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Proc. nº 213/95
1ª Secção
Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A., com sede na Rua -----------------, nº
---------, ---------, em -----------, veio requerer ao Tribunal Judicial desta
cidade uma providência de injunção, nos termos do Decreto-Lei nº 404/93, de 10
de Dezembro, contra B., com sede no -------------, na -------------, invocando
que, sendo editora e proprietária do jornal 'C.', nele publicara um anúncio
publicitário relativo ao restaurante 'D.', de que é proprietária a requerida, no
número de 12 de Agosto de 1993, não tendo esta última procedido, até ao
presente, ao pagamento do custo desse anúncio, no montante de 14.500$00,
incluindo I.V.A.. Atribuiu à providência o valor de 15.400$00, por ter pedido
juros vencidos e vincendos. Juntou a correspondente factura e outros documentos.
Ordenada a notificação por carta registada da
requerida para deduzir oposição ao pedido, veio essa carta a ser devolvida com a
indicação de que, na morada indicada, onde funciona o respectivo restaurante, se
haviam recusado a receber a mesma, alegando que mudara a gerência.
A requerente veio solicitar, através do
requerimento de fls. 12, que fosse apresentado o processo à distribuição, nos
termos do art. 6º, nº 2, do Decreto-Lei nº 404/93, pedindo também a citação
pessoal da sociedade requerida na pessoa dos seus representantes.
Através de despacho de fls. 16, proferido em 22
de Fevereiro de 1995, o Senhor Juiz do Tribunal Judicial de Vila Franca de Xira
considerou manifesta a inconstitucionalidade material do Decreto-Lei nº 404/93,
de 10 de Dezembro, na parte em que confere poderes ao secretário judicial para
dirigir o processo de injunção, por violação do art. 205º da Constituição,
procedeu à sua desaplicação e ordenou o arquivamento dos autos. Pode ler-se
nessa decisão:
'Este processo [de injunção] visa, de algum modo, substituir o processo
declarativo sumaríssimo, aliviando o juiz de pequenas causas, já que confere ao
secretário judicial competência para promover o andamento do processo de
injunção.
De facto, ao secretário judicial compete não admitir o pedido se
considerar que o mesmo não se adequa às finalidades constantes do art. 1º do
diploma (art. 7º), ou dar-lhe seguimento, conferindo-lhe, em última análise,
força executiva (arts. 4º e 5º).
Ao secretário judicial compete, pois, apreciar a pretensão
formulada, proferindo sobre a mesma um juízo que, dado o seu carácter
jurisdicional, constitui, em termos materiais, um acto de administração da
justiça.
Por outro lado, a aposição da fórmula executória também constitui
um acto de carácter jurisdicional, na medida em que se está a assegurar a defesa
de interesses legalmente protegidos.
E não basta, para afastar o carácter jurisdicional do acto,
dizer-se no preâmbulo do diploma que se trata de uma fase
«desjurisdicionalizada».
A administração de justiça cabe, em exclusivo, aos tribunais,
através dos juízes, nos termos do art. 205º da Constituição da República
Portuguesa.'
Notificados deste despacho, dele vieram interpor
recurso de constitucionalidade, nos termos da alínea a) do nº 1 do art. 70º da
Lei do Tribunal Constitucional, o Ministério Público (a fls. 17) e a sociedade
requerente (fls. 18). Ambos os recursos foram admitidos por despacho de fls. 20.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Ambos os recorrentes apresentaram alegações.
O Ministério Público formulou as seguintes
conclusões:
'1º - A possibilidade, conferida ao secretário judicial pelo artigo 7º do
Decreto-Lei nº 404/93, de 10 de Dezembro, de recusar o pedido de injunção quando
se não adeque às finalidades tipificadas no artigo 1º constitui simples
decorrência de existir um evidente e ostensivo erro na forma de processo
escolhida pelo requerente, e não prolação de qualquer decisão de mérito, ainda
que liminar, sobre a pretensão formulada.
2º - A aposição da fórmula executória, nos casos em que se consumou a
notificação por via postal do requerido e em que este não deduziu oposição, nos
termos do artigo 5º, em conjugação com os artigos 4º e 6º, nº 2, do mesmo
diploma legal, não representa a prolação de qualquer decisão de natureza
jurisdicional que traduza composição do eventual litígio que opunha o credor ao
devedor, mas tão-somente a certificação por aquele funcionário judicial de que,
tendo-se consumado a notificação do pedido de injunção ao requerido e não tendo
sido deduzida por este oposição, se mostra constituído, nos termos da lei,
título executivo extrajudicial.
3º - Não traduzindo a referida aposição da fórmula executória a prática de
qualquer acto jurisdicional de composição do litígio, não envolve qualquer
preclusão relativamente aos meios de defesa que, em processo executivo, ao
executado é lícito opor ao exequente o qual seguirá necessariamente a forma
sumária (artigo 465º, nº 2, do Código de Processo Civil), iniciando-se com a
citação do executado e comportando a eventual dedução de embargos nos amplos
termos consentidos pelo artigo 815º do Código de Processo Civil.
4º - O regime constante do Decreto-Lei nº 404/93 não implica, deste modo,
violação do preceituado nos artigos 205º e 206º da Constituição da República
Portuguesa, já que não resulta conferida ao secretário judicial qualquer
competência para proceder, à revelia do juiz, a uma composição do conflito de
interesses privados entre requerente e requerido no procedimento de injunção,
esgotando-se a actividade que lhe é consentida na mera certificação de que se
mostra criado, nos termos de lei, título executivo extrajudicial.
5º - O mesmo regime em nada ofende o princípio do contraditório, ínsito nos
artigos 2º e 20º da Lei Fundamental, já que não preclude ao requerido qualquer
direito de defesa: na verdade, se este não foi notificado, ou deduziu oposição,
seguem-se os termos do processo declarativo sumaríssimo, que naturalmente são
idóneos para assegurar tal direito; no caso contrário, a aposição da fórmula
executória em nada preclude a dedução de embargos de executado, nos amplos
termos permitidos pelo artigo 815º do Código de Processo Civil, já que
obviamente a execução a instaurar se não baseia em sentença'. (a fls. 39 a 41)
Por seu turno, a sociedade recorrente terminou,
assim, as suas alegações:
'1ª O art. 7º do DL nº 404/93, ao estipular que a aposição da fórmula
«execute-se» pode ser recusada nos casos nele previstos, não implica a
formulação pelo secretário judicial de qualquer juízo jurisdicional, não
ofendendo, por isso, o artigo 205º da CRP.
2º O artigo 7º em causa tipifica as hipóteses de não provimento do procedimento
em causa, resumindo as mesmas à desconformidade do requerimento com o
preceituado no artigo 1º e às causas previstas no CPC, e excluindo qualquer
possibilidade de rejeição da pretensão com base na sua eventual improcedência
sob o ponto de vista do direito material aplicável.
3º O mesmo artigo 7º não confere aos secretários judiciais qualquer competência
decisória ou de valoração jurídica material relativamente ao conflito de
interesses controvertidos no requerimento de injunção.
4º A apreciação da desconformidade do requerimento de injunção com o preceituado
no artigo 1º traduz-se na mera averiguação da regularidade processual do meio
escolhido pelo requerente, e não num acto de natureza jurisdicional.
5º A fórmula «execute-se» regulada pelo D.L. nº 404/93 não corresponde a um acto
de natureza jurisdicional, não ofendendo o art. 205º da CRP, porquanto constitui
apenas a certificação administrativa de que o requerido, regularmente notificado
para se pronunciar em determinado prazo, não se pronunciou, conferindo a lei ao
requerimento assim certificado força executiva.
6º A ser procedente o entendimento expresso no despacho recorrido, também os
designados títulos administrativos ou de formação administrativa seriam
inconstitucionais.
7º Se a aposição da fórmula «execute-se» correspondesse a um acto jurisdicional,
produziria o efeito de caso julgado, o que não se verifica.' (a fls. 46 vº)
3. Foram dispensados os vistos, dada a
jurisprudência já firmada na matéria.
Cumpre apreciar o objecto do recurso.
II
4. Importará começar por delimitar o objecto do
recurso.
Ambos os recorrentes, ao interporem os
respectivos recursos, consideraram que o despacho impugnado havia desaplicado
todos os preceitos do Decreto-Lei nº 404/93, na medida em que assim se havia
exprimido o Senhor Juiz na decisão recorrida. Já, nas alegações do Ministério
Público, mostra-se que é criticável a formulação do despacho recorrido, visto
haver no diploma normas que manifestamente não podiam ter sido desaplicadas pela
decisão, muito embora se entenda que, dada a natureza do recurso, se imponha a
apreciação global do diploma.
Embora com referência a um instituto novo, que se
acha regulamentado no Decreto-Lei nº 404/93, é fácil de ver que nem todas as
normas do diploma foram desaplicadas pela decisão recorrida.
De facto, é seguro que só foram aplicadas as
seguintes normas:
Art. 4º - Notificação da injunção
'Recebido o pedido, o secretário judicial do tribunal notifica o requerido, por
carta registada com a aviso de recepção, remetendo cópia da pretensão e dos
documentos juntos, devendo indicar, de forma intelegível, o objecto do pedido e
demais elementos úteis à compreensão do mesmo, referindo, ainda, expressamente o
último dia do prazo'.
Art. 6º Oposição do requerido
1. [...]
2. Sendo deduzida oposição ou frustrando-se a notificação por via judicial, o
secretário judicial do tribunal apresentará os autos à distribuição, sendo
conclusos ao juiz, o qual, se o estado do processo o permitir, designará, desde
logo o dia para o julgamento, observando-se a tramitação estabelecida para o
processo sumaríssimo' (sublinhou-se a parte da previsão aplicável ao caso sub
judicio).
5. Encontra-se firmada jurisprudência, de
natureza unânime, das duas secções do Tribunal Constitucional no sentido de que
as normas desaplicadas não sofrem de inconstitucionalidade. Destacar-se-ão os
seguintes Acórdãos ainda inéditos: 375/95, 394/95, 395/95, 412/95, 413/95,
424/95, 442/95, 446/95 485/94, 507/95, 508/95, 509/95, 511/95, 512/95 e 566/95.
Recordar-se-á a argumentação principal constante
desses acórdãos:
6. O Decreto-Lei nº 404/93, de 10 de Dezembro,
insere-se num movimento amplo da revisão de legislação processual civil
portuguesa, sendo qualificado pelo legislador como diploma de 'natureza
intercalar'. Segundo o respectivo preâmbulo, a criação da providência de
injunção 'constitui um significativo esforço de adequação dos trâmites
processuais às exigências da realidade social presente, sem quebra ou diminuição
da certeza e da segurança do direito, obedecendo, designadamente, aos princípios
de celeridade, simplificação, desburocratização e modernização, que hão-de
informar a nova legislação processual civil'.
Segundo a definição constante do art. 1º do
diploma, a injunção é 'a providência destinada a conferir força executiva ao
requerimento destinado a obter o cumprimento efectivo de obrigações pecuniárias
decorrentes de contrato cujo valor não exceda metade do valor da alçada do
tribunal de 1ª instância'.
De harmonia com os valores das alçadas fixadas
pelo art. 20º, nº 1 da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (Lei nº 38/87, de 23
de Dezembro), a alçada em matéria cível dos tribunais de primeira instância é de
500.000$00, pelo que o valor máximo do pedido do requerente da providência de
injunção é actualmente de 250.000$00.
O pedido de injunção deve ser apresentado na
secretaria do tribunal que seria competente para a acção declarativa com o mesmo
objecto (art. 2º, nº 1). No seu requerimento, deve o requerente 'expor os factos
que fundamentam a sua pretensão, juntar os documentos comprovativos, se os
houver, concluindo pelo pedido da prestação a efectuar, sendo aplicável, com as
necessárias adaptações, o disposto no artigo 793º do Código de Processo Civil'
(art. 3º).
Recebido o pedido na secretaria do tribunal
competente, o respectivo secretário judicial ordena a notificação do requerente,
por carta registada com aviso de recepção, 'remetendo cópia da pretensão e dos
documentos juntos, devendo indicar, de forma intelegível, o objecto do pedido e
demais elementos úteis à compreensão do mesmo, referindo, ainda, expressamente,
o último dia do prazo para a oposição' (art. 4º).
Se o requerido não deduzir oposição ou desistir
de tal oposição, o secretário judicial limita-se a apor uma fórmula executória
no requerimento de injunção ('Execute-se'), sendo o respectivo processo
distribuído como processo executivo comum para pagamento de quantia certa, na
forma sumária (art. 5º do diploma; arts. 45º, nºs 1 e 2, 46º, alínea d), e
465º, nº 2, do Código de Processo Civil, abreviadamente CPC).
Se o requerido se opuser à pretensão do
requerente - tendo para tal um prazo de sete dias a contar da notificação - ou
se se frustrar a notificação por via judicial, 'o secretário judicial
apresentará os autos à distribuição, sendo conclusos ao juiz, o qual, se o
estado do processo o permitir, designará, desde logo, o dia para julgamento,
observando-se a tramitação estabelecida para o processo sumaríssimo' (art. 6º,
nº 2).
O Decreto-Lei nº 404/93 dispõe no seu art. 7º que
a aposição da fórmula executória 'só poderá ser recusada quando o pedido não se
adeque às finalidades constantes do artigo 1º e nas situações em que à
secretaria, nos termos da lei do processo, é lícito não receber a petição,
cabendo da recusa reclamação para o juiz presidente do tribunal ou do respectivo
juízo cível' (art. 7º).
7. Descrito, assim, o núcleo essencial do
Decreto-Lei nº 404/93, importa referir que o legislador teve o cuidado de
afirmar no preâmbulo respectivo que não se pretendia conferir ao secretário
judicial poderes de natureza jurisdicional:
'A aposição da fórmula executória, não constituindo, de modo algum, um acto
jurisdicional, permite indubitavelmente ao devedor defender-se em futura acção
executiva, com a mesma amplitude com que o pode fazer no processo de declaração,
nos termos do disposto no artigo 815º do Código de Processo Civil.
Trata-se, pois, de uma fase desjurisdicionalizada e, portanto,
inevitavelmente mais célere, sem que, todavia, se mostrem diminuídas as
garantias das partes intervenientes no processo, ínsitas, aliás, no direito
constitucionalmente consagrado do acesso à justiça. O acautelamento de tais
garantias é, efectivamente, assegurado quer pela via da apresentação obrigatória
dos autos ao juiz quando se verifique oposição do devedor, quer pelo
reconhecimento do direito de reclamação no caso de recusa, por parte do
secretário judicial, da aposição da fórmula executória na injunção.'
8. A correcta interpretação do diploma mostra que
a providência criada se destina a conferir exequibilidade a pretensões que não
constam de documento que, segundo o direito vigente, disponha de força executiva
(cfr. art. 45º CPC).
Importará recordar que o direito processual civil
português admite tradicionalmente um amplo quadro de títulos executivos não
judiciais ou extrajudiciais - isto é, de títulos que permitem a imediata
instauração da acção executiva, sem ser necessário obter previamente uma
sentença condenatória contra o devedor, em processo de natureza declarativa -
tendo nos últimos anos sido significativamente aligeirados os requisitos de
natureza formal de alguns desses títulos. Em termos de direito comparado, o
direito português é extremamente liberal na concessão de exequibilidade a
títulos não judiciais.
Desde o Código de Processo Civil de 1939 que
podem servir de título executivo, além das sentenças de condenação, as
escrituras notariais, 'as letras, livranças, cheques, extractos de factura,
vales, facturas conferidas e quaisquer outros escritos particulares, assinados
pelo devedor, dos quais conste a obrigação de pagamento de quantias
determinadas', bem como os títulos a que, por disposição especial, for atribuída
força executiva' (art. 46º do CPC de 1939 e do CPC de 1961, ainda vigente).
Assim, os Decretos-Leis nºs 201/76, de 19 de
Março e 533/77, de 30 de Dezembro, diminuíram as exigências de reconhecimento
notarial das assinaturas dos subscritores de títulos executivos, tendo o
primeiro eliminado o reconhecimento presencial de assinaturas nos títulos
cambiários e o último diploma abolido o mero reconhecimento notarial por
semelhança relativamente aos subscritores dos títulos cartulares, quando o
montante constante da dívida não excedesse o valor da alçada da Relação, 'por a
experiência judiciária ter demonstrado que, em grande maioria, as acções
declarativas cuja causa de pedir se reconduz a uma obrigação cartular não são
contestadas, conduzindo, pelo efeito cominatório da revelia do réu, à chamada
condenação «de preceito»' (do respectivo preâmbulo). A 'credibilidade' do
instrumento de prova da obrigação de prestar que é o título cambiário serviu ao
legislador para abolir tais formalidades notariais, afirmando-se no mesmo
preâmbulo que o executado, subscritor desse título, citado para, embora em curto
prazo, cumprir a obrigação titulada ou nomear bens à penhora, sempre se poderia
defender por embargos, no mesmo prazo, 'com amplitude de meios semelhantes aos
da contestação no processo declarativo e, de qualquer modo, antes da apreensão
de bens'. Ainda segundo o legislador, o 'relativo gravame de uma inversão do
ónus da prova - na execução é ao devedor que incumbe provar que o direito de
exequente não existe, ao contrário do que sucede, em princípio, relativamente ao
réu, na acção declarativa - também não tem significado relevante, na medida em
que os títulos executivos cuja amplitude agora se acentua consubstanciam uma
obrigação pecuniária - e, como se sabe, o pagamento, em regra, não se presume'.
Por seu turno, o Decreto-Lei nº 242/85, de 9 de
Julho, - diploma que aprovou a chamada 'reforma intercalar' de 1985 - completou
o ciclo iniciado em 1976, abolindo a exigência de reconhecimento notarial de
assinatura do devedor em títulos cambiários, independentemente do valor destes,
dando nova redacção ao art. 51º do Código de Processo Civil (cfr. J. Lebre de
Freitas, A Acção Executiva, Coimbra, 1993, págs. 45 e segs.; Miguel Teixeira de
Sousa, A Exequibilidade da Pretensão, Lisboa, 1991, págs. 15 e segs.).
Nos trabalhos preparatórios da reforma do Código
de Processo Civil, tem sido proposta a atribuição de exequibilidade a todos os
documentos assinados pelos devedores que importem constituição ou reconhecimento
de obrigações pecuniárias (art. 619º, c), do Anteprojecto Antunes Varela; art.
46º do Projecto de Revisão do CPC de 1995).
Com o Decreto-Lei nº 404/93 visou-se, como se
viu, conferir exequibilidade a pretensões de natureza pecuniária de valor
reduzido, mesmo que não constassem de documento particular, desde que proviessem
de contrato celebrado entre requerente e requerido, através de um procedimento
levado a cabo pelo secretário judicial, baseado numa confissão presumida ou
ficta do alegado devedor.
9. A inovação do diploma de 1993 insere-se
tradicionalmente nas medidas legislativas destinadas a facilitar a cobrança
judicial de pequenas dívidas, preocupação que esteve na origem da criação do
processo sumaríssimo entre nós (através do Decreto de 29 de Maio de 1907
criou-se um processo especial para as acções de pequeno valor; o Decreto nº
21.287, de 26 de Maio de 1932, criou o desde então designado processo
sumaríssimo - cfr. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol
II, 3ª ed., Coimbra, reimpressão de 1980, pág. 285).
Em anos recentes, diferentes reformas processuais
em países europeus têm visado facilitar os modos de cobrança judicial de
pequenas dívidas, acompanhando as exigências das actividades económicas baseadas
na expansão muito acentuada das actividades de crédito ao consumo, a partir dos
anos sessenta do nosso século.
Assim, em 1988, em França foram aditados ao
Código de Processo Civil os arts. 847-1 e 847-2, artigos que regulam um processo
simplificado com intervenção do secretário judicial ('déclaration au greffe').
Quando o montante do pedido não exceda o limite de valor para a competência em
última instância do 'tribunal d'instance', o requerente pode formular o mesmo
através de uma declaração feita, entregue ou endereçada àquele funcionário
judicial, que a regista. Tal declaração 'deve indicar o nome, apelidos,
profissão e endereço das partes, ou, no caso das pessoas colectivas, a sua
denominação e sede. Contém o objecto do pedido e uma exposição sumária dos seus
fundamentos. A prescrição e os prazos para intentar a acção são interrompidos
pela declaração'. Tal como sucede no Decreto-Lei nº 404/93, a comunicação ao
requerido da declaração, depois de registada no tribunal, é feita por carta
registada com aviso de recepção. Mas diferentemente do diploma português, as
partes são convocadas para uma audiência (além da carta registada, é enviada
concomitantemente ao requerido uma carta não registada, podendo o requerente ser
notificado por cota à margem da declaração). A convocatória do requerido tem o
valor de citação, mencionando-se que, 'na falta da sua comparência, fica sujeito
a que contra ele seja proferida uma sentença, com base apenas nos elementos
fornecidos pelo seu adversário. Uma cópia da declaração é anexada à
convocatória' (art. 847º-2).
Também em Itália nas reformas do processo civil
de 1990 - 1991, - que começaram a vigorar em 1994 - foram atribuídas
competências ao juiz de paz, juiz que não integra a magistratura togada, para
conhecer das causas relativas a bens móveis de valor não superior a cinco
milhões de liras, nomeadamente quanto aos processos de injunção previstos nos
arts. 633º e seguintes do Código de Processo Civil (cfr. a nova redacção do
art. 7º deste diploma, introduzida pelo art. 17º da Lei nº 374, de 21 de
Novembro de 1991).
Nestas reformas, como na reforma portuguesa,
pretende-se facilitar as cobranças e diminuir, na medida do possível, a
intervenção do juiz togado para conhecer de causas em que, frequentemente, o
devedor não tem fundamentos válidos de defesa, visando apenas pagar o mais tarde
possível.
10. Bastará dizer que, em estudo recente sobre
Os Tribunais na Sociedade Portuguesa, elaborado por Boaventura Sousa Santos,
Maria Manuel Leitão Marques, Pedro Lopes Ferreira e João Pedroso, do Centro de
Estudos Sociais da Faculdade de Economia de Coimbra, - estudo em que se fez um
levantamento rigoroso da litigação nos tribunais judiciais portugueses ao longo
dos últimos anos - se apurou que, em 1992, 62% das acções declarativas findas
foram acções de dívidas, sendo o elemento 'peso relativo' das acções de dívida
'uma constante na litigação cível e uma sua característica estrutural. Este
peso tem-se vindo a acentuar ao longo da segunda metade do século XX por efeito
de factores exógenos (transformações económicas) e de factores endógenos
(alterações legislativas ou processuais): em 1942 as acções de dívida
representaram 38,5% das acções declarativas cíveis e em 1992 representavam, como
referimos, 62%' (Os Tribunais na Sociedade Portuguesa, apresentação pública em
20 de Fevereiro de 1995 dos principais resultados do projecto de investigação
sobre a administração da justiça em Portugal, pág. 14). Ainda segundo os
resultados referidos neste estudo, em 1992 61,6% do total das acções
declarativas findas tinham valor igual ou inferior a 250.000$00. Por causa desta
realidade, refere-se nesse estudo que o 'baixo valor das acções, combinado com o
facto de estas corresponderem basicamente a um só tipo de litígio (cobrança de
dívidas), é um poderoso factor de rotinização e de trivialização da justiça
portuguesa, colocando-a ao serviço da conflitualidade económica de pequena
dimensão' (Os Tribunais cit., pág. 17). Importará, ainda, notar que cerca de
três quartos das acções declarativas findas em 1992 terminaram antes do
julgamento, o que aponta para uma predominância da litigação 'de baixa
intensidade', a que acresce a circunstância de os titulares de interesses cuja
tutela judicial é prosseguida nessas acções declarativas serem', por regra e não
por excepção, entidades colectivas, basicamente as sociedades comerciais'
(bastará pensar nas instituições de crédito e seguradoras, a par das
instituições hospitalares públicas).
É neste quadro da realidade social portuguesa que
é elaborado o Decreto-Lei nº 404/93.
11. Na fase de elaboração do Decreto-Lei nº
404/93, foi ouvida a Ordem dos Advogados sobre a inovação projectada. No seu
parecer, esta associação pública manifestou receios de que o diploma pudesse vir
a sofrer de inconstitucionalidade material:
'O regime jurídico dado à injunção no projecto poderá levantar dúvidas graves
sobre a sua constitucionalidade material, certo como é que não faltará quem se
sinta tentado a qualificar como envolvendo actividade judicativa, algumas das
decisões que a providência virá a pedir aos secretários judiciais,
designadamente a verificação da regularidade da notificação, a verificação da
adequação do pedido às finalidades constantes do art. 1º, enfim, a aposição
mesma da fórmula executória (...)' (Da Providência Processual Designada
Injunção, in Boletim da Ordem dos Advogados, nº 1/94, pág. 14).
Em nota, o referido parecer chamava a atenção
para o Acórdão nº 182/90 do Tribunal Constitucional, onde se julgara
inconstitucional uma norma do Mapa I anexo ao Decreto-Lei nº 376/87, de 11 de
Dezembro, que atribuía competências jurisdicionais aos secretários judiciais, em
matéria de custas, nomeadamente reclamações sobre contas (acórdão publicado in
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16º vol., págs. 365 e seguintes).
A serem ultrapassadas as dúvidas de
constitucionalidade, a Ordem dos Advogados manifestava concordância com os
objectivos de desburocratização visados pelo projecto de diploma em apreciação,
formulando objecções na especialidade a algumas das suas normas. Em todo o caso,
condicionava uma apreciação favorável, sob o ponto de vista da
constitucionalidade do diploma, à exigência de que o legislador tornasse
inequívoco 'que a aposição da fórmula executória pelo secretário judicial não
faz precludir ao devedor o direito de se defender, na futura execução e por
embargos , com a mesma amplitude com que o pode fazer no processo de declaração,
nos termos do disposto no art. 815º do Cód. Proc. Civil' (publicação cit., pág.
16).
12. Depois da entrada em vigor do Decreto-Lei nº
404/93, foram de novo manifestadas dúvidas de constitucionalidade, nos planos
orgânico e material, quanto a esse diploma. A acusação mais frequente de
inconstitucionalidade prende-se com a intervenção do secretário judicial na
aposição da fórmula executória, intervenção que usurparia a função judicial. Por
outro lado, a concessão individualizada de exequibilidade a uma pretensão do
credor, permitindo logo a instauração da acção executiva e a eventual penhora de
bens do devedor, violaria o direito de defesa dos cidadãos e, nessa medida, o
art. 20º da Lei Fundamental. No plano orgânico, a inconstitucionalidade
decorreria do facto de o Governo legislar sobre direitos, liberdades e
garantias, sem a necessária credencial parlamentar ou da violação da alínea q)
do nº 1 do art. 168º da Constituição (cfr. J Lebre de Freitas e J. A. Pires de
Lima, Injunção e Inconstitucionalidade, in semanário Expresso, edição de 15 de
Janeiro de 1994; J. A. Lopes dos Reis, Nota sobre a Injunção, in Boletim da
Ordem dos Advogados, nº 1/94, pág. 24).
13. É, pois, altura de analisar as questões de
constitucionalidade suscitadas no despacho recorrido.
Antes, porém, desde logo se afastarão as questões
de inconstitucionalidade orgânica suscitadas nos escritos acima referidos e das
quais o Tribunal pode conhecer oficiosamente.
A criação de um procedimento destinado a conferir
exequibilidade a certas pretensões creditícias cíveis é matéria de natureza
processual civil, sendo o Governo competente para legislar em tal domínio. Não
pode falar-se em matéria de organização e competência dos tribunais, visto que
se trata de organizar uma fase pré-processual de notificação que pode levar à
criação de um título executivo especial, baseado na confissão ficta do
notificado. No caso concreto, porém, nem houve criação desse título executivo.
De facto, só no processo do Tribunal
Constitucional e no processo criminal existe uma reserva de competência
legislativa da Assembleia da República, absoluta no primeiro caso [art. 167º,
alínea c), da Constituição], e relativa no segundo [art. 168º, nº 1, alínea c)].
No que toca ao processo respeitante ao ilícito de mera ordenação social, apenas
o respectivo regime geral é de competência reservada relativa do mesmo órgão
parlamentar [art. 168º, nº 1, alínea d), da Lei Fundamental].
É, por isso, indiscutível a competência
legislativa do Governo para regular tal matéria, nos termos do art. 201º, nº 1,
alínea a), da Constituição.
Por outro lado, não pode dizer-se que se trate de
matéria de direitos, liberdades e garantias a concessão de exequibilidade a
certas pretensões creditícias baseadas na confissão ficta do devedor, sob pena
de se entender que qualquer solução processual de atribuição de efeitos
cominatórios à revelia de um demandado só pode ser criada pela Assembleia da
República ou pelo Governo, mediante autorização legislativa daquela Assembleia.
14. Violarão as normas dos arts. 4º e 6º, nº 2
do Decreto-Lei nº 404/93 o disposto no art. 205º da Constituição?
Responde-se negativamente a tal questão.
Se se pusesse em causa, no processo presente, a
formação de um título executivo que permitisse à sociedade requerente instaurar
execução para pagamento de quantia certa, poderia então pôr-se o problema de
natureza da intervenção do secretário judicial no procedimento, procurando-se
determinar, nomeadamente, qual a natureza jurídica do acto de aposição da
fórmula executória (art. 5º do diploma), a fim de averiguar se este último podia
ser qualificado como acto jurisdicional (condenação de preceito).
Simplesmente, como o secretário judicial se
limitou a ordenar a notificação da injunção (art. 4º do Decreto-Lei nº 404/93)
e, face à devolução da carta registada ao remetente, verificou a frustração da
diligência, determinou que o processo fosse apresentado à distribuição, não
ocorreu qualquer alteração relevante da tramitação prevista no CPC para o
processo declarativo comum na forma sumaríssima.
Ora, a apresentação do processo à distribuição
não pode qualificar-se como acto de natureza materialmente jurisdicional, que
caiba na competência do juiz (reserva do juiz - art. 205º da Constituição).
Tendo-se frustrado a notificação da injunção ao
requerido, a apresentação à distribuição decorre directamente do disposto na lei
(art. 211º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil). A admissão de um
papel à distribuição é da competência do secretário judicial, só devendo tal
admissão ser decidida pelo juiz se o distribuidor tiver dúvidas, submetendo
essas dúvidas, com informação escrita, ao mesmo magistrado (art. 213º, nº 2, do
mesmo diploma).
Diferentemente do que se passava nos casos
apreciados pelo Tribunal Constitucional quanto a uma norma que atribuía
competência ao secretário judicial para 'proferir todas as decisões sobre
matéria de custas, nomeadamente sobre reclamações de contas' - situação
apreciada entre outros, pelo Acórdão nº 182/90 atrás citado - o nº 2 do art. 6º
do Decreto-Lei nº 404/93, no segmento aplicado, não implica qualquer composição
de conflitos de interesses entre requerente e requerida, a qual será feita pelo
juiz, depois de ordenada a citação da requerida (art. 794º, nº 1, do Código de
Processo Civil, aplicável ex vi daquele nº 2 do art. 6º do Decreto-Lei nº
404/93), seguindo-se tramitação estabelecida para o processo sumaríssimo. Não
ocorreu, no caso sub judicio, a resolução de qualquer questão jurídica de acordo
com normas jurídicas, que implicasse a intervenção de um órgão independente e
imparcial.
15. Não há, por isso, violação dos nºs 1 e 2 do
art. 205º da Lei Fundamental, nem, por maioria de razão, do art. 20º da
Constituição.
III
16. Nestes termos e pelos fundamentos referidos,
decide o Tribunal Constitucional conceder provimento aos recursos, revogando-se
o despacho recorrido, o qual deverá ser reformado de harmonia com a decisão em
matéria de constitucionalidade.
Lisboa, 21 de Novembro de 1995
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
José Manuel Cardoso da Costa