Imprimir acórdão
Proc. nº 185/95
1ª Secção
Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
Relatório
1. Em acção sumaríssima que corre termos no 6º Juízo do
Tribunal Cível da Comarca do Porto, o autor, A., advogado em causa própria,
apresentou, em 3 de Outubro de 1994, requerimento em que, após referir ter
acabado de ser notificado de dois despachos manuscritos, pediu a sua
'notificação efectiva através de cópia dactilografada', alegando que esses
despachos não eram 'totalmente perceptíveis e legíveis'. No requerimento teceu
algumas considerações acerca 'daquilo que nesses autógrafos (em particular o
segundo) é inteligível'.
Concluiu tal requerimento com a seguinte alegação:
'(...) Alega desde já, por precaução, que eventual recusa da
notificação ora impetrada consumará, em princípio, a aplicação pelo Tribunal
requerido de uma norma jurídica inconstitucional: a do art. 259º do Cód. de
Processo Civil, na interpretação censurada no Acórdão nº 441/91, de 20/XI, do
Tribunal Constitucional, por violação da garantia consagrada no art. 20º, nº 1,
da Constituição.'
2. O mencionado requerimento foi indeferido por despacho
de 6 de Outubro de 1994, com o seguinte teor:
'Conforme resulta do papel que antecede, parece ter sido entendido o
despacho de fls. 43.
Assim, indefere-se a referida cópia dactilografada daquele despacho.
Notifique-se.'
3. Interpôs, então, o autor, em 13 de Outubro de 1994,
recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea
b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro,
com vista, segundo refere, 'à verificação (...) da inconstitucionalidade da
norma do artigo 259º do Código de Processo Civil, segundo a interpretação que
lhe é conferida pelo despacho [acima transcrito] (...), no sentido de que cabe
ao juiz avaliar e decidir sobre a (i)legibilidade das (foto)cópias dos textos de
despachos (...) por si manuscritos, enviadas ou entregues às partes juntamente
com a notificação, por violação do artigo 20º, nº 1, da Constituição'. Dirigiu o
requerimento de recurso aos 'Exmos. Senhores Juízes Conselheiros do Tribunal
Constitucional'.
Nesse requerimento, depois de invocar o facto de ter
suscitado a questão da constitucionalidade do artigo 259º do Código de Processo
Civil logo no momento da formulação do pedido de cópias dactilografadas, alegou,
designadamente, o seguinte:
'(...) Por despacho exarado a fls. 48, o Sr. Juiz do processo indeferiu o
requerido - expressamente quanto a uma das decisões visadas (a de fls. 43), e
implicitamente quanto à outra (a de fls. 39) -, com base no argumento de que
'parece (sic) ter sido entendido o despacho de fl. 43', o que, inelutavelmente,
consuma a aplicação, nesta decisão, da norma prévia e explicitamente arguida de
inconstitucional pelo recorrente, nos exactos termos previstos naquela
arguição.'
4. Sobre o requerimento de interposição de recurso
incidiu despacho, de 6 de Dezembro de 1994, proferido na audiência de discussão
e julgamento, que o indeferiu nos seguintes termos:
'Conforme se alcança de fls. 50 a 52 o Autor veio interpor recurso de um
despacho que não identifica nem concretiza, dirigindo-se no requerimento de fls.
50 de imediato aos Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, requerendo
que se julgue inconstitucional a norma do artigo 259º do C.P. Civil 'na
interpretação que lhe foi implicitamente dada pelo despacho recorrido'.
Ora, antes de iniciar a audiência de julgamento há que apreciar tal
requerimento.
Assim:
1º - O requerimento de recurso não concretiza o objecto do mesmo.
2º - Mesmo a entender-se que se refere a qualquer despacho proferido
nos autos, não se toma conhecimento de tal requerimento já que durante o
processo não se suscitou a inconstitucionalidade da norma supra referida.
Ora, só nesse caso é que é legítima a invocação da al. a) do nº 1 do
art. 70º da Lei nº 28/82, de 15/11. Isto é, só quando em despacho ou decisão
deste Tribunal é suscitada a questão de uma inconstitucionalidade de uma norma
que o Tribunal a aplique é que é pertinente o 'recurso' interposto, mormente
este o não ter sido pela forma legal.
Não se toma assim conhecimento do requerimento em causa.'
5. É deste despacho de indeferimento do requerimento de
recurso para o Tribunal Constitucional que vem a presente reclamação, de que se
destacam os seguintes fundamentos:
'I - Na introdução do seu 'requerimento em matéria de constitucionalidade'
controvertido, declara o signatário, muito concretamente, cumprir-lhe 'interpor
desse acto', o 'dúplice indeferimento' do seu requerimento pelo Tribunal apodado
- uma vez mais, incorrectamente - de 'papel', o 'competente recurso'.
E já no requerimento propriamente dito, é incontrovertivelmente
explicitado o sentido e alcance de tal recurso (...).
II - É transparentemente inverídica, por conseguinte, a afirmação
judicial, vertida no ponto 1º do despacho de fls. 54 v., de que 'o requerimento
de recurso não concretiza o objecto do mesmo' (sic).
III - A referenciação antecipada ao 'requerimento (ínsito num
escrito) apodado de papel' (cfr. 'I' supra) é, no presente processo,
absolutamente inequívoca. Iniludivelmente, logo após esse requerimento -
constando de fls. 47, onde muito concretamente se requer a notificação ao
requerente dos 'dois despachos referidos' ali, expressamente, através de 'cópia
dactilografada' -, alegando 'por precaução' (sic), suscita o ora reclamante,
clarissimamente, a questão da inconstitucionalidade efectivamente ocorrente 'in
casu' (...).
IV - A afirmação judicial de que 'durante o processo não se suscitou
a inconstitucionalidade da norma supra referida' (sic), constante do despacho de
indeferimento - implícito: metaforicamente designado, é facto, por 'não tomada
de conhecimento do recurso' (cf. fls. 45 v.) - proferido, ele mesmo (logo antes
da sentença, de resto prematura), durante o processo, é, portanto - por tão
manifestamente insincera -, de todo ininteligível. (...)'
O juiz do processo manteve o despacho reclamado.
6. Neste Tribunal, foi dada vista ao Ministério Público,
que se pronunciou no sentido do indeferimento da aludida reclamação, nos
seguintes termos:
'A presente reclamação não merece, a nosso ver, provimento.
Cumpre, desde logo, salientar, perante o carácter insólito do
processado nestes autos, que o recorrente não dirigiu, como devia, o
requerimento através do qual pretendeu interpor recurso de constitucionalidade,
ao Juiz 'a quo', autor da decisão recorrida, de modo a permitir-lhe a prolação
do despacho liminar de admissão ou rejeição de tal recurso, nos termos
decorrentes do preceituado no art. 76º da Lei nº 28/82.
Efectivamente, embora o arrazoado de fls. 32 começasse por ser
dirigido ao Juiz que proferiu a decisão de que se pretenderia recorrer, o certo
é que - no dizer do recorrente - 'o competente recurso' é 'de imediato, dirigido
a quem de direito', ou seja, aos 'Exmos. Senhores Juízes Conselheiros do
Tribunal Cons-titucional' ...
Tal circunstância seria, só por si e na nossa opinião, suficiente
para precludir a admissibilidade do recurso de constitucionalidade que se
pretendeu intentar, inviabilizando a apreciação de tal requerimento por 'quem de
direito' - o Juiz 'a quo', nos termos do já citado art. 76º da Lei do Tribunal
Constitucional - 'eliminando' ou 'ultrapassando' uma fase essencial estruturante
dos recursos em sede de fiscalização concreta.
Acresce que - numa visão substancial das coisas - a norma
questionada, a constante do art. 259º do CPC, não foi claramente aplicada pelo
tribunal 'a quo' com o sentido inconstitucional, apontado pelo recorrente: o de
que 'cabe ao Juiz avaliar e decidir sobre a (i)legibilidade' das peças
manuscritas enviadas juntamente com a notificação: o que se afirmou, no despacho
de fls. 31, foi que o requerimento entretanto apresentado pelo reclamante
demonstraria, pelos termos em que se mostra formulado, que o despacho manuscrito
teria sido perfeitamente entendido e apreendido - o que é coisa bem diversa.
E, como se afirma no Ac. nº 444/91, 'o sentido que vem de extrair-se
da norma do artigo 259º do CPC, em conformidade com o disposto no artigo 20º, nº
1, da Constituição, não obstará a que o Juiz possa, em casos pontuais - e
decerto excepcionais - indeferir o requerimento de envio ou entrega de nova
cópia ou fotocópia de uma decisão judicial quando for patente ou manifesta a
perceptibilidade ou legibilidade da anterior (e isto aplicar-se-á sobretudo aos
casos de despachos judiciais de muito reduzida dimensão) e não se lhe oferecer
quaisquer dúvidas de que a parte apenas pretendeu com aquele a utilização de um
expediente meramente dilatório ou o recurso a um instrumento de chicana'.'
7. Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II
Fundamentação
8. Com a presente reclamação pretende-se que o Tribunal
admita o recurso interposto em 13 de Outubro de 1994 de um despacho de 6 de
Outubro do mesmo ano que, conhecendo parcialmente de um requerimento
apresentado, o indeferiu.
Tendo o mencionado recurso sido interposto ao abrigo da
alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, importa
verificar se se encontram preenchidos os respectivos pressupostos, em especial,
aquele que nos autos é questionado pelo Ministério Público: o de a norma cuja
inconstitucionalidade se suscita ter sido efectivamente aplicada no despacho
recorrido.
Tendo-se invocado a inconstitucionalidade do artigo 259º
do Código de Processo Civil apenas numa determinada dimensão normativa, importa
verificar não só se tal norma foi aplicada, mas também se o foi com o sentido
que o recorrente considera inconstitucional e isto independentemente de curar de
saber do rigor formal do requerimento de reclamação.
O reclamante sustenta que o indeferimento do seu
requerimento se baseou no facto de o juiz de 1ª instância entender que lhe
competia decidir da legibilidade ou da ilegibilidade da fotocópia que acompanhou
a notificação efectuada e que tal entendimento, porque dá relevo à óptica do
juiz e não à do destinatário, é inconstitucional por violar a garantia de acesso
ao direito e aos tribunais consagrada no artigo 20º, nº 1, da Constituição. Em
abono desta tese, o reclamante cita e transcreve parcialmente o Acórdão do
Tribunal Constitucional nº 444/91, de 20 de Novembro [Diário da República, II
série, de 2 de Abril de 1992, p. 3112(36)].
Sendo esta a dimensão normativa que se pretende que o
Tribunal aprecie, importa analisar agora se na decisão recorrida a norma em
causa foi aplicada com esse sentido. Ora, da leitura do despacho resulta que o
juiz não se pronunciou sobre a questão de saber qual a óptica relevante para
determinar se um despacho é ou não legível, nem sobre o critério que, nessa
óptica, deve ser utilizado. Disse apenas que, demonstrando o requerente ter
compreendido o despacho de que pedia cópia dactilografada, não se justificava a
realização de nova notificação nos termos requeridos.
Deste modo, a decisão de que se pretende ora recorrer
pressupõe entendimento contrário ao que lhe imputa o reclamante. Uma vez que
considera ter sido compreendido o teor do despacho, é na perspectiva do
destinatário do escrito que o artigo 259º é interpretado.
Consequentemente, o artigo 259º do Código de Processo
Civil não foi aplicado na decisão recorrida com a dimensão que o recorrente
considera inconstitucional. Não se trata de julgar inconstitucional a norma
aplicada pela decisão recorrida com fundamento na violação de normas ou
princípios legais diversos daqueles cuja violação foi invocada, o que caberia
nos poderes de cognição do Tribunal Constitucional, por força do disposto no
artigo 79º-C da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (aditado pelo artigo 2º da Lei
nº 85/89, de 7 de Setembro). Trata-se apenas de dar pleno cumprimento à
exigência prevista nos artigos 70º, nº 1, alínea b), e 79º-C da Lei do Tribunal
Constitucional, nos termos da qual apenas a constitucionalidade da norma ou da
dimensão normativa efectivamente aplicada pode ser apreciada.
II
Decisão
9. Pelo exposto, indefere-se a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa
em 5 UCs (artigo 84º, nº 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro e artigos 17º e
18º do Decreto-Lei nº 149-A/83, de 5 de Abril, na redacção que lhes deu o
Decreto-Lei nº 72-A/90, de 3 de Março).
Lisboa, 7 de Novembro de 1995
Maria Fernanda Palma
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
José Manuel Cardoso da Costa