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Processo nº 258/94
2ª Secção
Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O Procurador da República junto do Tribunal Tributário
de 1ª Instância de Braga, veio, 'nos termos do artigo 280º, nº 1, alínea a) e
3, da Constituição e artigos 70º, nº 1, alínea a) e 72º, nºs 1, alínea a) e 3,
da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei nº 85/89, de 7 de
Setembro', interpor recurso obrigatório para este Tribunal Constitucional da
sentença do Mmº Juiz daquele Tribunal Tributário, de 5 de Abril de 1994, que
'recusou a aplicação da norma do nº 2 do artigo 12º, do DL nº 98/84, de 29.3,
por a considerar inconstitucional'.
2. A dita sentença é do seguinte teor integral:
'A., com os sinais dos autos, impugna a liquidação de derramas e respectivos
juros compensatórios que lhe foi lançada com referência aos anos de 1986 e 87,
alegando em síntese estar isenta de contribuição até ao fim do primeiro
trimestre de 1987.
A Fazenda Pública entende não lhe assistir razão.
O Ministério Público emitiu o parecer que antecede.
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O tribunal é competente, as partes são legítimas e nada obsta à decisão da
causa.
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Está provado:
-Ao abrigo das disposições do DL 48894, de 20/ /1/69, foi concedida à impugnante
isenção de contribuição industrial por 5 anos, até ao fim de Março de 1987;
-No que se refere ao ano de 1987, a liquidação impugnada radica na correcção da
matéria tributável calculada pela impugnante a que a administração fiscal
procedeu.
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Decidindo:
A impugnante tem razão no que se refere ao ano de 1986.
No período de vigência do artigo 12º, nº 1, da Lei nº 1/79, de 2 de Janeiro, era
claro que à impugnante não devia ser lançada qualquer derrama sobre a colecta
de contribuição industrial relativa ao dito período (de isenção) de 5 anos.
Sucede que a Assembleia da República, pelo Lei nº 19/83, de 6 de Setembro
(artigo 1º, alínea c)), concedeu ao Governo autorização legislativa para rever
o regime das finanças locais no sentido da sua clarificação e adequação às
novas atribuições das autarquias locais.
Surge então o Decreto-Lei nº 98/84, de 10 de Março, que no artigo 12º, nºs 2 e
3, alarga ('ficam também') o âmbito da incidência das derramas a situações até
aí não abrangidas. Ao proceder deste modo, o Governo foi além do que lhe era
permitido pela dita autorização, sendo, pois, a norma do nº 2 do artigo 12º
daquele diploma (Decreto-Lei nº 98/84) inconstitucional por violação dos artigos
106º, nº 2 e 168º, nº 1, alínea i) da Constituição da República Portuguesa.
Já no que concerne ao ano de 1987 a impugnante carece de razão.
Neste particular, a liquidação resulta de uma correcção à matéria tributável
calculada pela própria impugnante, designadamente no que se refere à derrama
desse ano. A impugnante não discute o acerto dessa correcção, pretendendo, isso
sim, estender até aqui a sua tese da isenção de contribuição industrial. Não
pode ser assim visto que na própria formulação dela nesse ano houve lucros
tributáveis na dita cédula.
Julga-se, pois, a impugnação parcialmente procedente e determina-se a anulação
da liquidação na parte referente ao ano de 1986 (275 762 escudos); no mais (27
350 796 escudos), improcede a impugnação.
Custas pelo impugnante na parte em que decaiu'.
3. Nas suas alegações, concluiu assim o Ministério Público
recorrente:
'1º
A reserva de lei vigente em matéria fiscal abrange o estabelecimento dos
regimes que relevam para a criação e incidência dos impostos, incluindo os
locais, abrangendo a definição dos pressupostos geradores do facto tributário, a
definição dos sujeitos tributários, a determinação do montante do imposto e a
definição dos benefícios fiscais.
2º
Não constitui título legitimador suficiente para a ampliação da incidência de um
imposto local - derrama incidente sobre a colecta de contribuição industrial, em
consequência de aquela passar a incidir também sobre rendimentos isentos deste
imposto-base - a norma constante de lei de autorização legislativa que apenas
habilita o Governo de modo vago, genérico e totalmente indeterminado, a
'aperfeiçoar' o regime financeiro local, clarificando-o e adequando-o às
atribuições das autarquias.
3º
Na verdade, o objecto de tal autorização legislativa não comporta a
possibilidade de agravamento da incidência de impostos locais, pelo que padece
efectivamente de inconstitucionalidade orgânica a norma desaplicada na decisão
recorrida.
Termos em que deverá confirmar-se a decisão recorrida, no que se refere à
questão da inconstitucionalidade da norma constante do nº 2 do artigo 12º do
Decreto-Lei nº 98/84, de 29 de Março.'
4. Também apresentou alegações a ora recorrida A.
concluindo como se segue:
' a) O tribunal Tributário da 1ª Instância de Braga considerou a
inconstitucionalidade do nº 2 do 12º do Decreto-Lei nº 98/84 de 29 de Setembro
relativamente à Derrama liquidada à ora alegante em relação ao ano de 1986.
Dessa decisão recorreu a Fazenda Pública para o Supremo Tribunal
Administrativo, que ainda não se pronunciou.
b) O mesmo Tribunal Tributário de 1ª Instância reconheceu a mesma
inconstitucionalidade, relativamente a um novo acto tributário sobre a mesma
matéria e do mesmo ano. Dessa decisão recorreu agora o Ministério Público para o
Tribunal Constitucional.
c) A inconstitucionalidade do nº 2 do citado artigo 12º do Decreto-Lei nº 98/84
é manifesta:
d) O artigo 12º da Lei nº 1/79 de 2 de Janeiro continha um tipo de incidência de
imposto de Derrama 'sobre a colecta liquidada em contribuição industrial e
outros impostos. Tal tipo de imposto real não abrangia pois as situações de
isenção de tais impostos ou de ausência de liquidação positiva por falta de
objecto de incidência real.
e) O artigo 12º do Decreto-Lei nº 98/84 contém dois tipos de incidência: No seu
nº 1, um imposto real e tipo de incidência real precisamente igual ao da Lei
1/79; no nº 2, um novo imposto agora pessoal e um tipo novo de incidência real
agora sobre as pessoas isentas daqueles impostos de base e sobre o valor da
colecta que existiria!...
f) Este tipo de incidência do nº 2 do artigo 12º de tal Decreto-Lei é
inequivocamente, uma inovação.
g) Não foi objecto de autorização legislativa, nos termos do nº 2 do artigo 106º
e artigo 168º nº 1 alínea f) da Constituição.
1) É assim ferido de inconstitucionalidade orgânica'.
5. Juntos documentos pela mesma recorrida, após
notificação para esse efeito, pronunciou-se o Ministério Público sobre essa
junção de documentos e ainda sobre a 'figura jurídica de litispendência',
suscitada nas alegações da A., e fê-lo nestes termos:
'1º - Parece-nos evidente não ocorrer a invocada situação de litispendência.
2º - Na verdade, o presente recurso foi intentado obrigatoriamente pelo
Ministério Público e reporta-se apenas ao segmento da decisão proferida em 5
de Abril de 1994 em que se recusou, com fundamento em inconstitucionalidade, a
aplicação da norma constante do nº 2 do artigo 12º do Decreto-Lei nº 98/84.
3º - É perfeitamente irrelevante para a decisão do presente recurso de
constitucionalidade que penda eventualmente no Supremo Tribunal Administrativo
um outro recurso, intentado pela Fazenda Pública de outra decisão - que não a
recorrida nestes autos - e reportado a outro acto tributário, embora análogo ao
impugnado neste processo.
4º - Termos em que - por inexistir a identidade objectiva e subjectiva que
caracteriza a excepção dilatória da litispendência - se requere o
prosseguimento deste recurso de constitucionalidade.'
6. Vistos os autos, cumpre decidir.
Começando naturalmente pelo conhecimento, que é oficioso,
da excepção dilatória da litispendência, prevista nos artigos 494º, nº 1, g),
497º e 498º do Código de Processo Civil, e que pode constituir obstáculo ao
conhecimento do mérito do presente recurso de constitucionalidade, pode
avançar-se desde já com a afirmação de que não procede tal excepção.
É que, de acordo com os citados preceitos do Código de
Processo Civil, é forçoso que ocorra a 'repetição de uma causa' (nº 1 do artigo
497º), mas a repetição supõe uma identidade de sujeitos, de pedido e de causa
de pedir (artigo 498º).
Ora, in casu, e desde logo, não se verifica a identidade
de pedido e de causa de pedir, pois, como sustenta o Ministério Público,
inexiste a identidade objectiva que também caracteriza a excepção dilatória da
litispendência.
Com efeito, o presente recurso de constitucionalidade foi
interposto obrigatoriamente pelo Ministério Público nestes autos de processo de
impugnação, em que a ora recorrida impugnou 'os actos tributários realizados na
Repartição de Finanças de -------------, em que lhe foram liquidadas (...)
importâncias de derrama e juros compensatórias', totalizando 27 262 558$00, em
relação aos anos de 1986 e 1987, enquanto que num processo eventualmente
pendente no Supremo Tribunal Administrativo (Secção do Contencioso Tributário),
por via de recurso jurisdicional interposto pelo Representante da Fazenda
Pública, a mesma recorrida impugnou o 'acto tributário realizado na 2ª
Repartição de Finanças de -----------, em que lhe foi liquidado derrama a favor
da Câmara Municipal daquele Concelho no montante de 90 950 193$00'.
Trata-se, pois, de actos tributários distintos, como se
alcança dos valores apontados, e, embora nos dois processos se questione a
mesma matéria de inconstitucionalidade orgânica da norma do nº 2 do artigo 12º
do Decreto-Lei nº 98/94, de 29 de Março, sendo recusada a sua aplicação, a
verdade é que o pedido e a causa de pedir não se identificam naqueles
processos, exactamente porque não são os mesmos os tais actos tributários.
7. Havendo, assim, que conhecer do mérito do presente
recurso de constitucionalidade, ele circunscreve-se à questão da
inconstitucionalidade orgânica da norma do nº 2 do artigo 12º do Decreto-Lei nº
98/84, de 29 de Março, ponto em que todos - instâncias e partes - estão de
acordo quanto à verificação daquele vício de inconstitucionalidade.
Dispõe, sobre a epígrafe 'derramas', o citado artigo 12º
do Decreto-Lei nº 98/84, (então a lei de finanças locais, hoje substituída pela
Lei nº 1/87, de 6 de Janeiro), sublinhando-se o nº 2 ora em causa:
'1. Os municípios podem lançar derramas sobre a colecta da contribuição predial
rústica e urbana, da contribuição industrial e do imposto de turismo devidos na
respectiva área, não podendo exceder 10% da colecta liquidada.
2. Ficam também sujeitas às derramas as pessoas singulares ou colectivas,
designadamente sociedades, cooperativas e empresas públicas, que seriam
tributadas em contribuição predial rústica ou urbana, contribuição industrial e
imposto de turismo se não beneficiassem de isenção destes impostos.
3. São isentos de pagamento de derramas os rendimentos que beneficiem de
isenção permanente.
4. O produto das derramas deve destinar-se à satisfação de necessidades urgentes
a efectuar na área da respectivo município.
5. A liquidação e a cobrança das derramas devem ser solicitadas ao director de
finanças competente até 30 de Setembro do ano anterior ao seu lançamento.'
Suportou-se, na ocasião, aquela lei das finanças locais
aprovada pelo Decreto-Lei nº 98/84 na autorização legislativa concedida pela
Lei nº 19/83, de 6 de Setembro, emitida ao abrigo do disposto no artigo 168º, nº
1, s), da Constituição da República Portuguesa, exactamente para ser revista a
Lei nº 1/79, de 2 de Janeiro, a anterior lei das finanças locais ('A Lei nº
1/79, de 2 de Janeiro, no seu artigo 29º, referia que esta seria
obrigatoriamente revista até 15 de Junho de 1981, o que, contudo, não veio a
suceder. Procede-se, por isso, agora a essa revisão, ao abrigo da autorização
legislativa concedida pela Lei nº 19/83, de 6 de Setembro, revisão essa que,
todavia, mantém o espírito profundamente descentralizador da Lei das Finanças
Locais' - lê-se no primeiro parágrafo do seu preâmbulo).
O artigo 1º da citada lei de autorização nº 19/83,
dispunha que:
'É concedida ao Governo autorização legislativa para:
(...)
c) Rever o regime em vigor em matéria de finanças locais, por alteração da Lei
nº 1/79, no sentido da sua clarificação e adequação às novas atribuições das
autarquias locais.'
E o artigo 4º da mesma Lei nº 19/83 desenvolvia o
estatuído naquela alínea c) do modo que se segue:
Artigo 4º
A revisão da Lei nº 1/79, de 2 de Janeiro, a que se refere a alínea c) do artigo
1º do presente diploma, tem o seguinte sentido e objectivos:
a) Aperfeiçoar o regime financeiro local à luz dos ensinamentos recolhidos com a
aplicação da
Lei nº 1/79;
b) Esclarecer a fórmula de cálculo do montante global anual dos recursos
financeiros autárquicos;
c) Clarificar o regime de recurso ao crédito por parte das autarquias locais;
d) Definir o regime do quadro das finanças regionais;
e) Introduzir mecanismos adequados à articulação do sistema financeiro local
com a transferência de novas competências para as autarquias locais;
f) Aperfeiçoar os mecanismos reguladores da repartição dos recursos financeiros
pelos municípios e freguesias;
g) Definir o elenco das taxas municipais e regular os mecanismos respeitantes à
sua cobrança.
Por seu turno, os objectivos do legislador de 1984 foram
claramente enunciados no preâmbulo do diploma, que se transcreve (a seguir ao
primeiro parágrafo já atrás transcrito):
'Embora o objecto do presente diploma seja limitado ao propósito de rever
nalguns pontos a Lei nº 1/79, cuja estrutura básica é mantida, a verdade é que,
para facilidade de consulta e análise, se entendeu apresentar agora um texto
integral onde se incluam, de forma articulada e sistematizada, ao lado das
disposições legais inovadoras, aquelas que, constando da versão primitiva, não
foram alteradas.
Deve destacar-se, como filosofia subjacente ao sistema financeiro das
autarquias, após a presente revisão da lei, a preocupação de que estas possam
gerar um máximo de receitas próprias, para o que se seguiu a via do aumento do
número de impostos locais, bem como das taxas, de par com uma ampliação e
diversificação das formas de recurso ao crédito por parte das câmaras.
Assim, no que respeita aos impostos locais para além da manutenção dos 4 que já
se situavam na esfera municipal, regista-se agora que as receitas de mais de 2
- taxa municipal de transportes e imposto de mais-valias - passam a ser, por
direito próprio, pertencentes ao município.
No que concerne às taxas, operou-se uma significativa diferenciação entre as
modalidade que estas podem revestir, ampliando-se, simultaneamente o seu leque,
de modo a coaduná-lo com a dinâmica própria da vida local e permitindo que as
taxas possam ser uma fonte financeira de crescente significado. Salienta-se a
criação de uma taxa de urbanização, que os municípios poderão lançar para
cobrir os custos das infra-estruturas que realizam, e a atribuição àqueles, de
novo, de uma percentagem da taxa pela primeira venda do pescado.
Por outro lado, e quanto às tarifas, constitui preocupação prioritária consagrar
inequivocamente o princípio de que estas não devem ser inferiores aos custos
com os serviços que o município presta, nestes se englobando, necessariamente,
os montantes para reequipamento e reinvestimento do serviço municipal ou
municipalizado prestador da actividade.
Quanto à possibilidade de recurso ao crédito, cumpre anotar que ela foi
ampliada, quer por meio do aumento dos seus plafonds, quer pela faculdade
concedida ao município de lançamento de obrigações.
No que respeita às transferências financeiras da administração central para a
local, elas são todas consideradas como Fundo de Equilíbrio Financeiro, o qual
não só visa corrigir as assimetrias sócio-económicas entre as diferentes
parcelas do território, mas, igualmente, pretende corrigir as distorções
financeiras resultantes do diferente potencial fiscal entre as diversas
câmaras.
Quanto às finanças paroquiais, anote-se que as freguesias deixam de poder lançar
derramas, com o que se evita a eventualidade de fazer incidir uma dupla
tributação (pelo município e pela freguesia) sobre a colecta da contribuição
predial rústica e urbana.
Em contrapartida, introduziu-se um novo sistema de distribuição das receitas do
município para a freguesia e garante-se que, em qualquer caso, nenhuma destas
poderá ter uma receita inferior à prevista na Lei nº 9/81, de 26 de Junho.
Mantendo-se o princípio de que aos municípios é assegurada uma participação no
Orçamento do Estado calculado em função das despesas deste, clarifica-se quais
são essas despesas.
De igual modo, introduziu-se a possibilidade da celebração de contratos de
reequilíbrio financeiro entre os municípios e as instituições públicas de
crédito, quando ocorram situações de ruptura financeira.
Quanto aos municípios das regiões autónomas, é-lhes afectada uma percentagem do
Fundo de Equilíbrio Financeiro, cuja distribuição será efectuada de acordo com
critérios a definir pelas assembleias regionais.'
8. O preceito do questionado artigo 12º do Decreto-Lei nº
98/84 veio introduzir inovações significativas no que respeita aos impostos
locais - aqui, as derramas, cujo lançamento foi previsto no artigo 3º, nº 1, l),
entre as 'receitas do município' -, relativamente ao sistema instituído pela
anterior Lei nº 1/79 (hoje, com a vigente Lei nº 1/87, de 6 de Janeiro, no
artigo 5º, em matéria de derramas, o sistema ficou articulado com o IRC).
É que, enquanto esta Lei nº 1/79, no seu artigo 12º, se
limitava à previsão do lançamento de derramas pelos municípios e pelas
freguesias sobre as colectas de certos impostos (nºs 1 e 2) e à definição de
regras quanto à destinação do produto das derramas (nº 3) e quanto à liquidação
e cobrança delas (nº 4), disposições em tudo equivalentes aos nºs 1, 4 e 5 do
texto do artigo 12º do Decreto-Lei nº 98/84 (ressalvado o lançamento de
derramas pelas freguesias, que findou com o diploma de 1984), este artigo 12º
inovou significativamente nos seguintes pontos:
- para além dos casos em que as derramas surgem como meros
adicionais à colecta da contribuição industrial efectivamente devida (por
entidade naturalmente dela não isenta), vem prever-se a sujeição à 'derrama' dos
rendimentos que (hipoteticamente) seriam tributados em contribuição industrial
se não beneficiassem de isenção temporária (nº 2, importando só referenciar in
casu a contribuição industrial).
Quebra-se, pois, a 'acessoriedade' das 'derramas'
relativamente ao imposto-base em que se funda a sua cobrança: a sujeição a
derrama já não incide apenas sobre colecta efectivamente alcançada, mas sobre
rendimentos eventualmente isentos daquele imposto-base;
- em consonância com este novo regime (nº 3),
estabelece-se um regime autónomo para a isenção de derramas, que apenas passa a
abranger as isenções permanentes do imposto-base.
De inovação também fala o Parecer do Conselho Consultivo
da Procuradoria-Geral da República, de 29 de Outubro de 1984, quando nele se lê:
'Houve, assim, uma alteração substancial da natureza e do regime das derramas
entre a lei velha (Lei 1/79) e a lei nova (Dec.-Lei 98/84), e não uma mera
explicitação por esta de soluções que já resultavam daquela. As derramas
passaram a ser exigíveis em casos em que anteriormente o não eram (casos de
isenção ou reduções temporárias dos impostos principais)' - in Diário da
República, II Série, nº 65º, de 19 de Março de 1985.
9. A pergunta, pois, que ocorre fazer é: constituirá a
citada Lei nº 19/83 credencial bastante para esta ampliação do âmbito de
incidência dos impostos locais que são as derramas, um sub-sistema fiscal
autárquico, ao lado do nacional, como expressão da autonomia de que gozam as
autarquias?
Sobre a 'intensio' da reserva de lei fiscal, decorrente
dos artigos 106º, nº 2, e 168º, nº 1, alínea i) da Constituição da República
Portuguesa, escreve José Casalta Nabais (Jurisprudência do Tribunal
Constitucional em matéria fiscal, in Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal
Constitucional, pág. 269 e seguintes):
'Olhando agora para a intensio (ou aspecto vertical) da reserva de lei fiscal,
traduzida na reserva ou conteudística (princípio da tipicidade), diremos que a
mesma se desdobra em dois aspectos: a que elementos (ou momentos) da dinâmica
do imposto se aplica e até que ponto a lei deve levar a disciplina desses
elementos.
Quanto aos elementos dos impostos a reservar à lei, estão aí incluídas as normas
que definem o an e o quantum dos impostos, ou seja, as normas que criam e
definem a incidência dos impostos entendida esta no sentido amplo que abarca
todos os pressupostos de cuja articulação resulta o nascimento ou não da
obrigação de imposto e, bem assim, os elementos da mesma obrigação, o que se
reconduz à definição normativa: 1) do facto ou situação que dá origem ao imposto
(o chamado pressuposto de facto, facto gerador ou facto tributário); 2) dos
sujeitos activos e passivos (contribuintes, responsáveis, substitutos) da
obrigação de imposto; 3) do montante do imposto, montante em regra (sempre que
não seja um imposto de quota fixa) definido mediante o valor sobre que recai o
imposto (definição ou determinação em abstracto da matéria colectável),
mediante a percentagem desse valor a exigir ao contribuinte, e, eventualmente,
das deduções a fazer ao valor assim apurado (no caso de deduções à colecta); 4)
dos benefícios fiscais.
Uma referência, embora implícita, à incidência da Contribuição Autárquica (CA)
consta, em nossa opinião, do AC 358/92, em que o Tribunal Constitucional
declarou a inconstitucionalidade da alínea b) do artigo 50º da Lei 2/92, de 9 de
Março (LOE/92), por a autorização legislativa ao Governo nela contida, para
'aprovar o Código das Avaliações referentes à propriedade rústica e urbana por
forma a conseguir-se uma maior equidade de tributação, um reforço das garantias
dos contribuintes e uma determinação mais rigorosa da matéria colectável,
através da aplicação de critérios objectivos', não conter suficiente
determinação do seu sentido, dado os elementos dela constantes não encerrarem
'em si mesmos, nenhum critério orientador do uso dos poderes delegados que se
possa ter por autónomo em relação aos princípios gerais do nosso sistema
fiscal'. Com efeito, se uma tal matéria - isto é, a definição, com um mínimo de
rigor, do critério de determinação do valor dos prédios - não tivesse a ver com
a incidência da CA, não vemos como a mesma cairia na reserva do artigo 106º, nº
2, e 168º, nº 1, i), CRP. E não se diga, a tal propósito, que não estamos já
face à definição (e portanto incidência), mas sim face à determinação (e
portanto liquidação) da matéria colectável, porque, mesmo que as coisas assim
sejam do ponto de vista da ciência ou teoria fiscal (o que temos dúvidas já que,
dada a polissemia que envolve o conceito valor dos prédios, uma tal referência
apenas nos revela que trata de um imposto sobre o património ou o capital), elas
não o são de um ponto de vista jurídico-constitucional e, designadamente, do
ponto de vista da ratio da reserva à lei da incidência dos impostos. É que,
segundo esta, das normas que definem a incidência (objectiva) há-de resultar
para o contribuinte a possibilidade efectiva de ele calcular, tão
aproximadamente quanto possível, o encargo fiscal que vai suportar.
Naturalmente que a lei de autorização legislativa não tem de definir toda a
incidência em extensão e intensidade sob pena de se exaurir, quanto a este
aspecto, toda a razão de ser das autorizações legislativas, mas há-de determinar
com suficiente rigor o sentido da autorização nessa matéria.
Relativas à incidência são também as normas destinadas a resolver conflitos de
leis fiscais - as normas de direito fiscal internacional - que resolvem
conflitos de incidência de impostos. 'E que, independentemente da concepção que
se tenha a seu respeito, pelo seu carácter unilateral e remissão necessária
para a lei fiscal nacional, a elas é imputável o desencadear ou não da aplicação
de normas internas de incidência, sendo por isso nessa medida também normas de
incidência.
A reserva de lei fiscal abarca pois as normas relativas a estes momentos da
dinâmica dos impostos e não outros como o lançamento, a liquidação e a
cobrança e abarca essas normas tanto quanto criam ou agravam os impostos como
quando os extinguem ou diminuem. No sentido da primeira afirmação decidiu o
Tribunal Constitucional, nos mencionados Acórdãos 205/87 e 461/87, em que os
preceitos já transcritos também foram tidos por inconstitucionais relativamente
ao segmento em que os mesmos pretendiam reservar à Assembleia da República a
modificação de todo o regime legal de certos impostos e outras receitas a eles
juridicamente equiparáveis, para além dos respectivos elementos essenciais
enunciados no artigo 106º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa. Por
seu turno, no sentido da segunda, é de invocar o Acórdão 48/84, em que o
Tribunal afirmou não poder interpretar-se restritivamente a reserva, de forma a
não se considerar por ela abrangidas as alterações que beneficiam os
contribuintes, apoiando-se para tanto em Cardoso da Costa.
Especialmente relacionados com este último aspecto estão os benefícios fiscais,
cuja disciplina é, por via de regra (isto é, sempre que os não diminua ou
extinga), favorecedora dos contribuintes e que figuram expressamente na reserva
de lei fiscal, muito embora, em nossa opinião, a intensidade da mesma varie
consoante se trate de benefícios fiscais estáticos ou benefícios fiscais
dinâmicos (os chamados estímulos ou incentivos fiscais). Sobre os benefícios
fiscais se pronunciou o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão 231/92, em que
decidiu não declarar a inconstitucionalidade do artigo 45º do Estatuto dos
Benefícios Fiscais. Partindo da ideia de que não é constitucionalmente
censurável o Governo, na utilização de uma autorização legislativa, ficar aquém
da respectiva previsão, concluiu não merecer censura constitucional o referido
artigo 45º, o qual, ao prever o englobamento para efeitos de IRS de 50% dos
'rendimentos da propriedade intelectual, quando auferidos por pintores,
escultores ou escritores' não dispensou um tratamento especial, em IRS, a todos
os rendimentos decorrentes 'do trabalho criativo no domínio artístico e
literário' como previa a correspondente autorização legislativa (...).
(...) Por seu turno, no respeitante ao segundo aspecto da intensidade de reserva
de lei fiscal, diremos que esta não se fica pelos princípios ou bases gerais
da incidência, taxa, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes,
compreendendo antes toda a disciplina normativa destes elementos, a qual não
pode ser assim deixada para regulamentos ou para a acção discricionária da
Administração'.
E pode ler-se no recente acórdão deste Tribunal
Constitucional nº 57/95, publicado na II Série do Diário da República, nº 87, de
12 de Abril de 1995, com citações doutrinais:
'O princípio da legalidade tributária - que assume a natureza de um verdadeiro
direito fundamental do cidadão, como resulta do nº 3 do artigo 106º da
Constituição (cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 26/92, publicado no
Diário da República, II Série, de 11 de Junho de 1992), desdobra-se em quatro
momentos: todos e quaisquer impostos devem ser criados por lei; para além do
sistema de impostos, cada tipo de imposto deve ser definido por lei (nullum
vectigal sine lege); a lei deve determinar especificadamente os elementos
fundamentais ou essenciais de cada imposto (incidência, taxa, benefícios
fiscais e garantias concedidas aos contribuintes); essa lei deve emanar da
Assembleia da República ou do Governo munido de autorização legislativa.'
Ora, não parece efectivamente que da interpretação e da
aplicação do artigo 1º c), e do artigo 4º da Lei nº 19/ /83, ou seja, da
autorização legislativa aí prescrita se possa colher um alargamento do âmbito de
incidência das derramas decorrente da alteração da natureza destas que, como se
referiu, de meros adicionais à colecta de determinados impostos, aqui a
contribuição industrial, se transformam em impostos locais, de algum modo,
autónomos, já que passam a poder incidir sobre matéria colectável isenta do
respectivo imposto-base.
Tal objecto não resulta minimamente do teor dos referidos
preceitos de Lei de autorização legislativa: não pode, na verdade, inferir-se
da vaga e genérica habilitação para 'aperfeiçoar o regime financeiro local,
clarificando e adequando-o às atribuições conferidas às autarquias locais' que o
Governo fica habilitado a inovar em matéria de impostos locais, alargando o seu
âmbito de incidência, denegando valor a isenções temporárias anteriormente
reconhecidas como operantes e limitando-as às isenções permanentes do
respectivo imposto--base.
De facto, à luz do nº 2 do artigo 168º da Constituição, é
sabido que as leis de autorização legislativa, além do mais, devem definir o
objecto e o sentido da autorização, o que vale por dizer que elas devem fornecer
ao Governo indicações claras e precisas da orientação que deve presidir à
disciplina normativa a produzir.
Ora, no caso, não se vê que as fórmulas utilizadas nas
várias alíneas do citado artigo 4º - o aperfeiçoamento do 'regime financeiro
local (alínea a)), a clarificação do 'regime de recurso ao crédito por parte das
autarquias locais' (alínea c)), a 'articulação do sistema financeiro local com
a transferência de novas competências' (alínea f)) - contenham a carga de
sentido suficiente para suportar o dito alargamento do âmbito de incidência
das derramas: de um universo de contribuintes que constava do nº 1 do artigo 12º
da Lei nº 1/79 e passou para o nº 1 do ora questionado artigo 12º, saltou o
legislador de 1984 para mais o universo das pessoas singulares ou colectivas
beneficiárias de isenções temporárias.
E também do preâmbulo do Decreto-Lei nº 98/84 não se obtém
nenhuma indicação relevante quanto à obediência à lei de autorização
legislativa, em matéria de derramas. Pelo contrário, aí se revela, no que aqui
importa, só a preocupação de fazer gerar para as autarquias locais 'um máximo de
receitas próprias', por 'via do aumento do número de impostos locais, bem como
das taxas', sem qualquer referência às derramas (estas até desaparecem como
fonte de finanças paroquiais).
Tanto basta para concluir que, faltando o tal título de
habilitação, está o nº 2 do artigo 12º, ora em causa, ferido de
inconstitucionalidade orgânica, não merecendo, censura o julgado (e não se
queira ver no mencionado Parecer um entendimento diferente, pois nele toda a
atenção vai centrada só na matéria da aplicação no tempo da lei fiscal).
10. Termos em que, DECIDINDO:
a) Julga-se inconstitucional o nº 2 do artigo 12º do
Decreto-Lei nº 98/84, de 24 de Março;
b) nega-se provimento ao recurso.
Lx. 8.11.95
Guilherme da Fonseca
Messias Bento
José Sousa e Brito
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
Luís Nunes de Almeida