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Processo: n.º 149/92.
1ª Secção
Relator: Conselheiro Monteiro Diniz.
Acordam no Tribunal Constitucional:
I — A questão
1 — A. e mulher B. interpuseram, perante o Tribunal Administrativo de Círculo
de Coimbra, recurso contencioso de anulação do despacho do Presidente da Câmara
Municipal de Pombal, de 15 de Dezembro de 1989, no qual foi determinado que no
prazo de trinta dias, com o mínimo de dilação, procedessem «ao arranque de 112
eucaliptos, implantados no seu prédio sito em …, freguesia de Almagreira,
concelho de Pombal, confinante com outro prédio propriedade de C., morador no
referido lugar de …, sob pena de, não o fazendo dentro desse prazo, a Câmara
Municipal ordenar o arranque desses eucaliptos, através de pessoal ao seu
serviço nos termos da lei».
Para tanto, além do mais, alegaram a inconstitucionalidade do Decreto n.º 28
040, de 14 de Setembro de 1937, na medida em que a situação contemplada neste
diploma «não visa o interesse público antes tem a ver com interesse entre
particulares».
2 — O Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra, por sentença de 28 de
Novembro de 1991, declarou nulo o acto recorrido porque viciado por usurpação de
poder derivada da inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 2.º e
3.º do Decreto-Lei n.º 28 039 (por manifesto lapso escreveu-se ali 28 040), de
14 de Setembro de 1937, e nos artigos 1.º, e seus §§ 1.º e 3.º, 2.º, 3.º, 4.º,
5.º, 7.º e 8.º do Decreto n.º 28 040, também de 14 de Setembro de 1937, na
medida em que violam o princípio da separação de poderes (artigos 113.º, n.º 2,
114.º, n.º 1, e 205.º, n.os 1 e 2, da Constituição).
Para assim concluir aquela decisão ateve-se, no essencial, à fundamentação
seguinte:
Do procedimento administrativo regulado pelo Decreto-Lei n.º 28 039 e Decreto
n.º 28 040 (…), não se apura que os órgãos (júri avindor e presidente da câmara)
actuem como se fossem eles próprios os titulares dos interesses enunciados,
agindo como partes e com vontade própria.
Efectivamente, das respectivas actividades, não se alcança a parcialidade do
júri avindor e do presidente da câmara. Quer dizer, estas entidades não detêm a
parcialidade e a iniciativa inerentes à via administrativa (Marcello Caetano,
Manual de Direito Administrativo, 10.ª ed., i, p. 13)
A administração só intervem a solicitação dos interessados, cessando a sua
intervenção quando as partes se conciliam e decidindo com total vinculação à
lei.
E se aqueles agentes não têm outro fim na sua actividade para além da composição
de conflitos concretos de interesses ajustando-lhe o direito aplicável, então,
sacrificam o núcleo essencial da função dos tribunais: a administração da
justiça (cfr. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 4.ª ed., p. 534).
Na intervenção do júri e do presidente da câmara no regime dos diplomas em
interpretação, não se pesquisa outro objectivo para além da resolução de
conflitos entre os proprietários das árvores e os proprietários e usufrutuários
dos terrenos, nascentes, muros ou construções alegadamente afectados pelo
desrespeito da distância regulamentar: aqueles órgãos verificam os factos e
aplicam a lei.
E a imparcialidade e passividade (Marcello Caetano, ibidem) dos agentes na
execução dos sobre aludidos diplomas, alcançando a resolução dos interesses
individuais, e, só por isso, satisfazendo a necessidade colectiva de preservar
as relações de boa vizinhança ou interesse público da manutenção da ordem (v.
Calamandrei, Istituzioni di diritto processuale civile, i, 2.ª ed., p. 34), são
típicas da função jurisdicional.
3 — Sob invocação do disposto nos artigos 69.º, 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º,
n.º 1, alínea a), 75.º e 78.º, n.º 4, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na
redacção dada pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, o Ministério Público trouxe
daquela decisão recurso obrigatório ao Tribunal Constitucional.
Na alegação entretanto produzida pelo senhor Procurador-Geral Adjunto
formularam-se as conclusões seguintes:
1.º Não são inconstitucionais, pois não violam a reserva do exercício da
função jurisdicional pelos tribunais, estabelecida no artigo 205.º, n.º 1, da
Constituição, as normas dos artigos 2.º, 1.ª parte, e 3.º do Decreto-Lei n.º 28
039, de 14 de Setembro de 1937, e dos artigos 1.º e § 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º,
7.º e 8.º do Decreto n.º 28 040, também de 14 de Setembro de 1937, que regulam
as competências do júri avindor e do presidente da câmara no processo de
arrancamento de árvores plantadas ou semeadas contra o disposto naqueles
diplomas e na Lei n.º 1951, de 9 de Março de 1937.
2.º Termos em que deve ser concedido provimento ao recurso.
Os recorridos não ofereceram contralegação.
Passados que foram os vistos legais cabe agora apreciar e decidir.
E decidir, concretamente, se as normas dos artigos 2.º, 1.ª parte e 3.º do
Decreto-Lei n.º 28 039, de 14 de Setembro de 1937, e dos artigos 1.º, e seus §§
1.º e 2.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 7.º e 8.º do Decreto n.º 28 040, também de 14 de
Setembro de 1937, as únicas que foram efectivamente desaplicadas na decisão
recorrida, e como tal constituem o objecto do presente recurso, dispõem ou não
de legitimidade constitucional.
II — A fundamentação
1 — «Considerando que as florestas constituem uma riqueza nacional essencial,
que um país não pode dispensar sob o ponto de vista económico, visto elas
desempenharem uma influência bem definida sobre o regime das águas, sobre o
clima local e sobre a actividade geral; considerando que evitar a desarborização
e promover o aproveitamento racional do solo continental é missão patriótica que
se impõe, tanto mais que a arborização deve considerar-se como uma das operações
culturais das mais produtivas e na actualidade das mais frutuosas; considerando
finalmente que, se algumas obrigações se fixam para os proprietários das matas,
lhes são dadas compensações que garantem a propriedade e os arvoredos contra
incêndios, gados e epifítias e que pela criação de estações de experimentação
florestal e escola de resinagem se promove o ensino e racionalização das
ciências florestais, com o que muito vêm a aproveitar os proprietários das
matas» (cfr. o respectivo preâmbulo), foi publicado o Decreto n.º 13 658, de 20
de Maio de 1927, definindo um quadro legal de protecção da riqueza florestal do
País.
Este diploma estabelecia no § único do seu artigo 5.º, a proibição de plantação
de eucaliptos a menos de 20 metros de campos agricultados, quando entre estes e
o local da plantação se não interpusessem estrada, rio, ribeiro, edifício, ou no
caso de os referidos terrenos de cultura se encontrarem a um nível superior em 4
metros ao da base da plantação.
O Decreto n.º 16 953, de 8 de Junho de 1929 veio dar nova redacção àquele
preceito mantendo porém, no essencial, o regime de limitação ao plantio de
eucaliptos que nele se estabelecia. O mesmo aliás pode dizer-se relativamente à
Lei n.º 1951, de 9 de Março de 1937, que, alargando embora aquele regime às
acácias, preservou a intenção do legislador de 1927, concedendo aos terrenos
cultivados protecção contra a proximidade daquelas espécies arbóreas.
É neste contexto normativo que vieram a ser publicados o Decreto-Lei n.º 28 039
e o Decreto n.º 28 040, ambos de 14 de Setembro 1937, os quais procederam à
alteração do regime de proibição da plantação de eucaliptos e outras espécies
florestais, ao mesmo tempo que reformularam, no plano orgânico e processual, o
arrancamento das plantações ilegais que havia sido instituído a partir de 1929.
Para uma melhor apreensão do conteúdo das normas cuja aplicação foi recusada na
sentença recorrida, importa delas deixar transcrição.
O Decreto-Lei n.º 28 039, depois de no artigo 1.º proibir a plantação ou
sementeira de eucaliptos, acácias da espécie denominada dealbata, vulgarmente
conhecida por acácia mimosa, e de ailantos, a menos de 20 metros de terrenos
cultivados e a menos de 90 de nascentes, terras de cultura de regadio, muros e
prédios urbanos, dispunha assim nos artigos 2.º e 3.º:
Artigo 2.º
As plantações ou sementeiras feitas em contravenção do disposto no artigo
anterior e § único do artigo 5.º do Decreto n.º 13 658, de 20 de Maio de 1937,
poderão ser arrancadas a requerimento dos interessados, dirigido à câmara
municipal, que mandará executar o arrancamento, salvo se a obrigação for
impugnada com fundamento em questões de posse e propriedade, devendo, em tal
caso, os requerentes ser remetidos aos tribunais ordinários, que se pronunciarão
apenas sobre a matéria da impugnação.
Artigo 3.º
É instituído um júri avindor, composto de três homens bons da freguesia, ao qual
compete:
1.º Promover a conciliação dos interessados sobre a forma de cumprimento da
lei;
2.º Verificar se as árvores se encontram ou não dentro das faixas definidas
no artigo 1.º deste decreto e demais circunstâncias nele previstas;
3.º Fixar a indemnização justa nos casos em que for devida.
Por seu turno, o Decreto n.º 28 040, nas normas que aqui importa considerar,
prescrevia assim:
Artigo 1.º
As plantações ou sementeiras feitas contra as disposições da Lei n.º 1951, de 9
de Março de 1937, alterada pelo Decreto n.º 28 039, de 14 de Setembro de 1937,
podem ser arrancadas a requerimento dos interessados, nos termos do referido
decreto e deste regulamento.
§ 1.º Consideram-se interessados legítimos para efeito do disposto neste artigo
os proprietários e usufrutuários dos terrenos, nascentes, terras de regadio,
muros e prédios urbanos.
§ 2.º Consideram-se excluídos da aplicação do disposto no Decreto n.º 28 039 os
terrenos de mato ou floresta, os muros de pedra solta que não sejam parte de
construção urbana, alpendrada, vedação de pátios e outros cómodos, suporte de
latadas e semelhantes.
............................................................
Artigo 2.º
Os interessados que pretenderem usar da faculdade que lhes é conferida no
Decreto n.º 28 039 deverão apresentar o respectivo requerimento na secretaria da
câmara municipal, indicando o fundamento legal do pedido, a espécie e o número
das árvores a que respeita, denominação, situação e limites da propriedade em
que estiverem radicadas, nome e residência do seu proprietário ou possuidor.
§ único. A letra e a assinatura do requerente serão reconhecidas autenticamente
por notário.
Artigo 3.º
Recebido o requerimento, a câmara municipal, na sua primeira sessão, nomeará o
júri avindor, composto de um presidente e dois vogais escolhidos entre os homens
bons da freguesia, que prestarão juramento perante o presidente da câmara e
exercerão as suas funções por três anos.
§ 1.º Constituem motivos de escusa e substituição a idade superior a sessenta
anos, a ausência ou a prática de qualquer facto ou delito que possa afectar a
sua autoridade.
§ 2.º Após a nomeação do júri avindor, o secretário da câmara, procedendo
despacho do presidente, fará notificar o proprietário ou possuidor das árvores
para impugnar o pedido com fundamento na posse e propriedade dos terrenos ou
para alegar o que tiver por conveniente.
§ 3.º Se for deduzida impugnação com aquele fundamento, serão os interessados
remetidos para o tribunal competente; se não houver impugnação, será o processo
imediatamente enviado ao presidente do júri avindor da respectiva freguesia.
Artigo 4.º
O júri reunirá por convocação do presidente na sede de qualquer instituição
pública da freguesia ou no próprio local da questão, sempre que seja possível,
sendo também convocados os interessados.
Artigo 5.º
Compete ao júri, de um modo especial, determinar:
1.º A espécie das árvores e a distância a que se encontram dos terrenos
cultivados do vizinho, das nascentes, terras de regadio, muros e prédios
urbanos;
2.º Se entre umas e outras medeia ou não estrada, via férrea e curso de água,
caminho público ou desnível de mais de 4 metros medidos pela forma estabelecida
no § 3.º do artigo 1.º;
3.º Se a forma mais conveniente do aproveitamento dos terrenos é ou não a da
arborização com essas árvores ou outras semelhantes desde que não prejudiquem as
nascentes, muros e prédios urbanos;
4.º A época em que foram plantadas ou semeadas, ouvindo, para isso, quando
for necessário, o testemunho dos vizinhos;
5.º O valor da indemnização a pagar pelo requerente ao dono das árvores
quando estas tenham sido plantadas ou semeadas em conformidade com as
disposições legais vigentes ao tempo da sementeira ou plantação.
Artigo 7.º
O júri procurará pelos meios ao seu alcance, dentro do espírito de equidade e
justiça, assegurar as relações de boa vizinhança, chamando sempre os
interessados à conciliação sobre o arrancamento, época em que deverá
efectuar-se, valor da indemnização, quando tiver lugar, e forma do seu
pagamento.
§ 1.º A conciliação constará do respectivo auto; se não tiver sido possível a
conciliação ou no caso de os interessados não terem comparecido, será lavrado um
auto das diligências praticadas e da decisão do júri a respeito das questões
enunciadas no artigo 5.º ou outras que tenham sido suscitadas e dentro da
competência do júri.
§ 2.º Os autos serão lavrados pelo vogal mais novo do júri, que servirá de
secretário, ou na secretaria da câmara, pelo respectivo chefe ou funcionário por
ele designado, na presença dos membros do júri.
§ 3.º Para o efeito do disposto na primeira parte do parágrafo anterior a
câmara municipal fornecerá os respectivos modelos impressos.
§ 4.º Todos os actos e diligências indicados neste artigo e no artigo anterior
deverão estar concluídos no prazo de um mês, a contar da data da remessa do
processo ao presidente do júri, salvo caso de força maior, como inundação,
impossibilidade de trânsito ou outro semelhante.
Artigo 8.º
Concluso o processo, o presidente da câmara fará notificar o requerido para
proceder ao arrancamento em prazo designado, segundo as decisões do júri, e, na
falta de cumprimento, ordenará que sejam arrancadas por pessoal da câmara.
§ 1.º O presidente da câmara, antes de ordenar o arrancamento, poderá solicitar
do júri qualquer esclarecimento complementar.
§ 2.º O dono ou possuidor das árvores é responsável pelo pagamento das despesas
a que tiver dado lugar o arrancamento.
Verifica-se assim que o regime para a composição de conflitos a que se reportam
estes dois diplomas, prevê a intervenção de três entidades — júri avindor,
câmara municipal e presidente da câmara municipal — que entre si repartem as
diversas funções que integram e caracterizam o respectivo processo.
Ao júri avindor, nomeado pela câmara municipal e composto por um presidente e
dois vogais escolhidos entre os homens bons da freguesia, compete
essencialmente: a) promover a conciliação dos interesses sobre a forma de
cumprimento da lei (artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 28 039 e artigo 7.º do
Decreto n.º 28 040); b) determinar as circunstâncias de facto relevantes para se
ordenar ou não o arrancamento das árvores em causa (artigo 3.º, n.º 2, do
Decreto-Lei n.º 28 039 e artigo 5.º, n.os 1 a 4, do Decreto n.º 28 040); c)
fixar a indemnização justa nos casos em que for devida (artigo 3.º, n.º 3, do
Decreto-Lei n.º 28 039 e artigo 5.º, n.º 5, do Decreto n.º 28 040).
A intervenção que estes diplomas atribuem às autarquias locais resultou do facto
de se haver concluído que estas disporiam de melhores condições para assegurar o
êxito do regime ali proposto do que os serviços centralizados, concretamente, a
Direcção-Geral dos Serviços Florestais a quem a Lei n.º 1951 cometia intervenção
similar.
À câmara municipal pertence a nomeação do júri avindor (artigo 3.º do Decreto
n.º 28 040), competindo ao presidente da câmara municipal receber o juramento
dos membros do júri (artigo 3.º do Decreto n.º 28 040) e, determinar o
cumprimento das decisões do júri, ordenando, quando for caso disso, o
arrancamento das árvores (artigo 8.º do Decreto n.º 28 040).
2 — É muito antiga no direito português a existência de «medianeiros ou
avindores», pois que, como refere Manuel de Oliveira Chaves e Castro, A
Organização e Competência dos Tribunais de Justiça Portugueses, Coimbra, 1910,
pp. 195 e segs., citado na alegação do Ministério Público, já as Ordenações
Afonsinas recomendavam aos juízes «que nos feitos cíveis trabalhassem por trazer
à concórdia os litigantes no começo do litígio», havendo nas Cortes de Évora de
1481-1482, «os povos pedido a creação de medianeiros ou avindores que
concertassem os desavindos antes de começarem os litígios».
E sobre o ponto, este Autor elucida:
Parece que, apesar de o rei se ter recusado a deferir ao pedido, se crearam
mais tarde avindores ou concertadores de demandas, como se infere do regimento
de 25 de Janeiro de 1519, que lhes mandava tractar de compor e concertar
quaesquer partes que estivessem para ter demandas ou questões, ou já as tivessem
ou entre si andassem em discórdias e inimisades, quando por algumas dellas
fossem requeridas ou disso soubessem por si.
Logo acrescenta porém, que apesar de as Ordenações Manuelinas e Filipinas
reproduzirem aquele preceito da primeira Ordenação, não existe notícia «de que
se nomeassem taes avindores ou concertadores de demandas e de que funcionassem».
Como quer que seja, séculos mais tarde, a Lei de 14 de Março de 1889,
complementada por decretos regulamentares de 19 de Março de 1891 (Regulamento
para o recenseamento e eleição nos collegios para constituição dos tribunais de
árbitros-avindores e Regulamento do processo perante os tribunaes de
árbitros-avindores) veio autorizar a criação de tribunais de árbitros-avindores
nas localidades em que existissem centros industriais importantes.
Estes tribunais haveriam de ser constituídos, para além do presidente e de dois
vice-presidentes, de nomeação governamental, por vogais, sempre em número par,
nunca inferior a oito nem superior a dezasseis, cabendo a eleição de metade, a
um colégio de patrões e a eleição de outra metade, a um colégio de operários
(artigo 6.º).
Não seria admitida perante estes tribunais a intervenção de advogados, devendo
as partes pleitear pessoalmente, e só por excepção, fundamentada em motivos
graves, e devidamente reconhecida pelo tribunal, poderiam ser representadas por
industriais ou operários, como procuradores (artigo 10.º).
A Lei de 14 de Agosto de 1889 que instituiu a primeira jurisdição especializada
de trabalho em Portugal (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 190/92,
Diário da República, II Série, de 19 de Agosto de 1992), inspirou-se naqueles
antecedentes históricos procurando, como sua ideia central, fazer renascer a
função medianeira e conciliadora dos avindores, enquanto meio de prevenir e
atalhar a litigiosidade entre as partes.
No primeiro dos seus diplomas regulamentares, escreveu-se, significativamente
«os tribunais de árbitros vão ganhando terreno. O primeiro julgamento por
homens bons reage contra a sua proscripção. O júri foi uma tentativa de
enxertia dos primitivos nos modernos tribunaes, mas os fructos não teem sido de
benção. Quiz-se refundir n’um só todos os fóros especiaes (…). Os tribunaes
avindores, organisados com a maxima simplicidade, se nos seus primeiros ensaios
procederem como d’elles se espera, serão principalmente salutares como exemplo e
modelo».
Também o júri avindor instituído pelos diplomas que aqui se questionam radica
naqueles longíquos antecedentes e encontra justificação nas particulares
virtualidades que reúne enquanto instrumento de conciliação de interesses
divergentes.
3 — Segundo a sentença recorrida, na intervenção do júri e do presidente da
câmara, não se divisa outro objectivo para além da resolução dos conflitos entre
os proprietários em litígio, e porque actuam no exclusivo interesse dos
particulares e na resolução das pendências entre eles desencadeadas, há-de ser
atribuída natureza jurisdicional às funções por eles exercidas.
E isto porque, tais entidades não detêm em tal exercício a parcialidade e a
iniciativa inerentes à via administrativa.
Será efectivamente assim?
Vejamos.
Em conformidade com o disposto no artigo 205.º, n.º 2, da Constituição, «na
administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e
interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade
democrática e dirimir os conceitos de interesses públicos e privados».
Ensaia-se neste preceito uma definição da função jurisdicional, que na doutrina
é deveras controvertida. São três as áreas especialmente mencionadas: a) a
defesa dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos (o que aponta
directamente para a justiça administrativa); b) a repressão das infracções da
legalidade democrática (o que aponta especialmente para a justiça criminal); c)
a resolução dos conflitos de interesses públicos e privados (o que abrange
principalmente a justiça cível).
Reveste-se de alta complexidade a delimitação da reserva da competência
judicial, constituindo a distinção entre administração e jurisdição uma das
questões salientes das disputas doutrinais e da jurisprudência. A linha de
fronteira terá de atender não apenas à densificação doutrinal adquirida da
função jurisdicional, aos casos constitucionais de reserva judicial — artigos
27.º, n.º 2, 28.º, n.º 1, 33.º, n.º 4, 34.º, n.º 2, 36.º, n.º 6, 46.º, n.º 2, e
116.º, n.º 7 — mas também ao apuramento neste campo de um entendimento exigente
do princípio do Estado de direito democrático (cfr. Gomes Canotilho e Vital
Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., pp. 792 e 793).
No plano da jurisprudência administrativa (cfr. por todos o acórdão do Supremo
Tribunal Administrativo, de 13 de Novembro de 1980, Acórdãos Doutrinais, n.º
231, pp. 286 e segs.), tem-se entendido que existe um acto jurisdicional quando
a sua prática se destina a realizar o próprio interesse público da composição de
conflitos de interesses, tendo como fim específico, portanto, a realização do
direito e da justiça; e existe um acto administrativo quando a composição de
interesses em causa tem em vista a prossecução de qualquer outro dos interesses
públicos, que ao Estado incumbe realizar, representando aquela composição um
simples meio ou instrumento para a sua satisfação, — sendo certo que a distinção
entre as duas funções «reside no carácter de parcialidade ou imparcialidade que
assume a actividade do órgão que procede à composição do conflito de interesses,
aferida em função de uma situação de indiferença ou desinteresse perante o
conflito, pelo que há acto administrativo se esse órgão, ou, melhor dizendo, se
a pessoa a que o mesmo pertence é interessada ou ‘parte’ no conflito, e há acto
jurisdicional na hipótese contrária».
Também o Tribunal de Conflitos, tem distinguido a função jurisdicional da função
administrativa, a partir de critérios ou índices similares aos que se deixaram
enunciados (cfr. acórdão de 22 de Maio de 1974, Acórdãos Doutrinais, n.º 154,
pp. 278 e segs.).
Do mesmo modo, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem vindo a adoptar
um idêntico entendimento. «A separação real entre a função jurisdicional e a
função administrativa passa pelo campo dos interesses em jogo: enquanto a
jurisdição resolve litígios em que os interesses em confronto são apenas os das
partes, a Administração, embora na presença de interesses alheios, realiza o
interesse público. Na primeira hipótese a decisão situa-se num plano distinto
do dos interesses em conflito. Na segunda hipótese verifica-se uma osmose entre
o caso resolvido e o interesse público» (cfr., por todos, o Acórdão n.º 104/85,
Diário da República, II Série, de 2 de Agosto de 1985).
No campo doutrinal, esta «vexata questio» tem merecido da parte dos Autores
nacionais e estrangeiros um tratamento exaustivo, bastando acompanhar aqui o
pensamento de Afonso Queiró, Lições de Direito Administrativo, Coimbra, 1976,
pp. 13 e segs., que terá sido quem, entre nós, mais longa e aprofundadamente
debateu esta questão.
E este Mestre, procurando alcançar o núcleo essencial que distingue as funções
jurisdicional e administrativa, escreveu assim:
Ao cabo e ao resto, o quid specificum do acto jurisdicional reside em que ele
não apenas pressupõe mas é necessariamente praticado para resolver uma «questão
de direito». Se, ao tomar-se uma decisão, a partir de uma situação de facto
traduzida numa «questão de direito» (na violação do direito objectivo ou na
ofensa de um direito subjectivo), se actua, por força da lei, para se conseguir
a produção de um resultado prático diferente da paz jurídica decorrente da
resolução dessa «questão de direito», então não estaremos perante um acto
jurisdicional; estaremos, sim, perante um acto administrativo.
Não é, pois, como muito bem o acentua Duguit, pelo lado dos efeitos que
substancialmente se distinguem as duas espécies de actos jurídicos externos que
no seu conjunto respectivamente constituem o exercício da função jurisdicional e
da função administrativa. Pelo lado dos efeitos (declarativos, condenatórios,
constitutivos ou executivos), as duas funções equivalem-se ou identificam-se. A
distinção entre elas é de ordem teleológico-objectiva. Em cada caso, há que
proceder a interpretação da lei, para se concluir qual é a finalidade objectiva
que, com o exercício de determinada competência legal, necessariamente se
realiza.
No quadro desta caracterização conceitual, atingiu-se uma definição teleológica
da função jurisdicional que atende ao desígnio da intervenção dos órgãos do
poder político do Estado, desígnio que é, na função jurisdicional e não já na
função administrativa, estritamente jurídico, visando a realização do direito
objectivo pela composição de interesses conflituantes e não o da sua aplicação
ou concretização em função de outros interesses públicos, ainda que para o
efeito usando como meio a dirimição de conflitos ou litígios jurídicos.
4 — À luz destes princípios não se sufraga o entendimento propugnado pelo senhor
Procurador-Geral Adjunto no sentido de que as normas desaplicadas se reportam a
«órgãos administrativos que, no prosseguimento de interesses públicos e
privados, desenvolvem uma actividade de natureza administrativa».
É certo que a defesa dos espaços florestais e a protecção do ambiente se
inscrevem no âmbito do interesse público, desprendendo-se da historicidade dos
diplomas em apreço e dos objectivos por eles perseguidos, o propósito de, ao
lado dos interesses individuais e particulares dos cidadãos ali acautelados, se
intentar também proteger, ao menos indirectamente, interesses da própria
colectividade.
Mas, tem-se por seguro, no respectivo contexto normativo global que aqueles
órgãos, enquanto tais, isto é, enquanto órgãos de composição de conflitos, não
se assumem como órgãos administrativos no desempenho de uma pura actividade
administrativa.
O exercício da competência de tais órgãos não se dirige, específica e
directamente, à prossecução ou defesa de um interesse da colectividade, visando,
ao contrário, pois é essa a finalidade objectiva da lei, resolver uma questão de
direito através da composição de um conflito de interesses entre particulares.
Dirimem um conflito jurídico decorrente da «plantação, ou sementeria de
eucaliptos, acácias da espécie denominada de albata, vulgarmente conhecida por
acácia mimosa, e de ailantos» efectuada «a menos de 20 metros de terrenos
cultivados e a menos de 30 de nascentes, terras de cultura de regadio, muros e
prédios urbanos», sendo que a sua intervenção carece do requerimento dos
interessados, concretamente, «os proprietários e usufrutuários» daqueles
terrenos, nascentes, terras de regadio, muros e prédios urbanos.
Actuando no sentido de decidir uma controvérsia jurídica e em defesa do directo
interesse dos particulares donos dos prédios confinantes com as áreas de
plantação ou sementeira vedadas por lei, o júri avindor e o presidente da câmara
municipal assumem-se como órgãos jurisdicionais.
Ora, independentemente de se saber se as normas desaplicadas ainda hoje vigoram
na ordem jurídica — pode sustentar-se a sua revogação na decorrência da Lei n.º
82/77, de 4 de Dezembro — tem-se por seguro ser constitucionalmente ilegítimo
atribuir a um órgão administrativo, por intervenção directa ou indirecta, o
exercício da função jurisdicional.
E assim sendo, sempre haveriam elas de ser tidas por inconstitucionais por
violação dos artigos 113.º, n.º 2, 114.º, n.º 1, e 205.º, n.os 1 e 2, da
Constituição.
III — A decisão
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar, no que à
questão de constitucionalidade respeita, a decisão impugnada.
Lisboa, 8 de Novembro de 1995. — Antero Alves Monteiro Diniz — Maria Fernanda
Palma — Maria da Assunção Esteves — Alberto Tavares da Costa — Armindo
Ribeiro Mendes — Vítor Nunes de Almeida (vencido, conforme declaração de voto,
que junta) — José Manuel Cardoso da Costa.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido quanto à conclusão a que chegou o acórdão a que respeita a
presente declaração, no sentido da inconstitucionalidade das normas dos artigos
2.º e 3.º do Decreto-Lei n.º 28 039, de 14 de Setembro de 1937, e dos artigos
1.º e seus §§ 1 e 3, 2.º, 4.º, 5.º, 7.º e 8.º do Decreto n.º 28 040, também de
14 de Setembro de 1937, pois continuo a entender que, na base da criação do
sistema de «árbitros avindores», a que se reportam tais normas, está em ultima
análise, a realização do interesse público da defesa da qualidade das terras,
ainda que tal interesse só possa realizar-se através da intervenção dos
particulares proprietários dos terrenos em que ocorram as plantações das
espécies nocivas, como as que são referidas nas mencionadas normas.
Assim sendo, não posso concordar que a finalidade de tais normas seja
primordialmente a resolução de conflitos jurídicos individuais entre os
proprietários e que, por isso, os «árbitros avindores» desenvolvam aqui uma
verdadeira própria actividade jurisdicional.
Também não concordo que a intervenção do Presidente da Câmara ao indicar o
terceiro árbitro, viole o preceituado nos artigos 113.º, n.º 2, e 114.º, n.º 1,
da CRP. Trata-se apenas da indicação, por entidade imparcial e a quem compete
depois executar a decisão — qualquer que ela seja —, do terceiro elemento dos
«árbitros avindores», sendo certo que é a Câmara Municipal quem está mais perto
das ocorrências que se têm de decidir. Não vejo aqui qualquer usurpação ou
violação do princípio da separação de poderes.
Assim, votaria no sentido da não inconstitucionalidade das normas em causa e
pelo provimento do recurso. — Vítor Nunes de Almeida.
(1) Acórdão publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Abril de
1996.