Imprimir acórdão
Proc. nº 391/94
Cons. Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A. interpôs recurso contencioso do despacho do
DIRECTOR-GERAL DA COMUNICAÇÃO SOCIAL, de 8 de Julho de 1991, que lhe indeferiu a
reclamação, que havia apresentado contra a efectivação do registo da publicação
periódica 'B.', com fundamento em que este título era susceptível de se
confundir com a denominação da publicação, também periódica e que se achava
registada a seu favor, denominada 'C.'.
O Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa negou
provimento ao recurso.
Inconformado, interpôs ele recurso da sentença para o
Supremo Tribunal Administrativo (Secção de Contencioso Administrativo).
O Supremo Tribunal Administrativo proferiu acórdão a
mandar notificar o recorrente, para que ele se pronunciasse, querendo, sobre a
eventual declaração de incompetência dos tribunais administrativos para o
recurso, decorrente da possível inconstitucionalidade do artigo 36º, nº 1, da
Portaria nº 640/76, de 26 de Outubro.
O recorrente nada disse.
O Supremo Tribunal Administrativo tirou, então, o
acórdão de 10 de Maio de 1994, no qual, depois de se recusar aplicação, com
fundamento na sua inconstitucionalidade, ao artigo 36º, nº 1, da Portaria nº
640/76, de 26 de Outubro, se concluiu que 'é da competência dos tribunais
judiciais, e não dos tribunais administrativos, a decisão do recurso contencioso
interposto do despacho do Director-Geral da Comunicação Social, que indeferiu a
impugnação do registo da publicação periódica “B.'. E, em consequência, concedeu
provimento ao recurso jurisdicional, revogou a sentença recorrida e declarou a
incompetência dos tribunais administrativos.
2. É deste acórdão, de 10 de Maio de 1994, que vem o
presente recurso, interposto pelo Ministério Público ao abrigo da alínea a) do
nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da
constitucionalidade da norma constante do nº 1 do artigo 36º da Portaria nº
640/76, de 26 de Outubro.
Neste Tribunal, apenas alegou o Procurador-Geral Adjunto
que concluiu as suas alegações como segue:
1º Através do registo de imprensa, cuja natureza é pública, o Estado prossegue
uma actividade tipicamente administrativa;
2º Assim, o artigo 36º do Regulamento do Serviço de Registo de Imprensa,
aprovado pela Portaria nº 640/76, de 26 de Outubro, ao prever o recurso
contencioso, com a decorrente competência dos tribunais administrativos para o
seu conhecimento, não viola o disposto no artigo 214º, nº 3, da Constituição.
Termos em que merece provimento o recurso, devendo ordenar-se a reforma do
acórdão recorrido em conformidade com o precedente juízo de não
inconstitucionalidade.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir se a norma
constante do nº 1 do artigo 36º da Portaria nº 640/76, de 26 de Outubro, é ou
não inconstitucional.
II. Fundamentos:
4. A Lei de Imprensa (Decreto-Lei nº 85-C/75, de 26 de
Fevereiro), dispõe no artigo 13º (no que aqui importa) o seguinte:
Artigo 13º (Registo de imprensa)
1. O Governo, através do Ministério da Comunicação Social, organizará os
seguintes registos:
a). Publicações periódicas, com indicação do título, da periodicidade, sede,
entidade proprietária, respectivos corpos gerentes e direcção.
3. Antes de efectuado o registo previsto no nº 1 do presente artigo não poderão
as empresas jornalísticas, editoriais e noticiosas iniciar o exercício da sua
actividade nem ser editada qualquer publicação periódica.
O Regulamento do Serviço de Registo de Imprensa - que,
nos termos do artigo 64º do citado Decreto-Lei nº 85-C/75, devia ser elaborado
no prazo de 90 dias - veio a ser aprovado pela Portaria nº 640/76, de 26 de
Outubro.
Esta Portaria nº 640/76 prescreve no artigo 13º, nº 1:
1. O requerimento para registo de publicações periódicas deverá conter as
seguintes indicações:
a) Título, o qual não deve confundir-se, quer no aspecto vocabular, quer no
aspecto gráfico, com outros títulos já registados ou cujo registo já tenha sido
requerido;
b) Periodicidade;
c) Sede da administração;
d) Entidade proprietária;
e) Corpos gerentes;
f) Nome do director designado, director-adjunto e subdirector, se os houver.
O título de uma publicação periódica de que se requeira
o registo não deve, pois, 'confundir-se, quer no aspecto vocabular, quer no
aspecto gráfico, com outros títulos já registados ou cujo registo já tenha sido
requerido' [alínea a) acabada de transcrever].
Por isso - dispõe o nº 2 do artigo 14º da mesma Portaria
-, 'será recusado o registo do título de um periódico que induza em erro ou
confusão pela sua semelhança gráfica, figurativa ou fonética com outro título já
registado'.
5. No acórdão recorrido, decidiu-se que o nº 1 do artigo
36º da Portaria nº 640/76, de 26 de Setembro, se tornou supervenientemente
inconstitucional, pois que viola o artigo 214º, nº 3, da Constituição.
Na verdade - ponderou-se aí -, com a privatização da
imprensa, o registo do título das publicações periódicas 'deixou [...] de visar
o interesse público, tendo antes por objectivo a defesa do direito de
propriedade'; ou seja: com ele o que agora se pretende é 'garantir, tornar
certo, por forma a não poder ser contestado, o direito à propriedade do título'.
E acrescentou‑se: 'Porque assim é, o registo do título da publicação [...] não
cria, modifica ou extingue relação jurídica administrativa, de modo a poder-se'
falar em 'litígio emergente de relação desse tipo'.
É que - disse-se no mesmo acórdão -, 'a circunstância de
intervir um acto da Administração não impõe que a definição da situação seja
necessariamente feita por acto administrativo'.
De facto - acrescentou-se -, 'uma coisa é a intervenção
do órgão administrativo exclusiva ou prevalentemente no interesse privado' (como
sucede, por exemplo, com 'os actos de certificação, como o registo de patentes,
de marcas, de nomes de estabelecimentos, de firmas e os registos respeitantes ao
estado civil', em que 'do que se trata é 'de mera avaliação ou certificação',
com efeito situando-se na esfera jurídica privada') e outra, bem diferente , são
'os actos visando directa e imediatamente a realização de um interesse público'.
O artigo 35º, nº 1, da mesma Portaria prescreve que, das
decisões que recusarem um registo ou ordenarem o seu cancelamento, cabe recurso
para o Secretário de Estado da Comunicação Social. Da decisão deste, cabe
recurso contencioso nos termos da lei geral.
Dispõe, na verdade, o artigo 36º da dita Portaria:
Artigo 36º (Recurso da decisão do Secretário de Estado)
1. Da decisão do Secretário de Estado podem os interessados interpor recurso
contencioso, nos termos da lei geral.
2. A fim de possibilitar o exercício deste direito, a decisão do Secretário de
Estado deverá ser notificada aos interessados, enviando-se-lhes cópia
autenticada com o selo branco da Secretaria de Estado, nos oito dias seguintes
ao da data em que a decisão tiver sido proferida.
O Procurador-Geral Adjunto, louvando-se no parecer nº
33/87, de 2 de Julho de 1987, da Procuradoria-Geral da República (publicado no
Boletim do Ministério da Justiça, nº 376, páginas 89 e seguintes), sustenta que,
através do registo de imprensa, o Estado desenvolve 'uma característica acção
administrativa, praticando, por intermédio dos seus órgãos e serviços, actos de
coordenação das actividades dos sujeitos jurídicos, colimados à adequada
satisfação de necessidades colectivas implicadas no sector social da
informação'.
Efectivamente - diz ainda o Ministério Público, citando
aquele parecer -, tal registo é público, sendo 'a natureza pública do registo de
imprensa [que] determina o Estado a organizar os serviços, a provê-los de
infra-estruturas materiais e de pessoal, definindo atribuições e competências no
uso das quais se praticam actos registrais: inscrições e averbamentos dotados de
efeitos jurídicos próprios, comunicações aos interessados, recusas e
cancelamentos de registos ilegais'.
6. O artigo 36º, nº 1, da Portaria nº 640/76, de 26 de
Outubro, violará, então, o artigo 214º, nº 3, da Constituição, como se sustenta
no acórdão recorrido?
A resposta é negativa.
Dispõe o artigo 214º, nº 3, da Constituição da República
o seguinte:
Artigo 214º (Tribunais administrativos e fiscais)
3. Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e
recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das
relações jurídicas administrativas e fiscais.
A existência dos tribunais administrativos e fiscais -
que era facultativa ('Podem existir tribunais administrativos e fiscais [...]',
dispunha o nº 2 do artigo 212º, na redacção de 1982) -, após a revisão
constitucional de 1989, passou a ser constitucionalmente obrigatória.
Aos tribunais administrativos compete, assim, a justiça
administrativa, que o mesmo é dizer que lhes cabe o julgamento das acções e dos
recursos destinados a dirimir os conflitos emergentes de relações
jurídico-administrativas. Ou seja: a Constituição comete-lhes a resolução das
controvérsias nascidas de relações jurídicas administrativas, dos litígios
emergentes de relações jurídicas que sejam de direito administrativo (relações
jurídicas administrativas públicas ou em que um dos sujeitos, pelo menos, actue
na veste de autoridade
pública, munido de um poder de imperium, com vista à realização do interesse
público legalmente definido).
As relações jurídico-administrativas são justamente
caracterizadas por J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da
República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, página 815) nos
seguintes termos:
(1). As acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos,
um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público
(especialmente da administração).
(2). As relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista
material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto
significa que não estão aqui em causa litígios de natureza 'privada' ou
'jurídico-civil'. Em termos positivos, um litígio emergente de relações
jurídico‑administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações
jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo ou fiscal.
Excluem-se, assim, da justiça administrativa - diz J. C.
VIEIRA DE ANDRADE (Direito Administrativo e Fiscal, lições ao 3º ano do Curso da
Faculdade de Direito de Coimbra de 1993-1994, policopiadas) - 'todas as questões
de direito privado, isto é, as decorrentes da actividade de direito privado da
Administração - quer seja a que corresponde ao mero exercício da sua capacidade
privada (negócios auxiliares, administração do património, gestão de
estabelecimentos económicos em concorrência), quer se trate de actividades
funcionalmente administrativas, na parte ou na medida em que se desenvolvem
através de meios privatísticos (subvenções, fornecimento de bens e serviços,
gestão de estabelecimentos públicos, certas intervenções no mercado)'.
E o mesmo Autor acrescenta:
Devem ficar também, pela mesma razão, fora do domínio da justiça administrativa
as questões relativas à validade de actos praticados (designadamente pelo
Governo e Governos regionais) no exercício da função política [ETAF, artigo 4º,
nº 1, alínea a)] ou no exercício da função legislativa, se os actos tiverem
carácter normativo, ainda que concreto [ETAF, artigo 4º, nº 1, alínea b); LPTA,
artº. 25º, nº 2], bem como, em qualquer das hipóteses, a responsabilidade pelos
danos causados no exercício dessas actividades.
Se o artigo 214º, nº 3, da Constituição consagrar uma
reserva material absoluta de jurisdição atribuída aos tribunais administrativos,
óbvio é que eles só poderão julgar questões de direito administrativo e que só
eles as poderão julgar, a menos que seja a própria Constituição a atribuir a
outros tribunais a competência para esse julgamento, como sucede, por exemplo,
com a atribuição ao Tribunal Constitucional da matéria de contencioso eleitoral
(cf., neste sentido, J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, ob. cit., página
814).
Nem toda a doutrina faz, porém, uma leitura tão estrita
do mencionado artigo 214º, nº 3.
VIEIRA DE ANDRADE, por exemplo, lê tal preceito como
contendo 'uma regra definidora de um modelo típico, susceptível de adaptações ou
de desvios em casos especiais, desde que sem prejuízo do núcleo caracterizador
do modelo'. Dizendo de outro modo: lê-o como visando 'apenas consagrar os
tribunais administrativos como os tribunais comuns em matéria administrativa'
(ob. cit., páginas 10 e 11).
É que, adverte o mesmo Autor:
'Uma interpretação tão rigorosa [refere-se à interpretação que primeiro se
referiu] implicaria a inconstitucionalização de leis importantes e de práticas
de longa tradição, designadamente em matéria de polícia judiciária,
contraordenações e expropriações por utilidade pública, uma revolução que só
poderia operar-se se tivesse sido claramente assumida pela revisão
constitucional (ob. cit., página 11).
Este Tribunal também já teve ocasião de se debruçar
sobre o artigo 214º, nº 3, da Constituição, tendo concluído que ele não era
violado pelo artigo 61º, nº 1, do Decreto-Lei nº 48.953, de 5 de Abril de 1969
(na redacção do Decreto-Lei nº 693/70, de 31 de Dezembro), que atribuía aos
tribunais tributários competência para cobrar dívidas de que fosse credora a
Caixa Geral de Depósitos [cf. Acórdãos nºs 371/94 (Diário da República, II
série, de 3 de Setembro de 1994), 372/94 (Diário da República, II série, de 7 de
Setembro de 1994), 508/94 (Diário da República, II série, de 13 de Dezembro de
1994), 574/94, 610/94 e 629/94 (por publicar)].
De entre as muitas questões de direito administrativo
que a lei atribui a outros tribunais - recte, aos tribunais judiciais - indica
VIEIRA DE ANDRADE, justamente, os recursos das decisões administrativas em
matéria de patentes e conexas (cf. Código da Propriedade Industrial, aprovado
pelo Decreto-Lei nº 16/95, de 24 de Janeiro, artigo 2º); certas decisões
administrativas relativas à liberdade de imprensa e o contencioso dos actos dos
conservadores no domínio do direito registral e do notariado (da chamada
administração pública do direito privado), 'na medida em que contenham decisões
de autoridade, designadamente dos despachos de recusa da prática de actos (v.
artigo 145º e seguintes do Código de Registo Predial, artigo 356º e seguintes do
Código de Registo Civil e artigo 104º e seguintes do Código de Registo
Comercial; v. ainda o artigo 192º e seguintes do Código do Notariado)'.
7. O domínio dos registos (registo de títulos de
publicações periódicas incluído) é um domínio em que a Administração, munida de
poderes de autoridade, pratica actos (inscrições e averbamentos, cancelamentos e
recusas de registos), com vista à realização do interesse que consiste em
conferir publicidade e segurança ao acto registado. E tal interesse é um
interesse público: o registo, do mesmo passo que dá publicidade e confere
segurança aos direitos registados, torna seguro o comércio jurídico que os tenha
por objecto, pois aquilo que objectivamente consta do registo, aquilo a que ele
confere publicidade, é, em princípio, digno de crédito. (Sobre a matéria de
registo predial, cf. ANTUNES VARELA e HENRIQUE MESQUITA, Revista de Legislação e
Jurisprudência, ano 127º, páginas 21 e 23).
O Director-Geral da Comunicação Social, quando faz o
registo de um título de uma publicação periódica ou o recusa, pratica, assim, um
acto administrativo: trata-se, na verdade - na definição de ROGÉRIO SOARES
(Direito Administrativo, lições policopiadas, Coimbra, 1978, página 76 -, de
'uma estatuição autoritária, relativa a um caso individual, manifestada por um
agente da Administração no uso de poderes de Direito Administrativo, pela qual
se produzem efeitos jurídicos externos, positivos ou negativos'.
Ao registar-se o título, se o registo não for impugnado,
protege-se, obviamente, o direito de propriedade do titular do mesmo, pois que
se assegura a sua oponibilidade a terceiros.
Isso, porém, não retira à matéria a sua natureza
publicística: a relação jurídica subjacente ao registo (ou à sua recusa ou
cancelamento) é uma relação jurídica pública - uma relação jurídica de direito
administrativo. [Sobre o conceito de função administrativa, cf. o acórdão nº
158/95 (por publicar), no qual, citando-se o acórdão nº 179/92 (Diário da
República, II série, de 18 de Setembro de 1992), se sublinha que se está no
domínio da actividade administrativa, sempre que se exercita um poder
administrativo, visando a 'prossecução e realização do interesse público qua
tale diferente do da composição dos conflitos'].
8. Há, assim, que concluir que a norma do nº 1 do artigo
36º da Portaria nº 640/76, de 26 de Outubro - que prevê recurso contencioso para
os tribunais administrativos dos actos de registo de imprensa - não viola o nº 3
do artigo 214º da Constituição.
Esta conclusão é independente da resposta à questão, que
atrás se enunciou e que não é necessário aqui decidir, de saber se, naquele
artigo 214º, nº 3, se atribui aos tribunais administrativos uma reserva material
absoluta de jurisdição, se, aí, apenas se consagram os tribunais administrativos
como os tribunais comuns em matérias administrativas.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso e, em consequência,
revoga-se o acórdão recorrido que deve ser reformado em conformidade com o aqui
decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 8 de Novembro de 1995
Messias Bento
José de Sousa e Brito
Guilherme da Fonseca
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
Luís Nunes de Almeida