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Proc.º nº 351/95
Sec. 1ª
Rel. Cons. Vítor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1. – A. e B. foram acusados pelo Ministério Público
junto do Tribunal Criminal da Comarca de Lisboa (9ª VARA), da prática, em
co-autoria, de dois crimes de roubo, um na forma tentada e outro na forma
consumada, previstos e punidos pelos artigos 306º, nºs 1 e 2, alínea a) e 5, com
referência ao artigo 297º, nº 2, alíneas c) e h) e e) (só relativamente ao
arguido A.), 22º, 23º e 74º e artigo 306º, nºs 1 e 2, alínea a) e 5, com
referência ao artigo 297º, nº2, alíneas c) e h) e e) (só quanto ao arguido A.),
do Código Penal respectivamente.
Designada data para o julgamento, verificou-se um
adiamento da audiência, no dia 21 de Junho de 1994, tendo o advogado do arguido
A. requerido, em 8 de Julho de 1994, a confiança do processo, pelo prazo de dois
dias, estando a nova audiência marcada para 11 de Outubro de 1994.
Este requerimento veio a ser indeferido por despacho de
13 de Julho de 1994, do seguinte teor:
' A manifesta exiguidade do processo, e, designadamente, da peça acusatória, bem
como a circunstância de os autos aguardarem julgamento, após efectivação de um
adiamento da respectiva audiência - e que se encontra designada para 11.10. do
corrente ano - não justifica a saída dos autos da secção - sendo certo que,
nestas instalações, sempre os mesmos poderão ser consultados.'
O arguido, notificado deste despacho, veio dele interpor
recurso para a Relação, apresentando logo a respectiva motivação, na qual logo
sustentou que interpretação feita no despacho recorrido viola o disposto nos
artigos 16º, 17º, 18º e 32º, nºs 1,2,3 e 5 da Constituição.
Por decisão de um juiz de turno, de 3 de Agosto de 1994,
não foi admitido o recurso interposto do despacho que não autorizara a confiança
dos autos, assentando tal despacho na interpretação do artigo 96º, nº 3, do CPP
e do artigo 169º, nº3, do CPC no sentido de que tais disposições 'deixam à livre
resolução do tribunal, ainda que fundamentada sinteticamente, a autorização da
confiança'.
Notificado desta decisão de retenção do recurso, o
arguido reclamou para o Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa que, por
decisão de 25 de Outubro de 1994, resolveu deferir a reclamação, por entender
que o poder derivado do nº 3 do artigo 89º do CPP não é nem discricionário nem
de livre apreciação de quem oriente o processo criminal, pelo que é admissível
recurso do despacho que negou a confiança do processo.
2. - Procedeu-se, entretanto, ao julgamento dos
arguidos, em tribunal colectivo, tendo sido condenados, por cada um dos crimes
de roubo, na forma tentada, na pena de vinte meses de prisão, e, em cúmulo
jurídico de tais penas, na pena única de dois anos de prisão, com perdão de um
ano dessa pena.
O arguido A. interpôs recurso para o Supremo Tribunal de
Justiça (STJ), arguindo a nulidade cometida pela não autorização da confiança do
processo, decisão baseada numa interpretação do nº 3 do artigo 89º do CPP e que,
segundo o arguido, viola o artigo 32º, nºs 1,3 e 5 da Constituição. Também o
arguido invoca uma outra nulidade praticada na própria audiência e relacionada
com o cumprimento do artigo 342º do CPP. Por último, também o arguido suscita
uma questão relativa à forma como foi considerada na decisão a sua origem
étnica, o que o arguido considera violador do artigo 13º da Constituição.
O Ministério Público, na resposta à motivação do arguido
suscitou a questão prévia da não formulação de conclusões na motivação do
recorrente e quanto às questões suscitadas entende que, no respeitante à
denegação da confiança do processo, a decisão proferida foi 'a mais criteriosa
face às circunstâncias verificadas', não tendo ocorrido qualquer violação do nº
3 do artigo 89º do CPP nem qualquer outra nulidade; quanto à questão do artigo
342º do CPP, sendo o passado criminal do arguido legalmente relevante para
efeitos dos artigos 48º, nº2, 72º, nº2, alínea e) e 76º do Código Penal, o
interrogatório previsto na disposição referida não viola qualquer preceito
constitucional; também a valorização da etnia do arguido, passagem retirada das
conclusões do relatório do Instituto de Reinserção Social, não ofende qualquer
preceito constitucional.
Depois de o arguido ter vindo juntar elementos relativos
a um dos aspectos que suscitou no seu recurso, veio responder à questão prévia
levantada pelo Ministério Público, no sentido de que a mesma deve ser
desatendida, prosseguindo o recurso os seus termos normais.
3. - O STJ, por acórdão de 24 de Maio de 1995, quanto ao
recurso relativo à denegação da confiança do processo, veio a confirmar a
decisão recorrida por entender que não tinha ocorrido qualquer invalidade ou
irregularidade susceptível de afectar a decisão recorrida.
Quanto ao recurso relativo ao artigo 342º, nºs 2 e 3 do
CPP, o STJ também confirmou a decisão recorrida por se entender que tendo embora
os interrogatórios do arguido de se revestir de todas as garantias, enquanto
expressão do seu direito de defesa, é inegável que, na medida em que podem
contribuir para a descoberta da verdade material, tais interrogatórios podem ser
considerados um meio de prova; acresce que, no referente aos 'antecedentes
criminais, a sua correcta determinação através também do declarado pelo arguido
ao ser interrogado tem interesse, além do mais, para efeitos de reincidência, de
efectivação do cúmulo jurídico, da determinação da competência do tribunal e da
escolha e medida da pena', não se vendo 'como é que a valoração, em tais termos,
da conduta anterior do arguido, ofenda qualquer preceito constitucional,
«maxime» os apontados pelo recorrente (e tem ele mais antecedentes criminais -
fls. 104)'.
Também o colectivo do STJ decidiu confirmar a decisão
recorrida na parte em que se alegava haver violação do princípio da igualdade
por referência à etnia do arguido. O STJ concluiu que a decisão recorrida 'nada
presume quanto ao comportamento dos arguidos, antes expressa uma afirmação, no
sentido de que tais comportamentos ou condutas se explicarão mercê das suas
vivências de índole étnica', pelo que não houve qualquer violação do princípio
da igualdade.
4. - É desta decisão que vem interposto o presente
recurso de constitucionalidade. Uma vez recebido o processo neste Tribunal, foi
proferido pelo relator um despacho convidando o recorrente a esclarecer não só
qual a exacta interpretação dos artigos 86º, 89º e 342º, todos do CPP que o
recorrente considera inconstitucionais e, além disso, a indicar qual a norma
aplicada na decisão recorrida que considera violadora da interpretação do artigo
13º da Constituição feita na mesma decisão.
O arguido veio a fls... esclarecer, desde logo, a razão
de ter atribuído ao recurso efeito devolutivo e procurar esclarecer o
solicitado, mas em relação à questão da confiança do processo, acaba por não
fornecer - como se pediu - a exacta interpretação das normas que considera
inconstitucional, podendo apenas extrair-se do texto que o arguido considera
inconstitucional a norma do nº 3 do artigo 89º do CPP, por não reconhecer ao
arguido um direito amplo de confiança dos autos.
Quanto ao artigo 342º, nºs 2 e 3 do mesmo CPP, entende
que a exigência de prestação de declarações ao arguido sobre os seus
antecedentes criminais sob pena de incorrer em responsabilidade penal no caso de
falta ou de falsidade da resposta, viola o artigo 32º da Constituição, nos seus
nº 1, 2, 5 e 6.
Finalmente, quanto à violação do artigo 13º da
Constituição, o arguido não indicou a norma de direito ordinário que considera
violadora daquele preceito constitucional.
Ordenada a produção de alegações, quer o arguido quer o
Ministério Público vieram alegar, concluindo o arguido pela forma seguinte:
'a) As normas dos nºs 2 e 3 do artº 342 do C.P.P. são inconstitucionais por
violação dos artºs 32, nº 1, 2 e 5, 29, 25, 26, 18 e 207 da Constituição e artº
6 e 7 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, além de contraditórias com
outras disposições do C.P.P.
b) O artº 86 e o artº 89 do C.P.P. devem ser interpretados de modo a garantir o
disposto no artº 32 da C.R.P., e no caso não o foram.
c) Houve violação directa do artº 13 da C.R.P.. No sistema constitucional
português e na lei penal que o concretiza os factores raça ou etnia não podem
ser considerados, sob pena de introdução de um factor discriminatório
absolutamente inconstitucional. A leituras possíveis são desabonatórias do
arguido pela sua inserção numa etnia, pelo que tal leitura é inconstitucional'.
Pelo seu lado, o Procurador-Geral adjunto em exercício
formulou as seguintes conclusões:
1º
A norma contida no nº 3 do artigo 89º do Código de Processo Penal ‑ na
interpretação que permite denegar ao defensor do arguido e na fase do julgamento
o direito a examinar o processo fora da secretaria, com fundamento na
simplicidade do processado e nos possíveis inconvenientes resultantes da
ausência da secção de processo comportando arguidos presos ‑ não constituí
restrição excessiva ou desproporcionada ao pleno e eficaz exercício do direito
de defesa, já que apenas implica o ónus de o próprio defensor se deslocar ao
tribunal e aí consultar livremente os autos.
2º
Não violando tal interpretação normativa o princípio constitucional da
plenitude das garantias de defesa , deve o presente recurso ser julgado
improcedente.'
Corridos que foram os vistos legais cumpre apreciar e
decidir.
II - FUNDAMENTOS:
5. - Importa, antes de mais, analisar a questão prévia
suscitada pelo Procurador-Geral adjunto nas suas alegações relativa à
inadmissibilidade dos recursos levantados quanto ao artigo 342º do CPP e à
violação directa do artigo 13º da Constituição pelo acórdão recorrido.
A questão vem suscitada nos seguintes termos:
'2.1. Como em qualquer audiência penal, foi o arguido, no caso dos autos
advertido pelo juiz presidente de que era obrigado a responder com verdade às
perguntas relativas à sua identidade e antecedentes criminais, aplicando tal
despacho o preceituado no artigo 342º do Código de Processo penal - supondo-se
que o terá feito, sem que, nessa altura, o arguido ou o seu defensor, tivessem
suscitado qualquer questão ou impugnado o despacho proferido.
Tal questão é suscitada - de forma perfeitamente intempestiva - no recurso
interposto do acórdão condenatório, proferido pelo colectivo - decisão essa que,
naturalmente, ao pronunciar-se sobre o mérito da causa não aplicou a referida
norma processual penal; o mesmo ocorre, aliás, com o acórdão do Supremo Tribunal
de Justiça, ora recorrido, no qual se salienta, de forma perfeitamente
pertinente, que 'nada foi requerido pelo arguido ao ser interrogado em audiência
de julgamento'.
A decisão recorrida não fez, pois, aplicação de tal norma, o que só por si,
deita por terra, por falta de um seu essencial pressuposto, o recurso de
constitucionalidade intentado.'
Quanto ao recurso relativo à violação do artigo 13º da
Constituição, a questão prévia é assim fundamentada:
'2.2. O recorrente trata de imputar directamente ao acórdão recorrido a
pretensa inconstitucionalidade decorrente de uma 'ficcionada' violação do
princípio constitucional da igualdade.
Apesar do convite que, neste Tribunal, lhe foi dirigido no sentido de
aperfeiçoar o requerimento de interposição de recurso, indicando as normas cuja
constitucionalidade pretendia questionar, não o fez, limitando-se a sustentar
que a decisão recorrida teria praticado violação directa do referido princípio
constitucional.
Ora, para além de o recurso ser, neste ponto, manifestamente infundado -
não conseguimos entender onde está a pretensa discriminação de tratamento em
função da raça ou etnia decorrente da passagem da matéria de facto em questão -
é ponto assente que o objecto dos recursos de constitucionalidade nunca poderá
consistir numa decisão judicial, directamente violadora dos imperativos da Lei
Fundamental - devendo necessariamente consistir numa norma ou interpretação
normativa acolhida a aplicada na decisão recorrida.
Também, quanto a este fundamento, não deverá conhecer-se do recurso de
constitucionalidade intentado.'
O recorrente na sua resposta a estas questões prévias
formula as seguintes conclusões:
'a) É de decidir pela análise da inconstitucionalidade do art.342 nº 2 do CPP
porque essa disposição foi e é normalmente aplicada neste e em todos os
julgamentos e constitui uma violação da dignidade do arguido e das suas
garantias constitucionais, como aliás é expresso na Lei 90‑B/95 da A.R..
b) A aplicação desse artigo condiciona todos os julgamentos e por isso as
sentenças e por isso não pode deixar de ser considerado nos recursos destas.
c) Neste momento, subsequente à promulgação da Lei 90‑B/95 de 1 de Setembro,
mais se impõe a declaração de inconstitucionalidade daquela disposição legal.
d) Deve também ser considerada a violação do art. 13 da Constituição ‑ princípio
da igualdade ‑ na aplicação feita pelas instâncias, uma vez que esta aplicação
implica uma inconstitucional aplicação da lei ‑ quer da lei em geral, quer da
lei penal em especial ‑ e porque viola a interpretação constitucional das
Convenções Internacionais citadas e em vigor na esfera interna, tanto mais que o
princípio da igualdade referido naquele art. 13º da Constituição é
co‑substancial no Estado de Direito Português à aplicação da Lei (cfr. ainda
art. 18/1 da CRP).
E se se considerar a implícita aplicação da al. d) do nº 2 do art. 72 do C.P.,
cuja consideração é 'de tabela' nos julgamentos, então dever‑se‑á dizer que se
fez inconstitucional interpretação e aplicação dessa disposição.
Tanto mais que desde a Comissão Constitucional até este tribunal Constitucional
(cfr. arestos citados) sempre se considerou que os ciganos constituem uma raça
ou etnia para efeitos constitucionais, e que tal factor não pode ser usado como
discriminatório.
e) Devem, assim, os autos seguir os seus termos, não procedendo as questões
prévias suscitadas.'
Cumpre apreciar e decidir.
6. - O presente recurso vem interposto ao abrigo do
artigo 280º, nº 1, alínea b) da Constituição e também do artigo 70º, nº 1,
alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional (LTC - Lei nº 28/82, de 15 de
Novembro, alterada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro).
Os recursos interpostos ao abrigo desta disposição
legal, devem respeitar os seguintes requisitos de admissibilidade, entre outros:
- a inconstitucionalidade da norma deve ter sido
previamente suscitada pelo recorrente «durante o processo»;
- a norma cuja inconstitucionalidade foi assim
suscitada, tem de ser aplicada pela decisão recorrida, constituindo um dos seus
fundamentos normativos.
Este Tribunal vem entendendo o primeiro requisito ‑
suscitação durante o processo ‑ por forma a que ele deva ser tomado não num
sentido puramente formal, podendo a inconstitucionalidade ser suscitada até à
extinção da instância, mas num sentido funcional, devendo a arguição de
inconstitucionalidade ocorrer num momento em que o tribunal recorrido ainda
pudesse conhecer da questão, ou seja, antes de esgotado o poder jurisdicional do
juiz.
No caso dos autos, o recorrente suscitou a questão de
constitucionalidade no recurso interposto da decisão condenatória, mantendo-a ao
longo do processo e, por isso, tem de entender-se como estando verificado este
requisito.
Quanto ao segundo requisito, importa referir que a norma
cuja inconstitucionalidade for suscitada durante o processo tem de ser
fundamento da decisão e aplicada, em regra, na sequência do não atendimento da
arguição ou desaplicada com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Em sede de fiscalização concreta de
inconstitucionalidade, em que nos encontramos, o legislador constituinte definiu
como objecto típico da actividade do Tribunal o conceito de «norma jurídica»,
pelo que apenas as normas ou suas interpretações podem ser objecto de um juízo
de inconstitucionalidade, não o podendo ser as decisões judiciais ou os actos
administrativos, enquanto tais.
Face a estes princípios que orientam a admissibilidade
dos recursos de constitucionalidade, importa analisar a questão prévia suscitada
pelo Ministério Público.
7. - Começando pela questão relativa ao artigo 342º do
CPP, o recorrente suscitou a sua inconstitucionalidade na alegação de recurso
que interpôs para o STJ, após notificação da decisão condenatória do Tribunal
Colectivo da 9ª Vara Criminal da Comarca de Lisboa.
No início da audiência de discussão e julgamento do
processo em causa, depois de cumpridos os pertinentes actos introdutórios, o
presidente do colectivo procedeu à identificação do arguido de acordo com o nº 1
do artigo 342º do CPP.
Seguidamente, de acordo com a acta de fls. 697, verso,
dos autos, o presidente passou a perguntar ao arguido pelos seus antecedentes
criminais e por qualquer outro processo penal que contra ele corra termos nesse
momento. Tal interrogatório não suscitou por parte do arguido ou do seu defensor
qualquer oposição quer imediatamente, quer durante a produção da prova ou no
período das alegações, até ao momento do encerramento da audiência (artigo 361º,
nº 2 do CPP).
Com efeito, a respeito da utilização no início da
audiência do preceituado no artigo 342º, não foi formulado qualquer requerimento
ou suscitada qualquer questão de constitucionalidade durante a audiência, pelo
que, até ao encerramento da discussão que, em regra, corresponde ao encerramento
da audiência, relativamente a tal utilização não veio a ser proferida qualquer
decisão judicial.
Em 7 de Novembro de 1994, veio a ser proferido o acórdão
do Tribunal Colectivo, na 1ª instância, que condenou os arguidos. Este acórdão
não contem qualquer referência à utilização pelo presidente do tribunal da norma
do artigo 342º do CPP, nem do seu teor se pode extrair qualquer inferência
derivada de tal utilização.
De facto, o acórdão identifica os arguidos, resume a
acusação, refere a ausência de contestação dos arguidos, a inexistência de
questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito, relaciona
os factos provados e os não provados, indicando quais os que serviram para
formar a convicção do tribunal, fundamentando, de facto e de direito, a decisão,
da qual constam ainda os antecedentes criminais dos arguidos reportados
exclusivamente ao constante dos documentos emanados do registo criminal.
Como fundamentos de direito desta decisão, o acórdão
invoca apenas os artigos 306º, nº 1 e 2, alínea a), e 5, com referência ao
artigo 297º, nº2, alíneas c) e h), 22º, 23º, 72º e 74º, todos do Código Penal.
Como se referiu, em sede de fiscalização concreta de
constitucionalidade, um dos pressupostos de admissibilidade dos recursos
interpostos ao abrigo da alínea b) do artigo 70º da LTC é a exigência de que a
norma questionada tenha sido efectivamente aplicada na decisão recorrida, isto
é, tenha sido um dos fundamentos jurídico‑normativos de tal decisão.
Ora, decorre com nitidez do exposto, que o acórdão de 1ª
instância inicialmente recorrido não fez aplicação da norma questionada.
Assim, não tendo o arguido suscitado a questão de
constitucionalidade da norma do artigo 342º, nº 2 e 3 do CPP quando a mesma
norma foi utilizada pelo presidente do Colectivo, por forma a provocar uma
decisão judicial sobre tal questão que abrisse a via do recurso de
constitucionalidade e não tendo tal norma sido fundamento normativo da decisão
condenatória, teria ficado inviabilizada a possibilidade de tal recurso?
No caso em apreço, o arguido sem ter suscitado a
constitucionalidade no momento da utilização do artigo 342º do CPP, veio a
recorrer da decisão condenatória final e, aí, na motivação do recurso, levantou
tal questão, pelo que o acórdão do STJ não podia deixar de tratar do problema,
sob pena de omissão de pronúncia (diferentemente do que sucedera no caso similar
deste e que foi resolvido no Acórdão nº93/95, Diário da República, II Série, de
19 de Abril de 1995).
O STJ, pelo seu acórdão de 24 de Maio de 1995, não pôs
em causa que a questão de constitucionalidade do artigo 342º do CPP constituísse
o objecto do recurso interposto, pelo que veio a conhecer do mesmo, julgando-o,
nesta parte, improcedente.
Não sendo legítimo que o poder jurisdicional deste
Tribunal questione, no âmbito da sua competência legal e constitucional, a
definição de competência e o seu uso por parte dos outros tribunais, não pode
deixar de se concluir, em casos como o dos autos, que o acórdão recorrido
aplicou apenas a norma do artigo 342º, nº 2, do CPP, uma vez que tal norma foi
um dos fundamentos normativos da decisão proferida.
O que significa que o STJ extraiu consequências do não
atendimento da questão de constitucionalidade suscitada (v.g., o conhecimento do
outro fundamento do recurso e também do recurso relativo à questão da confiança
dos autos), pelo que se pode afirmar que só a norma do artigo 342º, nº 2 do CPP
efectivamente foi aplicada no acórdão do STJ, o que leva ao desatendimento da
questão prévia suscitada pelo Ministério Público, nesta parte.
8. - A segunda vertente da questão prévia suscitada pelo
Ministério Público, consiste no facto de o recorrente imputar directamente ao
acórdão recorrido uma pretensa inconstitucionalidade decorrente da eventual
violação do princípio constitucional da igualdade.
O recorrente, na sua motivação de recurso para o STJ,
referiu que a sentença, ao considerar que 'cada um dos arguidos, quando em
liberdade, vivem em condições sócio‑económico‑culturais desfavorecidas, estando
possivelmente identificados com sub‑grupos sociais e, dada a respectiva etnia,
caracterizada pelos padrões de conduta não conforme com o sistema de normas e
valores maioritariamente reconhecidos da vida em sociedade' faz uma apreciação
'inteiramente inconstitucional por violar o artº 13º da Constituição e a
presunção de inocência constante do artº 32º, nº 2 da Constituição'.
Desatendida esta questão no acórdão do STJ com o
argumento de que na consideração transcrita 'há a constatação pura e simples de
um facto (pessoal e directamente respeitante aos arguidos) e aponta-se uma
justificação ou causa possível para ele, o que é bem diferente de se afirmar
que, por pertencerem a determinada etnia não acolheriam as normas e valores
maioritariamente aceites em sociedade, o recorrente veio renovar a questão no
recurso para este Tribunal, em termos tais que levou a um convite para indicar
qual a norma jurídica que considerava ter sido aplicada na decisão recorrida e
violava o referido princípio da igualdade.
O recorrente, na sua resposta a este convite nada veio
adiantar de novo, limitando-se a reafirmar o que já antes tinha aduzido.
Posta a questão nestes exactos termos, é manifesto que o
recorrente não suscita qualquer questão de constitucionalidade. Como se referiu,
o objecto do juízo de constitucionalidade são apenas as normas jurídicas ou uma
sua interpretação.
No caso em apreço, a alegação de violação directa, pela
decisão, de uma norma da Constituição (a existir), traduz-se afinal em imputar a
inconstitucionalidade à própria decisão, o que não permite conhecer deste
fundamento do recurso porquanto falta um dos requisitos de admissibilidade:
violação da Constituição por uma norma ou pelo interpretação desta feita na
decisão recorrida.
Assim, considera-se que, nesta parte, deve deferir‑se a
questão prévia suscitada pelo Ministério Público, não se tomando conhecimento do
recurso.
9. - Importa, agora, considerar o mérito do recurso,
consistente nas questões de constitucionalidade suscitadas pelo recorrente e
respeitantes à recusa da confiança do processo e à norma do artigo 342º, nº 2,
do CPP.
Iniciar-se-á a análise pela questão da confiança dos
autos (artigo 89º, nº 3, do CPP).
Após ter sido designada data para o julgamento, que veio
a ser adiado, o mandatário do recorrente veio requerer a confiança do processo
para exame, por dois dias, no seu escritório. Este requerimento veio a ser
indeferido e, tendo sido interposto recurso, o mesmo não foi recebido, pelo que
o ora recorrente reclamou de tal despacho para a Relação de Lisboa. Esta
Relação, por acórdão de 25 de Outubro de 1994, veio a deferir a reclamação,
ordenando a admissão do recurso interposto.
O STJ apreciando este recurso, veio a julgá-lo
improcedente, por entender que 'estava subjacente [à decisão de 1ª instância] o
evitar perturbações no andamento da causa por virtude da saída do processo da
secretaria', pelo que, embora concedendo poder tratar-se de uma decisão 'um
tanto rigorosa', todavia, não teria tal decisão violado as garantias de defesa
do arguido, 'e muito menos de forma substancial a ponto de contender com o
princípio da verdade material'.
Vejamos.
A audiência de julgamento dos arguidos no processo
estava marcada para o dia 21 de Junho de 1994; neste dia, com a presença do
mandatário do ora recorrente (apud acta de fls. 157), a audiência veio a ser
adiada para 11 de Outubro de 1994, tendo o requerimento a solicitar a confiança
dos autos, para consulta no escritório do respectivo mandatário, sido
apresentado em 8 de Julho de 1994.
A decisão de indeferimento deste requerimento assentou,
essencialmente, na 'manifesta exiguidade do processado, e, designadamente, da
nota de culpa', bem como na 'circunstância de os autos aguardarem julgamento,
após efectivação de um adiamento'.
Assim e embora o recorrente, apesar de expressamente
convidado não tenha chegado a indicar o sentido da norma em causa, a questão que
se apresenta para resolver nos autos é a de saber se o nº 3 do artigo 89º do
CPP, interpretado como não permitindo ao mandatário do arguido a consulta fora
da secretaria de processo em que já tiver havido decisão instrutória, por razões
de conveniência processual (v.g., exiguidade do processado e pedido formulado
após um adiamento da audiência), é inconstitucional por violar as garantias de
defesa do arguido.
Esta questão insere-se no âmbito da publicidade do
processo penal e do segredo de justiça em matéria processual penal, regulada nos
artigos 86º a 90º do CPP.
É o seguinte o texto da norma cuja constitucionalidade
vem questionada:
'Artigo 89º
1. Para além da entidade que dirigir o processo, do Ministério Público e
daqueles que nele intervieram como auxiliares, o arguido, o assistente e as
partes civis podem ter acesso a auto, para consulta, na secretaria ou noutro
local onde estiver a ser realizada qualquer diligência, bem como obter cópias,
extractos e certidões autorizados por despacho, ou independentemente dele para
efeito de prepararem a acusação e a defesa dentro dos prazos para tal
estipulados pela lei.
..................................................
3. As pessoas mencionadas no nº 1, têm, relativamente a processos findos,
àqueles em que não puder ou já não puder ter lugar a instrução e àqueles em que
tiver já havido decisão instrutória, direito a examiná-los gratuitamente fora da
secretaria, desde que o requeiram à autoridade judiciária competente e esta,
fixando o prazo para tal, autorize a confiança do processo.'
De acordo com o preceituado nesta disposição, o
princípio geral nela estabelecido é o de que o processo penal é público a partir
da decisão instrutória ou, se ela não tiver lugar, a partir do momento em que
ela já não pode ser requerida, sob pena de nulidade, vigorando até àqueles
momentos processuais, o princípio do segredo de justiça. O que significa que, em
regra, durante o inquérito e a instrução, o processo penal tem carácter secreto.
Este carácter não funciona quanto ao arguido, face aos seus amplos direitos de
defesa.
Se a publicidade do processo penal visa realizar uma
dada garantia de transparência da justiça, o segredo de justiça destina-se não
só a proteger a investigação criminal, proteger o bom nome e a honra dos
investigados até ao momento da pronúncia, retirar os investigadores da pressão
da opinião pública enquanto reúnem os indícios e as provas dos factos
denunciados (cfr., neste sentido, Germano Marques da Silva, 'Curso de Direito
Processual Penal', pág. 20; Costa Pimenta, 'Código de Processo Penal Anotado',
pág. 277).
O artigo 86º delimita o âmbito da publicidade e do
próprio segredo de justiça nos termos dos quais resulta que, quer o princípio da
publicidade do processo quer o segredo de justiça não estão regulados de forma
absoluta, havendo aberturas à publicidade no domínio do segredo de justiça e
restrições na fase da publicidade, procurando estabelecer-se o balanceamento de
posições por forma a acautelar a realização das finalidades do segredo
compatibilizando-o com o máximo possível das exigências da publicidade.
Assim, a publicidade do processo penal implica, de
acordo com o preceituado no artigo 86º, nº 2, alínea c), a 'consulta do auto e
obtenção de cópias, extractos e certidões de quaisquer partes dele'.
Regulamentando esta norma, o artigo 89º do CPP estabelece nos seus nºs 1 e 2, a
forma de consulta dos autos pelos sujeitos processuais (consulta total, no nº1,
na secretaria ou no local em que decorrer a diligência; consulta parcial, no nº
2, apenas na secretaria), prevendo-se no nº 3 do preceito a possibilidade de
exame gratuito do processo fora da secretaria, desde que se trate de processos
findos, processos em que não puder ou já não puder ter lugar a instrução e em
que já tiver havido decisão instrutória e tal seja requerido e autorizado pela
entidade judiciária competente.
No caso dos autos, o arguido questiona a recusa de
acesso aos autos pelo indeferimento do pedido de confiança do processo para
consulta do seu mandatário no escritório, recusa esta ocorrida em momento em que
o processo penal tinha carácter público (fase de julgamento).
Invoca como fundamento da arguida inconstitucionalidade
a violação das garantias de defesa (artigo 32º, nºs 1, 3 e 5, da Constituição),
pela interpretação da norma feita na decisão recorrida.
De acordo com o nº 1, 'o processo criminal assegurará
todas as garantias de defesa', isto é, os meios necessários e adequados que
permitam ao arguido defender a sua posição, anulando a acusação. Uma dessas
garantias vem explicitada no nº 3 do preceito referido: o direito do arguido de
escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo.
O direito à confiança do processo para ser analisado no
escritório do respectivo mandatário integra, sem margem para dúvidas, uma forma
de realização do direito de defesa dos arguidos em processo penal.
Porém, existem neste domínio outros interesses
constitucionalmente relevantes, como por exemplo, a impossibilidade de
cumprimento de prazos ou termos atinentes à realização do julgamento em prazo
razoável ou a impossibilidade de conceder direitos iguais a todos os
interessados (princípio da igualdade de armas), o que leva a considerar que,
nesta matéria, só deverão ser inconstitucionalizadas as normas ou interpretações
que delas sejam feitas e que impliquem um encurtamento inadmissível das
possibilidades de defesa do arguido.
Ora, como se referiu, a arguida violação do preceito
constitucional teria ocorrido em momento processual posterior à data já
designada para o julgamento, em virtude de este ter sido adiado. O que
significa, como bem salienta o Ministério Público nas suas alegações, que o
arguido tinha podido já 'ter acesso ao auto, para consulta na secretaria, bem
como obter cópias, extractos e certidões autorizadas por despacho, ou
independentemente dele para efeitos de preparar a defesa' dentro dos prazos
legais (artigo 89º, nº 1, salvo o caso previsto no nº2 do mesmo preceito do
CPP).
Assim, com a notificação da acusação, o arguido e seu
mandatário passaram a dispor de todos os elementos processuais disponíveis para
organizar a respectiva defesa, dispondo ainda do acesso irrestrito e gratuito
aos autos, na secretaria. O que significa que toda a defesa haverá de estar
completa na data do julgamento.
Mas, não sendo de excluir a necessidade do mandatário de
consultar os autos mesmo após o adiamento da audiência, a questão que vem
suscitada é a de saber se a «confinação» desta consulta à secretaria, por
despacho do juiz, quando, por força da lei poderia ocorrer no escritório do
mandatário, afecta, por forma constitucionalmente relevante, as garantias de
defesa do arguido?
A resposta à questão assim colocada só pode ser
afirmativa: de facto, sendo a própria lei a conceder a confiança do processo e a
sua consulta fora da secretaria, só fortes razões atinentes ao próprio processo
e à dinâmica das secretarias judiciais poderiam justificar uma solução diferente
da lei.
Ora, no caso, estas razões não se vislumbram: a
audiência tinha sido adiada para Outubro, o pedido foi feito em Julho (08/07) e
o prazo requerido era de dois dias, pelo que em nada contenderia com outros
eventuais prazos do outro arguido.
Não podendo afastar-se liminarmente a necessidade da
consulta dos autos para eventual aperfeiçoamento da defesa do arguido ‑ aspecto
de que só o seu mandatário pode avaliar ‑ e não se vendo quaisquer motivos para
a limitação «geográfica» da consulta à secretaria, tem de se concluir que não
foram observadas todas as garantias de defesa do recorrente enquanto arguido.
Nestes termos, entende-se que a norma do nº 3 do artigo
89 do CPP, interpretada como não autorizando a confiança do processo penal em
fase de adiamento da audiência de julgamento com fundamento na manifesta
exiguidade do processo, viola o princípio das garantias de defesa constantes do
nº 1 do artigo 32º da Constituição.
10. - Passando à análise da questão da
constitucionalidade do artigo 342º (em particular, o nº 2) do CPP, importa,
antes de mais, transcrever os textos legais.
É o seguinte o teor do preceito:
'Artigo 342º
1. O presidente começa por perguntar ao arguido pelo seu nome, filiação,
freguesia e concelho de naturalidade, data de nascimento, estado civil,
profissão, residência e, se necessário, pede-lhe a exibição de documento oficial
bastante de identificação.
2. Em seguida, o presidente pergunta ao arguido pelos seus antecedentes
criminais e por qualquer outro processo penal que contra ele nesse momento
corra, lendo-lhe ou fazendo com que lhe seja lido, se necessário, o certificado
de registo criminal.
3. O presidente adverte o arguido de que a falta de resposta às perguntas
feitas ou a falsidade da mesma o pode fazer incorrer em responsabilidade penal.'
De acordo com as conclusões das alegações do recorrente,
estas normas do CPP violam os artigos 32º, nºs 1,2 e 5, 29º, 25º, 18º e 207º da
Constituição.
Vejamos se assim é, de facto.
O nº 1 do artigo 32º ao determinar que 'o processo
criminal assegurará todas as garantias de defesa' como que condensa todas as
normas dos restantes números do preceito, não deixando, porém, tal norma de ter
um conteúdo normativo próprio a que se possa recorrer directamente, em casos
limite.
O nº 2 do preceito consagra a princípio da presunção de
inocência do arguido, cujo 'conteúdo adequado' integra '(a) proibição da
inversão do ónus da prova em detrimento do arguido; (b) preferência pela
sentença de absolvição contra o arquivamento do processo; (c) exclusão da
fixação da culpa em despachos de arquivamento;(d) não incidência de custas sobre
arguido não condenado; (e) a proibição de antecipação de verdadeiras penas a
título de medidas cautelares (cf. Ac TC nº 198/90);(f) a proibição de efeitos
automáticos da instauração do procedimento criminal' (cf. Gomes Canotilho e
Vital Moreira, 'Constituição da República Portuguesa Anotada', 3ª Edição, p.
203).
O nº 5 do artigo 32º consagra a estrutura acusatória do
processo penal, estabelecendo estarem 'a audiência de julgamento e os actos
instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório'.
No desenvolvimento desta imposição constitucional, a
autorização legislativa para aprovar o Código de Processo Penal (CPP)
estabeleceu o respectivo sentido e alcance da legislação a adoptar: parificação
do posicionamento jurídico da acusação e da defesa em todos os actos do processo
e incrementação da igualdade de «armas» no processo (nºs 2 e 3 do artigo 2º da
Lei nº 43/86, de 26 de Setembro); estabelecimento da máxima acusatoriedade do
processo penal, temperado com o princípio da investigação (nº 4); definição
rigorosa do momento e do modo de obtenção do estatuto de arguido (nº 8);
garantia efectiva da liberdade de actuação do defensor em todos os actos do
processo (nº 9). O CPP adoptou assim a tese defendida por Figueiredo Dias (in
'Direito Processual Penal', I, Coimbra, 1974, p.68 e segs. e 254 e segs.), de
que o processo penal deveria ter 'uma estrutura basicamente acusatória,
integrada por um princípio de investigação'.
O princípio do inquisitório domina a fase processual do
inquérito, conduzida pelo Ministério Público e bem assim a fase de instrução (nº
4 do artigo 288º do CPP). O princípio acusatório impondo que o julgamento por um
crime decorra de acusação formulada por órgão diferente do que proceder ao
julgamento e que o órgão que proceder à instrução não seja o mesmo que vier a
deduzir a acusação, é uma garantia da imparcialidade e independência do
julgamento.
O princípio do contraditório, referido na segunda parte
do nº 5 do artigo 32º da Constituição, traduz o direito que quer a acusação quer
a defesa tem de se pronunciar sobre os actos processuais da iniciativa de cada
uma delas, levando a que audiência e os actos instrutórios se concretizem em
forma de debate ou discussão entre a acusação e a defesa, cada uma aduzindo as
suas razões de facto e de direito, oferecendo as respectivas provas que a outra
poderá controlar e analisar criticamente e vice-versa.
O artigo 29º da Constituição reporta-se ao regime
constitucional da lei criminal, consagrando o princípio da legalidade (só a lei
é competente para a definição dos crimes e das respectivas penas), o princípio
da tipicidade (a lei deve concretizar suficientemente os fatos que integram o
tipo legal de crime e tipificar as penas) e ainda o princípio da não
retroactividade (a lei não pode criminalizar factos passados nem tratar
penalmente de forma mais gravosa por lei posterior, factos ocorridos no domínio
de lei mais favorável).
O artigo 25º da Constituição, consagra a inviolabilidade
do direito das pessoas à sua integridade moral e física (nº 1) e a proibição da
sujeição de qualquer pessoa à tortura, a tratos ou penas cruéis, degradantes ou
desumanos (nº 2), estando também abrangida na protecção da integridade moral a
proibição de práticas que levem à humilhação ou ao enxovalho público e
indignificante da própria pessoa.
11. - A questão que vem suscitada integra-se no âmbito,
mais amplo, dos direitos e deveres processuais reconhecidos pelo nosso processo
penal aos arguidos, designadamente, o direito a não responder a perguntas
feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o
conteúdo das declarações que sobre eles prestar (artigo 61º, nº 1, alínea c) do
CPP). É o chamado «direito ao silêncio» reconhecido legalmente, mas que também
no domínio do Código conhece algumas excepções.
Assim, o nº 3 do mesmo preceito, na sua alínea b) faz
recair, em especial, sobre o arguido, o dever de 'responder com verdade às
perguntas feita por entidade competente sobre a sua identidade e, quando a lei o
impuser, sobre os seus antecedentes criminais'.
Nestes termos e no seu recorte legal, o direito ao
silêncio do arguido abrange apenas o interrogatório substancial sobre o mérito
(a factualidade integradora da acusação e declarações sobre ela já prestadas) e
sobre a questão da culpabilidade, deixando a lei, em princípio de fora, a
questão da sua identidade e dos antecedentes criminais do arguido.
No caso em apreço, não vem questionada a legitimidade
das declarações do arguido e recorrente relativas à respectiva identidade (nº 1
do artigo 342º do CPP), mas apenas as relativas aos antecedentes criminais, na
medida em que, as normas dos nº 2 e 3 do artigo 342º referido impõem que, sendo
a entidade inquiridora competente, o arguido deve responder no início da
audiência de julgamento a perguntas respeitantes a tais antecedentes e a outro
ou outros processos que contra ele corram, no momento (nº 2), sendo as perguntas
feitas sob a advertência de que a falta de resposta ou a falsidade da mesma
podem fazer incorrer o arguido em responsabilidade penal (nº 3).
As perguntas sobre os antecedentes criminais do arguido
são, de acordo com o preceituado no artigo 141º, nº 3 do CPP, as que se destinam
a apurar se ele já esteve alguma vez preso, quando e porquê e se foi ou não
condenado e por que crimes.
A advertência, que obrigatoriamente antecede as
perguntas, justifica-se na medida em que, de acordo com a lei, a falta de
resposta às mesmas pelo arguido pode fazê-lo incorrer no crime de desobediência,
previsto e punido pelo artigo 388º do Código Penal e a resposta com falsidade
pode fazê-lo incorrer no crime de falsas declarações, previsto e punido ou pelo
artigo 402º do Código Penal ou, segundo certa doutrina, pelo artigo 22º do
Decreto-Lei nº 33 721, de 21 de Junho de 1944.
Violará esta norma que impõe ao arguido a resposta sobre
antecedentes criminais ou processo penal em curso, sob a mencionada advertência,
as normas ou princípios constitucionais que vêm referidos?
12. - Importa referir, antes mesmo de analisar a questão
suscitada, que o legislador entendeu intervir directamente nesta matéria, tal
como o próprio recorrente expressamente refere, nos seus requerimentos de fls.
583 e 596 dos autos.
Com efeito, em 1 de Setembro de 1995, foi publicada a
Lei nº 90-B/95 (2º Suplemento do Diário da República, I Série-A), pela qual a
Assembleia da República concedeu ao Governo autorização legislativa para rever o
Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de
Fevereiro.
E, de acordo com a alínea gg) do artigo 3º de tal Lei, o
legislador estabelece o seguinte:
'Artigo 3º
De harmonia com o sentido a que se refere o artigo anterior [proceder à
adequação do Código de Processo Penal às alterações introduzidas no Código Penal
pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março], a extensão da autorização
legislativa revela-se no seguinte elenco de soluções:
...................................................
gg) Revogar o nº2 do artigo 342º, já que a indagação em audiência pública dos
antecedentes criminais do arguido atenta contra a sua dignidade e com as suas
garantias constitucionais'.
No seguimento da aprovação e publicação desta
autorização legislativa, veio a ser publicado em 28 de Novembro de 1995, o
Decreto-Lei nº 317/95, pelo qual o Governo alterou o Código de Processo Penal.
E, cumprindo a disposição delegante acima transcrita ‑
a mencionada alínea gg), do artigo 3º, da Lei nº 90-B/95 ‑, o legislador
eliminou o nº 2 do artigo 342º do Código de Processo Penal (CPP), mantendo a
redacção do nº 1 e passando o nº 3 a nº 2. Assim, este preceito, sob a epígrafe
de 'Identificação do arguido', passou a estabelecer que 'o presidente começa por
perguntar ao arguido pelo seu nome, filiação, freguesia e concelho de
naturalidade, data de nascimento, estado civil, profissão, residência e, se
necessário, pede-lhe a exibição de documento oficial bastante de identificação'
(nº 1); e, no nº 2, determina que 'o presidente adverte o arguido de que a falta
de resposta às perguntas feitas ou a falsidade da mesma o pode fazer incorrer em
responsabilidade penal'.
Tendo entrado em vigor no passado dia 3 de Dezembro de
1995 esta nova redacção do preceito, desapareceu a norma cuja
constitucionalidade o recorrente questiona, mantendo-se todavia o interesse na
resolução de tal questão, pelos eventuais efeitos que tal julgamento possa vir a
ter na decisão recorrida.
A referência à nova formulação legal interessa de
sobremaneira pois o aplicador do direito não pode alhear-se das alterações
legislativas - mesmo das que não são directamente aplicáveis ao caso «sub
judicio» - principalmente quando da própria lei de autorização constam os
fundamentos da alteração e estes se relacionam de perto com a questão que o
Tribunal tem de resolver, como é o caso.
13. - O recorrente questiona essencialmente o nº 2 do
artigo 342º, pois se não refere às perguntas do nº 1 (estritamente orientadas
para a identificação pessoal do arguido). Como e, por outro lado, o nº 3 não foi
sequer aplicado na decisão recorrida, não se põe, com autonomia, a questão da
sua eventual inconstitucionalidade, mas tão somente quando conexionada ou na
dependência da norma do nº2, isto é, esta norma constante do referido nº 3 seria
também inconstitucional por a falta de resposta às perguntas por ela permitidas,
ou uma resposta falsa, poder fazer incorrer o arguido em responsabilidade penal;
porém, como se disse, o nº 3 do artigo 342º não foi aplicado na decisão
recorrida.
Assim, a presente análise incidirá apenas sobre a norma
do nº 2 do artigo 342º do CPP/87.
Violará esta norma o princípio constitucional das
garantias de defesa do arguido, consagrado no nº 1 do artigo 32º da
Constituição?
Recordemos o conteúdo da norma em causa: depois de, no
início da audiência de discussão e julgamento, ter interrogado o arguido sobre a
sua identidade, o presidente interroga-o sobre os seus antecedentes criminais e
sobre qualquer outro processo penal que contra ele corra nesse momento,
lendo-lhe ou fazendo com que lhe seja lido, se necessário, o certificado de
registo criminal, sendo todo este interrogatório feito sob a cominação da
possível responsabilidade penal, prevista no nº 3 da norma.
O princípio constitucional de que o processo criminal
assegurará todas as garantias de defesa tem como conteúdo essencial a exigência
de que o arguido, seja tratado como sujeito e não como objecto do procedimento
penal, garantindo-lhe a Constituição, com essa finalidade, não só um direito de
defesa (artigo 32º, nº 1), a que a lei confere efectividade através de direitos
processuais autónomos a exercer durante o processo e que lhe permitem conformar
a decisão final do processo, mas também a presunção de inocência até ao trânsito
em julgado da condenação, elemento fundamental naquela perspectiva.
De entre os concretos direitos que integram o direito de
defesa do arguido (artigo 61º do CPP), importa salientar, de momento, o direito
de ser ouvido que, em termos genéricos, se traduz na possibilidade de, durante
todo o processo, poder influenciar o curso do mesmo, através da prestação de
declarações.
Em concreto, o arguido tem o direito de ser ouvido pelo
tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que deva ser tomada qualquer decisão
que pessoalmente o afecte (nº 1, alínea b), do artigo 61º), devendo este direito
ser exercitado em todas as fases do procedimento penal, por forma a que a
audição do arguido possa influenciar a decisão a tomar.
O arguido pode também ser interrogado quer no inquérito
preliminar quer na fase de instrução e ainda na fase do julgamento. A este
respeito, a lei determina que o arguido tem o direito de não responder a
perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados
e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar (nº1, alínea c), do
artigo 61º CPP).
Consagra-se aqui o direito ao silêncio do arguido no que
respeita aos factos que lhe são imputados e, bem assim, caso tenha feito
quaisquer declarações sobre eles, silenciar posteriormente outras questões sobre
o seu conteúdo.
Este direito ao silêncio está directamente relacionado
com o princípio constitucional da presunção de inocência (artigo 32º, nº 2 da
Constituição). Com efeito, o interrogatório do arguido - exceptuadas as
declarações finais antes do encerramento da audiência de julgamento, em que é
perguntado se tem mais alguma coisa a alegar em sua defesa (artigo 361º do CPP)
- pode vir a ser utilizado como um meio de prova: as declarações do arguido
podem constituir um importante meio de obter a verdade material dos factos,
ponto é que se respeite a livre determinação da sua vontade.
Assim, o arguido deve ser informado, antes de qualquer
interrogatório, de que goza do direito ao silêncio (artigos 141º, nº 4, 143º,
nº2, 144º, nº1, e 343º, nº1, do CPP), devendo também ser esclarecido de que o
seu silêncio não pode ser interpretado desfavoravelmente aos seus interesses,
não podendo, por isso, o arguido ser prejudicado por ter exercitado o seu
direito a não prestar quaisquer declarações (o silêncio não pode ser
interpretado como presunção de culpa).
De facto, o princípio da presunção de inocência ínsito
no nº 2 do artigo 32º da Constituição, não só obsta a tal tipo de interpretação
como também, se conexionado com o princípio da preservação da dignidade pessoal
do arguido, leva a que a utilização do arguido (v.g., das suas declarações) como
meio de prova seja sempre limitada pelo integral respeito da sua decisão de
vontade.
Mesmo reconhecendo a lei ao arguido a plena liberdade de
falar ou não sobre os factos materiais de que vem acusado, ou de responder
apenas às questões que ache conveniente, o certo é que, relativamente às
declarações relativas à sua identidade e antecedentes criminais, lhe impõe um
verdadeiro dever. Aqui, o legislador impôs ao arguido um «especial dever» de
responder com verdade às perguntas feitas por entidade competente sobre a sua
identidade e, quando a lei o impuser, sobre os seus antecedentes criminais
(artigo 61º, nº 3, alínea b), do CPP).
E é esta obrigação legalmente consagrada, que importa
confrontar com o princípio constitucional das garantias de defesa, quando tal
dever de resposta se verifique no início da audiência de julgamento e se reporte
aos antecedentes criminais do arguido.
O Tribunal entende que a imposição ao arguido do dever
de responder a perguntas sobre os seus antecedentes criminais formulada no
início da audiência de julgamento viola o direito ao silêncio, enquanto direito
que integra as garantias de defesa do arguido.
Como se referiu, o conteúdo essencial do direito de
defesa do arguido assenta em que este deve ser considerado como «sujeito» do
processo e não como objecto; ora, a obrigatoriedade de declarar, no início da
audiência de julgamento, os antecedentes criminais do arguido e bem assim,
informar sobre processos pendentes implica a transformação do arguido de sujeito
em objecto do processo.
Com efeito, ao arguido fica retirada a possibilidade de
prestar as suas declarações no momento que mais lhe convier, tendo de as prestar
numa altura em que não se iniciaram sequer as diligências probatórias, ou seja,
sem qualquer possibilidade de o arguido poder evitar eventual irradiação
daquelas declarações sobre o objecto do processo.
Acresce que, em tal fase do procedimento penal tal como
está entre nós estruturado, estão já em princípio juntos aos autos elementos
documentais oficiais relativos a tais antecedentes criminais, o que tornaria a
exigência legal do nº 2 do artigo 342º do CPP excessiva e irrazoável perante as
garantias de defesa do arguido.
Tem, assim, de se concluir pela violação do princípio
constitucional das garantias de defesa pela norma do nº 2 do artigo 342º do CPP,
enquanto impõe ao arguido, o dever de responder às perguntas do presidente do
tribunal, no início da audiência de julgamento sobre os seus antecedentes
criminais e sobre outro processo penal que contra ele corra nesse momento.
14. - Mas violará tal norma também o princípio da
presunção de inocência constante do nº 2 do artigo 32º da Constituição?
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (in
'Constituição da República Portuguesa Anotada', 3ª Ed. revista, Coimbra Editora,
1993, pág. 202), ao princípio da presunção de inocência, num processo penal em
que o princípio da investigação funciona subordinadamente ao princípio do
acusatório, é atribuído o seguinte conteúdo adequado: proibição da inversão do
ónus da prova em detrimento do arguido, preferência pela sentença de absolvição
contra o arquivamento do processo, exclusão da fixação da culpa em despachos de
arquivamento, não incidência de custas sobre o arguido não condenado, proibição
de antecipação de verdadeiras penas a título de medidas cautelares, proibição de
efeitos automáticos da instauração do procedimento criminal.
Porém, para quem defenda o entendimento de que o
'princípio de presunção do arguido diz respeito a todos os factos relevantes
para a acusação, não se excluindo aqueles que não ocorrem no momento da prática
do facto, mas que condicionam a culpa do agente' (neste sentido e defendendo
ainda que a norma também viola as garantias de defesa e o princípio da
necessidade da pena, Maria Fernanda Palma, 'A constitucionalidade do artigo 342º
do Código de Processo Penal (O direito ao silêncio do arguido)', in Revista do
Ministério Público, Ano 15º, Out./Dez. 1994, nº 60º, pág. 101 e segs.), então a
norma que vem questionada viola o princípio da presunção de inocência, 'porque
os factos referentes aos antecedentes criminais e à pendência de outros
processos constituem ainda matéria da acusação, que o arguido não pode ser
coagido a revelar, como também porque ainda não está feita a prova do facto
típico, ilícito e culposo no momento em que é exigida a comunicação daqueles
factos' (ibidem, pág. 106).
Nestes termos, conclui-se que o recurso do arguido
merece, nesta parte, ser provido, pelo que a decisão de STJ recorrida, também
aqui deverá ser reformulada em consonância com o juízo de inconstitucionalidade
que tem de recair sobre a norma do nº 2 do artigo 342º do Código de Processo
Penal.
III - DECISÃO:
Pelo exposto, decide-se:
A) Julgar inconstitucionais as normas do artigo 89º, nº
3, quando interpretada como não autorizando a confiança do processo penal em
fase de adiamento da audiência de julgamento com fundamento na manifesta
exiguidade do processado, e do artigo 342º, nº 2, ambas do Código de Processo
Penal, por violação do princípio das garantias de defesa ínsito no artigo 32º,
da Constituição da República Portuguesa;
B) Em consequência, determinar a reformulação do acórdão
recorrido em conformidade com o decidido em matéria de constitucionalidade.
Lisboa, 1995.12.05
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Maria Fernanda Palma
Alberto Tavares da Costa
Antero Alves Monteiro Dinis (Vencido
quanto ao julgamento de inconstitucionalidade da norma do artigo 89º, nº 3, do
Código de Processo Penal, pois que não se tem por desproporcionado e irrazoável
que o legislador faça depender a consulta dos autos fora da Secretaria de prévia
autorização da entidade judiciária, desde logo porque, mesmo quando devido a
razões objectivamente fundadas o pedido não venha a lograr deferimento, ainda
assim sempre será possível aceder ao processo e aos elementos documentais
nele existentes através do exame na secretaria do respectivo tribunal.
A sindicância Constitucional a exercer
por este Tribunal apenas pode incidir sobre o âmbito dos poderes atribuídos
naquela norma à autoridade judiciária e não já ao específico modo como no caso
concreto foram exercidos)
José Manuel Cardoso da Costa (Por
entender que não é inconstitucional, em si mesma, uma norma, como a do artº 89º,
nº 3, do Código de Processo penal, que torne a consulta dos autos fora da
secretaria dependente da autorização da autoridade judiciária competente, a qual
haverá, porém, de fundamentar os termos dessa autorização - por entender isso,
propendi a que se não tomasse conhecimento do recurso quanto à questão da
constitucionalidade dessa norma, por já não estar senão em causa, provavelmente,
a 'aplicação' dela, e não propriamente a sua 'interpretação': estaríamos, assim,
perante uma questão de constitucionalidade da 'decisão', antes que da 'norme'.
mas reconheço que o ponto é duvidoso).