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Procº. nº. 358/94
2ª. Secção
Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª. Secção do Tribunal Constitucional:
I
A CAUSA
1. No Tribunal de Trabalho de Lisboa, A., demandou em acção
ordinária emergente de contrato de trabalho, a B., pedindo, em função de
despedimento sem justa causa e sem precedência de processo disciplinar, a
condenação da ré a reintegrá-lo e a pagar-lhe as prestações pecuniárias que, não
fora esse despedimento, teria auferido.
No desenvolvimento desta acção, tendo ocorrido a
publicação do DL 161/82, de 7 de Maio e da Portaria nº. 653/82, de 30 de Junho,
viria a ré a requerer, em função das disposições destes diplomas, a declaração
de extinção da instância (fls.47 – Vol. I). Acolhida tal pretensão (despacho de
fls. 52/53 - Vol. 1) viria, na sequência de agravo interposto pelo autor, a ser
revogado o despacho respectivo por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
(fls.70/72 - Vol.I), onde se entendeu que a norma contida no ponto 2 da alínea
a), do nº 6 da Portaria 653/82, ao determinar que a extinção da B. - operada
pelo DL 161/82 - implicava a extinção da instância nas acções intentadas contra
esta, extravasando os limites regulamentares do DL 161/82 não 'merecia
acatamento pelos tribunais'.
Tendo os autos baixado à 1ª instância, foi
proferido novo despacho julgando extinta a instância (fls. 112 - Vol. I), desta
feita por inutilidade superveniente da lide, nos termos do artº 276º, nº 3, do
Código de Processo Civil (CPC), essencialmente por se entender não poder a
acção prosseguir contra uma pessoa jurídica declarada extinta, quando a
manutenção da personalidade jurídica desta (v. nº 2, do artigo 1º., do DL
161/82) visava apenas efeitos de liquidação, liquidação que era, na lógica dos
diplomas em causa, extra-judicial.
Interposto novo agravo pelo autor, foi o despacho
de extinção da instância de novo revogado pelo Tribunal da Relação de Lisboa
(Acórdão de fls. 142/144 - Vol. I), por se entender que a referida acção
declarativa se inseria no processo de liquidação, não tendo o crédito nela
reclamado sido inserido no mapa referido na Portaria nº. 653/82, e sendo
facultado o recurso aos tribunais pelo nº. 12 da citada Portaria. Entendeu a
Relação de Lisboa que a cessação dos direitos de acção dos credores da B. não
abrangia as acções pendentes à data da publicação do DL 161/82, em que fossem
exigidos créditos que a Comissão Liquidatária não reconhecesse, por isso
implicar o absurdo de pôr fim a uma acção para logo de seguida intentar outra
igual.
Transitada esta decisão, viria a acção
declarativa a ser julgada sendo definitivamente decidida por Acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça de 11.07.87 (Acórdão de fls. 252/257 - Vol.II) condenando a
ré a pagar ao autor as retribuições que este teria auferido desde a data do
despedimento até à extinção da B. pelo DL 161/82.
2. Em 17.03.88, veio o referido A. requerer a execução do
seu crédito, liquidando-o previamente no montante de 695.176$00 e nomeando bens
à penhora.
Não tendo a executada B. contestado a liquidação
(v. fls. 10 - Vol. III), deduziu, através de embargos, oposição à execução (fls.
2/5 - Vol. IV), invocando que subsistindo o nº 3, do artº 3º., do DL 161/82, que
determina cessarem 30 dias após a sua entrada em vigor, para os credores
residentes no País, 'os direitos de acção contra a empresa ou sobre os seus
bens', remetendo-se os credores para o processo de liquidação regulamentado
pela Portaria 653/82, faltaria, em função dessa extinção dos direitos de acção,
o pressuposto relativo ao tribunal consubstanciado na existência de um direito
de acção, relativamente à acção executiva.
Acrescenta a executada que o entendimento fixado
na acção declarativa, quanto à existência de um direito de acção contra a B.,
mesmo após a extinção, visava exclusivamente essa acção declarativa, e não a
execução, sendo esta uma nova instância já iniciada na vigência do DL 161/82.
Contestou o exequente estes embargos (fls. 8/12 -
Vol. IV), defendendo valerem quanto à execução os fundamentos que, na acção
declarativa, levaram à prolação de dois Acórdãos determinando o prosseguimento
da acção, sendo que - como defende - a instância executiva não apresenta no caso
independência da instância declarativa, visando apenas aquela realizar o
direito definido nesta.
Foram tais embargos julgados no sentido da
improcedência (Sentença de fls. 18/20 - Vol.IV), no essencial, pelas seguintes
razões:
- 1. A cessação dos direitos da acção contra a B. ou sobre os seus bens
não se aplica às acções que se encontram pendentes em juízo.---
- 2. À data da entrada em vigor do Dec.Lei nº 161/82 o direito e
consequente crédito do embargo eram litigiosos. Tendo esse carácter não era
legítimo ao embargado reclamar o seu crédito junto da comissão liquidatária da
B.------------------------
- 3. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça é exequível nos termos do
Artº. 2º do Código de Processo Civil e 91º do Código de Processo de
Trabalho.----------------------------------
-----A interpretação oposta conduz à violação do Artº 20º da Constituição da
República Portuguesa.----------------------------------
- 4. Não tendo o embargante pago o crédito do autor a execução judicial é
a via legal para a realização do seu direito.-------------------'
Inconformada apelou a executada/embargante B.,
reeditando a argumentação constante dos embargos, acrescentando que a
inexequibilidade do crédito do embargado fora do âmbito próprio da extinção e
liquidação, decorrentes do DL 161/82 e Portaria 653/82, não ofende o princípio
consagrado no artigo 20º., da Constituição, 'quer porque a protecção jurídica é
definida «nos termos da lei», quer porque, no âmbito daquela regulamentação e
face ao mapa de créditos, é concedido ao reclamante a possibilidade de recurso
aos tribunais comuns', acrescentando que 'o efeito da decisão proferida na acção
declarativa só poderá ser o (...) reconhecimento do crédito do embargado para
inclusão no mapa de créditos'. O entendimento contrário - defendeu ainda a
embargante - violaria o princípio constitucional da igualdade, colocando o
embargado em situação de desigualdade face aos restantes credores da B..
O embargado, por sua vez, nas suas
contra-alegações (fls. 31/40 - Vol. IV), renovou a argumentação que, em oposição
aos embargos, já apresentara, acrescentando-lhe as seguintes considerações
versando matéria de inconstitucionalidade:
' Se as disposições do Decreto-Lei nº. 161/82 e da Portaria nº. 653/82
tivessem o sentido que a B. pretende dar-lhes, elas seriam realmente
inconstitucionais.
Com efeito, uma determinação emanada do Governo, ainda que sob a
forma de decreto-lei ou de portaria, impondo a extinção da instância nas acções
intentadas contra certa pessoa, singular ou colectiva, ou impedindo a execução
das decisões judiciais proferidas contra essa pessoa, violaria flagrantemente,
não só o art. 20º., que consagra o direito dos cidadãos recorrerem aos tribunais
para defesa dos seus direitos, como ainda os arts. 114º. (separação dos órgãos
de soberania), 206º. (função dos tribunais) e 208º. (independência dos
tribunais), todos da Constituição da República.
E se as normas do Decreto-lei nº. 161/82 não foram declaradas
inconstitucionais, foi precisamente porque não têm o sentido que a recorrente
lhes atribui.'
3. Através do Acórdão de 10.10.90 (fls. 50/58 - Vol.IV),
julgou o Tribunal da Relação de Lisboa, procedente a apelação, revogando a
decisão recorrida e declarando a procedência dos embargos, com a consequência
'de não poder prosseguir a execução (...) ficando sem efeito a penhora nela
efectuada'.
Desse aresto sublinham-se as seguintes passagens:
'... o legislador teve a intenção de concentrar num único processo de
liquidação o apuramento do activo e do passivo da empresa extinta, só nesse
processo sendo vendidos os bens e paga a totalidade das dívidas, em rateio, se
necessário, e segundo a ordem das preferências legais, para ele se remetendo os
credores interessados na cobrança dos seus créditos.
Tanto assim que determinou a cessação dos direitos de acção contra
a B. ou sobre os seus bens, e chegou mesmo a determinar a extinção da instância
nas acções intentadas contra aquela (nº 6 da Portaria).
A partir da extinção da empresa os credores só podiam recorrer a
juízo para solucionar divergências litigiosas com as decisões da comissão
liquidatária quanto à verificação dos respectivos créditos, sua inclusão no
mapa e graduação em relação aos demais créditos. Mas as decisões judicialmente
obtidas nesses casos eram ainda determinadas a serem ulteriormente levadas em
conta no conjunto da liquidação, obrigando a comissão liquidatária a admitir os
créditos recusados ou a graduá-los no lugar devido.
Este plano de actuação está, de resto, em conformidade com a
previsão do artº 1130 do Cod.Proc.Civil para as liquidações extra-judiciais,
nas quais se recorre ao tribunal em questões pontuais, na medida do necessário
para assegurar o andamento e o acerto legal da liquidação.
A liquidação do activo da empresa extinta encontra-se a cargo de uma
única entidade: a comissão liquidatária. Daí que se retire aos credores, ainda
que movidos de título executivo, o direito de acção sobre os bens da empresa,
pois se assim não fosse e pudesse cada um mover execuções à margem do processo
de liquidação frustar-se-iam por completo os fins desta, que são os de assegurar
a repartição justa do saldo apurado, com respeito pelas garantias legais dos
credores.
---------------------------------------------------
O alcance útil desta decisão, (referindo-se à decisão da acção
declarativa) aliás aceite pela embargante, tanto na petição dos embargos, como
nas alegações do presente recurso, é o de a comissão liquidatária, em acatamento
do decidido, ter que considerar o crédito do A. como verificado na medida em
que a B. foi condenado a pagá-lo.
Uma vez que se decidiu no sentido do aproveitamento da instância
que estava pendente e que nesta passou a intervir a Comissão Liquidatária em
representação da B., tendo àquela sido notificada a decisão final, deverá
considerar-se que a formulação do pedido na acção supera a eventual falta de
reclamação do crédito perante a referida comissão.
Mas uma vez que nos termos do artº 3º do Dec-Lei nº 161/82 cessaram
os direitos de acção sobre os bens da B., daí resulta que tais bens se acham
subtraídos à penhora, ficando afectados aos fins da liquidação, sendo no âmbito
desta que o ora exequente deve obter o pagamento do que lhe fôr devido.
O artº. 2º do Cod. Proc. Civil dispondo que a todo o direito
corresponde uma acção destinada a fazê-lo reconhecer em juízo ou a realizá-lo
coercivamente, exceptua os casos em que a lei determine o contrário, sendo um
desses casos aquele que estamos apreciando.
Todavia, embora neste caso o credor não tenha o direito de accionar
singularmente o seu crédito na instância executiva, são-lhe reconhecidos os
direitos de acção suficiente para garantir que a liquidação extrajudicial se
processe em harmonia com a lei e que o seu crédito seja atendido na justa
medida em que o deva ser na concorrência com os demais créditos que devam ser
pagos pela massa liquidanda.
Não se vê, por isso, que o regime de liquidação imposto pelo
Dec-Lei nº 161/82 incorra em qualquer violação do princípio constitucional de
garantia de acesso aos Tribunais, consagrado no artº. 20 da Constituição. '
Tendo sido interposto recurso desta decisão pelo
exequente/embargado, não foi o mesmo conhecido (Acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça de fls. 131/133 - Vol.IV), por se entender irrecorrível o Acórdão do
Tribunal da Relação de Lisboa.
4. Recorreu, então o exequente/embargado, do Acórdão da
Relação, para este Tribunal (fls.136/137 - Vol.IV), nos termos do artigo 70º.,
nº. 1. al. b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (LTC), reportando o recurso às
'disposições do DL nº 161/82, de 7 de Maio e Portaria nº. 653/82, de 30 de
Junho, nomeadamente, as contidas nos artigos 3º., nº. 3 e 4º., nº. 2, do DL e
nos nºs. 5, alíneas 5) e 8), 6º., alíneas 1) e 2), 11º., 12º. e 14º., alíneas a)
e b), da Portaria', acrescentando ter invocado tal inconstitucionalidade 'logo
na primeira instância, na fase declarativa da acção' (refere-se ao requerimento
de fls. 49, do Vol.I).
Admitido o recurso pelo Tribunal da Relação de
Lisboa (v. artigos 75º., nº. 2 e 76º., nº. 1, da LTC), apresentaram recorrente
e recorrida alegações.
O recorrente, pugnando pela revogação do Acórdão
do Tribunal da Relação, formula as seguintes conclusões:
'A) As normas do decreto-lei nº 161/82 e da Portaria nº 653/82 que
determinam a cessação dos direitos de acção contra a B. ou sobre os seus bens e
a extinção da instância nas acções intentadas contra aquela empresa violam os
princípios constitucionais do Estado de direito, nomeadamente o princípio da
legalidade, que exige que todas as pessoas, singulares ou colectivas, em
idêntica situação sejam tratadas pela lei de forma idêntica, os princípios da
divisão de poderes e da independência dos tribunais, e a garantia de livre
acesso aos tribunais para defesa dos direitos das pessoas.
B) A circunstância de os credores da B. poderes recorrer para os
tribunais das decisões da comissão liquidatária nomeada pelo Governo não
invalida a conclusão antecedente, pois esses credores não têm poder algum de
fiscalização ou controle do processo de liquidação, o qual é dirigido
discricionariamente por aquela comissão.
C) Decorridos mais de doze anos sobre a publicação do Decreto-Lei nº
161/82, e mais de sete anos sobre o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que
fixou o direito de crédito do recorrente a liquidação da B. ainda não terminou
nem se sabe quando terminará, e a comissão liquidatária nada comunicou ao
recorrente sobre se reconhece ou não o seu direito, qual a respectiva graduação
e se e quando tenciona satisfazê-lo, o que mostra bem como as condições impostas
pelo Decreto-Lei nº 161/82 e pela Portaria nº 653/82 para cobrança dos créditos
dos credores da empresa violam a garantia de protecção jurídica e de livre
acesso aos tribunais expressa no art. 20º da Constituição.
D) Aplicando as normas supracitadas e decidindo, com base nessas normas,
que a execução instaurada pelo recorrente não pode prosseguir, o acórdão
recorrido infringiu o art. 207º da Constituição, pelo que deve ser revogado. '
A recorrida, por sua vez, defendendo que seja
negado provimento ao recurso, concluiu da seguinte forma:
1ª - O acórdão da Relação de Lisboa que, dando provimento ao recurso da
B., considerou procedentes os embargos, não se pronunciou sobre a questão da
extinção da instância na sequência da entrada em vigor do Dec.Lei Nº 161/82.
2ª - Esta questão foi anteriormente levantada na acção declarativa e nesta
decidida com trânsito em julgado.
3ª - Pelo que, quanto a ela, não tem o presente recurso fundamento no
art. 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
4ª - O aludido Acórdão considerou, apenas, a questão da
constitucionalidade do preceituado no Dec.Lei Nº 161/82, concretamente quanto à
cessação dos direitos da acção contra a B. ou sobre os seus bens (artº.3º).
5ª - Apreciando tal questão no sentido da constitucionalidade da norma e
da sua aplicabilidade à instância executiva, por ser distinta e de objectivo
diverso da precedente instância declarativa.
6ª - O julgamento do Acórdão quanto à diferenciação das instâncias, sendo
correcto, respeita apenas à interpretação e à aplicação de normas de natureza
meramente processual, constantes do Código de Processo Civil.
7ª - A decisão no sentido da constitucionalidade está, de resto, em
inteira conformidade com o Acórdão Nº 11/84, de 7 de Maio, deste Tribunal, que
julgou constitucionais todas as normas do Dec.Lei Nº 161/82.
8ª - É, em qualquer caso, manifesto que a regra da cessação do direito de
acção contra a B. ou sobre os seus bens em nada poderia ofender a independência
dos tribunais e o princípio da sua sujeição à lei (art. 206º da CRP), a
enumeração dos órgãos de soberania ou o princípio da respectiva separação (art.
113º e 114º da CRP).
9ª - A norma do art. 3º do Dec.Lei 161/82 é de óbvia legalidade face ao
disposto no art. 2º do Código de Processo Civil e em nada ofende as disposições
constitucionais dos artigos 20º e 202º da CRP.
10ª- Como inegavelmente decorre da fundamentação, que se acolhe, constante
do Acórdão Nº 358/86, de 16 de Dezembro, deste Tribunal, pelo qual foi julgada a
constitucionalidade da norma de sentido e alcance idênticos, constante do
diploma de extinção da C..
11ª- Nada relevam e são desajustadas da realidade as afirmações de facto
produzidas sobre uma alegada conduta de passividade ou inércia tomada na
liquidação da B..
Respondeu a recorrente à 'questão prévia'
suscitada pela recorrida (fls.157/158 - Vol.IV).
Colhidos que se mostram os pertinentes vistos,
cumpre decidir.
II
FUNDAMENTAÇÃO
5. Porque se trata de recurso interposto nos termos da alínea
b), do nº. 1, do artº. 70º., da LTC, que sobe nuns autos de embargos de
executado, e o recorrente reporta (v. fls. 136) a suscitação da questão de
inconstitucionalidade a um momento processual situado na acção declarativa, que
originou a execução de sentença embargada (resposta de fls. 49 do Vol.I),
importa começar por esclarecer se a questão de inconstitucionalidade foi
suscitada em momento relevante.
Com efeito, se para considerarmos suscitada, no
que a este recurso interessa, essa questão, fosse necessário recorrer à acção
declarativa, não disporia o recurso de condições permitindo o seu conhecimento,
nos termos em que foi interposto.
Como já se disse estamos face a um recurso
originado num processo de embargos de executado, processados por apenso (artº.
817º., nº. 1, do CPC) a uma execução de sentença - consubstanciada no Vol. III
apenso a este recurso - cujo título executivo é constituído pela decisão final
proferida na acção declarativa - consubstanciada nos Vol. I e II, apensos a
este recurso.
Ora, questões de inconstitucionalidade invocadas
nessa acção declarativa era aí que importava serem resolvidas e, se analisarmos
o que aí ocorreu, veremos que o foram, explícita ou implicitamente, com a
cobertura do caso julgado aí formado quanto à respectiva decisão.
Acontece, porém, que, embora o recorrente o não
refira no requerimento de interposição, a questão de inconstitucionalidade em
causa foi por ele suscitada nos embargos de executado, em momento
processualmente relevante - no presente recurso e antes da decisão recorrida - e
foi, expressamente, analisada na decisão recorrida que a desatendeu.
O trecho processual em que o recorrente suscitou
essa questão, foi objecto de transcrição no relatório do presente Acórdão (ponto
11, a fls. 38 vº., das contra-alegações de fls. 1/40) e é em função dela que se
entende suscitada a questão de inconstitucionalidade possibilitadora da
apreciação do recurso.
6. Assente esse aspecto importa, antes de se avançar,
esclarecer a que normas se reporta o recurso.
A decisão recorrida enunciou da seguinte forma a
questão a resolver: '...é a de saber se o Apelado (referindo-se ao aqui
recorrente), tendo obtido decisão favorável na fase declarativa da acção, que
transitou em julgado e condenou a B. (...), pode requerer em juízo a execução
daquele julgado, ou terá de aguardar a satisfação do seu crédito no âmbito do
processo de liquidação administrativa instituído pelo DL 161/82 e regulamentado
pela Portaria 653/82'.
Mais adiante, resumindo o fundamento da decisão
no sentido da procedência dos embargos, escreveu-se no Acórdão recorrido: '...
quando o embargado (o aqui recorrente) viu definido o seu direito por decisão
transitada em julgado, estava em curso a liquidação extrajudicial da embargante,
imposta por lei, só no quadro dessa liquidação podendo e devendo ser satisfeito
o direito definido, uma vez que foi retirado aos credores da empresa extinta a
faculdade de em instância executiva autónoma se fazerem pagar pelos bens do
património em liquidação'.
Esse retirar aos credores da faculdade de
satisfação dos respectivos créditos através da instauração de acções executivas
contra a B., ou dito de outra forma, essa impossibilidade de os bens da B.
serem objecto de acções executivas, reporta-o a decisão recorrida ao teor do
artº 3º., do DL 161/82, especificamente ao trecho em que se faz cessar 'os
direitos de acção contra a empresa ou sobre os seus bens' (artº. 3º., nº.3, in
fine).
Constituí, assim, esta norma, no segmento citado,
a verdadeira «ratio decidendi» da decisão, a ela havendo que reportar,
consequentemente, o presente recurso. É certo que outras referências normativas
ao DL 161/82 e à Portaria 653/82, constam do Acórdão recorrido. Tratam-se,
porém, de referências feitas num processo argumentativo de caracterização do
regime global em que se operou a extinção e liquidação da B., referências que
sendo relevantes para uma compreensão sistemática do artº 3º., nº 3, não
traduzem uma aplicação dessas normas, nos termos em que a aplicação de uma norma
interessa a um recurso do tipo do aqui em causa.
Fora do âmbito do presente recurso estão, assim,
as diversas disposições citadas pelo recorrente a fls. 136 e 157/158,
designadamente, o nº 6, da Portaria 653/82, no trecho onde faz decorrer da
extinção da B. a extinção da instância nas acções contra ela intentadas. Não é,
decididamente, isso o que aqui está em causa, visando como sem dúvida visa essa
disposição apenas as acções que pendiam contra a B. à data da extinção.
Diversa é a situação das acções (e aqui só estão
em causa acções executivas) propostas, posteriormente à extinção como, no
entendimento do Acórdão recorrido é o caso da execução embargada.
Tal entendimento - que assumidamente decorre de
uma ideia de autonomia da acção executiva, relativamente à acção declarativa -
tem como referência normativa exclusiva a cessação do direito de acção contra a
B. e os seus bens, decorrente do artº 3º., nº 3, trecho final, do DL 161/82.
A esta norma, e só a ela, se refere o presente
recurso. Só ela, portanto, constituirá objecto de indagação de
constitucionalidade.
A essa indagação importa passar.
7. Através do DL 161/82, de 7 de Maio, procedeu-se à
extinção da B. (cuja nacionalização ocorrera por força do DL 572/76, de 20 de
Julho), fixando-se um processo de extinção/liquidação da empresa,
posteriormente regulado pela Portaria 653/82, de 30 de Junho.
Entre outros aspectos, nos quais avulta a
manutenção da personalidade jurídica da B., exclusivamente para efeitos de
liquidação, fixou este diploma, como consequência da sua entrada em vigor, a
cessação de todos 'os direitos de acção contra a empresa ou sobre os seus bens'
(artº 3º., nº 3, trecho final).
O que aqui importa averiguar é se esse efeito
particular, entendido como tornando impossível a propositura, posteriormente à
entrada em vigor do DL 161/82, de uma acção executiva contra a B. ofende alguma
disposição ou princípio constitucional, designadamente, tendo em conta o
entendimento a este propósito defendido pelo recorrente, os princípios da
igualdade, 'da divisão de poderes e da independência dos tribunais, e a garantia
de livre acesso aos tribunais para defesa dos direitos das pessoas'.
8. Ocorre desde logo sublinhar a circunstância de o diploma
em causa ter sido objecto de fiscalização abstracta por este Tribunal,
consubstanciado no Acórdão nº 11/84 (publicado no DR-II, de 8.5.94, no BMJ 342,
155 e no II Vol. dos ATC, pág.99), que culminou com uma decisão de não
provimento. Porém, a fiscalização levada a cabo pelo Tribunal nessa ocasião,
incidiu sobre aspectos diversos dos aqui em causa. Tratou-se de saber se a
extinção (a sequência «extinção-alienação do património») da empresa pública
B., determinada pelo artº. 1º, do DL 161/82, violava o disposto no texto
constitucional, nos artºs. 83º., nº. 1 (versão anterior à Lei Constitucional nº.
1/89), 167º., al. q) e 56º., al. c) (ambos na versão original da Constituição).
Só pela circunstância de aí estar em causa a própria extinção da B., nos termos
em que se produziu, se refere nessa decisão que a eventual inconstitucionalidade
do artº. 1º., do diploma envolveria por arrastamento a inconstitucionalidade
dos artºs. 2º., 3º, e 4º..
Diversamente, no presente recurso, estando como
estamos, em sede de fiscalização concreta, indissociável da específica
sequência processual em que ocorre, o artº. 3º. do DL 161/82, no trecho
questionado, apresenta-se como logicamente autonomizável de qualquer outro
aspecto do diploma.
9. Importa antes de mais - e assim entramos directamente na
apreciação da norma em causa - esclarecer o sentido da decisão recorrida.
Assenta esta em dois pressupostos que importa
sublinhar.
9.1. O primeiro tem que ver com a articulação
entre a instância executiva e a instância declarativa, onde se formou o título
executivo judicial que serve de base à primeira: o entendimento do Acórdão é o
de que as acções declarativa e executiva são inteiramente autónomas, não
funcionando a segunda - e estão em causa as execuções de sentença - como
continuação processual da primeira.
Encontramos a afirmação desta
autonomia na generalidade da doutrina processualista: Lebre de Freitas, por
exemplo, refere que 'a declaração ou acertamento do direito subjectivo, que é o
ponto de partida, de onde decorre que o processo executivo, embora dotado de
autonomia estrutural e funcional, se coordena com o processo declarativo no
ponto de vista funcional sempre que por ele é precedido' (Acção Executiva e Caso
Julgado, Separata da Revista da ordem dos Advogados, Lisboa 1993, pág. 226; v.
também Miguel Teixeira de Sousa, A Exequibilidade da Pretensão, Lisboa, 1991,
pág. 14).
9.2. Assenta, ainda, a decisão
recorrida no pressuposto de que o aproveitamento da instância traduzida na acção
declarativa, onde interveio após o diploma de extinção a Comissão Liquidatária,
implica que esta terá de considerar como verificado o crédito do aqui
recorrente, tal qual ele emergiu da acção declarativa (na fixação desse crédito
se traduziu o efeito útil desta), para o efeito de o satisfazer, em plano de
igualdade com os demais credores da B.. Este entendimento, aliás, foi
expressamente aceite nos presentes embargos pela recorrida e subjaz ao disposto
no nº.12, al. b), da Portaria 653/82.
9.3. Assim sendo, é pressupondo a
afirmação da autonomia da acção executiva intentada pelo recorrido
relativamente à acção declarativa que a antecedeu, e pressupondo que o crédito
do recorrido sobre a B. foi fixado pela condenação nessa acção declarativa,
superando - como se diz na decisão recorrida - 'a eventual falta de reclamação
do crédito' perante a Comissão, é, pressupondo estes dois elementos, que teremos
de analisar se a aplicação fundando a decisão dos embargos, do trecho em causa
do artº., nº. 3, do DL 161/82, entendido como impedindo a instauração de
execuções contra a B., viola o texto constitucional.
10. O aspecto fundamental da argumentação do recorrente tem
que ver com a eventual violação do direito de acesso aos tribunais, garantido
no artº. 20º., nº. 1, da Constituição.
Esse problema, face a normas substancialmente
idênticas à aqui em causa, formuladas a propósito da extinção D. e C.
(respectivamente nos artºs. 4º., nº.1, al. b) do DL 137/85 e 138/85, ambos de 3
de Maio), já foi objecto de análise na jurisprudência deste Tribunal, através
dos Acórdãos nºs. 358/86 (DR-II, 11.4.87), 137/88 (DR-II, 8.9.88; BMJ 378, 759;
ATC, Vol.11, pág. 955) e 121/92 (DR-II, 21.8.92), concluindo-se, então, que a
coexistência das normas aí questionadas nos respectivos diplomas, com normas de
teor idêntico, no caso da B., à constante do nº 12, al. a), da Portaria 653/82
(nesses Acórdãos os artºs. 8º., nº. 1, dos diplomas respectivos), chegavam para
que se não entendesse violado o direito dos credores de acesso aos tribunais
para defesa dos seus direitos.
Estabelece, com efeito, o nº. 12, al. a), da
citada Portaria, em termos praticamente iguais ao que sucedia com os diplomas da
D. e da C., o direito de recurso aos tribunais comuns, por banda dos credores
da B., para efectiva garantia dos direitos à inclusão no mapa e graduação em
conformidade com a lei dos créditos respectivos.
Este regime, face às importantes especificidades
que a situação subjacente ao presente recurso apresenta, levam-nos a reafirmar
aqui a inexistência de violação da garantia resultante do artº. 20º., nº. 1, da
Lei Fundamental.
Importa no entanto, dizer algo mais a este
respeito.
Com efeito, o entendimento, que como atrás
dissemos constitui pressuposto da decisão recorrida, de que a condenação na
acção declarativa equivale à verificação do crédito, substituindo a sua
eventual não reclamação junto da Comissão Liquidatária e vinculando esta
entidade à sua satisfação como aos outros credores, este entendimento dizíamos,
supera situações de dúvida quanto à existência e características do direito do
recorrente - note-se que a liquidação do crédito não foi sequer impugnada.
A isto acresce a circunstância de a recorrente
reivindicar a especial modalidade de acesso aos tribunais constituída pelo
processo executivo, quando está em causa uma situação de liquidação universal do
património da empresa.
É certo que o direito de acesso aos tribunais
abrange 'o direito a um processo de execução' (v. Gomes Canotilho/Vital
Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª. ed., Coimbra 1993,
pág. 163/164), só que a liquidação já implica uma sequência de actos
(subsequentes à extinção) visando a conversão em dinheiro de determinado
património, nomeadamente, para satisfação do passivo, que o mesmo é dizer, essa
liquidação já cumpre, reportado à globalidade do património e dos créditos sobre
ele, o objectivo que a execução visa: a garantia efectiva do direito de alguém.
Portanto, incluindo essa liquidação as operações
jurídicas e materiais (em sentido próprio ou equivalente) que na execução levam
à garantia efectiva de um direito, o problema da possibilidade de acesso aos
tribunais, transfere-se para o controlo das operações de concretização desse
direito, enfim, para o controlo das operações de liquidação, naquilo em que
estas afectam o crédito em causa.
Ora, relativamente a estas operações, como já
vimos, decorre do nº. 12 da Portaria 653/82 a efectiva possibilidade de obter a
respectiva sindicância jurisdicional.
Baseados nestes pressupostos podemos seguramente
afirmar que a impossibilidade, derivada do artº. 3º., nº. 3, do DL 161/82, de
instaurar a execução aqui visada contra a B., ou sobre os seus bens, não põe em
causa o direito de acesso aos tribunais.
11. O recorrente argumenta ainda - por referência ao
princípio da igualdade - , com a existência de tratamento diverso de quem se
encontra em situação idêntica, como decorrência da impossibilidade de propôr
uma acção executiva.
Também aqui lhe não assiste razão.
É evidente que a norma em causa, coloca em pé de
igualdade todos os credores da B. e, relativamente ao universo daqueles que na
nossa ordem jurídica detêm créditos e podem recorrer quanto a eles ao processo
executivo, a diferenciação que introduz é racionalmente compreensível pelas
especificidades que o processo de extinção e liquidação envolve, sendo, aliás,
idêntica às normas que disciplinam situações semelhantes (veja-se, por exemplo,
o artº. 154º., nº. 3, do Código dos Processos Especiais de Recuperação de
Empresa e de Falência, aprovado pelo DL 132/93, de 23 de Abril).
12. Finalmente, da mesma forma não colhem as referências à
violação, pela norma questionada, do princípio da separação de poderes
consagrado no artº. 114º., da Constituição.
Não está em causa aqui - e tenhamos presente a
caracterização já feita das especificidades da presente situação - qualquer
acto que afecte o núcleo essencial do sistema de competências caracterizador da
função jurisdicional. A faculdade de instauração de um processo de execução
contra determinado património - e é só isso o que aqui está em causa - não tem
que ver com este aspecto do princípio do «Estado de direito democrático», poderá
ter que ver com outros aspectos, aos quais já foi feita referência.
III
DECISÃO
13. Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso,
confirmando o acórdão recorrido, no que tange ao julgamento da questão de
constitucionalidade.
Lisboa, 23 de Novembro de 1995
José de Sousa e Brito
Luís Nunes de Almeida
Guilherme da Fonseca
Bravo Serra
Messias Bento
José Manuel Cardoso da Costa