 dias e incidindo a competência para punir no Chefe do
Estado-Maior-General das Forças Armadas ou nos Chefes dos Estados-Maiores),
«Prisão disciplinar» (até um máximo de 30 dias, se a competência para punir
recair no Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas ou nos Chefes dos
Estados-Maiores) e «Prisão disciplinar agravada» (até um máximo de 60 dias, se
forem esses superiores a punir). Já quanto a soldados (cfr. artigos 36º a
39º e referido Quadro anexo) as penas previstas são as de «Repreensão»,
«Repreensão agravada», «Faxinas» (até um máximo de 12 dias, caso seja aplicável
pelo Chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas ou pelos Chefes dos
Estados-Maiores), «Detenção ou proibição de saída» (até um máximo de 40 dias e
incidindo a competência para punir no Chefe do Estado-Maior-General das Forças
Armadas ou nos Chefes dos Estados-Maiores), «Prisão disciplinar» (até um máximo
de 30 dias, se a competência para punir recair no Chefe do Estado-Maior-General
das Forças Armadas ou nos Chefes dos Estados-Maiores) e «Prisão disciplinar
agravada» (até um máximo de 60 dias, se forem esses superiores a punir).
Note-se que, de acordo com o artº 2º do Decreto-Lei nº
143/80, o Ministro das Finanças e do Plano (hoje a competência recai sobre o
Ministro da Administração Interna) 'tem sobre o pessoal da Guarda Fiscal a
competência disciplinar que no Regulamento de Disciplina Militar é fixada para
os Chefes dos Estados-Maiores dos ramos das forças armadas'.
Por outro lado, prescreve-se no artº 5º, nº 1, alínea
b), do RDM a aplicação dos deveres aí consagrados aos militares dos Quadros
Permanentes e de Complemento e praças na situação de reserva, especificando-se
no nº 2 que, por entre o mais, aqueles militares e praças 'ficam sujeitos apenas
ao cumprimento dos deveres que, pela sua natureza e conforme as circunstâncias,
lhes sejam aplicáveis'.
2. Muito embora dos autos não resulte com perfeita
clareza (ou, se se quiser, com extrema nitidez) que a imposição ao A. da pena
disciplinar em causa, prevista no RDM, se deveu à aplicação deste «Regulamento»
à Guarda Fiscal por força do que ficou consagrado no artº 1º do D.L. nº 143/80,
e não já em face do que se prescreve no nº 1 do artº 69º, com referência ao nº 1
do artº 32º, um e outro da Lei nº 29/82 (o que, aliás, outros problemas poderia
levantar), o que é certo é que este Tribunal tem de aceitar o que, neste
particular, foi decidido pelo Supremo Tribunal Administrativo no aresto em
crise, isto é, que foi precisamente com base na norma do artº 1º acima indicado
que se aplicou a pena disciplinar prevista nas disposições conjugadas dos
artigos 35º, 4ª, e 28º do RDM.
Da perfunctória resenha acima efectuada concluir-se-á
sem dificuldades de maior, que, no que tange à pena de «Prisão Disciplinar» e de
«Prisão Disciplinar Agravada» aplicáveis a cabos e soldados, têm alguma
semelhança os regimes que se divisam no então vigente «Regulamento Disciplinar
da Guarda Fiscal» e no «Regulamento de Disciplina Militar» (cfr. artigos 15º,
16º, 25º, 26º, 28º e 29º daquele primeiro «Regulamento» e 27º, 28º, 51º, nº 3, e
52º, nº 3, do segundo).
A questão, todavia, com o recorte que nos é dado pela
decisão recorrida, é a de saber se (ainda que um e outro daqueles «Regulamentos»
apresentassem, no que à pena em apreciação concerne, uma total identidade), em
face dos preceitos constitucionais vigentes ao tempo da edição do D.L. nº
143/80, era possível ao Governo, no uso da sua competência legislativa e
desacompanhado de credencial parlamentar, emitir normação que tornasse aplicável
a um corpo especial de tropas que não faz parte das Forças Armadas, um regime
disciplinar por intermédio do qual aos respectivos elementos era aplicável uma
pena disciplinar consistente na privação de liberdade.
A resposta a uma tal questão não poderá deixar de ser
negativa.
2.2. Na realidade, implicando aquelas penas, aplicadas
por decisão não jurisdicional (cfr. artigos 27º e 28º do RDM), a reclusão - em
casa para esse fim destinada, aquartelamento, estabelecimento militar, a bordo
em alojamento adequado ou em casa de reclusão - de quem infringe, por omissão ou
acção contrária aos deveres militares que pelo Código de Justiça Militar não
seja qualificada como crime (cfr. artº 3º), isso significa que tais penas, de
modo necessário, afectam o direito à liberdade, direito fundamental que se
encontra consagrado no artº 27º, nº 1, da Constituição (inalterado desde a sua
versão originária).
Vale isto por dizer que nos encontramos perante matéria
que versa sobre «direitos, liberdades e garantias», sobre a qual é da exclusiva
competência da Assembleia da República emitir normação [cfr. artigo 167º, alínea
c), da versão originária da Lei Fundamental].
Ora, o que acontece é que o Decreto-Lei nº 143/80 foi
editado pelo Governo, não estando ele provido de qualquer autorização
parlamentar para tanto. E, como acima se deixou já esboçado, não releva aqui a
circunstância de os regimes de «Prisão Disciplinar» e de «Prisão Disciplinar
Agravada», previstos no «Regulamento Disciplinar da Guarda Fiscal» e no
«Regulamento de Disciplina Militar» apresentarem determinadas semelhanças.
É que, também como já se referiu, o que está em causa é
a extensão, ditada pela norma em apreço, do RDM e, no que ora importa, das penas
de «Prisão Disciplinar» e «Prisão Disciplinar Agravada», a quem, até então, a
ele não estava sujeito, ou seja, a Guarda Fiscal (recte, os respectivos membros,
exceptuando-se, como é óbvio, os elementos pertencentes às Forças Armadas que
desempenhem funções naquela corporação).
Haverá, assim, que concluir-se que a norma sub iudicio
sofre de inconstitucionalidade orgânica por violação da alínea c) do artigo 167º
da versão originária do Diploma Básico.
Alcançada esta conclusão, inútil se torna averiguar se,
para além daquela enfermidade constitucional, o normativo em questão igualmente
padece do vício de violação material das normas ou princípios decorrentes da
Constituição.
III
Em face do exposto, decide o Tribunal:
a) Julgar organicamente inconstitucional, por violação
do disposto na alínea c) do artigo 167º da versão originária da Constituição, a
norma constante do artº 1º do Decreto-Lei nº 143/ /80, de 21 de Maio, enquanto
pela mesma se torna aplicável aos cabos e soldados da Guarda Fiscal na situação
de reserva as penas de «Prisão Disciplinar» e de «Prisão Disciplinar Agravada»
previstas nos artigos 27º e 28º do «Regulamento de Disciplina Militar» aprovado
pelo Decreto-Lei nº 142/77, de 9 de Abril, e, em consequência,
b) Negar provimento ao recurso.
Lisboa, 6 de Dezembro de 1995
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
Messias Bento
José de Sousa e Brito
Guilherme da Fonseca
Luís Nunes de Almeida