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Processo: n.º 223/94.
2ª Secção
Relator: Conselheiro Messias Bento.
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I — Relatório
1 — A. interpôs no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa recurso
contencioso de anulação do despacho do Director-Geral das Contribuições e
Impostos, de 28 de Novembro de 1990, que lhe havia indeferido um requerimento
seu em que solicitara a sua promoção a técnico tributário de 1.ª classe.
Esse recurso foi rejeitado, com fundamento em irrecorribilidade do acto.
Da respectiva sentença interpôs ele recurso para o Supremo Tribunal
Administrativo, alegando, entre o mais, que o artigo 25.º, n.º 1, da Lei de
Processo nos Tribunais Administrativos, em que aquela se fundamentara, é
inconstitucional, pois que — disse — se não conforma com o artigo 268.º, n.º 4,
da Constituição da República.
O Supremo Tribunal Administrativo (1.ª Secção), pelo acórdão de 16 de Fevereiro
de 1994, negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
2 — É deste acórdão (de 16 de Fevereiro de 1994) que vem o presente recurso,
interposto pelo recorrente, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da
Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da questão da
constitucionalidade do citado artigo 25.º, n.º 1, da Lei de Processo nos
Tribunais Administrativos, tal como foi interpretado — e aplicado — pelo acórdão
recorrido.
Neste Tribunal, alegou o recorrente que formulou as seguintes conclusões:
1 — O artigo 25.º, n.º 1, da LPTA ao prescrever que só é admissível recurso
(contencioso) dos actos definitivos e executórios contraria e colide com o
disposto no n.º 4 do artigo 268.º da Constituição introduzido pela Lei de
Revisão Constitucional n.º 1/89 o qual veio alargar a garantia de recurso
contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra todos os actos
administrativos, independentemente da sua forma que lesem os seus direitos ou
interesses legalmente protegidos.
2 — O próprio douto acórdão recorrido, vem reconhecer que após aquela revisão
constitucional a recorribilidade do acto administrativo passou a assentar não no
carácter definitivo e executório do acto mas na circunstância de o acto lesar
direitos ou interesses legalmente protegidos.
3 — E vai mesmo mais longe ao admitir que o princípio da exaustão dos meios
graciosos de impugnação sofreu assim uma importante limitação pois que face ao
n.º 4 do artigo 268.º da Constituição é de admitir o recurso contencioso de uma
acto administrativo de um subalterno, quando a impugnação administrativa, pela
sua morosidade, permita que a lesão do direito ou interesse legítimo do
particular se concretize de modo irreparável.
4 — Acabando o douto Acórdão em apreço por concluir que nos casos em que a lei
determine que o recurso hierárquico necessário não suspende a eficácia do acto
ou quando o autor do mesmo considere que a sua não execução imediata cause grave
prejuízo ao interesse público, haverá lugar a recurso contencioso directo do
acto de um órgão subalterno para tutelar eficazmente o direito ou os interesses
legalmente protegidos.
5 — Não obstante o acima exposto, acabou o douto aresto por concluir não ser, em
consequência, materialmente inconstitucional, o n.º 1 do artigo 25.º da LPTA.
6 — Ora, ao invés do doutamente decidido, imputando-se ao legislador
constitucional a intenção de reforçar e alargar a garantia do recurso
contencioso, pela substituição do conceito de acto definitivo e executório pelo
de acto lesivo de direitos e interesses dos particulares, daí resultaria a
caducidade, por inconstitucionalidade superveniente, do referido n.º 1 do artigo
25.º da LPTA.
7 — Na verdade, o artigo 25.º, n.º 1, da LPTA enquanto restringe o recurso
contencioso aos actos administrativos definitivos e executórios permite menos
que a norma constante do artigo 268.º, n.º 4, da Constituição e por isso com
esta, frontalmente, colide.
8 — A exigência do recurso hierárquico necessário interposto dos actos do
subalterno para o órgão no topo da hierarquia para abrir a via contenciosa, não
pode mais decorrer da norma prevista no artigo 25.º, n.º 1, da LPTA mas,
eventualmente, de normas específicas que relativamente a certo ou certos
procedimentos administrativos prevejam a necessidade do recurso hierárquico
necessário.
9 — No caso dos autos, essa norma genérica ou específica não existe conforme
decorre do diploma que regula as competências próprias dos directores-gerais
(cfr. Decreto-Lei n.º 323/89, de 26 de Setembro) ao abrigo do qual o acto
recorrido foi proferido, pelo que, por via do disposto no artigo 268.º, n.º 4,
da Constituição aplicável directamente, nos termos do artigo 18.º, n.º 1, da
mesma Lei Fundamental, o acto do Sr. Director-Geral das Contribuições e
Impostos, enquanto lesivo do direito à promoção do recorrente, é
contenciosamente recorrível, afastada que está a aplicabilidade da norma
prevista no n.º 1 do artigo 25.º da LPTA, por virtude da sua
inconstitucionalidade material superveniente.
Por todo o exposto, se requer […] que apreciem e declarem a
inconstitucionalidade material superveniente do artigo 25.º, n.º 1, da LPTA, por
contrariar e colidir com o disposto no n.º 4 do artigo 268.º da Constituição
introduzido pela Lei de Revisão Constitucional n.º 1/89.
Da sua parte, o Director-Geral das Contribuições e Impostos concluiu as suas
alegações dizendo que «deve ser negado provimento ao recurso».
3 — Corridos os vistos e após mudança de relator, cumpre decidir a apontada
questão de constitucionalidade.
II — Fundamentos
4 — A norma aqui sub iudicio — artigo 25.º, n.º 1, da Lei de Processo nos
Tribunais Administrativos (Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho) — reza assim:
Artigo 25.º
(Actos recorríveis)
1 — Só é admissível recurso dos actos definitivos e executórios.
O Supremo Tribunal Administrativo — recorda-se — entendeu que este artigo 25.º,
n.º 1, aplicado ao caso dos autos, não é inconstitucional, com fundamento em
que, em princípio, «o n.º 4 do artigo 268.º da Constituição não exclui a
possibilidade do recurso hierárquico necessário para a abertura da via
contenciosa». Ponderou, a propósito, que, «preceituando o n.º 1 do artigo 170.º
do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91,
de 15 de Novembro, que ‘o recurso hierárquico necessário suspende a eficácia do
acto recorrido, salvo quando a lei disponha em contrário ou quando o autor do
acto considere que a sua não execução imediata causa grave prejuízo ao interesse
público’, só nos casos em que a lei determinar que o recurso hierárquico não
suspende a eficácia do acto ou quando o autor do mesmo considere que a sua não
execução imediata causa grave prejuízo ao interesse público, haverá lugar ao
recurso contencioso directo de acto de um órgão subalterno, para tutelar
eficazmente o direito ou os interesses legalmente protegidos do administrado, já
que, não se verificando este condicionamento, a eficácia do acto fica suspensa
até à exaustão dos meios graciosos por força do recurso hierárquico»
(acrescentou-se o sublinhado).
5 — Pergunta-se, então: o artigo 25.º, n.º 1, da Lei de Processo nos Tribunais
Administrativos, interpretado como foi pelo acórdão recorrido — ou seja:
interpretado por forma a considerar que um acto praticado por um órgão
subalterno da Administração (no caso, um despacho do Director-Geral das
Contribuições e Impostos, que, não agindo por delegação de poderes, nem tendo
competência exclusiva sobre a matéria, indeferiu o requerimento de um
funcionário que pedia a sua promoção a técnico tributário de 1.ª classe), é
contenciosamente irrecorrível, salvo se a lei determinar que o recurso
hierárquico não suspende a eficácia do acto ou se o autor deste considerar que a
sua não execução imediata causa grave prejuízo ao interesse público, violará o
artigo 268.º, n.º 4, da Constituição?
O artigo 268.º, n.º 4, da Constituição da República, após a 2.ª revisão
constitucional (Lei n.º 1/89, de 8 de Julho), dispõe como segue:
4 — É garantido aos interessados recurso contencioso, com fundamento em
ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos, independentemente da sua
forma, que lesem os seus direitos ou interesses legalmente protegidos.
Este Tribunal, no seu Acórdão n.º 9/95 (publicado no Diário da República, II
Série, de 22 de Março de 1995), a propósito deste tema, afirmou o seguinte:
Comparando este preceito com o do n.º 3 do mesmo artigo 268.º, na versão de 1982
(a que ele corresponde), verifica-se que, nele, se eliminou o inciso
«definitivos e executórios» que constava da redacção de 1982. Ou seja: a
«definitividade» e a «executoriedade» do acto administrativo deixaram de ser
pressupostos da sua impugnação contenciosa.
A propósito dessa eliminação, Rogério Ehrhardt Soares — depois de referir que
houve quem visse aí a intenção de alargar o recurso contencioso a todos os actos
administrativos, mesmo que não «definitivos e executórios» pondera:
Ora parece-me bem que não há motivo para alarmes, porque do que se tratou foi de
dar uma formulação mais correcta e consequente ao texto constitucional.
Primeiro, conseguindo uma expressão mais perfeita do princípio da
accionabilidade. Segundo, expurgando do texto expressões que nos textos
anteriores seriam menos felizes, ou porque eram pleonásticas, ou porque
porventura aparecessem como injustificadamente limitativas do sentido que sempre
se quis impor à garantia constitucional da accionabilidade. (Cfr. «O Acto
Administrativo», Scientia Iuridica, tomo xxxix, 1990, pp. 25 e segs.).
De sua parte, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 939) escrevem, a propósito:
Diferentemente do que acontecia com a anterior redacção do n.º 4, o acto
administrativo susceptível de recurso não carece de ser «definitivo» e
«executório».
Interessa, porém, esclarecer o alcance jurídico-constitucional da eliminação da
definitividade e executoriedade do acto como pressuposto do recurso
jurisdicional. Em primeiro lugar, poder-se-ia dizer que a Constituição não fez
mais do que purificar o conceito de acto administrativo susceptível de recurso,
pois as dimensões de definitividade e executoriedade já há algum tempo tinham
deixado de ser consideradas dimensões imprescindíveis do acto contenciosamente
impugnável. O que se exige, porém, é que se trate de um verdadeiro acto
administrativo, ou seja, decisão de autoridade tomada no uso de poderes
jurídico-administrativos com vista à produção de efeitos jurídicos externos
sobre determinado caso concreto.
Também António Vitorino — que interveio na 2.ª Revisão Constitucional — se
pronunciou sobre o abandono da referência a «actos administrativos e
executórios».
Escreveu ele:
No novo n.º 4 abandonou-se a referência a «actos administrativos definitivos e
executórios» passando a estabelecer-se mais genericamente que o recurso
contencioso cabe de quaisquer actos administrativos, desde que eles lesem
direitos ou interesses legalmente protegidos. A solução encontrada pretende
ultrapassar algumas dificuldades geradas pelas diferentes interpretações das
características de executoriedade e definitividade do acto administrativo
expressas abundantemente quer na doutrina quer na jurisprudência, pretendendo
assim não excluir do contencioso administrativo actos que, embora de
qualificação duvidosa, efectivamente produzam o resultado que se pretende
reprimir: afectem direitos ou interesses legalmente protegidos. E também nesta
inovação se pode reconhecer uma assinalável preocupação de comprometer de forma
mais decisiva o contencioso administrativo numa via de ductilização das suas
formas processuais tendo em vista a preocupação de garantir os direitos e
interesses legalmente protegidos dos administrados contra os actos
administrativos que, independentemente da forma, os lesem ou afectem. (Cfr. o
Prefácio à Constituição da República Portuguesa, AAFDL, Lisboa, 1989, pp. xciv a
xcv).
Um outro interveniente na 2.ª Revisão Constitucional — José Magalhães —
pronunciou-se sobre o tema em análise do modo que segue:
Ampliação da possibilidade de recurso contencioso contra actos ilegais (mesmo
que não definitivos e não executórios) lesivos de direitos ou (o que é também
novo) interesses legalmente protegidos (artigo 268.º, n.º 4). Quebra-se assim a
histórica barreira formalista que impediu durante anos os administrados de
atacarem um acto claramente ilegal, antes de a Administração ter concluído as
«fases preparatórias» e antes de ao mesmo ser conferido carácter executório.
(Cfr. Dicionário da Revisão Constitucional, Lisboa, 1989, p. 20).
De registar são também as seguintes palavras de Rui Machete, proferidas durante
os trabalhos parlamentares:
Isto é, faz-se recair directamente a recorribilidade do acto na circunstância de
ele lesar os direitos ou interesses legalmente protegidos. Isto não é uma
modificação tão substancial como à primeira vista parece, mas o que se pretende
é evitar algo, que foi muito nítido na jurisprudência do Supremo Tribunal
Administrativo, e também um pouco na dogmática portuguesa, mas sobretudo na
jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, e que foi o de, ao formalizar
excessivamente as características da definitividade e da executoriedade do acto,
como nessa altura se entendia, acabar por diminuir as garantias de defesa do
administrado, reduzindo as possibilidades de recurso contencioso. Isto é, ao
aceitar que o acto definitivo e executório é um tipo rigorosamente definido por
notas de carácter formal, veio-se a excluir a recorribilidade em relação a actos
que não obedeciam a esse tipo assim rigorosamente definido […] (cfr. Diário da
Assembleia da República, II Série, n.º 55-RC, de 7 de Novembro de 1988, p.
1740):
Prosseguindo, pois.
A garantia de recurso contencioso — disse este Tribunal no seu Acórdão n.º 39/88
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º Vol., p. 233; Boletim do Ministério
da Justiça, n.º 374, p. 114; O Direito, ano 121.º, 1989, iv, p. 791; Revista da
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. xxix, 1988, p. 459; e
Anuário da Administração Pública, ano vi, tomo i, 1988, p. 291), retomando o que
já antes havia afirmado, entre outros, no Acórdão n.º 86/84 — «tem por conteúdo
a possibilidade de acesso aos tribunais para defesa dos direitos. O que se quer
é ‘fazer valer de forma expressa para os actos administrativos definitivos e
executórios […] a doutrina geral consignada pela primeira parte do artigo 20.º,
quando dispõe que a todos é assegurado o acesso […] aos tribunais para defesa
dos seus direitos e interesses legítimos […]’». Garante-se aí aos interessados
a possibilidade de impugnação dos actos administrativos viciados.
A garantia do recurso contencioso visa, pois, a invalidação de actos
administrativos ilegais que sejam lesivos de direitos ou interesses legalmente
protegidos do interessado.
O recurso contencioso pressupõe, assim, a existência de um verdadeiro acto
administrativo. E este é — nas palavras de Rogério E. Soares (loc. cit.) — «um
acto de autoridade que produz efeitos externos», «um acto da Administração [que]
define a situação jurídica de terceiros» (cfr. também, do Autor citado, Direito
Administrativo, lições policopiadas, Coimbra, 1978, p. 76).
É justamente porque o acto administrativo é uma decisão de autoridade com
efeitos externos sobre determinado caso concreto que os actos internos (por
exemplo, os pareceres) e os actos preparatórios não são contenciosamente
recorríveis.
Como acentuam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 939), nos actos internos e nos
actos preparatórios, «não existem efeitos externos ou existem apenas efeitos
prodómicos de um acto procedimental que só se torna acto decisório através do
acto conclusivo do procedimento». Só assim não será — dizem os mesmos Autores
—, quando tais actos sejam, de per si, «idóneos para produzir efeitos
imediatamente lesivos (e, por conseguinte, efeitos externos)»: neste caso, com
efeito, eles «têm já efeitos próprios de um acto administrativo», e, por isso,
são contenciosamente impugnáveis.
Para poder recorrer-se contenciosamente — a mais do que tratar-se de um acto
administrativo (no sentido que se deixou apontado) — necessário é ainda, como se
viu já, que esse acto seja lesivo de «direitos ou interesses legalmente
protegidos» do interessado, ou seja, que produza uma ofensa de uma sua situação
(ou posição) jurídica subjectiva de natureza substantiva.
«Não basta assim — diz Rogério E. Soares, loc. cit., p. 34 — que o acto seja um
daqueles que pela sua natureza concretiza um comando perturbador da ordem
jurídica, é preciso que o seu estado de virulência seja actual, não apenas
potencial».
O recurso contencioso é, com efeito — como também sublinham J. J. Gomes
Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, p. 941)
— «um meio de defesa de posições jurídicas subjectivas», «substantivamente
caracterizadas».
Do que vem de dizer-se decorre que, quer a eliminação do inciso «definitivos e
executórios», que constava do n.º 3 do artigo 268.º da Constituição, na versão
de 1982, tenha significado apenas uma purificação do conceito de acto
administrativo susceptível de ser contenciosamente impugnado [«uma (sua)
formulação mais correcta e consequente»], quer tenha um alcance diverso, uma
coisa é certa. E é esta: o que a garantia constitucional da accionabilidade dos
actos administrativos ilegais procura assegurar é que haja sempre a
possibilidade de sindicar judicialmente, com fundamento na sua ilegalidade, todo
e qualquer acto de autoridade que produza ofensa de situações juridicamente
reconhecidas (isto é, que tenha efeitos externos). Mas, do domínio do
contencioso de anulação, há-de, no entanto, «excluir-se todo e qualquer acto que
não esteja a concretizar lesões, todo o acto que no procedimento serve apenas
actos de primeira grandeza» (Rogério E. Soares, loc. cit., p. 32).
A este propósito, já antes da 1.ª Revisão Constitucional, A. Barbosa de Melo, J.
M. Cardoso da Costa e J. C. Vieira de Andrade (Estudo e Projecto de Revisão da
Constituição, Coimbra, 1981, p. 291) — que, ao tratarem do direito ao recurso
contencioso (artigo 237.º), não faziam qualquer referência à definitividade ou
executoriedade do acto — escreveram: Deixa de fazer-se referência à categoria
de «actos definitivos e executórios», não tanto (não só) em virtude das críticas
que dogmaticamente lhe podem (com justiça) ser dirigidas, mas por levar a uma
interpretação restritiva ou deformante da garantia contenciosa em causa.
O princípio constitucional que importa consagrar é o da sindicabilidade de toda
a actividade administrativa que afecte os direitos ou interesses legalmente
protegidos dos administrados.
E mais adiante:
A garantia funciona, assim, sempre que haja uma lesão efectiva dos direitos ou
interesses dos administrados, ficando proibida à lei a exclusão de certos actos
ou categorias de actos do seu âmbito ou a limitação abusiva, injustificada ou
desproporcionada deste.
O sentido da garantia constitucional de recurso contencioso contra actos
administrativos ilegais é, portanto, este: ali onde haja um acto da
Administração que defina a situação jurídica de terceiros, causando-lhe lesão
efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, existe o direito
de impugná-lo contenciosamente, com fundamento em ilegalidade. Tal direito de
impugnação contenciosa já não existe, se o acto da Administração não produz
efeitos externos ou produz uma lesão de direitos ou interesses apenas potencial.
6 — Pois bem: in casu, o que, justamente, acontece é que o acto de que se
interpôs recurso contencioso de anulação (recordando: o despacho do
Director-Geral das Contribuições e Impostos que «não agiu ao abrigo de delegação
de poderes, nem sobre a matéria possui competência exclusiva», no qual se
indeferiu um pedido do recorrente de promoção a técnico tributário de 1.ª
classe) não representa a última palavra da Administração sobre a pretensão
formulada. Trata-se, na verdade — diz o acórdão recorrido, sem que essa
afirmação seja passível de censura por este Tribunal — de um acto praticado por
um órgão subalterno da Administração, passível de recurso hierárquico
necessário. A decisão final (definitiva) da Administração cabia, pois, ao órgão
colocado no topo da respectiva hierarquia administrativa.
Tratando-se de uma decisão de não promoção de um funcionário, sujeita a recurso
hierárquico necessário, não causou ela lesão efectiva do direito que o
funcionário invoca, pois, se tal direito existir, sempre ele poderá vir a ser
reconhecido pelo órgão a que na Administração cabe a última e definitiva palavra
sobre a matéria.
A lesão do direito invocada, a existir, é, por isso, meramente potencial.
Mas, sendo assim, mesmo não se podendo recorrer contenciosamente do mencionado
despacho (tal como se decidiu no acórdão recorrido), não se viola a garantia
constitucional da accionabilidade dos actos administrativos ilegais, já que
ainda é possível tentar obter uma tutela eficaz do direito do administrado ao
nível da Administração.
7 — Para finalizar, regista-se o que, a este propósito, escreve José Carlos
Vieira de Andrade (Direito Administrativo e Fiscal, Lições ao 3.º ano do Curso
de 1994/95 da Faculdade de Direito de Coimbra, p. 88): «a garantia de recurso
contencioso contra quaisquer actos administrativos lesivos de direitos ou
interesses legalmente protegidos, prevista no artigo 268.º, n.º 4, da
Constituição, não obsta a que a lei imponha a necessidade de impugnação
administrativa prévia de certos actos praticados por órgãos subalternos (actos
não definitivos), nem a que exija uma necessidade concreta de protecção do
particular, por vezes inexistente em caso de actos já constituídos mas ainda não
eficazes (será esse o sentido e alcance actual do artigo 25.º da LPTA, ao exigir
que os actos sejam ‘definitivos e executórios’)» (cfr. também Paulo Otero,
Conceito e Fundamento da Hierarquia Administrativa, Coimbra, 1992, pp. 375 a
378).
8 — Conclusão:
Conclui-se, pois, que o artigo 25.º, n.º 1, da Lei de Processo nos Tribunais
Administrativos, tal como foi interpretado pelo acórdão recorrido —
interpretação que atrás se deixou apontada (cfr., supra, 4 e 5) —, não é
inconstitucional.
III — Decisão
Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o
acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade nele
decidida.
Lisboa, 7 de Novembro de 1995. — Messias Bento — José de Sousa e Brito — Bravo
Serra — Fernando Alves Correia — Guilherme da Fonseca (vencido, conforme
declaração de voto junta) — Luís Nunes de Almeida.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido, pois concederia provimento ao recurso, revogando-se o acórdão
recorrido, para ser reformado de acordo com o juízo de inconstitucionalidade do
artigo 25.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho (Lei de Processo
nos Tribunais Administrativos), na interpretação que lhe teria sido dada pelo
acórdão, isto é, interpretado no sentido de considerar só contenciosamente
recorríveis os actos de órgãos subalternos «nos casos em que a lei determinar
que o recurso hierárquico não suspende a eficácia do acto ou quando o autor do
mesmo considerar que a sua não execução imediata causa grave prejuízo ao
interesse público», porquanto tal interpretação seria violadora do artigo 268.º,
n.º 4, da Constituição.
Em síntese, e aceitando que se trata de um controlo normativo e não, como
aparenta ser, um controlo de acto administrativo, caso em que não haveria lugar
ao conhecimento do recurso de constitucionalidade, alinharia, para alcançar
aquele juízo de inconstitucionalidade material, as seguintes considerações:
1 — A controvérsia posta pelo recorrente no presente recurso de
constitucionalidade equaciona-se facilmente, pois passa apenas pelo confronto
entre a norma de lei ordinária do citado artigo 25.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
267/85, de 16 de Julho, tal como foi interpretada pelo acórdão recorrido, e a
norma constitucional do n.º 4 do artigo 268.º, no texto revisto de 1989, o que,
a verificar-se, redundará num vício de inconstitucionalidade material
superveniente.
Dispõe aquele n.º 1 do artigo 25.º:
Só é admissível recurso dos actos definitivos e executórios.
E, por sua vez, reza o n.º 4 do artigo 268.º:
É garantido aos interessados recurso contencioso com fundamento em ilegalidade,
contra quaisquer actos administrativos, independentemente da sua forma, que
lesem os seus direitos ou interesses legalmente protegidos.
2 — Na tese do acórdão recorrido, para afirmar, em jeito de síntese conclusiva,
que não é, «por consequência, materialmente inconstitucional, o n.º 1 do artigo
25.º da LPTA», interpretou-se este normativo, aplicando-o in casu, no sentido de
considerar só contenciosamente recorríveis os actos de órgãos subalternos «nos
casos em que a lei determinar que o recurso hierárquico não suspende a eficácia
do acto ou quando o autor do mesmo considere que a sua não execução imediata
causa grave prejuízo ao interesse público» (mas, «não se verificando este
condicionalismo, a eficácia do acto fica suspensa até à exaustão dos meios
graciosos por força do recurso hierárquico»).
Segundo sustenta o recorrente, «o artigo 25.º, n.º 1, da LPTA enquanto restringe
o recurso contencioso aos actos administrativos definitivos e executórios
permite menos que a norma constante do artigo 268.º, n.º 4, da Constituição e
por isso com esta, frontalmente, colide» («A exigência do recurso hierárquico
necessário interposto dos actos do subalterno para o órgão no topo da hierarquia
para abrir a via contenciosa, não pode mais decorrer da norma prevista no artigo
25.º, n.º 1, da LPTA mas, eventualmente, de normas específicas que relativamente
a certo ou certos procedimentos administrativos prevejam a necessidade do
recurso hierárquico necessário» — acrescenta o recorrente).
Vejamos onde está a razão.
3 — Este Tribunal Constitucional teve já oportunidade, a respeito da mesma norma
do n.º 1 do artigo 25.º, de decidir que ela «não viola o artigo 268.º, n.º 4, da
Constituição, nem qualquer outro preceito ou princípio constitucional» (Acórdão
n.º 9/95, de 11 de Janeiro de 1995, publicado no Diário da República, II Série,
n.º 69, de 22 de Março de 1995).
Fê-lo, porém, noutro contexto, a propósito de outro aresto do mesmo tribunal a
quo, que interpretou aquele n.º 1 «no sentido de considerar irrecorríveis
contenciosamente as resoluções da Caixa Geral de Aposentações, que decidam,
desfavoravelmente às pretensões dos interessados, os pedidos de contagem prévia
de tempo de serviço para efeitos de aposentação», vendo em tais resoluções uma
lesão de direitos ou interesses apenas potencial, por não representarem «a
última palavra da Administração na matéria».
E — o que importa aqui realçar — registou ainda o mesmo acórdão:
O sentido da garantia constitucional de recurso contencioso contra actos
administrativos ilegais é, portanto, este: ali onde haja um acto da
Administração que defina a situação jurídica de terceiros, causando-lhe lesão
efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, existe o direito
de impugná-lo contenciosamente, com fundamento em ilegalidade. Tal direito de
impugnação contenciosa já não existe, se o acto da Administração não produz
efeitos externos ou produz uma lesão de direitos ou interesses apenas potencial.
Com esta leitura e nas circunstâncias do presente caso, o juízo de
(in)constitucionalidade a formular aqui não tem de necessariamente coincidir com
a tese e a decisão do Acórdão n.º 9/95, que, aliás, de forma simplista foram
agora retomadas sem mais pelo acórdão.
Até parece dever ser distinto, a partir da ideia que claramente transparece
daquele Acórdão n.º 9/95 do «acto da Administração que defina a situação
jurídica de terceiros, causando-lhe lesão efectiva dos seus direitos ou
interesses legalmente protegidos», e retomando o discurso da declaração de voto
junta ao mesmo aresto.
4 — Pode-se ser tentado a dizer que, a partir da nova redacção do texto
constitucional, passaram a ser passíveis de recurso contencioso todos os actos
proferidos pela Administração, no uso do seu poder administrativo, precisamente
porque, ao contrário do preceituado no n.º 3 do artigo 268.º da Constituição,
antes da revisão, deixou de se fazer referência àqueles requisitos da
definitividade e da executoriedade.
Contudo, não é assim. Basta atentar em que o novo texto contém uma precisão que
não constava da anterior redacção e que se traduz na exigência de que os actos
administrativos a impugnar pelos interessados lesem os seus direitos ou
interesses legalmente protegidos (o novo texto influenciou a norma do artigo
12.º do Código do Procedimento Administrativo, que reza assim:
Aos particulares é garantido o acesso à justiça administrativa, a fim de obter a
fiscalização contenciosa dos actos da Administração, bem como para tutela dos
seus direitos ou interesses legalmente protegidos, nos termos previstos na
legislação reguladora do contencioso administrativo.
Assim, enquanto a redacção anterior permitia aos interessados o recurso
contencioso contra quaisquer actos administrativos definitivos e executórios, o
actual preceito consente-o em relação a quaisquer actos administrativos que
lesem os seus direitos ou interesses.
Importa, por isso, analisar o que são esses actos administrativos, na óptica dos
actos definidores de uma relação jurídico-administrativa.
Segundo se colhe das actas dos trabalhos da Comissão Eventual da Revisão
Constitucional, as alterações introduzidas não são tão substanciais como à
primeira vista poderia parecer, mas são suficientemente substanciais para
permitirem uma nova leitura do acto administrativo. Pretendeu-se
fundamentalmente evitar aquilo que se referiu como a excessiva formalização das
características da definitividade e executoriedade dos actos administrativos a
que se deixaram conduzir a dogmática portuguesa e sobretudo o Supremo Tribunal
Administrativo, a qual acabava por reduzir as garantias de defesa dos
administrados. «Exasperação formalista» lhe chamou o presidente da Comissão —
cfr. Diário da Assembleia da República, II Série, n.º 55-R.C., p. 740, e n.º
94-R.C., p. 2738.
Pelos termos da discussão travada na Comissão de Revisão, facilmente se alcança
que os constituintes foram sensíveis às críticas aceradas que alguns
administrativistas dirigiam, e bem, à conceptualização dos requisitos da
definitividade e da executoriedade dos actos administrativos, com particular
relevo para Rogério Soares — v. Lições de Direito Administrativo ao Curso
Complementar de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra de 1977/1978, maxime pp. 73 a 76 e 171 a 191, e
Enciclopédia Polis, 1, pp. 102 a 106. V. também Sérvulo Correia, Noções de
Direito Administrativo, vol. i, pp. 290 e segs., 310 e segs. e 318 e segs.
Considera Rogério Soares, fundamentalmente no que toca à definitividade, que não
faz sentido distinguir entre actos definitivos e não definitivos, porquanto a
característica de definitividade, salvo aquilo que se designa por definitividade
vertical (traduzida no facto de o acto ter sido ou não proferido pelo órgão de
topo da hierarquia), ou é característica dos próprios actos administrativos ou
não tem significado. Quer ele aludir aos requisitos da definitividade
horizontal e material que os autores como Marcelo Caetano e Freitas do Amaral
sustentam serem necessários para a recorribilidade dos actos administrativos —
v. Manual de Direito Administrativo, vol. i, 10.ª ed., pp. 443 a 447, e Direito
Administrativo, vol. iii, pp. 184 e segs., respectivamente.
Sem embargo, os trabalhos preparatórios da revisão constitucional mostram que os
constituintes, embora sensíveis às críticas atrás referidas, não acolheram na
totalidade a construção defendida por Rogério Soares, segundo a qual, na esteira
da doutrina alemã, os actos administrativos são os actos jurídicos com efeitos
externos. Segundo tal concepção, ou construção, um acto jurídico praticado pela
Administração, no uso do seu poder administrativo, será um acto administrativo —
e por isso recorrível — se causar lesão aos direitos ou interesses legítimos dos
interessados. Assim, será desnecessária a referência expressa ao elemento da
necessidade de lesão do interessado, uma vez que tal elemento faz parte do
conceito de acto administrativo. Ora, a verdade é que os constituintes
entenderam conveniente especificar a necessidade de os actos administrativos,
para serem recorríveis, lesarem os direitos ou interesses legalmente protegidos
dos cidadãos. Parece, pois, que se mostrou inclinação pela mais recente
construção da doutrina francesa, segundo a qual são recorríveis as «decisions
faisant grief», os actos lesivos dos cidadãos — v. Rogério Soares, Polis, p.
102, e Gomes Canotilho, Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 3790, p.
20.
5 — E a Doutrina, face a tal inovação resultante da nova redacção do n.º 4 do
artigo 268.º da Constituição, tem tomado as posições que se passam a registar:
— para Maria Teresa de Melo Ribeiro, dando «inteiro aplauso à recente revisão do
texto constitucional em 1989 com a consequente supressão da qualificação dos
actos administrativos como definitivos e executórios da garantia do recurso
contencioso», e a propósito da defesa do tema da inconstitucionalidade do
questionado artigo 25.º, duas são as conclusões a retirar da «supressão do
carácter definitivo do acto»:
A primeira conclusão a extrair do n.º 4 do artigo 268.º da Constituição, é a de
que o legislador constitucional, no seguimento da tendência já evidenciada na
doutrina e na própria legislação ordinária (ETAF), optou pela concepção restrita
do acto administrativo (…). Caso contrário, teríamos de considerar sindicáveis
todos os actos da Administração que só produzem efeitos jurídicos nas relações
interorgânicas ou que não contêm qualquer definição de uma situação
jurídico-administrativa e que por essa razão são insusceptíveis de causar lesão
na esfera jurídica de um particular (…).
A segunda conclusão, e que representa uma modificação substancial do tradicional
modelo administrativo português, consiste na possibilidade de impugnação
imediata de todos os actos administrativos lesivos dos direitos ou interesse
legítimos dos particulares, resultando daí a facultatividade do recurso
hierárquico (Direito e Justiça, vol. vii, 1993, pp. 221-223).
— para Mário Torres, perguntando «Que actos são esses?» (os actos
administrativos contenciosamente impugnáveis), a resposta é:
São todos os actos lesivos, que, mesmo que não sejam definitivos e executórios,
são contenciosamente impugnáveis.
Nesta perspectiva, se a fórmula «actos administrativos definitivos e
executórios» usada no artigo 25.º, n.º 1, da Lei de Processo nos Tribunais
Administrativos, tiver o sentido tradicional, como me parece que tem, essa norma
será inconstitucional, na medida em que tem um conceito de administrativo
recorrível mais restrito do que o que foi consagrado na segunda revisão
constitucional» (Scientia Juridica, tomo xxxix, 1990, p. 48).
— para José Osvaldo Gomes, «o legislador constitucional não pode ter querido
mudar alguma coisa — não prevê agora a definitividade e executoriedade — para
que tudo ficasse na mesma»:
Têm assim de se interpretar os normativos constitucionais e legais que garantem
o acesso aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legítimos dos
particulares, de acordo com um critério conforme com uma tutela judicial
efectiva.
É aliás, o que se impõe face à consagração de um Estado de Direito baseado na
garantia da efectivação dos direitos e liberdades fundamentais [v. artigos 2.º e
9.º, alínea b), da CRP], e no princípio da tutela judicial efectiva (v. artigos
205.º e 208.º, n.º 2, da CRP), que impedem qualquer utilização de um critério
interpretativo «contra cives» (Revista de Direito Público, ano vii, n.º 13, p.
70):
— e o mesmo Autor defende ainda que:
(…) a tutela judicial efectiva e a garantia do recurso contencioso
constitucionalmente asseguradas resultariam gravemente limitadas no seu alcance
se a admissibilidade do recurso estivesse dependente de uma actual e efectiva
lesão dos direitos e interesses legalmente protegidos.
Sempre que o acto seja potencialmente lesivo ou susceptível de lesar direitos ou
interesses legítimos, está, em meu entender, legitimada a sua impugnação
contenciosa — p. 71.
— para J. E. Gonçalves Lopes, com importantes contributos doutrinais, colocando
a pergunta: «Esta discrepância, ‘garantia de recurso de acto lesivo’/‘admissão
de recursos só de acto definitivo’, leva à caducidade, por inconstitucionalidade
superveniente do citado artigo 25.º, n.º 1, com a entrada em vigor da lei da II
Revisão Constitucional, a Lei Constitucional n.º 1/89, de 8 de Julho, em 7 de
Agosto de 1989 (artigo 208.º da citada Lei)»?, a resposta é:
O artigo 25.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho, verdadeiramente
apenas vem regulamentar a tramitação do recurso contencioso dos actos
administrativos definitivos e executórios, os actos que assumiam o papel de
produtores de efeitos jurídicos, e nos estritos termos do artigo 268.º, n.º 3,
1.ª parte, da Constituição, na versão resultante da revisão constitucional de
1982.
Ao passo que a Constituição, após 1989, vem permitir o recurso contencioso dos
actos lesivos (artigo 268.º, n.º 4), impondo essa permissão contra todas as
entidades públicas (artigo 18.º, n.º 1).
Assim, não nos parece que aqui haja uma sobreposição de segmentos normativos em
atrito.
Na verdade, o artigo 268.º, n.º 4, da Constituição, é imediatamente eficaz e
actual, «por via directa da Constituição e não através da auctoritas
interpositio do legislador», e vincula os tribunais ao conhecimento de eventual
recurso contencioso interposto de acto lesivo.
Por outro lado, decorre do também já acima explanado, que uma das dimensões do
acto administrativo qualificado de «definitivo» era o traduzir uma lesão directa
e actual de um particular, sentido que agora é constitucionalmente consagrado.
Daí que estejamos, não no campo da recusa de aplicabilidade de uma norma, mas
sim no da sua interpretação em conformidade com a Constituição, ou seja, uma
interpretação que recupera na norma legal em causa a constitucionalidade «que ia
na sua normativa intenção» (Revista de Direito Público, ano viii, n.º 14, p.
63).
6 — A leitura, face a tudo isto, que se é tentado a fazer aponta no sentido de
que há uma rota de colisão da norma do n.º 1 do artigo 25.º, quando confrontada
com o n.º 4 do artigo 268.º
E parece que sim, desde logo porque a locução usada pelo legislador ordinário —
«só é admissível recurso (...)», itálico nosso — briga directamente com o texto
constitucional, pois neste se garante aos interessados recurso contencioso
«contra quaisquer actos administrativos», não apenas contra os «actos
definitivos e executórios», talqualmente constava das anteriores versões da Lei
Fundamental. Foi em consonância com estas versões que o legislador de 1985
redigiu o n.º 1 do artigo 25.º, preceito até perfeitamente dispensável por
existir já uma norma constitucional do mesmo jaez.
Depois, porque, postado o acórdão recorrido perante uma decisão administrativa
de um órgão dirigente da Administração Pública, perspectivou-a à luz do recurso
hierárquico e dos seus efeitos, tal como está disciplinado no Código do
Procedimento Administrativo (artigos 166.º e seguintes). E daí partiu para
afirmar que «a eficácia do acto fica suspensa até à exaustão dos meios graciosos
por força do recurso hierárquico».
Só que se esquece que o princípio da reapreciação hierárquica dos actos
administrativos por iniciativa dos interessados, consagrado no artigo 166.º
daquele Código, é uma faculdade dos interessados («Podem ser objecto de recurso
hierárquico ...» — é o que diz o artigo 166.º), mesmo quando se trate de recurso
hierárquico necessário, aquele que se inscreve na hierarquia administrativa como
modelo de organização administrativa, em que se pode falar de «actos
administrativos praticados por órgãos sujeitos aos poderes hierárquicos de
outros órgãos».
Não é, pois, uma imposição do legislador aos interessados de usar sempre o
recurso hierárquico necessário, quando há hierarquia administrativa, exactamente
porque pode haver casos em que se depare uma lesão efectiva e irreparável de
direitos ou interesses legalmente protegidos, que deve ser logo apreciada
contenciosamente, até com a utilização do meio processual acessório da suspensão
da eficácia (e não se diga que o resultado da suspensão é o mesmo do efeito
suspensivo estabelecido no n.º 1 do artigo 170.º do Código do Procedimento
Administrativo, pois o alcance da decisão jurisdicional é mais forte e
alargado).
O acórdão recorrido, dando conta das dificuldades, não deixa de registar a
posição do Ministério Público, embora não a acompanhe, no sentido de que há
casos em que a impugnação administrativa, — normalmente recurso hierárquico —,
pela sua morosidade, não impede que «a lesão do direito ou interesse legítimo do
particular se concretize de modo irreparável» (e «dá-se o exemplo do acto de
órgão subalterno que suspenda um aluno da frequência das aulas de determinado
curso»).
Que isto é assim, não havendo dificuldade em conciliar a hierarquia
administrativa com o direito ao recurso contencioso de actos administrativos
desde logo lesivos «de direitos ou interesses legalmente protegidos», dizem-no
Autores, como Paulo Otero, quando escreve, a propósito da alteração
constitucional, e perguntando se ela traduzirá «uma desvalorização da hierarquia
administrativa»:
Salvo melhor opinião, somos levados a responder negativamente à questão
formulada, utilizando para isso os três seguintes fundamentos:
1.º As actas da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional demonstram
basear-se a alteração do texto da Constituição em razões garantísticas dos
administrados: encontrar um meio de resposta para todos os actos lesivos de
direitos e interesses legalmente protegidos, evitando a «exasperação formalista»
da jurisprudência em torno de conceitos de definitividade — e executoriedade —,
com a consequência de ter levado a uma limitação do universo dos actos
impugnáveis. Ou seja, o desaparecimento do requisito da definitividade não teve
qualquer relação com uma eventual intenção subjectiva de desvalorizar o
princípio hierárquico.
2.º Por outro lado, o texto anterior da Constituição não proibia a lei de
admitir recurso contencioso de actos não definitivos, nem o texto actual impõe a
admissibilidade de recurso contencioso de todos os actos não definitivos.
O actual texto constitucional desvaloriza os qualificativos formais dos actos,
ante o princípio da efectividade da tutela dos cidadãos, aferida pelo critério
da lesão dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos. Em
consequência, a Constituição apenas exige a existência de recurso contencioso de
actos verticalmente não definitivos que lesem de forma directa e imediata a
esfera jurídica dos administrados. Daqui decorre que em todos os demais casos
de actos não definitivos, a Constituição não consagra qualquer garantia de
recurso contencioso, nem seria lógico que tal sucedesse.
A admissibilidade de recurso contencioso de actos não definitivos revela ter a
Constituição como pressuposto de tal solução a existência de uma estrutura
hierárquica de organização administrativa que permite aos órgãos subalternos
praticar actos não definitivos — corolário de preferência pelo sistema da
concentração de competência —, mas dotados de obrigatoriedade e mesmo do
privilégio de execução prévia, sendo, por isso, susceptíveis de lesar a esfera
jurídica dos administrados. Com base neste facto, a Constituição pretende
garantir aos particulares o recurso contencioso contra actos não definitivos:
mera decorrência de a estrutura hierárquica da Administração continuar a ser um
pressuposto dos constituintes da revisão de 1989 e encontrar uma inalterada
consagração constitucional em diversas outras disposições nos termos
anteriormente expostos.
3.º Por último, estabelecendo a Constituição a possibilidade de recurso
contencioso de certos actos administrativos verticalmente não definitivos, daí
decorre a exigência de um controlo mais apertado de legalidade e mérito dos
actos do subalterno por parte do superior hierárquico. Ou seja, ainda que se
verifique uma possível desvalorização da função do recurso hierárquico
necessário, senão mesmo a sua inconstitucionalidade superveniente, a
circunstância de o superior ser responsável pela totalidade da função dos
serviços dependentes exige deste último um reforço da supervisão ex officio de
actos praticados pelos subalternos.
Deste modo, a efectivação antecipada do controlo jurisdicional da actividade
administrativa dos órgãos subalternos determinará uma intensificação dos poderes
de controlo do superior hierárquico e, consequentemente, da função garantística
da hierarquia administrativa. Função essa que surge tanto mais reforçada,
quanto a fiscalização da conveniência e oportunidade da actividade
administrativa — pressupostos essenciais de uma Administração eficiente —,
constituem um núcleo exclusivo da função administrativa confiado aos órgãos
superiores da Administração e insusceptível de controlo jurisdicional.
Em síntese, a abertura do contencioso administrativo a certos actos
verticalmente não definitivos mostra-se passível de reforçar os poderes
hierárquicos de controlo — preventivo e repressivo — sobre a actividade dos
respectivos órgãos subalternos, dado concentrar-se no superior a
responsabilidade pela totalidade da função (Conceito e Fundamento da Hierarquia
Administrativa, Coimbra Editora, 1992, pp. 375 a 378).
Na mesma linha, entende Luís Filipe Colaço Antunes:
Importa, desde já, considerar que o artigo 268.º, n.º 4, da CRP comporta, à luz
da sua inevitável articulação com o artigo 267.º, n.º 4, outras consequências
fundamentais: alargamento da noção de acto administrativo (este não é agora
apenas o acto final do procedimento ou de uma fase autónoma deste, mas também o
acto preparatório); alargamento da tutela (do recurso) a situações jurídicas
pluriindividuais lesadas pelo acto; o acto final do procedimento, sempre que
este termina num acto principal, coincide agora com o acto definitivo;
recorribilidade (contenciosa) dos actos preparatórios lesivos de direitos e
interesses legalmente protegidos, incluídos os interesses difusos; carácter
facultativo do recurso hierárquico, resultando materialmente inconstitucionais
as normas que estatuam a obrigatoriedade de recurso hierárquico necessário para
efeitos de recurso contencioso» (itálico nosso, in Revista do Ministério
Público, n.º 63, p. 110).
7 — Retomando o caso dos autos, tudo parece mais claro se se atentar na
circunstância de constituir objecto do recurso contencioso interposto pelo
recorrente uma decisão administrativa do Director-Geral das Contribuições e
Impostos, um órgão dirigente da Administração Pública, assumindo a
caracterização de acto administrativo primário derivado de pretensão apresentada
pelo mesmo recorrente, relativamente a uma promoção na carreira de técnico
tributário (por consequência, um acto permissivo provocado pela primeira vez por
requerimento do administrado). Aspecto que não foi considerado na tese
vencedora do acórdão, limitando-se a apelar para a mesma imagem acolhida no
Acórdão n.º 9/95, a imagem da «última palavra da Administração».
É que, à luz do estatuto do pessoal dirigente da função pública, aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 323/89, de 26 de Setembro, em que o cargo de director-geral é
considerado cargo dirigente (artigo 2.º, n.º 2), as competências próprias desse
pessoal, incumbindo-lhe genericamente «assegurar a gestão permanente das
respectivas unidades orgânicas» (n.º 1 do artigo 11.º), passam pela gestão dos
recursos humanos (n.º 2 do mesmo artigo 11.º e mapa II anexo ao diploma) e aí se
incluem actos de promoção do pessoal do quadro. A par dessas competências o
citado n.º 1 do artigo 11.º prevê a obrigação de «submeter a despacho os
assuntos que careçam de resolução superior», mas entre eles não cabem tais actos
de promoção.
Portanto, e independentemente de saber se aquelas competências próprias devem ou
não ser consideradas competências exclusivas do pessoal dirigente, o certo é que
o cargo dirigente, envolvendo «actividades de direcção, gestão, coordenação e
controlo aos serviços ou organismos públicos» (n.º 1 do artigo 2.º e mapa I
anexo ao diploma, com a descrição de funções), é já por si um cargo de topo da
hierarquia da respectiva unidade orgânica, tendo o dever específico de
«assegurar a orientação geral do serviço (…) de harmonia com as determinações
recebidas do membro do Governo» e de «assegurar a conformidade dos actos
praticados pelos seus subordinados com o estatuído na lei e com os legítimos
interesses do cidadão» [alíneas a) e d) do artigo 22.º].
Nada no dito estatuto impõe que, relativamente a uma decisão administrativa do
tipo da que é versada nos autos, se entenda que ela integra um dos «assuntos que
careçam de resolução superior» e, por consequência, sujeita inevitavelmente a
recurso hierárquico a interpor para o membro do Governo competente. A pretensão
do recorrente, formalizada em impresso próprio dos serviços, foi expressamente
indeferida pelo Director-Geral, no âmbito das suas competências próprias, por
respeitar à matéria de gestão de recursos humanos, e, como acto negativo, lesou
logo o direito subjectivo público a que se arrogara o recorrente, no âmbito do
direito à carreira.
Nesta medida, tal acto, praticado originariamente por um titular de um cargo
dirigente máximo, poderia ser, como foi, objecto de recurso contencioso, se
fosse essa, como também foi, a via de impugnação escolhida pelo interessado, o
ora recorrente, certamente por achar que assim se asseguraria uma mais eficaz,
pronta e efectiva tutela do seu direito (registe-se que a referência feita no
acórdão recorrido à delegação de poderes, para se buscar o acto contenciosamente
recorrível, briga até com a previsão daquela figura no artigo 13.º, n.º 1,
reportando-se só à delegação da «competência para emitir instruções referentes a
matérias relativas a atribuições genéricas dos respectivos serviços e
organismos» — itálico nosso).
João Caupers, exactamente a propósito do artigo 170.º do Código do Procedimento
Administrativo, de que se serviu o acórdão recorrido, refere que a «alteração
constitucional de 1989, que suprimiu no artigo 268.º da Constituição a
referência a actos definitivos e executórios» vai ter «concerteza algum efeito
na determinação dos conceitos de recurso necessário e de recurso facultativo,
posto que esta distinção se prende directamente com a definitividade vertical do
acto e esta deixa, pelo menos formalmente, de funcionar como pressuposto do
recurso contencioso» (O Código do Procedimento Administrativo, INA, 1992, pp.
94-95).
De tudo isto decorre que o artigo 25.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16
de Julho, interpretado como foi pelo acórdão recorrido (isto é: interpretado no
sentido de considerar só contenciosamente recorríveis os actos de órgãos
subalternos «nos casos em que a lei determinar que o recurso hierárquico não
suspende a eficácia do acto ou quando o autor do mesmo considerar que a sua não
execução imediata causa grave prejuízo ao interesse público»), viola o artigo
268.º, n.º 4, da Constituição, na redacção actual, estando, assim, ferido de
inconstitucionalidade material superveniente. — Guilherme da Fonseca.
(1) - Acórdão publicado no Diário da República, II Série, de 14 de Março de
1996.