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Processo nº 328/91
Plenário
Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
I
1. O Provedor de Justiça veio requerer a apreciação e
declaração de inconstitucionalidade material, com força obrigatória geral:
- dos artigos 3º, 4º, 5º, e 6º do Decreto-Lei nº 270/89,
de 18 de Agosto, diploma que estabelece 'medidas preventivas e punitivas de
violência associada ao desporto';
- do artigo 106º do Regulamento Disciplinar aprovado na
assembleia geral extraordinária da Federação Portuguesa de Futebol de 18 de
Agosto de 1984, com alterações introduzidas na assembleia geral extraordinária
de 4 de Agosto de 1990, preceito que responsabiliza os clubes 'que não
assegurem a ordem e a disciplina dentro da área dos recintos ou complexos
desportivos, antes, durante e após a realização dos jogos' e 'desde que se
verifique qualquer distúrbio provocado por espectador ou espectadores seus
adeptos ou simpatizantes';
- 'para obviar à repristinação', dos artigos 3º, 4º, 5º,
6º e 7º do Decreto-Lei nº 61/85, de 12 de Março, diploma que 'estabelece normas
de disciplina e ordenamento dentro dos complexos, recintos e áreas de
competição desportivos, com o objectivo de prevenir e reprimir a violência
nesses locais', bem como dos artigos 3º, 4º, 5º e 6º do Decreto-Lei nº 339/80,
de 30 de Agosto, diploma que 'estabelece um conjunto mínimo de medidas
tendentes a conter, a curto prazo, a violência em recintos desportivos' (os
artigos 3º, 5º e 6º na redacção que lhes foi dada pela Lei nº 16/81, de 31 de
Julho, ou seja, a lei que altera, por ratificação, o referido Decreto-Lei nº
339/80).
Concluiu assim o requerimento:
'104
Pelo que suficientemente, embora com carácter sumário, a carecer de suprimento,
se aduz, deve ser declarada a inconstitucionalidade material dos artigos 3º a 6º
do Decreto-Lei nº 270/89, de 18 de Agosto, e do art. 106º do Regulamento
Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol.
(...).
105
Para obviar à repristinação deve, igualmente, ser declarada a
inconstitucionalidade material dos artigos 3º a 7º do Decreto-Lei nº 61/85, de
12 de Março, e dos artigos 3º a 6º do Decreto-Lei nº 339/80, de 30 de Agosto,
com a redacção que lhes foi dada pela Lei nº 16/81, de 31 de Julho.
106
Com efeito, todos eles transgridem o princípio da culpa e o princípio da
presunção de inocência do arguido, que valem, com relevo constitucional, em
qualquer processo sancionatório ou repressivo.
107
Advém o 1º desses princípios dos artigos 1º, 12º, nº 2, 13º, nº 1, e 25º, nº 1,
da Constituição, e o 2º do nº 2 do art. 32º do mesmo texto matricial.
108
São, em síntese, tais normas contraditórias com os essenciais postulados de um
Estado de Direito democrático, baseado, além do mais, no respeito e na
garantia dos direitos e liberdades fundamentais (art. 2º da Constituição),
'conglobador e integrador de um amplo conjunto de regras e princípios
constitucionais dispersos pelo texto constitucional' (Gomes Canotilho - Vital
Moreira, CRP Anotada, 2ª ed., 1º vol., 1984, p. 74) - entre os quais os já
apontados - MAS QUE TEM O SEU CERNE NA PROTECÇÃO DOS CIDADÃOS CONTRA A
PREPOTÊNCIA E O ARBÍTRIO (idem)'.
Da longa fundamentação do requerente (em que sobressai o
ataque à técnica legislativa do Decreto-Lei nº 270/89 - 'um exemplo acabado de
uma defeituosa modelação legislativa' - e a demonstração de que ele é 'um
simples aggionarmento dos Decretos-Leis nºs 61/85 e 339/80') podem respigar-se
as seguintes passagens mais impressivas e que se transcrevem:
- 'vê-se que nenhumas faltas são nele (nos nºs 1 e 2 do artigo 3º)
configuradas, com conexão subjectiva com o clube faltoso, ou sejam com o mínimo
de imputação', aludindo--se 'a situações de violência praticadas por
espectadores ('distúrbios de espectadores') que nem sequer carecem de ser
minimamente conotados com o clube (sócios, adeptos, simpatizantes, naturais da
localidade ou da região onde este se insere ou 'afinidade' semelhante)', sendo
que 'a própria noção de 'distúrbios de espectadores' é extremamente ambígua e
anfibológica'.
- 'Compreender-se-á, num afã de boa vontade, o que possa ter sido pensado como
um acto intimidatório (a que se refere o nº 3 do artigo 3º) em relação a
componentes da equipa de arbitragem, ou mesmo a jogadores, e naquele 1º plano,
a elementos das forças de segurança', mas 'o que será um acto intimidatório em
relação a outro ou outros espectadores?'.
- 'No Decreto-Lei nº 270/89, tudo se passa com meridiana trivialidade: bastará
que um espectador 'assuste' um outro espectador, sem ter em vista qualquer
finalidade para além do mero 'susto', inconsequente e porventura jocoso, para
que o clube faltoso possa ter o seu recinto desportivo interditado'.
- 'É a interdição de um recinto desportivo uma caracterizada pena, de denso
significado sancionatório, e até estigmatizante; deve, pois, acatamento ao
princípio da legalidade, que denega a hipótese de normas sancionatórias em
branco, de conteúdo vago e fluído'.
- 'O nº 5 do art. 3º do Decreto-Lei nº 270/89 ainda mais vem complexificar a
estrutura interna do sistema, que deveria ser clara e linear'.
- 'Assim sendo, e porque a aplicação da pena repressiva prevista no art. 3º do
Decreto-Lei nº 270/89 é endossada à Federação Portuguesa de Futebol (e,
obviamente, às demais federações ou associações desportivas), ter-se-á que esta
(ou qualquer outra) pode aplicar ao mesmo clube duas sanções de tipo análogo
pela prática da mesma 'falta'', sendo que o 'princípio 'ne bis in idem',
directamente previsto na Constituição para a lei criminal (art. 29º, nº 5),
vale, de igual passo, incontroversamente, para o direito disciplinar, enquanto
garante de um direito fundamental'.
- 'O clube é punido, nos termos do art. 3º do Decreto-Lei em apreço, MESMO QUE
POSSUA VEDAÇÃO E TÚNEL DE ACESSO AOS BALNEÁRIOS COM AS CARACTERÍSTICAS
REGULAMENTARES', ficando 'sujeito a ser punido com graves sanções repressivas
(as previstas nos nºs 1 e 2 do artigo 5º) MESMO QUE NADA TENHA A VER COM OS
DISTÚRBIOS (singular ou pluralmente provocados) QUE LHE SEJAM IMPUTÁVEIS,
através de uma conexão intersubjectiva que o Decreto-Lei remete para o mais
denso mistério e, por decorrência, para o mais deplorável arbítrio de
avaliação'.
- 'Subjacente ao sistema da Convenção está, pois, o princípio da culpa
individual de pessoas identificadas - e o Decreto-Lei nº 270/89 afasta-se por
isso (que é o que agora releva), gritantemente, da Convenção (a Convenção
Europeia de 1985) que diz tomar como pauta inspiradora', tudo passando 'com
base numa presunção (rectius, numa ficção) cujo ajuizamento fica ao arbítrio de
cada um, bom ou mau - mas eventualmente (o que é 'péssimo') mau'.
- 'A responsabilidade colectiva assenta na culpa afirmada e identificada, e
conotável, do delegado ou representante', mas os espectadores 'não representam
nem são delegados do clube, nem, no decurso de uma competição desportiva,
exprimem, a sua vontade', sucedendo até que 'no sistema do Decreto-Lei nº
270/89 nem sequer uma conexão espacial terá que interceder entre os
espectadores que prevariquem e o clube, mesmo numa aliás inaceitável
responsabilidade objectiva, caracterizada por um específico risco do recinto
desportivo afecto ao clube faltoso, já que os distúrbios podem ocorrer no
recinto do clube visitado'
- 'Ora o Regulamento Disciplinar, no seu art. 106º, é uma norma secundária face
aos sucessivos diplomas que culminam no Decreto-Lei nº 270/89', e
inconstitucionalizadas 'as normas dos Decretos-Leis, e declarada, portanto, a
sua nulidade, com efeito retroactivo, perderá aquele art. 106º o seu suporte
legal; a sua fons vitae'.
- 'Entretanto, e de qualquer forma, o próprio art. 106º do Regulamento
Disciplinar é, em si mesmo, inconstitucional, por assentar numa responsabilidade
sem culpa e por actos de terceiros que não actuam em nome, ou em representação,
ou por delegação do clube'.
Com o requerimento foram juntos três documentos, além de
fotocópias dos periódicos oficiais com os diplomas legais em causa: um
requerimento do A. dirigido ao requerente, um parecer do Prof. Jorge de
Figueiredo Dias e um exemplar do Regulamento Disciplinar da Federação
Portuguesa de Futebol (Aprovado na Assembleia Geral Extraordinária de 18/08/84,
com alterações introduzidas na Assembleia Geral Extraordinária de 04/08/90).
2. Responderam ao pedido:
- O Presidente da Assembleia da República, que se limitou
a oferecer 'o merecimento dos autos';
- O Primeiro-Ministro, que veio sustentar 'a plena
conformidade constitucional das normas questionadas' (as 'normas do Decreto-Lei
nº 270/89 e diplomas seus antecessores') suportando-se na afirmação conclusiva
da ideia essencial 'de que está perante um direito disciplinar privativo e
exclusivo da actividade desportiva, que como já foi apontado, contém implícita
uma exigência de imputação a título de culpa', mas não curando 'de analisar se
fica afectado o princípio da legalidade', e abstendo-se 'de comentar o
fundamento da possível violação do princípio ne bis in idem, pois este se
encontra difuso no ordenamento jurídico e é aplicável a todos os processos
sancionatórios pelo espírito da Constituição';
- O Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Federação
Portuguesa de Futebol, que veio pedir se julgue 'procedente a questão prévia da
inadmissibilidade do pedido do Provedor de Justiça e, consequentemente, não
conheça do seu objecto na parte em que pede a declaração de
inconstitucionalidade do artigo 106º do Regulamento Disciplinar da Federação
Portuguesa de Futebol'. 'Se assim se não entender, pede então que seja julgada
procedente a excepção dilatória de ilegitimidade do Provedor de Justiça para
pedir a declaração de inconstitucionalidade desse artigo 106º, pelo facto de a
Federação Portuguesa de Futebol não ser um poder público. Se ainda assim se não
entender, pede que seja negado provimento ao recurso pelo facto de o artigo
106º não ser materialmente inconstitucional' - acrescenta ainda o respondente, a
concluir a sua extensa e fundamentada resposta, que se alonga por 219 itens,
dos quais se passa a transcrever os que são os pilares da resposta:
'48.
Em conclusão: neste momento a ordem jurídica desportiva estadual continua a
respeitar o poder jurisgénico da Federação Portuguesa de Futebol, pelo que o
artigo 106º do Regulamento Disciplinar não é de considerar como norma pública.
72.
Em conclusão: em matéria de violência nos recintos desportivos, mormente por
força do Decreto-Lei nº 270/89, de 18 de Agosto, não houve qualquer atribuição
de poderes ou funções públicas à Federação Portuguesa de Futebol; não houve
qualquer outorga de faculdades normativas para o exercício de um poder público
devolvido ou delegado à Federação Portuguesa de Futebol; a Federação Portuguesa
de Futebol manteve os seus poderes privados tradicionais, estabelecidos nos
seus regulamentos e com utilização de procedimentos privativos nos mesmos
previstos.
80.
Por isso, mesmo que o artigo 106º do Regulamento Disciplinar da Federação
Portuguesa de Futebol fosse materialmente de considerar como norma pública, o
facto de estar inserido num diploma que, GLOBALMENTE CONSIDERADO, tem natureza
manifestamente privada, faz com que o referido artigo 106º seja de classificar
juridicamente como NORMA PRIVADA.
99.
Não sendo a Assembleia Geral da Federação Portuguesa de Futebol que aprovou o
artigo 106º do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol
manifestamente PODER PÚBLICO, as suas acções e omissões não podem ser objecto de
queixa para o Provedor de Justiça.
100.
Daí que o Provedor de Justiça não tenha legitimidade activa para requerer a
declaração de inconstitucionalidade do artigo 106º do Regulamento Disciplinar,
pois tudo se deve passar como se a queixa, nessa parte, tivesse sido
liminarmente arquivada.
126.
Em conclusão: o que o princípio da culpa, como corolário lógico da afirmação da
dignidade da pessoa humana ou como pressuposto antropológico basilar das sanções
aplicáveis num Estado de Direito, impede é que o legislador ordinário preveja a
privação da liberdade dos HOMENS pela prática de actos ou omissões que aos
mesmos não sejam censuráveis.
141.
Desde sempre em sede de ilícito administrativo - no qual se inserem as
infracções disciplinares - se aceitou que pudesse haver responsabilidade sem
culpa - ou objectiva ou pelo risco - e responsabilidade por actos de outrem. Não
pode ser de outro modo, sob pena de se verificar um amolecimento ósseo do
sistema de repressão e de se cair numa situação de impunidade total em certos
casos;
163.
Desde modo, é indiferente que o artigo 106º do Regulamento Disciplinar puna os
clubes e não os adeptos e simpatizantes que praticaram distúrbios, pois estes,
no espírito que presidiu ao preceito, fazem parte dos clubes em sentido amplo.
179.
Em conclusão: o artigo 106º do Regulamento Disciplinar não prevê
responsabilidade objectiva dos clubes nem responsabilidade por acto de outrem,
mas se previsse tais tipos de responsabilidade isso não tinha nada de hirético
em sede de ilícito disciplinar'.
II
3. Não sendo a primeira vez que o Tribunal
Constitucional é chamado a pronunciar-se sobre a questão da
(in)constitucionalidade de normas relativas àquele Regulamento Disciplinar,
doravante só Regulamento, bem como aos Estatutos da mesma Federação Portuguesa
de Futebol, doravante só F.P.F., certo que outras são as normas e outros os
fundamentos ora invocados no pedido.
No entanto, certo é também que, como da primeira vez, se
coloca uma questão prévia de natureza processual: a de saber se ao Tribunal cabe
apreciar da (in)constitucionalidade do questionado artigo 106º do Regulamento,
subordinado à epígrafe 'Dos distúrbios', por factos dos espectadores.
Por este pressuposto relativo à competência do Tribunal se
vai naturalmente começar.
Com efeito, tal apreciação depende de se considerar se
aquele preceito pode ser tido como uma das normas 'públicas', normas provindas
de um 'poder normativo público', pois que as normas de natureza privada não
estão sujeitas ao controlo de constitucionalidade.
E a questão surge, porque, dando mesmo por assente que a
F.P.F. é uma pessoa colectiva de direito privado, ainda que de utilidade
pública, isso não basta para daí se concluir, sem mais, que os preceitos por que
se rege não são normas públicas para efeito de poderem ser submetidas ao
controlo de constitucionalidade (e a concessão do 'estatuto de utilidade
pública desportiva' consta do recente Despacho nº 56/95, da Presidência do
Conselho de Ministros, publicado no Diário da República, II Série, nº 213, de 14
de Setembro de 1995, cujos reflexos na causa serão adiante abordados).
Na verdade, existem entidades privadas que, como agindo em
nome do Estado, e com o objectivo de prosseguirem certos fins de interesse
público, podem obter a atribuição, por ele, de poderes que incluam a emanação de
disposições que revistam a qualidade de normas, para aquele efeito.
Ora, se se considerar que o preceito aqui questionado
provém de um poder normativo público atribuído à F.P.F, que esta age no
exercício de prerrogativas de poder público, sobretudo porque se trata de
matéria sancionatória, é ele passível de ser sindicado constitucionalmente.
Caso contrário, não o será.
No Acórdão deste Tribunal Constitucional nº472/89,
publicado no Diário da República, II Série, nº 219, de 22 de Setembro de 1989,
refere-se a dado passo (ponto nº 7): 'A tal respeito, deve preliminarmente
sublinhar-se que uma devolução de competência normativa pública a pessoas
colectivas de direito privado só ocorrerá se existir um acto de poder público
a operá-la directa e iniludivelmente. Semelhante devolução não pode simplesmente
presumir-se, e na dúvida deverá concluir-se pela inexistência dela', para logo a
seguir se perguntar se, no caso, 'ocorre algum acto de poder público - v.g., de
autoridade, aprovação, homologação ou de atribuição legal - que deva tomar-se
como expressão da devolução de um poder normativo público à Federação
Portuguesa de Futebol, e tal que deva afirmar-se decorrerem os respectivos
estatutos e regulamento disciplinar desse poder normativo, e terem aí o seu
último fundamento de validade e de eficácia'.
Portanto, constitui condição para que ocorra essa
devolução de competência normativa a existência de um acto do poder público a
operá-la directa e iniludivelmente e, naturalmente, que, para além de existir
esse acto do poder público, de uma entidade com competência para o efeito, que a
norma equivalha 'a uma regra ou padrão, orientadora e reguladora de condutas
ou comportamentos, e não a actos de aplicação dessa regra ou padrão' (cfr. J. J.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
2ª edição revista e actualizada, 2º volume, pág. 470).
Assim, teremos de ver se, neste concreto caso, do diploma
em causa, se colhe essa condição, num domínio que se prende com o poder
sancionatório da F.P.F. relativamente aos 'Clubes que não assegurem a ordem e a
disciplina dentro da área dos recintos ou complexos desportivos, antes, durante
e após a realização dos jogos' (nº 1 do artigo 106º).
4. Faça-se aqui um parêntesis para registar, de novo, que
todos os diplomas em questão estabelecem um conjunto de medidas tendentes a
conter a violência associada ao desporto e para fazer referência à evolução do
tratamento de que tal matéria foi alvo, desde que pela primeira vez foi objecto
de integração em Decreto-Lei.
Segue-se então a referência:
Até 1980, o Estado, por via do seu órgão que é o Governo,
não tinha tido qualquer interferência nessa matéria da violência associada ao
desporto, a qual apenas era contemplada no Regulamento da F.P.F., aprovado pelo
seu Congresso em 2 de Julho de 1960 (ainda que de uma forma muito rudimentar).
Foi com o Decreto-Lei nº 339/80, de 30 de Agosto, que o
Governo começou por concretizar, de forma sistemática, medidas tendentes a esse
fim de conter a violência no desporto ('Com o objectivo de permitir que as
manifestações ou realizações desportivas decorram em conformidade com a ética
inerente à prática do desporto, estabelecem-se pelo presente diploma normas de
ordenação social dentro dos complexos, recintos e áreas de competição' -
estabelece o artigo 1º do diploma).
Diz-se no seu preâmbulo: 'O diploma visa resolver os
problemas mais preocupantes que nesta matéria a prática desportiva enfrenta',
para logo de seguida se acrescentar: 'embora se reconheça que, face aos
condicionalismos existentes, resultantes de uma desactualização do parque
desportivo nacional, as medidas ora preconizadas não esgotam completamente o
assunto', o que desde logo deixa antever um desenvolvimento dessas medidas, a
tomar em futuros diplomas.
No âmbito deste diploma, é à autoridade pública que
compete, mediante a instauração de inquérito, aplicar a medida de interdição,
mesmo que preventivamente, dos recintos desportivos onde se registem distúrbios
(cfr. artigo 3º, nºs 1 e 3).
Esta autoridade apenas se aproveita dos regulamentos das
associações desportivas e federações para aplicação de sanções neles previstas,
para além das medidas cominadas no diploma legal (cfr. artigo 3º, nº 2 e artigo
6º, nº 1).
O Decreto-Lei nº 339/80 veio a sofrer, através de
ratificação, alterações, por força da Lei nº 16/81, de 31 de Julho.
Todavia, as modificações introduzidas não representam
quaisquer transformações de fundo em relação àquele primeiro decreto-lei.
Agora precisa-se que o inquérito é efectuado pela
federação ou associação desportiva competente, através de processo disciplinar
(artigo 3º, nº 3).
Para além do aproveitamento do processo disciplinar
daquelas entidades, há também o aproveitamento dos seus regulamentos para efeito
de aplicação de sanções.
E, no seu artigo 12º-A estabelece-se que os regulamentos
disciplinares das federações ou associações das modalidades desportivas
abrangidas pelo diploma se devem adequar ao regime do decreto-lei.
Assim, independentemente de se poder falar ou não de um
poder disciplinar, globalmente considerado, atribuído às federações ou
associações, registe-se que o próprio Ministro da Qualidade de Vida podia
aplicar, ainda que a título excepcional, através de despacho, a sanção de
interdição, bem como as sanções previstas nos artigos 5º e 6º (artigo 7º-A) e o
diploma apenas exigia uma adequação às normas públicas e não uma adopção delas
por parte dos regulamentos.
Note-se ainda que, quando a alínea e) do artigo 10º
estabelece que à Comissão Nacional de Fiscalização, entidade criada pelo
Decreto-Lei nº 339/80 e a funcionar junto da Direcção-Geral dos Desportos, cabe
'dar parecer sobre o modo como as federações e associações estão a aplicar os
dispositivos deste decreto-lei, podendo para o efeito colher informações
consideradas necessárias', nada mais parece querer dizer do que isso mesmo: a
emissão de um parecer que, como tal, não faz determinar, nos termos do
decreto-lei, a imposição de qualquer conduta subsequente, no caso de aquelas
entidades os não aplicarem ou os aplicarem de modo diverso.
Diga-se, entretanto, que estes diplomas são anteriores ao
Regulamento Disciplinar da F.P.F., ora em vigor, cuja aprovação, em Assembleia
Geral Extraordinária, data de 18 de Agosto de 1984, mas a evolução legislativa
ocorrida posteriormente a esta data não pode deixar de ser relevante, como se
vai ver.
Assim, em 1985, veio o Decreto-Lei nº 61/85, de 12 de
Março, revogar expressamente aqueles diplomas porque, no dizer do legislador,
'apesar dos resultados obtidos, julga-se, porém, necessário introduzir
providências que permitam melhorar o esquema então criado, bem como adequar as
sanções aplicáveis ao regime das contra-ordenações resultante da legislação
entretanto publicada'.
Em 1º lugar, uma das providências adoptadas foi o
agravamento das sanções aplicadas.
Em 2º lugar, a par da aplicação da medida de interdição
mediante instauração de processo disciplinar, a efectuar pela federação ou
associação desportiva competente, pode a Administração Pública, a título
excepcional, sem processo, aplicá-la também, (como de resto o pode fazer em
relação às sanções referidas nos artigos 4º e 5º, talqualmente já acontecia no
regime anterior).
Continua, assim, a autoridade pública a aproveitar-se dos
regulamentos das federações ou associações para a aplicação de sanções neles
previstas, para além das medidas cominadas no diploma legal.
Curiosamente, a Comissão Nacional de Fiscalização, que era
integrada por elemento(s) das federações (cfr. artigo 9º, nº 4, do Decreto-Lei
nº 339/80, na sua versão originária e na versão da Lei nº 16/81), desapareceu
deste novo diploma, competindo agora à Direcção-Geral dos Desportos as
atribuições que àquela cabiam, havendo, assim, uma maior interferência por
parte dos poderes públicos.
Da análise que até aqui se efectuou, poderá inferir-se
que, independentemente de saber se os diplomas em causa se traduzem ou não em
actos legislativos de suporte para atribuição ou devolução de poderes à F.P.F.
(todos eles se aplicam à modalidade do futebol), certo é que ela é chamada a
exercer poderes disciplinares em vista dos fins de segurança que visa
prosseguir neste domínio.
Mas, a análise seguinte do Decreto-Lei nº 270/89, de 18
de Agosto, merecendo um maior desenvolvimento, desde logo pela afirmação,
efectuada no seu preâmbulo, de que são atribuídas 'amplas competências e
responsabilidades' às organizações desportivas, levará a uma óptica vincada
dessas competências e responsabilidades, que importa destacar.
Este diploma, que revoga tacitamente o Decreto-Lei nº
61/85, apresenta profundas alterações em relação àquele.
'Não se trata, somente de rectificar alguns aspectos merecedores de melhor
atenção mas sim, de dotar o ordenamento jurídico de um novo conjunto de regras,
ditadas por sensíveis diferenças ao nível dos princípios que vinham dirigindo
a regulamentação neste domínio' (cfr. José Manuel Meirim, in B.M.J., nº 389,
pág. 37).
Subjacente à criação deste diploma, no dizer do seu
preâmbulo, está a necessidade de tornar efectivas as medidas preconizadas pela
Convenção Europeia sobre a Violência e os Excessos dos Espectadores por Ocasião
das Manifestações Desportivas e nomeadamente de Jogos de Futebol, de modo a
que as 'manifestações decorram em ambiente de dignidade e correcção baseada
no respeito mútuo e num salutar espírito de competição' (é a Convenção nº 120,
datada de 19 de Agosto de 1985, já ratificada e entrada em vigor no nosso Pais
em 14 de Agosto de 1987, cujo artigo 3º, nº 1, prevê em especial 'medidas,
destinadas a prevenir e dominar a violência e os excessos dos espectadores',
referindo-se o nº 4 a 'legislação adequada que inclua sanções por desobediência
ou outras medidas apropriadas, de forma a que as organizações desportivas, os
clubes e, se for caso disso, os proprietários dos estádios e autoridades
públicas, no âmbito das competências definidas pela legislação interna, tomem
medidas concretas, dentro e fora dos estádios, para prevenir ou dominar a
violência e os seus excessos').
Mas também subjacente às disposições agora introduzidas
está ainda, no dizer do preâmbulo, a experiência dos últimos anos e os trabalhos
parcelares desenvolvidos em paralelo com a preparação da Lei de Bases do
Sistema Desportivo (a Lei nº 1/90, de 13 de Janeiro).
Efectivamente, esta lei, publicada pouco depois do
Decreto-Lei nº 270/89, estabelece no nº 3 do seu artigo 5º que, 'na
prossecução da defesa da ética desportiva, é função do Estado adoptar as
medidas tendentes a prevenir e a punir as manifestações antidesportivas,
designadamente a violência (...)'.
Considerando que o problema da violência não pode, porém,
ser eficazmente resolvido apenas pela acção do Estado, vem o diploma de 1989
declaradamente afirmar que às organizações desportivas se atribuem amplas
competências e responsabilidades (cfr. ainda o seu preâmbulo).
Até então, nenhum dos diplomas que precederam o
Decreto-Lei nº 270/89 se havia arrogado (pelo menos neste tom declarativo) de
atributivo de 'amplas competências' a essas entidades.
Vejamos então no que se traduz a atribuição dessas 'amplas
competências', no que toca às federações ou associações.
Desde já se diga que a elas continua a caber a
interdição, mesmo na sua modalidade preventiva, dos recintos ou complexos
desportivos, onde se verifiquem distúrbios, mediante a instauração de processo
disciplinar, a efectuar pela federação ou associação competente (cfr. artigos
3º e 4º, nº 1 e 2). Só que não existe agora qualquer interferência da
Administração Pública, ainda que a título excepcional, na aplicação dessa
medida, nem na aplicação das restantes medidas a que o Ministro da Qualidade de
Vida poderia recorrer quando se tornassem necessárias aos fins de segurança e
disciplina visados pelos respectivos diplomas.
E, assim, o nº 4 do seu artigo 3º expressamente
estabelece que: 'Compete às federações, nos termos dos respectivos
regulamentos, graduar, por número de jogos, a sanção de interdição, em função
da gravidade dos incidentes e da sua frequência'.
Por seu turno, atribui-se a faculdade à federação ou
associação competente de poder aplicar 'as sanções previstas nos regulamentos da
respectiva modalidade' (nº 5 do artigo 3º).
Também à federação ou associação da modalidade cabe ter em
conta as deliberações, verificações e conclusões da Comissão Nacional de
Coordenação e Fiscalização para os efeitos tidos por convenientes ou os que
decorram da lei ou regulamento (nº 2 do artigo 10º) e onde hão-de caber as que
disserem respeito aos pareceres sobre o cumprimento pelas próprias federações
e associações do disposto no diploma (alínea i) do nº 1 do artigo 10º).
Agora o diploma não se basta com a emissão do parecer da
respectiva Comissão (como acontecia ao tempo da Lei nº 16/81 e do Decreto-Lei nº
61/85). Vai um pouco mais longe e impõe que aquelas entidades adoptem
consequentemente as condutas adequadas, o que revela, nalguma medida, uma certa
manifestação de controlo ... mas por parte delas (e em parte sobre elas mesmas)
e não do Estado.
Mas, medidas importantes, atribuídas às federações, são
as previstas, a nível preventivo, bem como a classificação dos jogos como de
'risco' ou 'de alto risco' (artigo 12º, nº 1).
Também a elas cabe uma punição, a estabelecer nos seus
regulamentos, quando se verifique o incumprimento daquelas medidas (nº 2).
Em linhas gerais, estas são as 'amplas competências e
responsabilidades' atribuídas às organizações desportivas.
Tem de se reconhecer a evolução operada, designadamente
no que toca às medidas preventivas que foram previstas, havendo, ainda, de
notar que se admite a possibilidade de serem aplicadas pelas organizações
desportivas as sanções previstas nos seus regulamentos, se atribui
competências às federações para graduar, por número de jogos, a sanção de
interdição, nos termos dos respectivos regulamentos e mesmo no que respeita à
falta de cumprimento das medidas preventivas, ela, a falta, há-de ser punida
com as sanções a estabelecer nos seus regulamentos.
Em suma, existe vincadamente um aproveitamento dos
regulamentos para o prosseguimento das tarefas disciplinares que cabem às
federações ou associações.
É que, como resulta do preâmbulo do diploma, o problema da
violência no desporto 'não pode ser eficazmente resolvido apenas pela acção do
Estado', significando isto que o Estado não se demite de intervir, a par das
federações ou associações.
E, considerando que, aquando da entrada em vigor do
Decreto-Lei nº 270/89 (e do próprio Decreto-Lei nº 61/85), já existia o artigo
106º do Regulamento, e considerando ainda que deverá existir uma
corresponsabilização das autoridades públicas e das autoridades privadas na
luta contra a violência e os excessos dos espectadores, uma conjugação de
esforços e não uma subordinação destas àquelas, realçada na transcrita
passagem do preâmbulo, compreende-se e admite-se que o diploma em causa tenha
estabelecido uma tal 'corresponsabilização'.
E, se é certo que o referido preceito do Regulamento,
nunca alterado (cfr. artigo 139º, nº 2) e ainda plenamente vigente, data de
1984, já depois da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 339/80 e da Lei nº 16/81,
independentemente de saber se já estes diplomas lhe podiam servir de suporte
para fundamentar o poder disciplinar da F.P.F., a verdade é que, com essa nova
realidade normativa de 1989 poder-se-ia mesmo vislumbrar um certo tipo de
outorga de faculdades normativas públicas à F.P.F. para o exercício de um poder
público devolvido, e não apenas um simples aproveitamento dos procedimentos e
das sanções dos seus regulamentos.
5. Seja como for, decisivo é que a recente legislação
referente ao regime jurídico das federações desportivas regista uma
significativa intervenção do Estado nas questões desportivas.
Muito sucintamente indicam-se alguns aspectos dessa
intervenção.
Na sequência da Lei de Bases do Sistema Desportivo (a
citada Lei nº 1/90), e dando cumprimento (embora fora do prazo estabelecido) ao
disposto no seu artigo 41º, nº 1, alíneas d) e e), o Governo publicou o
Decreto-Lei nº 144/93, de 26 de Abril, que estabelece o regime jurídico das
federações desportivas e as condições de atribuição do estatuto de utilidade
pública desportiva.
Este diploma opera, sem margem para dúvida, uma certa
'publicização' da actividade desportiva.
Com efeito, não só atribui às federações poderes públicos
no âmbito da regulamentação e disciplina (cfr. artigo 8º), como a competência
disciplinar lhes é atribuída de uma forma globalmente considerada (cfr. artigo
21º e seguintes). Quer dizer: o Estado assume e tutela o prosseguimento daquela
actividade mediante um reconhecimento como 'pública' da mesma, devolvendo às
federações tais poderes.
Por outro lado, a Lei de Bases revela que se teve em vista
submeter, no que toca às federações, a concessão de estatuto de pessoa colectiva
de utilidade pública desportiva à verificação de certos requisitos (cfr. artigos
21º, 2º e 22º, nº 2, impondo aquele artigo 21º, 1º, que as federações se
proponham, entre outros, prosseguir os objectivos gerais definidos nas alíneas
a), b) e c)), estatuto de que já beneficia a F.P.F., como ficou atrás dito,
sendo certo que, por todo o diploma perpassa, a outros níveis e em diferentes
matérias, uma maior intervenção do poder público na vida, decisões e orgânica
das federações.
É certo que não parece ter resultado desta intervenção
uma alteração da natureza jurídica das federações.
Na verdade, e antes de mais, é o próprio Decreto-Lei nº
144/93 que, no seu preâmbulo, a elas se refere como associações de direito
privado, sem fins lucrativos e dotadas de utilidade pública.
Depois, se a atribuição do estatuto de utilidade pública
desportiva passa pelo respeito do regime jurídico consagrado naquele
Decreto-Lei, no plano dos princípios de organização e funcionamento, não se
pode afirmar que haja uma criação estadual das federações, no sentido de
deverem existir (cfr. o referido Acórdão nº 472/89).
Finalmente, a forte tutela pública e a prossecução de
interesses gerais (cfr. artigo 21º, nº 1), só por si, não chegam para as
caracterizar como pessoas colectivas públicas (cfr. ainda o mesmo acórdão).
Mas, se isto é assim, não se pode deixar de ver naquela
intervenção, um maior empenhamento, por parte do poder público, nas questões do
desporto.
Ora, desta breve análise de ambos os diplomas, parece
decorrer que um preceito como o artigo 106º - e sobretudo um outro Regulamento
da F.P.F., que venha agora a ser elaborado, consequentemente em data posterior
à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 144/93 -, se poderá considerar como
traduzindo o exercício de um poder 'público', tivesse ou não essa origem face à
legislação anterior.
Há agora, deve dizer-se, um novo figurino da F.P.F., com a
outorga do estatuto de utilidade pública desportiva, por via do citado Despacho
nº 56/95, e mesmo com a aprovação dos novos estatutos da F.P.F. - indispensável
para a obtenção daquele estatuto -, por efeito das assembleias gerais
extraordinárias de 28 de Janeiro, 9 de Fevereiro, 20 de Maio e 9 de Junho de
1995 (cfr. Diário da República, III Série, nº 80, de 4 de Abril de 1995, e nº
153, de 5 de Julho de 1995).
Com efeito, a F.P.F. adequou o modelo ao regime jurídico
das federações desportivas estabelecido pelo Decreto-Lei nº 144/93, na sequência
da Lei de Bases do Sistema Desportivo (Lei nº 1/90), sendo os novos estatutos
adequados aos ditames das normas de organização interna das federações
previstas no Capítulo IV do Decreto-Lei (artigos 20º e seguintes), nomeadamente
no que toca à estrutura orgânica da F.P.F. e à organização do sector
profissional do futebol com a previsão de um organismo autónomo (e os
regulamentos de disciplina e de competições deste organismo foram ratificados na
assembleia geral extraordinária da F.P.F., de 25 de Julho de 1995).
E, por essa via, reuniu a F.P.F. as condições legais para
obter o tal estatuto previsto no artigo 1º do Decreto-Lei nº 144/93, o que
aconteceu com o Despacho nº 56/95.
Tudo isto significa que, à luz daquele diploma legal, e do
citado despacho, a F.P.F., ainda que deva considerar-se associação de direito
privado sem fins lucrativos, passou a reger-se pelo regime consagrado no
diploma e, só subsidiariamente, pelo regime jurídico daquele tipo de
associações (artigo 3º), decorrendo, nomeadamente, dos artigos 7º, 8º, 21º e
22º que:
- lhe foi atribuída, 'em exclusivo, a competência para o
exercício, dentro do respectivo âmbito, de poderes de natureza pública' (cfr. o
preâmbulo do Decreto-Lei nº 144/93);
- têm 'natureza pública os poderes das federações
exercidos no âmbito da regulamentação e disciplina das competições
desportivas';
- o poder disciplinar, no âmbito desportivo, 'exerce-se
sobre os clubes, dirigentes, praticantes, treinadores, técnicos, árbitros,
juízes e, em geral, sobre todos os agentes desportivos', cabendo-lhe elaborar
regulamentos que, entre outros, contemplem as matérias da disciplina e de
medidas de defesa da ética desportiva, 'designadamente nos domínios da prevenção
e da punição da violência associada ao desporto', com respeito pelas regras
legalmente consagradas para a definição do regime disciplinar.
Daqui decorre que os estatutos da F.P.F. reflectem nalguns
aspectos a existência de um poder normativo público, o que se projecta no
Regulamento, havendo como que uma novação do titulo habilitante da norma
questionada do seu artigo 106º e só desta interessa aqui curar.
Há, pois, e independentemente da linha do discurso do
acórdão nº 472/89, um acto de poder público a operar directa e iniludivelmente
uma devolução de competência normativa pública à F.P.F., traduzindo os
estatutos o exercício desse poder normativo, tendo aí 'o seu último fundamento
de validade e de eficácia' e operando-se uma novação do titulo habilitante do
Regulamento ainda em vigor e no que toca à norma em causa (o próprio acórdão
fazia já 'uma advertência final', aqui muito a propósito:
'Não se ignora que, no quadro de determinados diplomas legais - dos diplomas,
v.g., sobre a violência nos recintos desportivos ou sobre dopping:(...) -, são
as federações desportivas chamadas a exercer poderes disciplinares que o Estado
especialmente lhes comete, em vista dos correspondentes e específicos fins de
segurança ou saúde pública; de tal modo que aí - mas só aí, nesses específicos e
limitados domínios - se poderá falar de uma 'devolução de poderes públicos' às
federações. Por outro lado, para o exercício de tais de tais poderes devem ou
podem as federações servir-se dos seus próprios regulamentos de disciplina').
Com o que terá de se atender à natureza pública da norma
do artigo 106º do Regulamento, sendo, assim, competente este Tribunal
Constitucional para dela conhecer, em sede de juízo de constitucionalidade.
6. Importa ainda tomar posição acerca da 'questão prévia
da inadmissibilidade do pedido do Provedor de Justiça', suscitada na resposta do
Presidente da Mesa da Assembleia Geral da F.P.F., e que se traduz, nas suas
próprias palavras, em não ter o Provedor de Justiça 'legitimidade activa para
requerer a declaração de inconstitucionalidade do artigo 106º do Regulamento
Disciplinar', na base de que aquela Assembleia Geral não é 'manifestamente PODER
PÚBLICO', pelo que 'as suas acções e omissões não podem ser objecto de queixa
para o Provedor de Justiça'
Mas não tem sentido tal questão, carecendo o Presidente
respondente de razão.
Com efeito, no plano da fiscalização abstracta sucessiva
da constitucionalidade, como é o presente caso, a legitimidade do Provedor de
Justiça para requerer a este Tribunal Constitucional a declaração de
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, tem assento no nº 2, d), do
artigo 281º, da Constituição. E, afere-se pelo pedido, cujo objecto tem de ser
uma norma jurídica ('quaisquer normas', como é a expressão usada naquele artigo
281º).
Ora, nos presentes autos, o objecto do pedido, no que aqui
importa, está preenchido por uma norma jurídica, o artigo 106º do Regulamento,
porque provinda de um poder normativo, e, consequentemente, o Provedor de
Justiça tem legitimidade para fazer tal pedido. Saber se esse poder é um poder
público ou privado, como também questiona o Presidente respondente, é outra
questão e ela foi já apreciada e decidida no ponto 5, a respeito da competência
deste Tribunal Constitucional.
Com o que improcede a arguição da questão prévia da
ilegitimidade do Provedor de Justiça.
III
7. Assim, a norma do artigo 106º do Regulamento da F.P.F.,
sendo configurada como uma norma de direito público, está submetida ao controlo
da constitucionalidade, o mesmo tendo necessariamente de se dizer das normas do
Decreto-Lei nº 270/89, emanadas do poder normativo do Estado, que contém regras
orientadoras e reguladoras de condutas ('Com o objectivo de prevenir e
controlar as manifestações de violência associada ao desporto, estabelecem-se
pelo presente diploma normas de disciplina e ordenamento dentro dos complexos,
recintos desportivos e áreas de competição' - diz o seu artigo 1º).
Daí que o Tribunal Constitucional tenha de se debruçar
sobre o pedido de declaração de inconstitucionalidade apresentado pelo Provedor
de Justiça, relativamente àquele diploma, no que toca aos seus preceitos ora
questionados, e também quanto à norma do artigo 106º do Regulamento.
E, para já, importa fazer a delimitação do objecto do
pedido:
Como resulta do simples enunciado do pedido, só há que
conhecer da inconstitucionalidade das normas do Decreto-Lei nº 61/85 se vier a
declarar-se a inconstitucionalidade das normas do Decreto-Lei nº 270/89, e só
há que conhecer da inconstitucionalidade das normas do Decreto-Lei nº 339/80
se as normas do Decreto-Lei nº 61/85 vierem também a ser declaradas
inconstitucionais: é que, tendo o Decreto-Lei nº 270/89 revogado o Decreto-Lei
nº 61/85 e este revogado o Decreto-Lei nº 339/80 (cfr. o nº 2 do artigo 7º do
Código Civil), o nº 1 do artigo 282º da Constituição prescreve que 'a declaração
de inconstitucionalidade [...] com força obrigatória geral [...] determina a
repristinação das normas que ela [ a norma declarada inconstitucional],
eventualmente haja revogado' e o Provedor de Justiça pretende justamente 'obviar
à repristinação'.
Por consequência, só as normas do Decreto-Lei nº 270/89
questionadas pelo Provedor de Justiça - os artigos 3º, 4º, 5º e 6º - vão prima
facie merecer a nossa atenção e análise, sabendo-se depois se fica ou não
prejudicado o pedido que se destina a 'obviar à repristinação', e passando-se,
finalmente, à apreciação da norma do artigo 106º do Regulamento.
Dispõem os citados artigos:
'Artigo 3º
1 - A interdição dos recintos desportivos consiste na proibição temporária de o
clube desportivo a que sejam imputadas as faltas referidas no número seguinte
realizar no recinto desportivo que lhe estiver afecto jogos oficiais na
modalidade, escalão etário e categoria iguais àquele em que as faltas tenham
ocorrido.
2 - A medida de interdição é aplicável:
a) Quando se verifiquem nos recintos ou complexos desportivos distúrbios de
espectadores que provoquem lesões nestes, nos dirigentes, médicos,
treinadores, secretários, técnicos, auxiliares técnicos e empregados,
componentes da equipa de arbitragem, jogadores ou elementos das forças de
segurança com funções de manutenção da ordem bem como os que causarem danos
patrimoniais;
b) Quando os actos referidos na alínea anterior criem dificuldades ao início ou
prosseguimento do jogo que levem o árbitro, justificadamente, a não dar início
ao mesmo, a interrompê-lo ou a dá-lo por findo.
3 - A medida de interdição é igualmente aplicável em caso de tentativa de
agressão ou de actos intimidatórios organizados contra as entidades e
elementos referidos na alínea a) do número anterior.
4 - Compete às federações, nos termos dos respectivos regulamentos, graduar,
por número de jogos, a sanção de interdição, em função da gravidade dos
incidentes e da sua frequência.
5 - Para além da medida referida no número anterior, a federação ou associação
desportiva competente poderá aplicar as sanções previstas nos regulamentos da
respectiva modalidade.
6 - O clube desportivo a que for aplicada a medida de interdição ficará
obrigado, a suas expensas, a vedar a área de competição e a construir um túnel
de acesso aos balneários no seu recinto desportivo, sem o que não se poderão
ali realizar jogos da mesma modalidade, escalão etário e categoria daquele que
determinou a interdição.
7 - A aplicação de medida de interdição do recinto desportivo com fundamento na
verificação de distúrbios implica ainda a imposição, ao clube responsável, da
obrigação de suportar a totalidade das despesas de policiamento do jogo em que
se verificaram, podendo esta obrigação ser estendida, em casos de especial
gravidade, a outros jogos da mesma modalidade, escalão etário e categoria, a
realizar pelo mesmo clube.
Artigo 4º
1 - A medida de interdição só pode ser aplicada mediante a instauração de
processo disciplinar a efectuar pela federação ou associação desportiva
competente.
2 - Instaurado o processo disciplinar referido no número anterior, e desde que o
relatório da força policial, da equipa de arbitragem ou da entidade investida no
mesmo poder forneça indícios seguros do cometimento da infracção, serão os
recintos desportivos interditos preventivamente, sendo esta medida sempre
levada em conta na sanção que for aplicada ao clube desportivo.
Artigo 5º
1 - Ao clube desportivo que, possuindo vedação e túnel de acesso aos balneários
com as características definidas no regulamento referido no artigo 8º, sofra a
medida de interdição, poderá ser aplicada, pela respectiva federação ou
associação, uma sanção pecuniária de carácter disciplinar, cujo montante
variará entre 20 000$ e 1 000 000$, conforme as circunstâncias, a qual reverterá
em partes iguais para um fundo da federação ou associação para obras e acções de
fomento da ética desportiva e para reforço das verbas afectas ao Ministério da
Administração Interna destinadas a fazer face aos encargos com o policiamento
dos espectáculos desportivos e à formação especializada dos elementos das
forças de segurança na prevenção e controlo das manifestações de violência
associada ao desporto.
2 - A aplicação da medida de interdição ao clube desportivo que possua vedação
e túnel de acesso aos balneários sem as características definidas no regulamento
a que se refere o artigo 8º obriga-o a proceder às adaptações necessárias ao
cumprimento desse regulamento, cujo custo será suportado pelo clube desportivo
sancionado, sem prejuízo da sanção pecuniária prevista no número anterior, na
proporção nele mencionada.
Artigo 6º
1 - Em caso de reincidência, ao clube responsável é aplicável, para além das
sanções disciplinares previstas nos regulamentos da respectiva federação ou
associação, a sanção pecuniária de carácter disciplinar referida no artigo 5º,
nº 1, no montante mínimo de 500 000$, a qual reverterá para as entidades
referidas no nº 1 do artigo anterior na proporção e com as finalidades nele
mencionadas.
2 - Existe reincidência quando na mesma época o clube desportivo seja
considerado responsável por factos idênticos àqueles que determinaram a
aplicação da sanção prevista no artigo 3º do presente diploma, após decisão
definitiva sobre a mesma.
E dispõe o citado artigo 106 do Regulamento:
'106º
(Dos distúrbios)
1- Os clubes que não assegurem a ordem e a disciplina dentro da área dos
recintos ou complexos desportivos, antes, durante e após a realização dos
jogos, da natureza dos previstos no Art. 42º e desde que se verifique qualquer
distúrbio provocado por espectador ou espectadores seus adeptos ou
simpatizantes, serão sempre por estes responsáveis e punidos nos termos
seguintes:
a) Sempre que se verifique perturbação da ordem ou disciplina, designadamente
arremesso de objectos, agressões, ameaças ou tentativas, incitamentos grave
contra espectadores, agentes da autoridade em serviço, dirigentes, médicos,
treinadores, secretários, técnicos, auxiliares técnicos, empregados,
componentes da equipa de arbitragem, jogadores ou ainda amotinação, sua ameaça
ou tentativa, invasão de campo, sua ameaça ou tentativa, seja ou não com o
propósito de protestar ou molestar os referidos intervenientes, os Clubes serão
punidos com a multa de 10 000$00 (dez mil escudos) a 25 000$00 (vinte e cinco
mil escudos).
b) Se qualquer dos factos enunciados na alínea anterior causar interrupção não
definitiva no jogo ou originar dificuldades especiais ao seu início, reinício ou
prosseguimento, os Clubes são punidos com a pena de interdição de um a dois
jogos do seu campo ou como tal considerado e com multa de 25 000$00 (vinte e
cinco mil escudos) a 100 000$00 (cem mil escudos).
Igual pena será aplicada aos Clubes em caso de grave tentativa de agressão ou
graves actos intimidatórios organizados contra as entidades e elementos
referidos na alínea a), bem como quando forem causados graves danos
patrimoniais;
c) Se o distúrbio der causa a que as pessoas referidas na alínea a) sejam
molestadas, mas não levar à interrupção do jogo nem originar dificuldades
especiais ao seu início, reinício ou prosseguimento, os Clubes serão punidos com
a pena de interdição do seu campo ou considerado como tal, por um a seis jogos e
multa de 30 000$00 (trinta mil escudos) a 120 000$00 (cento e vinte mil
escudos);
d) Se o distúrbio der causa a que as pessoas referidas na alínea a) sejam
molestadas e levar o árbitro a interromper o jogo e originar dificuldades
especiais ao seu início, reinício ou prosseguimento, os Clubes serão punidos
com interdição do seu campo ou considerado como tal por dois a oito jogos e a
multa de 50 000$00 (cinquenta mil escudos) e 150 000$00 (cento e cinquenta mil
escudos);
e) Se o distúrbio der ou não causa a que as pessoas referidas na alínea a) sejam
molestadas, e levarem o árbitro justificadamente a não dar início ou reinício ao
jogo ou dá-lo por findo antes do tempo regulamentar, os Clubes serão punidos com
a interdição do seu campo ou considerado como tal por três a doze jogos e multa
de 70 000$00 (setenta mil escudos) a 200 000$00 (duzentos mil escudos);
2- Quando, dos factos previstos nas alíneas d) e e) do nº 1, resultarem graves
consequências para as pessoas referidas na alínea a) do mesmo número ou sempre
que o campo de jogos seja invadido colectivamente em atitude de protesto ou com
a intenção de agredir, por espectadores, simpatizantes ou adeptos de um ou ambos
os Clubes, este ou estes serão ainda punidos com a medida de segurança de
vedação do campo de jogos.
3- Quando o árbitro não dê início ao jogo ou lhe ponha termo antes do tempo
regulamentar, será instaurado processo disciplinar contra os autores dos
distúrbios.
4- Se, em face de tal, se provar que os distúrbios foram praticados por
associados ou adeptos de um Clube, a este será aplicada a pena de derrota; e se
provar que aqueles foram praticados por associados ou adeptos de ambos os
Clubes, a estes será aplicada a referida pena de derrota, sem a consequente
atribuição de pontos a qualquer deles.
5. Se se vier a provar que não foi justificada a decisão do árbitro de não dar
início ao jogo ou de lhe pôr termo antes do tempo regulamentar, aplicar-se-ão
as sanções previstas nas alíneas a) e d) do número 1, deste Artigo, conforme os
casos, e mandar-se-á complementar o tempo de jogo que faltar para a sua
conclusão, respeitando-se o resultado que se verificava no momento da sua
interrupção.
6. Se se provar, com segurança, por quem esses distúrbios foram provocados,
deverá repetir-se o jogo nos termos do número anterior.
7.-1 Por complexo desportivo entende-se o conjunto de terrenos, construções e
instalações destinado à prática desportiva de uma ou mais modalidades,
pertencente ou explorado por uma só entidade, compreendendo os espaços
reservados ao público e ao parqueamento de viaturas, bem como arruamentos e
dependências anexas necessários ao bom funcionamento do conjunto.
-2 Consideram-se limites exteriores do complexo desportivo as vias públicas onde
vão dar os seus acessos.
-3 Por recinto desportivo entende-se o espaço criado exclusivamente para a
prática do desporto, com carácter fixo e com estruturas de construção que lhe
garantem essa afectação e funcionalidade, dotado de lugares permanentes e
reservados a assistentes, sob controlo de entrada.
-4 Por área de competição entende-se a superfície onde se desenrola a
competição, incluindo as zonas de protecção definidas de acordo com os
regulamentos internacionais da respectiva modalidade.
8. Em qualquer circunstância, independentemente do disposto no número 7, o Clube
será sempre responsável pelos distúrbios provocados, por ocasião dos jogos,
pelos seus sócios ou simpatizantes, quando devidamente comprovados.'
8. Estamos no domínio do ilícito disciplinar ou
disciplinar desportivo. E, por isso, são de aplicar aqui, 'em tudo quanto não
esteja expressamente regulado', 'os princípios que garantem e defendem o
indivíduo contra todo o poder punitivo': 'assim, a culpa [...] deve, ao menos
em princípio, ser pressuposto da punição' (Eduardo Correia, Direito Criminal,
com a colaboração de Figueiredo Dias, I, reimpressão, 1971, § 2º, nº 9).
E o que se diz é que as normas em causa, isto é, os
artigos 3º a 6º do Decreto-Lei nº 270/89, ao permitirem a punição dos clubes
desportivos com a sanção (disciplinar) de interdição dos recintos desportivos e
uma sanção pecuniária de carácter disciplinar, por faltas praticadas por
espectadores - as descritas nos nº 1. 2 e 3 do artigo 3º -, e na medida em que,
na linguagem do requerente, tais disposições contemplam um inequívoco regime de
responsabilidade objectiva, deverão considerar-se materialmente
inconstitucionais (de penas disciplinares fala Michel Zen-Ruffinen, in ZStr R/
RPS - Revue Pénale Suisse, Fasc. 3, 1991, págs 344).
Por aqui vai começar então a análise da questão da
inconstitucionalidade.
Interessa, porém, como nota preâmbular, fazer uma breve
incursão, fundamentalmente de raiz sociológica, no fenómeno da violência
associada ao desporto, com destaque para a violência no futebol, de que são
trágicos exemplos, de todos conhecidos, entre muitos outros, o Estádio de
Heysel, na Bélgica, e o Estádio de Hillsborough, Sheffield, na Inglaterra,
matéria que nestes últimos anos tem sido versada por alguns especialistas (por
exemplo, a temática do futebol na Grã-Bretanha tem sido objecto de investigação
na Universidade de Leiscester, com financiamentos do órgão governamental The
Football Trust); em vários países, publicam-se revistas periódicas de direito
desportivo, como, por exemplo, em Espanha, com o patrocínio do Conselho
Superior de Desportos, a 'Civitas - Revista española de Derecho Deportivo', em
Itália a 'Rivista di Diritto Sportivo').
Assim, e passando pela análise da subcultura do
holiganismo e da violência que lhe está ligada (na Bélgica chamam-se 'sides' os
grupos de jovens que constituem o núcleo duro das claques desportivas, fenómeno
estudado na época de 1989/1990 pelo psicólogo Manuel Comeron, in Revue de Droit
Penal et de Criminologie, Setembro/Outubro de 1992, págs. 829 e segs.), pode
ler-se, a titulo meramente exemplificativo, o que escreveram, a tal propósito:
- Bill Buford, que testemunha a violência do holiganismo
em locais tão diversificados como, entre outros, Manchester, Turim, Cambridge,
Dusseldorf e Sardenha, relatando-a, no livro 'Entre os Vândalos', ASA, 1994 (com
o subtítulo: 'O Futebol e a Violência'), de forma impressionante e impressiva,
em tom de novela (prefaciando a edição portuguesa, escreve Alfredo Farinha: 'O
leitor conhece-os (os vândalos). Menos bem do que os adeptos de outros países
europeus, através dos quais o autor deste livro, surpreendentemente atractivo
e bem escrito, andou, durante oito anos, a recolher notas sobre as
deambulações, os factos, os rituais, os segredos, os costumes, os desmandos e
até os rostos e as almas - a prática e a filosofia, em suma - dos novos bárbaros
da Europa. Conhece-os menos bem, porque o fenómeno, em Portugal, 'país de
brandos costumes', ou é já o último dos círculos que a pedrada no lago pôs a
cirandar sobre a palma das águas, ou não atingiu ainda o auge do ímpeto com que
tem vindo a manifestar-se noutras paragens. Mas o leitor, repita-se,
conhece-os. São os adeptos do futebol. Melhor: são os acompanhantes fanáticos
dos clubes de futebol').
- Norbert Elias, no livro 'A Busca da Excitação', DIFEL,
1992, obra colectiva em colaboração com Eric Dunning, Patrick Munphy e Jonh
Williams, reflectindo sobre a violência dos espectadores de futebol nestes
termos:
'Talvez seja interessante reflectir sobre o facto de as desordens internas terem
desaparecido completamente nos países mais desenvolvidos e organizados,
enquanto os distúrbios do futebol persistem. Algumas das injustiças que se
encontravam na origem do primeiro tipo de violência, tais como o perigo de fome,
podem ter desaparecido em grande medida destas sociedades de abundância. Outras
injustiças, não menos prementes, encontram agora a sua expressão nos
distúrbios. A falta de pão, que foi mais ou menos remediada, é agora seguida
pela ausência de sentido. A partir das áreas cinzentas de marginais que se
formam à volta da maior parte das grandes cidades mais desenvolvidas, as
pessoas, em especial os jovens, olham através das janelas para o mundo
estabelecido. Podem ver que é possível uma vida com mais sentido e mais
realizada do que a sua própria vida.
Seja qual for o seu sentido intrínseco, isso possui um significado para eles e
sabem, ou talvez apenas possam sentir, que estão privados disso para toda a
vida. E embora por vezes acreditem que lhes foi feita uma grande injustiça,
nem sempre é claro saber por quem foi cometida. Por esse motivo, a vingança é,
com frequência, o seu grito de guerra. Um dia a gota de água transborda e eles
procuram vingar-se sobre alguém' (pág. 93).
- Eric Dunning, no mesmo livro, citando 'quatro aspectos
no holiganismo do futebol actual', a seguir sintetizados:
'1) O facto de os grupos rivais envolvidos parecerem estar, por vezes, tanto ou
mais interessados em opor-se uns aos outros como em assistir ao futebol. As
suas próprias explicações sugerem que obtêm prazer positivo no confronto e que a
capacidade de luta constitui a principal fonte quer de prestígio individual
quer do grupo.
2) O facto de os grupos rivais serem recrutados, principalmente, no mesmo nível
de estratificação social, isto é, a partir dos chamados sectores 'rudes', das
classes trabalhadoras (...).
3) O facto de o confronto entre tais grupos tomar a forma de uma vendetta no
sentido em que, independentemente de qualquer acção que possam desencadear por
sua iniciativa, indivíduos e grupos atacam apenas porque os outros ostentam a
insígnia de membro de um grupo rival. Os conflitos que se desenvolvem, a longo
prazo, entre grupos rivais de fans hooligans, e que perduram apesar da mudança
de posição de elementos que ocorre dentro de semelhantes grupos, aponta na
mesma direcção, isto é, constituem uma referência bastante acentuada de
identificação de hooligans particulares em relação aos grupos a que pertencem.
4) O notável grau de conformidade e de uniformidade na acção que é exibido nas
canções e coros dos hooligans do futebol. Um tema corrente destas canções e
coros é o engrandecimento da imagem masculina de se pertencer ao grupo,
associado à difamação e à emasculação daqueles que não pertencem ao
grupo(...)'(págs.351/352).
- Alberto Altamirano, no livro 'Violência, Delito y
Deporte', DEPALMA, Buenos Aires, 1987, traça em tons fortes um quadro da
realidade futebolística e diz:
'Creio que todos aqueles que se decidem a presenciar um encontro, sabem a nível
consciente ou inconsciente que se acercam de uma zona de confrontação e esperam
sair airosos dela'.
- P. Murphy, J. Williams e E. Dunning, no livro 'O Futebol
no Banco dos Réus', CELTA EDITORA, 1994, com um retrato exaustivo da realidade
britânica e do fenómeno do holiganismo, fazendo um juízo prospectivo nestes
termos:
'Não restam dúvidas de que - tanto a nível nacional como europeu - é necessária
uma acção decisiva que abarque os múltiplos aspectos da actual crise vivida pelo
futebol. Em particular, é preciso actuar em relação às práticas de jogo
violento e fraudulento. No entanto, muito mais urgente é a tomada de medidas em
relação à violência dos espectadores, bem como relativamente ao padrão dos
relatos da comunicação social, os quais, com excessiva frequência, geram pontos
de vista distorcidos sobre os aspectos subjacentes a essa violência. Se não se
tomarem medidas efectivas nestas duas esferas, o futebol, sem dúvida a mais
civilizada e, quando devidamente organizado e jogado de acordo com as regras, a
potencialmente mais civilizadora das invenções sociais, ficará irremediavelmente
desfavorecido na competição com o seu rival norte-americano, o qual é
intrinsecamente mais violento mas também mais apoiado pelo capital e pelos meios
de comunicação social' (pág. 22).
Ora, parece evidente que tudo isto - tudo o que vinha
acontecendo e toda esta preocupação destes últimos 20/30 anos em analisar,
estudar, dissecar nos seus vários aspectos o desporto, nomeadamente o futebol e
o lado trágico que a ele se tem ligado nos locais mais dispersos do Mundo - não
podia deixar de ter influência nos Estados, sobretudo no plano legiferante,
prosseguindo, como devem prosseguir, fins públicos relacionados com a segurança
dos cidadãos e com os objectivos culturais que devem presidir à prática
desportiva.
Influência que, por exemplo, entre nós, levou o legislador
constitucional, na revisão de 1989, a atribuir ao Estado a incumbência de
'prevenir a violência no desporto' (artigo 79º, nº 2, da Constituição),
consagrando, assim, constitucionalmente, uma linha do legislador ordinário que,
como já se viu, desde 1980 se vinha ocupando dessa matéria, embora com um acento
tónico na fase repressiva do fenómeno da violência (e isto independentemente de
normas regulamentares, ainda que incipientes, das associações desportivas e
federações, como era o caso do Regulamento da F.P.F.).
Influência também que, a nível europeu, levou o Conselho
da Europa e o Parlamento Europeu, na década de 1980, a tomarem posições e a
adoptarem medidas, com vista a prevenir e a diminuir a violência e os distúrbios
dos espectadores por ocasião de manifestações desportivas, sendo de destacar a
Convenção Europeia atrás referida (pode ver-se a Convenção e demais
instrumentos, como resoluções, directivas, recomendações, tanto do Conselho,
como do Parlamento, em 'A Violência Associada ao Desporto', de José Manuel
Meirim, Ministério da Educação, 1994; e é curioso registar os seguintes
considerandos daquela Convenção: 'Considerando que tanto as autoridades públicas
como as organizações desportivas independentes têm responsabilidades, distintas
mas complementares, na luta contra a violência e os excessos dos espectadores;
tendo em conta o facto de as organizações desportivas terem também
responsabilidades matéria de segurança e em geral deverem assegurar o bom
andamento das manifestações que organizam; considerando por outro lado que estas
autoridades e estas organizações devem, para esse efeito, conjugar os seus
esforços a todos os níveis; Considerando que a violência é um fenómeno social
actual de vasta envergadura cujas origens são essencialmente exteriores ao
desporto e que o desporto é frequentemente palco de explosões de violência').
É, pois, primacialmente, um objectivo final de prevenção
que perpassa nas medidas repressivas adoptadas pelo legislador português, por
via das normas ora questionadas, ciente como tem de estar de que o desporto é,
neste século XX, um fenómeno social, um fenómeno de massas, atraindo
progressivamente mais espectadores e preenchendo cada vez mais o espaço dos
meios de comunicação social, sendo que, por um lado, escasseiam ou não têm
resultados as campanhas de informação destinadas a promover o 'fair play' no
desporto, e, por outro lado, as autoridades desportivas revelam-se incapazes de
tomar medidas drásticas, desde logo por não possuírem recursos para o fazer
(cfr. o relatório do Parlamento Europeu sobre o vandalismo e a violência no
desporto, citado por José Manuel Meirim, loc. cit., págs. 109 e seguintes).
9. Retomando agora o ponto em que se anunciou começar a
análise do mérito do pedido do requerente pela perspectiva da 'responsabilidade
objectiva' que, no seu discurso, decorre dos artigos 3º a 6º do Decreto-Lei nº
270/89, ora questionados, há que obter a resposta à questão de saber em que
medida um clube desportivo pode ser punido disciplinarmente por factos
praticados por agentes que sejam seus sócios ou simpatizantes. Por outras
palavras: em que medida é conforme à Constituição um sistema, como é o daquele
Decreto-Lei, que permite, além do mais, a punição dos clubes desportivos com a
sanção (disciplinar) de interdição dos recintos desportivos e uma sanção
pecuniária de carácter disciplinar, por faltas praticadas por espectadores, as
descritas nos nºs 2 e 3 do artigo 3º.
Preceitua agora, e importa destacar, o artigo 5º, da Lei
nº 1/90, de 13 de Janeiro:
'1 - A prática desportiva é desenvolvida na observância dos princípios da ética
desportiva e com respeito pela integridade moral e física dos intervenientes.
2 - À observância dos princípios da ética desportiva estão igualmente
vinculados o público e todos os que, pelo exercício de funções directivas ou
técnicas, integram o processo desportivo.
3 - Na prossecução da defesa da ética desportiva, é função do Estado adoptar as
medidas tendentes a prevenir e a punir as manifestações antidesportivas,
designadamente a violência, a corrupção, a dopagem e qualquer forma de
discriminação social'.
Ora, sendo isto assim, convém reter que as sanções
referidas nos artigos 3º a 6º do Decreto-Lei nº 270/89 são aplicadas aos clubes
desportivos, por condutas ilícitas e culposas das respectivas claques
desportivas (assim chamadas e que são os sócios, adeptos ou simpatizantes, como
tal reconhecidos) - condutas que se imputam aos clubes, em virtude de sobre eles
impenderem deveres de formação e de vigilância que a lei lhes impõe e que eles
não cumpriram de forma capaz.
Deveres que consubstanciam verdadeiros e novos deveres in
vigilando e in formando, decorrendo nomeadamente de condutas (v.g. declarações)
dos dirigentes do clube, a quem cabe velar, mesmo no plano pedagógico, pelo
'fair play' desportivo dos sócios ou simpatizantes do clube (podendo falar-se
aqui de uma certa intenção comunitária), sendo aceitável que a estes dirigentes
possam substituir-se como centros éticos-sociais de imputação jurídica, as
suas obras ou realizações colectivas (cfr. o citado Acórdão nº 302/95).
Aos clubes desportivos, com efeito, cabe o dever de
colaborar com a Administração na manutenção da segurança nos recintos
desportivos, de prevenir a violência no desporto, tomando as medidas adequadas,
como forma de garantir a realização do direito cultural consagrado no artigo 79º
da Constituição.
Prevê hoje, a tal propósito, a alínea g) do artigo 21º do
Decreto-Lei nº 144/93, de 26 de Abril:
'Para além de outras que se mostrem necessárias, as federações desportivas
dotadas de utilidade desportiva devem elaborar regulamentos que contemplem as
seguintes matérias:
(...)
g) Medidas de defesa da ética desportiva, designadamente nos domínios da
prevenção e da punição da violência associada ao desporto, da dopagem e da
corrupção no fenómeno desportivo.
(...)
Estamos, assim, em condições de responder afirmativamente
à questão da punição dos clubes desportivos, como foi posta a título
introdutório, pois, pode encontrar-se um fundamento de censura por culpa, na
imputação dos factos aos clubes.
Não é, pois, em suma, uma ideia de responsabilidade
objectiva que vinga in casu, mas de responsabilidade por violação de deveres.
Afastada desde logo aquela responsabilidade objectiva pelo facto de o artigo 3º
exigir, para a aplicação da sanção da interdição dos recintos desportivos, que
as faltas praticadas pelos espectadores nos recintos desportivos possam ser
imputadas aos clubes. E no mesmo sentido milita a referência que nesse mesmo
preceito (nº 7) e no artigo 6º (nº 1. 1 e 2) é feita ao clube responsável (pelos
distúrbios). Por fim, o processo disciplinar que se manda instaurar (artigo
4º) servirá precisamente para averiguar todos os elementos da infracção, sendo
que, por esta via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruida pelo
clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa
não é sócio, simpatizante ou adepto do clube).
Com o que não pode dar-se como verificada a tese
sustentada pelo requerente da violação do princípio da culpa (cfr. neste sentido
José Manuel Meirim, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 2, Fasc. 1,
págs. 85 e seguintes, afirmando: 'Não vemos, pois, como, e concluindo mesmo
levando às últimas consequências a exigência de culpa neste domínio, se pode ter
como inconstitucional a aplicação da sanção agora em causa').
10. O Provedor de Justiça invoca também a violação do
princípio da legalidade, que denega a hipótese de normas sancionatórias em
branco, pelo facto de o nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 270/89 permitir
impor sanções a um clube desportivo sem que se verificasse qualquer relação de
imputação das faltas cometidas (as referidas no nº 2) ao clube a punir e porque
nesse nº 2 alude-se a 'situações de violência' com 'conteúdo vago e fluido'.
Mas, não é o facto de elas poderem ser impostas pelas
entidades federativas competentes que estas o possam fazer de forma totalmente
desvinculada, na óptica do citado princípio da legalidade.
Também aqui, para além de previamente se ter de determinar
o ilícito e a sanção correspondente, torna-se necessário, além disso, que se
definam os seus elementos típicos.
Ora, o Provedor de Justiça considera que não existe rigor
na definição desses elementos, tal como consta do referido nº 2.
No entanto, a doutrina em geral aceita que a tipicidade
não exclui uma certa maleabilidade dos tipos no direito sancionatório de
carácter disciplinar.
Assim, afirma Eduardo Correia: 'não exclui que os
respectivos tipos possam ter maior maleabilidade do que aqueles que descrevem
infracções criminais, e, assim, que a cada passo contenham normas em branco,
remetendo para critérios fixados pela própria Administração com vista à
realização das suas finalidades salutistas' (in BFDC, V. XLIX, 1973, pág. 274).
E é ainda este Autor que afirma não haver no direito
disciplinar (que visa manter a ordem dentro dos serviços, o mesmo podendo
dizer-se do direito de mera ordenação social, em relação à comunidade em geral)
tipicização integral (no mesmo sentido cfr. ainda o acórdão nº 39/88, do
Tribunal Constitucional, in Diário da República, I série, nº 52, de 3 de Março
de 1988, proferido, embora, a propósito de situações do direito penal
secundário, maxime do direito penal económico).
Também no acórdão deste Tribunal Constitucional nº 666/94,
in Diário da República, II Série, nº 47, de 24 de Fevereiro de 1995, depois de
citada e transcrita jurisprudência da Comissão Constitucional, 'no sentido de
que a exigência da tipicidade (feita na Constituição quanto ao ilícito penal)
não valia no domínio contraordenacional', escreve-se:
' A regra da tipicidade das infracções, corolário do princípio da legalidade,
consagrado no nº 1 do artigo 29º da Constituição (nullum crimen, nulla poena,
sine lege), só vale, qua tale, no domínio do direito penal, pois que, nos demais
ramos do direito público sancionatório (maxime, no domínio do direito
disciplinar), as exigências da tipicidade fazem-se sentir em menor grau: as
infracções não têm, aí, que ser inteiramente tipificadas.
Simplesmente, num Estado de Direito, nunca os cidadãos (cidadãos-funcionários
incluídos) podem ficar à mercê de puros actos de poder. Por isso, quando se
trate de prever penas disciplinares expulsivas - penas, cuja aplicação vai
afectar o direito ao exercício de uma profissão ou de um cargo público
(garantidos pelo artigo 47º, nºs 1 e 2) ou a segurança no emprego (protegida
pelo artigo 53º) -, as normas legais têm que conter um mínimo de
determinabilidade. Ou seja: hão-de revestir um grau de precisão tal que permita
identificar o tipo de comportamentos capazes de induzir a inflicção dessa
espécie de penas - o que se torna evidente, se se ponderar que, por força dos
princípios da necessidade e da proporcionalidade, elas só deverão aplicar-se
às condutas cuja gravidade o justifique (cf. artigo 18º, nº 2, da
Constituição).
No Estado de Direito, as normas punitivas de direito disciplinar que prevejam
penas expulsivas, atenta a gravidade destas, têm de cumprir uma função de
garantia. Têm, por isso, que ser normas delimitadoras.
É que, a segurança dos cidadãos (e a correspondente confiança deles na ordem
jurídica) é um valor essencial no Estado de Direito, que gira em torno da
dignidade da pessoa humana - pessoa que é o princípio e o fim do Poder e das
instituições (cf. artigos 2º e 266º, nºs 1 e 2, da Constituição)'.
O que importa, como ressalta dos citados acórdãos, é que
se cumpra uma 'exigência da determinabilidade em termos de não haver
encurtamento do direito fundamental', que haja 'um mínimo de determinabilidade',
e isso é aqui respeitado.
Entende-se, na verdade, que as expressões utilizadas pelo
legislador - 'distúrbios de espectadores', 'dificuldades ao início ou
prosseguimento do jogo', 'tentativa de agressão ou de actos intimidatórios
organizados', 'gravidade dos incidentes' e 'sua frequência' - são
suficientemente 'claras', não pondo, por isso, em causa o princípio da precisão
ou determinabilidade das leis (cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional,
5ª. edição, totalmente refundida e aumentada, 1991, parte IV, capítulo 1, B|,
IV, 2.1). Por outras palavras: as normas em causa contêm 'uma caracterização
minimamente precisa dos comportamentos a que se aplicam', fornecem 'à entidade
com competência disciplinar um critério de decisão que lhe permita agir com
segurança no momento de avaliar este ou aquele comportamento desviante' (na
linguagem do citado Acórdão nº 666/94).
Com o que não pode falar-se em imprecisão ou
indeterminabilidade do artigo 3º, nas perspectivas adiantadas pelo requerente.
E, para finalizar, quanto aos termos em que o questionado
artigo 3º coloca a imputação das faltas ao clube desportivo, é bom de ver que o
núcleo essencial da violência associada ao desporto radica, na economia do
diploma, e como realçam os sociólogos, nos espectadores, mas estes - e não se
discutindo a responsabilidade individual de cada um deles - são normalmente os
sócios, adeptos ou simpatizantes dos clubes em presença (as chamadas claques
desportivas, que se identificam com o respectivo clube desportivo) e, por
consequência, o sujeito passivo da aplicação das medidas sancionadoras não é só
o clube visitado. Em regra, assim acontecerá, na medida em que sobre ele recai
um conjunto de deveres que lhe são impostos por lei, no sentido de assegurar
que não ocorram distúrbios de espectadores (e não só dos seus sócios, adeptos
ou simpatizantes) no recinto desportivo, mas não podem marginalizar-se
situações em que é o clube visitante a desrespeitar deveres relativamente ao
comportamento dos seus sócios, adeptos ou simpatizantes (por alguma razão, é do
conhecimento comum a prática generalizada - prevista no artigo 12º, nº 1, alínea
b) do mesmo diploma - de separar por diferentes sectores dos recintos
desportivos as claques desportivas, que hoje são perfeitamente localizáveis
através dos elementos exteriores, como sejam, bandeiras, panos, roupas,
pinturas faciais, de que se servem, sendo que, para além de normas legais e
regulamentares tendentes a concretizar essa separação, há recomendações e
medidas emitidas pela Comissão Nacional de Coordenação e Fiscalização, criada
pelo mesmo Decreto-Lei nº 270/89, relativamente a 'antes do dia do jogo',
'durante o dia do jogo' e 'depois do dia do jogo' - cfr. a publicação
'Organização de Espectáculos Desportivos', da dita Comissão).
Daí que se possa dizer que há sempre uma relação de
imputação das faltas cometidas ao clube a punir, ainda que este seja o visitante
(outra é a postura de José Manuel Meirim, loc. cit., pág. 92, que sustenta não
poder 'ser imputada ao clube não responsável pela organização de determinada
competição desportiva o desrespeito dos deveres relativos à segurança das
instalações nem as acções ilícitas de espectadores').
Por consequência, também neste ponto naufraga a tese
sustentada pelo requerente, a propósito da violação do princípio da legalidade.
11. Invoca ainda o Provedor de Justiça a violação do
princípio do ne bis in idem porque - afirma ele - sendo endossada à F.P.F. (e
demais federações ou associações) a aplicação da medida de interdição dos
recintos desportivos, contemplada no artigo 3º do Decreto-Lei nº 270/89, pode
ela (ou qualquer outra) aplicar idêntica medida, como será o caso da prevista
no artigo 106º do Regulamento, por força do disposto no nº 5 daquele preceito.
Na verdade, para que o referido princípio se mostre
violado, necessário se torna que ao mesmo facto seja imposta a mesma pena por
duas vezes.
Importa, assim, antes de mais, verificar o que diz aquele
nº 5, o qual só tem sentido quando conjugado com o estabelecido no nº 4 do
mesmo artigo.
Dispõe este nº 4:
Compete às federações, nos termos dos respectivos regulamentos, graduar, por
número de jogos, a sanção da interdição em função da gravidade dos incidentes e
da sua frequência.
Por sua vez, estabelece o nº 5:
Para além da medida referida no número anterior, a federação ou associação
desportiva competente poderá aplicar as sanções previstas nos regulamentos da
respectiva modalidade.
Ora, qualquer que seja a natureza dessa medida de
interdição, não pode deixar de entender-se que ela será sempre a mesma em ambos
os diplomas.
Os nºs 1. 2 e 3 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 270/89
limitam os casos em que tem lugar a aplicação da medida de interdição e, como
vimos, o seu nº 4 preceitua que é em função da gravidade dos incidentes e da
sua frequência que a sanção é graduada.
Assim, por exemplo, se a F.P.F. chegar à conclusão que,
mesmo provados alguns daqueles casos, contemplados na lei, eles não são
suficientemente graves que justifiquem a aplicação daquela medida, então ela
poderá recorrer à aplicação de outras sanções... mas nunca de uma outra
interdição (prevista no Regulamento). Ou então, pode aplicar a medida de
interdição fora dos referidos casos.
E que isto é assim, é comprovado pela própria maneira
como o nº 5 está redigido:
Para além da medida referida no número anterior ( ... ) poderá aplicar.
O preceito não permite a aplicação simultânea ou sucessiva
da medida.
Nem o facto de um clube que sofra a medida de interdição
poder vir a ser alvo simultaneamente de aplicação de outras sanções, mesmo
possuindo vedação e túnel de acesso aos balneários, é violador desse princípio.
Com efeito, nada impede que, para além dessa medida,
possa ser aplicada uma outra sanção, uma sanção pecuniária, pois no direito
disciplinar desportivo não vigora o princípio da pena única.
Escreve, a propósito, José Manuel Meirim:
'É evidente a aparência que só uma leitura apressada e desligada dos mecanismos
próprios ao direito desportivo poderá sustentar.
O que o diploma estabelece é um quadro mínimo de actuação exigido às diversas
federações desportivas, onde se inclui, verificados os requisitos exigidos
pela lei, a aplicação da medida de interdição do recinto desportivo, sob pena
de, se as federações não aplicarem essa medida (competência que lhes é delegada
pelo diploma e que exercem de forma exclusiva), agirem contrariamente à lei,
com as consequências a retirar no âmbito das suas relações com o Estado, como
associação que deve respeitar, como qualquer outra, o disposto na lei, na
prossecução dos seus fins, e ainda como pessoa colectiva de utilidade pública.
Do que esta norma se ocupa é de manter um espaço próprio para os regulamentos
federativos preverem outro tipo de sanções, por exemplo, de carácter pecuniário
ou mesmo de índole desportiva (averbamento de derrota na competição desportiva
onde se verificaram as causas que motivaram a aplicação da medida de
interdição)' (loc. cit. pág. 93).
Com que, e em conclusão, também não procede a invocada
violação do princípio do ne bis in idem.
12. Tendo-se concluído sempre pela improcedência da tese
sustentada pelo Provedor de Justiça, quer a propósito da violação do princípio
da culpa, quer quanto à violação do princípio da legalidade, ou ainda
relativamente à violação do princípio ne bis in idem, decai o pedido que ele
formula 'para obviar à repristinação', em relação às normas, entretanto já
revogadas, dos artigos 3º, 4º, 5º, 6º e 7º do Decreto-Lei nº 61/85, de 12 de
Março, diploma que 'estabelece normas de disciplina e ordenamento dentro dos
complexos, recintos e áreas de competição desportivos, com o objectivo de
prevenir e reprimir a violência nesses locais', bem como dos artigos 3º, 4º, 5º
e 6º do Decreto-Lei nº 339/80, de 30 de Agosto, diploma que 'estabelece um
conjunto mínimo de medidas tendentes a conter, a curto prazo, a violência em
recintos desportivos' (os artigos 3º, 5º e 6º na redacção que lhes foi dada
pela Lei nº 16/81, de 31 de Julho, ou seja, a lei que altera, por ratificação, o
referido Decreto-Lei nº 339/80).
É que, como atrás ficou dito, quando se fez a delimitação
do objecto do pedido do requerente, só há que conhecer da inconstitucionalidade
das normas do Decreto-Lei nº 61/85 se vier a declarar-se a inconstitucionalidade
das normas do Decreto-Lei nº 270/89, e só há que conhecer da
inconstitucionalidade das normas do Decreto-Lei nº 339/80 se as normas do
Decreto-Lei nº 61/85 vierem também a ser declaradas inconstitucionais: é que,
tendo o Decreto-Lei nº 270/89 revogado o Decreto-Lei nº 61/85 e este revogado o
Decreto-Lei nº 339/80 (cfr. o nº 2 do artigo 7º do Código Civil), o nº 1 do
artigo 282º da Constituição prescreve que 'a declaração de
inconstitucionalidade [...] com força obrigatória geral [...] determina a
repristinação das normas que ela [a norma declarada inconstitucional],
eventualmente haja revogado' e o Provedor de Justiça pretende justamente 'obviar
à repristinação'.
Ora, tendo-se concluído pela conformidade constitucional
das normas daquele Decreto-Lei nº 270/89, há que registar apenas que não se vai
tomar conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade das normas
já revogadas dos Decretos-Leis nºs 61/85, de 12 de Março, e 339/80, de 30 de
Agosto, este na redacção da Lei nº 16/81, de 31 de Julho, constantes desse
pedido.
13. Por último, importa apreciar a questão da
inconstitucionalidade da norma do artigo 106º do Regulamento, sujeita, como
ficou assente, à sindicabilidade deste Tribunal Constitucional.
Só que, neste ponto, a tarefa está facilitada, na medida
em que o Provedor de Justiça funda tal questão nas mesmas razões que adianta
relativamente à questão da inconstitucionalidade das normas do Decreto-Lei nº
270/89.
Segundo ele, 'e de qualquer forma, o próprio art. 106º do
Regulamento Disciplinar é, em si mesmo, inconstitucional, por assentar numa
responsabilidade sem culpa e por actos de terceiros que não actuam em nome, ou
em representação, ou por delegação do clube'.
Mas, como ficou já analisado a propósito das normas
daquele Decreto-Lei nº 270/89, não pode deixar de ser afirmativa a resposta à
questão da punição dos clubes desportivos, pois, pode sempre encontrar-se uma
ideia de censura a imputar aos clubes, não vingando in casu uma ideia de
responsabilidade objectiva dos clubes ( e daí ter-se concluído que não pode
dar-se como verificada a tese sustentada pelo requerente da violação do
princípio da culpa).
Reeditando, portanto, os fundamentos que constam dos
pontos 8. e 9. deste acórdão, nada mais interessa adiantar para afirmar a
conformidade da questionada norma do artigo 106º à Lei Fundamental.
O requerente invoca ainda que inconstitucionalizadas 'as
normas dos Decretos-Leis, e declarada, portanto, a sua nulidade, com efeito
retroactivo, poderá aquele art. 106º o seu suporte legal; a sua fons vitae'.
Todavia, como não se concluiu pela inconstitucionalidade
de tais normas, perderá sentido aquela invocação.
10. Termos em que, se DECIDE:
a) Desatender as questões prévias da incompetência do
Tribunal Constitucional e da ilegitimidade do requerente, relativamente à norma
do artigo 106º do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol,
aprovado na assembleia geral extraordinária de 18 de Agosto de 1984, com as
alterações introduzidas na assembleia geral extraordinária de 4 de Agosto de
1990;
b) Não declarar a inconstitucionalidade das normas dos
artigos 3º, 4º, 5º e 6º do Decreto-Lei nº 270/89, de 18 de Agosto, nem a da
norma do artigo 106º do citado Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa
de Futebol;
c) Consequentemente, não tomar conhecimento do pedido de
declaração de inconstitucionalidade das normas já revogadas dos Decretos-Leis
nºs 61/85, de 12 de Março, e 339/ /80, de 30 de Agosto, este na redacção da Lei
nº 16/81, de 31 de Julho, constantes do pedido.
Lx. 14.12.95
Guilherme da Fonseca
Armindo Ribeiro Mendes
Fernando Alves Correia
Messias Bento
Maria Fernanda Palma
José de Sousa e Brito
Luís Nunes de Almeida
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
José Manuel Cardoso da Costa