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Proc.nº 26/95
2ª Secção
Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I
A CAUSA
1. A. foi condenado na comarca de Coimbra (proc. comum/singular
nº606/91 do 1ºJuízo, 2ªSecção) em 2 de Março de 1993, como autor de um crime de
difamação, praticado através de meio de comunicação social, previsto nos artigos
164º e 167º, nº2, do CP e 29º,nº3, da Lei nº 87/88 e 25º, nº1 do D.L. nº85-C/75,
na pena de multa global única de 160.000$00, com 106 dias de prisão em
alternativa (que após aplicação do perdão constante da Lei nº 23/91, ficou
reduzida à multa de 20.000$00 com 13 dias de prisão em alternativa) e na
indemnização de 300.000$00, em favor do assistente B..
Desta sentença interpôs o arguido recurso para a Secção Criminal do
Tribunal da Relação de Coimbra, recurso que acresceu a três outros recursos
interlocutórios que ao longo do processo interpusera. Motivou o recurso
interposto da decisão final com a peça processual certificada de fls.15 a 40
destes Autos de Reclamação.
1.1 O Tribunal da Relação de Coimbra, através de Acórdão proferido
em 12 de Outubro de 1994, que constitui fls.55 a 68 deste processo, depois de
julgar improcedente um dos recursos interlocutórios e rejeitar os outros dois,
apreciou o recurso da decisão final, e considerando serem as 'conclusões' deste
prolixas, não representado uma sintetização dos argumentos constantes da
motivação, entendeu rejeitá-lo, ao que referiu, 'nos termos dos artigos 412º e
420º, nº1, do Código de Processo Penal' (CPP).
Reagiu, então o arguido recorrendo para o Tribunal Constitucional
invocando a alínea b), do nº 1, do artigo 70º, da Lei nº28/82, de 15 de Novembro
(LTC) considerando serem inconstitucionais os artigos 412º, nº1 e 420º, nº1, do
CPP, interpretados nos termos em que o fez o acórdão recorrido por violação,
entre outros, do artigo 32º, nº1 da Constituição, bem como os artigos 690º, nº3,
do Código de Processo Civil (CPC) e 4º do CPP 'quando numa interpretação
conjugada impedem a aplicação do primeiro em sede processual penal'. Nesse
requerimento de interposição acrescentou ainda o arguido não poder dar
cumprimento ao nº3, do artigo 75º - A, da LTC porquanto a aplicação das normas
tidas por inconstitucionais ocorreu em decisão de que não cabe recurso.
2. Através do despacho certificado de fls. 72 a 76, o Exmº
Desembargador relator, não admitiu o recurso pretendido interpor pelo arguido
entendendo não suscitada durante o processo a questão de inconstitucionalidade e
considerando esse recurso manifestamente infundado.
Desta decisão reclamou para este Tribunal, nos termos do artigo 76º,
nº4, da LTC, o arguido endereçando a reclamação ao 'Conselheiro Presidente do
Tribunal Constitucional' e defendendo ser inesperada a interpretação dada pelo
relator às normas cuja inconstitucionalidade invocou, deduzindo desse carácter
inesperado a tempestividade da arguição posteriormente à decisão recorrida.
Subiram, então, os autos a este Tribunal, voltando porém à Relação
de Coimbra para serem instruídos com as peças que possibilitassem o julgamento
da reclamação e para submissão à conferência, nos termos do artigo 688º, nº 3,
do CPC. Proferido em 22 de Março de 1995 Acórdão, constante de fls.78 a 81,
confirmando o anterior despacho do relator, foi ainda junto aos autos
requerimento do assistente pugnando pela não apreciação da reclamação, por vir
dirigida ao Presidente do Tribunal.
De novo neste Tribunal foram os autos continuados com vista ao
Ministério Público, formulando o Exmº Procurador-Geral Adjunto aqui em exercício
parecer no sentido do provimento da reclamação.
Corridos os pertinentes vistos, importa decidir se o recurso
pretendido interpôr deveria ou não ter sido admitido.
II
FUNDAMENTAÇÃO
3. Antes, porém, importa consignar que a circunstância de a
reclamação vir endereçada ao Exmº. Conselheiro Presidente deste Tribunal, sendo
certo competir o julgamento da mesma à Secção (artigo 77º, nº 1, LTC), não
torna, contrariamente ao que refere o assistente aqui reclamado, impossível o
seu conhecimento. Coisa diversa ocorreria, como refere o Ministério Público, se
a reclamação houvesse sido endereçada ao relator no Tribunal recorrido ou ao
Presidente do Tribunal a este superior na hierarquia dos tribunais judiciais. Na
situação que aqui se configura, não tendo ocorrido admissão ou tramitação da
reclamação por entidade incompetente, haverá que tratar a referência do
reclamante ao Presidente deste Tribunal como mera imprecisão terminológica que
de modo algum preclude o conhecimento da reclamação.
4. Coloca-nos esta dois tipos de questões correspondentes aos dois
fundamentos de rejeição do recurso invocados pela decisão reclamada: a não
suscitação durante o processo da questão de inconstitucionalidade; o carácter
manifestamente infundado do recurso.
Apreciemos cada um destes fundamentos.
4.1. O recurso foi interposto ao abrigo da alínea b), do nº1, do
artigo 70º, da LTC, e nestes entende-se, como se refere na decisão recorrida,
que a suscitação da inconstitucionalidade da norma objecto tem de ocorrer
anteriormente à decisão que aplica essa norma, ou um determinado entendimento
dessa norma, como ratio decidendi. Incidentes pós-decisórios, como reclamações
de nulidade e pedidos de aclaração, ou outras peças processuais situadas após a
decisão, como é o caso do requerimento de interposição de recurso, situam-se,
assim, em princípio, em momento processualmente não idóneo à suscitação da
questão de inconstitucionalidade normativa que faculta o recurso fundado na
citada alínea b). Situações há, porém, em que a sequência processual em que a
aplicação de determinada norma ocorreu não foi de molde a facultar ao
interessado oportunidade processual efectiva de levantar a questão. Nestes casos
entende o Tribunal Constitucional - existem algumas decisões nesse sentido - ser
de aceitar uma suscitação posterior à decisão. É o que se passa quando é
inexigível à parte que questione a constitucionalidade da norma aplicada ao caso
ou da interpretação que dessa norma foi feita (neste sentido ver, por exemplo,
os Acórdãos nºs 166/92 e 370/90, nos DR - II, de 18.09.92 e 07.09.94). É,
nomeadamente, inexigível à parte que suscite antes da decisão a
inconstitucionalidade de uma norma com cuja aplicação não podia razoavelmente
contar ou de uma interpretação normativa imprevisível nos mesmos termos.
Está em causa na reclamação que ora nos ocupa, a rejeição de um
recurso crime decorrente da aplicação dos artigos 412º, nº1,e 420º nº1 do CPP
numa determinada leitura interpretativa. Consiste essa leitura em fazer
corresponder a uma situação de falta de motivação a formulação de conclusões
'prolixas' ou 'palavrosas', isto é, conclusões que não correspondem a um
condensar, em termos sintéticos, do que consta da motivação do recurso. Essa
deficiência da motivação não foi invocada no processo, na sequência da sua
apresentação, por qualquer interveniente processual. Tão só a decisão de que se
pretende recorrer introduziu no processo a questão de saber se as conclusões se
mostram formuladas ou não em termos correctos.
Poder-se-á no caso considerar a interpretação atrás referida dos
citados artigos da lei adjectiva penal, como algo normalmente previsível para o
aqui reclamante ?
A resposta não pode deixar de ser negativa.
Importa ter presente que, bem ou mal elaboradas - e isso aqui não
interessa -, não deixou o recorrente de formular conclusões e , em sentido
literal, apenas à falta de motivação é feita corresponder pelo artigo 420º a
rejeição do recurso. A isto acresce a circunstância de tanto na doutrina como na
jurisprudência não se encontrar (e não encontrava concretamente o recorrido ao
tempo da apresentação da motivação) normalmente, em processo crime, o
entendimento adoptado na decisão de rejeição. Não se encontram nas obras mais
comuns referências doutrinais directas - e são essas as que em termos de
previsibilidade média interessam - no sentido de a prolixidade das conclusões
ser equiparável à ausência pura e simples destas e constituir tal situação falta
ou insuficiência da motivação (v. por exemplo, Germano Marques da Silva, Curso
de Processo Penal, III, Lisboa 1994, pág. 333; José Gonçalves da Costa,
Recursos, em Jornadas de Direito Processual Penal, ed. do Centro de Estudos
Judiciários, Coimbra 1988, pág. 431 e segs; Eduardo Maia Costa, O Regime dos
Recursos no Projecto de Código de Processo Penal em Jornadas de Processo Penal,
ed. da Revista do Ministério Público, s.d., pág 152). Da mesma forma, não se
encontram referências jurisprudenciais significativas nesta área (o Acórdão
citado a fls.66 foi proferido em processo civil e na sequência de convite para
apresentar novas conclusões: v. Colectânea de Jurisprudência do STJ, TOMO I,
1993, pág. 140 e segs.; especificamente quanto ao processo crime apenas
encontramos na mesma Colectânea, a este propósito e, pelo menos, à primeira
vista, a transcrição da decisão proferida precisamente nestes autos, a decisão
aqui em causa : v.CJ Tomo IV e V de 1994,pág.55 e segs e 59 e segs.)
Trata-se aqui tão só de determinar, em termos de previsibilidade
normal, se o emprego numa decisão da dimensão interpretativa aqui seguida quanto
aos artºs 412º e 420º, do CPP constituía uma eventualidade que o reclamante
deveria antever. Ora, da conjugação dos dados expostos não se mostra razoável
exigir-lhe semelhante previsão. Ocorreu um uso inesperado duma dimensão
interpretativa específica que não pode deixar de abrir a via da suscitação no
próprio requerimento de interposição do recurso da questão de
inconstitucionalidade.
4.2. Diverso é o problema de saber se o recurso pretendido interpôr
(como também se diz na decisão reclamada) pode ser considerado «manifestamente
infundado», nos termos do artº 76º, nº2, da LTC.
A este propósito já este tribunal teve oportunidade de referir, no
Acórdão nº 501/94 (DR-II, de 10.12.94) que só é «manifestamente infundado», o
recurso cuja 'inatendibilidade seja liminarmente evidente ou ostensiva' o que
exclui situações em que, para se alcançar o juízo de rejeição liminar do
recurso, haja que 'desenvolver uma actividade cognitiva e argumentativa
semelhante à que (se) utilizaria em sede de recurso para poder concluir pela
inatendibilidade dos respectivos fundamentos'.
Ora, na situação que aqui se configura, está bem longe de ser
evidente, como sublinha o Ministério Público, que o 'ónus de concisão' e o
'rígido efeito preclusivo que lhe surge associado', não possam em processo penal
fundar um recurso de constitucionalidade.
5. Temos, assim, em conclusão, um recurso em que a questão de
inconstitucionalidade tem de se considerar tempestivamente suscitada e cuja
improcedência não é manifesta. Não pode, por isso, deixar de ser admitido.
III
6. Em função do exposto, decide-se deferir a presente reclamação e
determinar, consequentemente, a admissão do recurso respectivo.
Lisboa, 17 de Outubro de 1995
José de Sousa e Brito
Guilherme da Fonseca
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
Messias Bento
Luís Nunes de Almeida