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Processo: n.º 90/92.
Recorrente: Ministério Público.
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma.
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I — Relatório
1 — Em processo de contra-ordenação da Câmara Municipal de Lisboa, foi aplicada
ao Partido Comunista Português e ao Partido Ecologista Os Verdes, enquanto
integrantes da Coligação Democrática Unitária (C.D.U.), uma coima total de 240
000$00, repartida por ambos em partes iguais, além de adicionais e custas do
processo, por infracção ao disposto no artigo 3.º, n.º 2, da Lei n.º 97/88, de
17 de Agosto (afixação de cartazes de propaganda política em edifício, sem
consentimento do proprietário), sancionada nos termos do artigo 10.º dessa Lei,
com referência ao artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.
2 — Dessa decisão administrativa recorreram o Partido Comunista Português e o
Partido Ecologista Os Verdes para o Tribunal de Polícia de Lisboa, sustentando,
além do mais, a inconstitucionalidade da Lei n.º 97/88, por violação do artigo
37.º, n.º 3, da Constituição.
Argumentaram que esse diploma tipificou como contra-ordenações as violações dos
seus comandos, respeitantes ao exercício da liberdade de expressão (artigo 37.º
da Constituição), e conferiu poderes de aplicação de coimas relativas a esses
ilícitos a autoridades administrativas (designadamente, presidentes de câmaras
municipais), contrariando, assim, a imposição constitucional, que entendem
decorrer do n.º 3 do artigo 37.º da Constituição, de que tais ilícitos devam
considerar-se de natureza criminal e de que a competência para o seu julgamento
caiba aos tribunais judiciais.
Nas respectivas alegações de recurso, concluíram, quanto a essa matéria, nestes
termos:
A Lei n.º 97/88 é inconstitucional por degradar em contra-ordenacionais ilícitos
que a CRP prevê como criminais, e por entregar a sua apreciação a autoridades
administrativas, quando a CRP a confia aos tribunais judiciais.
3 — O Tribunal de Polícia de Lisboa concedeu provimento aos recursos do Partido
Comunista Português e do Partido Ecologista Os Verdes, revogando a decisão
recorrida, por se entender serem inconstitucionais os artigos 3.º, n.º 2, e
10.º, n.º 1, da Lei n.º 97/88, de 17 de Agosto, por violação do artigo 37.º, n.º
3, com referência ao n.º 1, da Constituição. Na fundamentação, argumentou-se do
seguinte modo:
Suscitam os recorrentes a questão da constitucionalidade dos artigos 3.º, n.º 2,
e 10.º, n.º 1, da Lei n.º 97/88.
Estas normas estão em violação com o artigo 37.º, n.º 3, da Constituição da
República, na medida em que aqui se afirma que estes ilícitos têm que ser
criminais, entregando a sua competência, para julgamento, aos Tribunais
Judiciais. Logo, o ilícito não pode ter a natureza de contra-ordenação como
sucede com as normas em questão. (…)
Logo, qualquer infracção cometida no exercício do direito de exprimir e divulgar
livremente o pensamento tem que ser apreciada pelos Tribunais Judiciais. Para
ser apreciada pelos Tribunais Judiciais não pode ter a natureza de
contra-ordenação, pois estas são apreciadas por autoridades administrativas e só
são julgadas pelos Tribunais em sede de recurso. Deste modo essas infracções só
podem ter a natureza de crime. (…)
A razão de ser da exigência do artigo 37.º, n.º 3, da Constituição da República
quanto à apreciação das infracções em causa por parte dos Tribunais Judiciais é
evidente. A liberdade de expressão é o primeiro dos direitos das sociedades
democráticas. Não há democracia sem liberdade de expressão. Dada esta
importância singular deste direito, entendeu o legislador constitucional que as
infracções cometidas no exercício desse direito tinham que ser apreciadas pelos
Tribunais como órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em
nome do povo. Não podiam essas infracções ser confiadas às autoridades
administrativas por estas não terem a característica primeira e fundamental que
têm os Tribunais: a independência. (…)
Ora, os recorrentes ao afixarem cartazes de propaganda eleitoral estão,
inequivocamente, a exercer o direito de liberdade de expressão a que se refere o
artigo 37.º, n.º 1, da Constituição da República.
Por isso, a infracção em questão, artigos 3.º, n.º 2, e 10.º, n.º 1, da Lei n.º
97/88, é cometida no exercício daquele direito e a sua apreciação só pode ser
«da competência dos Tribunais Judiciais», artigo 37.º, n.º 3, da Constituição da
República. Mas não é isso que estipula o artigo 10.º, n.º 1, com referência ao
artigo 3.º, n.º 2, da Lei n.º 97/88, pois aqui tipifica-se o ilícito como
contra-ordenação, atribuindo-se a competência para apreciar esses ilícitos a
autoridades administrativas.
Logo os artigos 3.º, n.º 2, e 10.º, n.º 1, da Lei n.º 97/88 estão,
irremediavelmente, feridos de inconstitucionalidade material, por violação do
artigo 37.º, n.os 1 e 3, da Constituição da República, na medida em que a
apreciação daquele ilícito é confiada a autoridades administrativas e não aos
Tribunais Judiciais.
4 — Desta decisão vem interposto pelo Ministério Público o presente recurso
(obrigatório) para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 280.º, n.os
1, alínea a), e 3, da Constituição da República Portuguesa e dos artigos 70.º,
n.º 1, alínea a), e 72.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, em virtude
de o tribunal a quo ter recusado a aplicação dos artigos 3.º, n.º 2, e 10.º, n.º
1, da Lei n.º 97/88, com fundamento em inconstitucionalidade.
Neste Tribunal, o Magistrado do Ministério Público apresentou alegações, de que
se destacam os seguintes argumentos:
A afixação de propaganda de natureza política, maxime no decurso de campanhas
eleitorais, faz manifestamente parte da liberdade de expressão; isto é, o
direito de expressão inclui no seu âmbito de protecção a afixação mural de
propaganda de natureza política. (…)
O direito de expressão, como outros direitos fundamentais, não é um direito
absoluto, antes admite restrições derivadas da necessidade de «salvaguardar
outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos» — artigo 18.º, n.º
2, da Constituição. (…)
O processo formativo da Lei n.º 97/88, de 17 de Agosto, respeita os requisitos
formais constitucionalmente exigidos para as leis restritivas de direitos,
liberdades e garantias — é uma lei formal, geral, abstracta, não retroactiva e
respeitadora dos princípios da proibição do excesso e da salvaguarda do núcleo
essencial do direito restringido. (…)
Aliás, a sentença recorrida coloca a questão da inconstitucionalidade não ao
nível formal, mas ao nível material: as normas dos artigos 3.º, n.º 2, e 10.º,
n.º 1, violam o n.º 3 do artigo 37.º da Constituição, porque qualificam como
contra-ordenações infracções ao direito de expressão e atribuem a competência
para as apreciar a autoridades administrativas, quando daquele normativo
constitucional resultaria que «qualquer infracção cometida no exercício do
direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento tem que ser apreciada
pelos Tribunais Judiciais» e para tal «não pode ter a natureza de
contra-ordenação, pois estas são apreciadas por autoridades administrativas e só
são julgadas pelos Tribunais em sede de recurso. Deste modo, essas infracções
só podem ter a natureza de crime». (…)
Pensamos que são questões distintas, a da qualificação de certos factos como
contra-ordenação, por um lado, e a da atribuição de competência para desta tomar
conhecimento, por outro.
O chamado movimento da descriminalização (entendida esta como «redução formal da
competência do sistema penal em relação a determinadas condutas» Figueiredo
Dias, «O Movimento da Descriminalização e o Ilícito de Mera Ordenação Social»,
em Jornadas de Direito Criminal — O Novo Código Penal Português e Legislação
Complementar, p. 322) começou a ter consagração legal em Portugal com o
Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho, mais tarde revogado e substituído pelo
Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, ainda em vigor e para que remete o
artigo 10.º, n.º 3, da Lei n.º 97/88.
O propósito, iniciado com o Decreto-Lei n.º 232/79, de acabar com a figura
jurídica das contravenções não veio a ter sequência (o n.º 3 do seu artigo 1.º
equiparava às contra-ordenações as contravenções puníveis com sanções
pecuniárias, mas foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 411-A/79, de 1 de Outubro),
coexistindo, neste momento, ao nível do direito sancionatório público, as
figuras de crime, contravenção e contra-ordenação. (…)
Ora, não nos parece que seja inerente à natureza das contra-ordenações a
atribuição a uma autoridade administrativa de competência para delas tomar
conhecimento. Descriminalização não significa necessariamente
desjurisdicionalização.
Sem sair do regime actual das contra-ordenações, importa referir que a
intervenção jurisdicional está prevista, quer ao nível da impugnação das
decisões das autoridades administrativas (artigos 59.º e seguintes do
Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro), quer ao nível da apreciação
originária de contra-ordenações (artigos 38.º e 39.º do mesmo diploma). Por
outro lado, «deverá sublinhar-se que se transportam para o direito das
contra-ordenações as garantias constitucionalmente atribuídas ao direito penal,
nomeadamente as resultantes dos princípios da legalidade e da aplicabilidade da
lei mais favorável» (Figueiredo Dias, obra citada, p. 330), do mesmo modo que,
mesmo na sua «fase administrativa», há um evidente paralelismo entre o processo
penal e o processo contra-ordenacional, sendo este conformado por princípios
básicos daquele (cfr. artigos 41.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27
de Outubro, e Lopes Rocha, Gomes Dias e Ataíde Ferreira, Contra-Ordenações, pp.
55 e segs. e 133 e segs.). Estas circunstâncias não impediram que Cavaleiro de
Ferreira (ao que cremos sem eco jurisprudencial) tenha defendido a
inconstitucionalidade, não das contra-ordenações em si, mas do seu julgamento
pela administração (Lições de Direito Criminal, vol. i, 1988, p. 54); porém, ao
contrário do que acontece no regime geral das contra-ordenações, o conhecimento
das infracções cometidas no exercício do direito de expressão, qualquer que seja
a sua natureza, é expressamente atribuído apenas aos tribunais judiciais.
A cindibilidade entre o momento do enquadramento contra-ordenacional de uma
conduta e o da sua apreciação por um órgão institucional de controlo acaba, no
caso presente, por centrar neste segundo momento a questão da
inconstitucionalidade. A Lei n.º 97/88 preenche, com os seus processos de
formação e características, os requisitos indispensáveis à sua validade formal e
à validade material da norma dos seus artigos 3.º, n.º 2, e 10.º, n.º 1, de que
resulta a qualificação como contra-ordenação punível com coima da afixação de
mensagens de propaganda política em lugares de propriedade particular não
consentida pelo respectivo proprietário. Entendemos, portanto, não haver
obstáculo constitucional à qualificação desta conduta como contra-ordenação.
O mesmo não sucede com a norma do n.º 4 do artigo 10.º da Lei n.º 97/88, no
segmento em que atribui ao presidente da câmara a competência para aplicação das
coimas correspondentes àquele tipo de contra-ordenações. Aqui, parece-nos que a
2.ª parte do n.º 3 do artigo 37.º da Constituição não deixa margem para dúvidas:
ao afirmar-se que a apreciação das infracções cometidas no exercício do direito
de expressão é «da competência dos tribunais judiciais», está-se a afastar a
intervenção da administração e a afirmar a competência jurisdicional para
apreciar qualquer tipo de ilícito que venha a ser praticado no exercício da
liberdade de expressão. E o objectivo do legislador constitucional foi
exactamente o de evitar a criação de um regime penal de excepção e a
administrativização desta área dos direitos fundamentais, remetendo para os
tribunais judiciais a exclusividade da apreciação das infracções praticadas no
exercício do direito de expressão. (…)
E conclui:
1.º Não é inconstitucional a norma dos artigos 3.º, n.º 2, e 10.º, n.º 1, da
Lei n.º 97/88, de 17 de Agosto, na interpretação de que constitui
contra-ordenação a afixação de mensagens de propaganda política em lugares de
propriedade particular não consentida pelo respectivo proprietário;
2.º É materialmente inconstitucional, por violação do n.º 3 do artigo 37.º da
Constituição, a norma dos artigos 3.º, n.º 2, e 10.º, n.º 4, da mesma Lei n.º
97/88, no segmento em que atribui ao presidente da câmara da área em que se
verificar a contra-ordenação referida na conclusão anterior a competência para a
aplicação da coima.
3.º Deve, em consequência, determinar-se a reforma da decisão recorrida em
conformidade com o precedente juízo de inconstitucionalidade meramente parcial.
Não foram apresentadas contra-alegações.
5 — Entretanto, na pendência do recurso, foi publicada a Lei n.º 15/94, de 11 de
Maio, e, perante a eventual aplicabilidade desse diploma ao caso dos autos, foi
o processo remetido, a título devolutivo, e mediante promoção do Ministério
Público, ao tribunal a quo, para decisão sobre a matéria. Porém, esse tribunal,
por despacho de fls. 170 v, entendeu não ser amnistiável a contra-ordenação em
causa, pelo que deve prosseguir-se com a apreciação do objecto do recurso.
6 — Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II — Fundamentação
7 — As normas que o Tribunal de Polícia de Lisboa «desaplicou» com fundamento em
inconstitucionalidade material — artigos 3.º, n.º 2, e 10.º, n.º 1, da Lei n.º
97/88 — dispõem o seguinte:
Artigo 3.º
(Mensagens de propaganda)
............................................................
2 — A afixação ou inscrição de mensagens de propaganda nos lugares ou espaços de
propriedade particular depende do consentimento do respectivo proprietário ou
possuidor e deve respeitar as normas em vigor sobre protecção do património
arquitectónico e do meio urbanístico, ambiental e paisagístico.
Artigo 10.º
(Contra-ordenações)
1 — Constitui contra-ordenação punível com coima a violação do disposto nos
artigos 1.º, 3.º, n.º 2, 4.º e 6.º da presente lei.
............................................................
A norma constitucional violada, segundo o entendimento do tribunal recorrido, é
a constante do n.º 3 do artigo 37.º da Constituição, na sua redacção actual:
As infracções cometidas no exercício destes direitos (de exprimir e divulgar
livremente o pensamento) ficam submetidas aos princípios gerais de direito
criminal, sendo a sua apreciação da competência dos tribunais judiciais.
A redacção actual desta norma foi introduzida na primeira revisão
constitucional. Originariamente, o teor do n.º 3 do artigo 37.º era o seguinte:
As infracções cometidas no exercício destes direitos ficarão submetidas ao
regime de punição da lei geral, sendo a sua apreciação da competência dos
tribunais judiciais.
8 — Identificando como fontes do artigo 37.º, n.º 3, da Constituição (na versão
originária), o artigo 5-II da Constituição alemã e o artigo 21.º, n.º 3, do
projecto de Constituição do P.P.D. — que conformavam, justamente, os direitos de
exprimir e divulgar livremente o pensamento através dos limites das leis gerais
(ou lei geral, no segundo caso) —, a Comissão Constitucional interpretou assim a
referência ao regime de punição da lei geral:
a) a lei geral deveria ser lei formal e estar dotada de características
de generalidade;
b) a lei geral não poderia ser discriminatória quanto a quaisquer
opiniões;
c) a lei geral deveria proceder a uma ponderação de interesses
conflituantes ao restringir os direitos de exprimir e divulgar livremente o
pensamento;
d) por fim — e é isto o que agora interessa fundamentalmente —, a lei
geral deveria respeitar «os princípios gerais do direito penal — entendendo-se
por tais não só os princípios jurídico-constitucionais penais, mas aqueles que
presidem à teoria geral das infracções e das penas que consta do Código Penal»
(Acórdão da Comissão Constitucional de 8 de Janeiro de 1980, n.º 175, Boletim do
Ministério da Justiça, n.º 294, pp. 160-1; em sentido idêntico, Parecer n.º
20/82, Pareceres da Comissão Constitucional, 20.º vol., pp. 80 e segs.).
É claro, por conseguinte, que a alteração introduzida pela Lei Constitucional
n.º 1/82 — a expressa menção aos «princípios gerais de direito criminal» —
correspondeu à interpretação que a Comissão Constitucional já vinha perfilhando
do artigo 37.º, n.º 3. Interpretação segundo a qual as infracções aos direitos
de exprimir e divulgar livremente o pensamento haveriam de estar sujeitas aos
princípios constitucionais de direito penal e aos princípios da teoria geral do
crime e da pena consagrados no Código Penal (por exemplo: regras sobre dolo e
negligência; sobre tentativa e comparticipação; sobre omissão; sobre erro; sobre
os limites das penas e das medidas de segurança). Mas já não seria exigível,
evidentemente, a inclusão formal das infracções em causa no Código Penal, nada
obstando a que estivessem previstas em legislação avulsa.
9 — A questão de constitucionalidade agora suscitada resume-se a esta
interrogação: impõe o artigo 37.º, n.º 3, da Constituição que todas as
infracções cometidas no exercício dos direitos de exprimir e divulgar livremente
o pensamento sejam crimes e devam ser julgadas pelos tribunais judiciais?
Uma resposta absolutamente afirmativa pressupõe que a função garantística do
preceito constitucional — que manda aplicar os princípios gerais de direito
criminal e, por conseguinte, atribui aos agentes das infracções as respectivas
garantias — arrasta consigo a natureza material do ilícito. Assim, mesmo
infracções de pouca importância, consubstanciadas numa diminuta lesão de bens
jurídicos, passariam a ser crimes para que, em contrapartida, pudessem usufruir
da plenitude das garantias decorrentes dos princípios de direito penal.
Chegar-se-ia, deste modo, ao absurdo de ser a necessidade de conceder garantias
(materiais e processuais) o factor determinante da qualificação do ilícito. E
inverter-se-ia o sentido (lógico e valorativo) da relação entre a natureza do
ilícito e os princípios a que ele se deve subordinar.
10 — Tal perspectiva não é defensável. É certo que as maiores garantias
concedidas na regulamentação de certas infracções derivam, em regra, da
gravidade das sanções cominadas para essas infracções. Porém, um comportamento
não pode ser criminalizado apenas porque a delimitação da sua antijuridicidade é
susceptível de «abusos de poder» ou de qualquer forma de «unilateralismo não
democrático».
Uma tal criminalização «funcional» conduziria, aliás, em muitos casos, à
violação da adequação e proporcionalidade das penas ao ilícito e contrariaria o
princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição) e o próprio princípio da
necessidade das penas e das medidas de segurança (artigo 18.º, n.º 2, da
Constituição).
A resposta absolutamente afirmativa à questão proposta, que a desaplicação das
normas sub judicio pelo Tribunal de Polícia de Lisboa pressupõe, resulta de uma
interpretação do artigo 37.º, n.º 3, da Constituição que excede, manifestamente,
a sua ratio essendi. Ao determinar a aplicabilidade dos princípios gerais de
direito criminal às infracções cometidas no exercício (ilegítimo) dos direitos
de exprimir e divulgar livremente o pensamento, o legislador constitucional
visou assegurar o exercício (legítimo) destes direitos. Pretendeu, sem dúvida,
excluir a arbitrariedade na definição das infracções — para assegurar a precisa
determinação do conteúdo desses direitos.
A pretensa qualificação das infracções como crimes, que, alegadamente,
resultaria do disposto no n.º 3 do artigo 37.º da Constituição, acabaria por
contrariar os próprios princípios gerais de direito criminal — da igualdade e da
necessidade das penas e das medidas de segurança, como já se viu.
11 — Não são, pois, inconstitucionais as normas constantes dos artigos 3.º, n.º
2, e 10.º, n.º 1, da Lei n.º 97/88, na medida em que qualificam como
contra-ordenação passível de coima «a afixação de cartazes de propaganda
política em edifício, sem consentimento do proprietário».
A argumentação que fundamenta este juízo de inconstitucionalidade é, repete-se,
inaceitável, pois postula que condutas que consubstanciam lesões pouco graves do
direito de propriedade, em conflito com a liberdade de expressão e divulgação do
pensamento, sejam constantemente definidas como crimes.
12 — Recusada a inconstitucionalidade das normas sub judicio naquela dimensão
anteriormente explicitada estará definitivamente salvaguardada a sua
conformidade com as exigências contidas no artigo 37.º, n.º 3, da Constituição?
Nas suas alegações no Tribunal Constitucional, o Ministério Público sustenta que
as normas em causa ainda violam a prescrição constitucional na medida em que,
referindo-se a infracções cometidas no exercício do direito de livre divulgação
do pensamento, não atribuem competência aos tribunais judiciais.
Assim, segundo as citadas alegações, seria materialmente inconstitucional, por
violação do disposto no n.º 3 do artigo 37.º da Constituição, a norma dos
artigos 3.º, n.º 2, e 10.º, n.º 4, da Lei n.º 97/88 «no segmento em que atribui
ao presidente da câmara da área em que se verificar a contra-ordenação (…) a
competência para a aplicação da coima».
De acordo com este entendimento, deverão ser sancionadas como contra-ordenações
as condutas referidas, competindo, todavia, aos tribunais judiciais o respectivo
julgamento. A qualificação do ilícito e a atribuição de competência para a sua
apreciação estarão, pois, dissociadas. Para justificar esta tese, sustenta o
Ministério Público que a descriminalização de infracções não significa,
necessariamente, a sua desjurisdicionalização.
13 — Esta tese merece a concordância do Tribunal. Não seria correcto entender
que o artigo 37.º, n.º 3, da Constituição, ao exigir a jurisdicionalização, se
refere a infracções criminais propriamente ditas, não abrangendo o ilícito de
mera ordenação social. Na verdade, essa conclusão corresponderia a uma pura
tautologia. O princípio da jurisdicionalidade é um princípio constitucional de
direito penal, segundo o qual a aplicação de normas penais reclama um processo
jurisdicionalizado (artigo 32.º da Constituição). E resulta da Constituição que
a matéria criminal é da competência dos tribunais judiciais (artigo 213.º, n.º
1, da Constituição).
Mas, mesmo que se entendesse que a intenção legislativa subjacente ao artigo
37.º, n.º 3, seria antes garantir que as infracções cometidas no exercício da
liberdade de informação não fossem descriminalizadas ou sujeitas a uma
legislação excepcional, para assim se evitar que aos respectivos autores fosse
recusada a plenitude das garantias de defesa do processo penal, não se
compreenderia como é que essa intenção legislativa (porventura justificada
historicamente — cfr. Acórdão da Comissão Constitucional n.º 75, de 8 de Janeiro
de 1980, Diário da República, II Série, de 3 de Julho de 1980) poderia
restringir o alcance do artigo 37.º, n.º 3, excluindo do seu âmbito ilícitos
qualificados como contra-ordenações. O referido preceito não indica ao
intérprete qualquer critério distintivo quanto à natureza das infracções,
atribuindo a todas, em geral, idênticas garantias.
Muito menos seria juridicamente sustentável uma distinção entre tipos de
infracções, cometidas no exercício da liberdade de expressão, que excluísse do
seu âmbito infracções não atinentes ao conteúdo da liberdade de expressão, isto
é, relativas apenas às condições exteriores do exercício da liberdade de
expressão do pensamento (meios, locais, etc.). Se tal discriminação não procede
para o efeito de distinguir o grau ou a natureza da garantia da liberdade de
expressão, também não poderá ditar uma diferença radical quanto às garantias de
defesa dos autores das infracções cometidas no exercício daqueles direitos.
Deve observar-se ainda que o artigo 32.º, n.º 8, da Constituição, não fornece
nenhum argumento a favor ou contra o entendimento que se acabou de sustentar. O
n.º 8 do artigo 32.º, introduzido na segunda revisão constitucional, veio
estender algumas garantias de defesa aos processos de contra-ordenação: direitos
de audiência e de defesa. Porém, esta norma assegura um mínimo de garantias de
defesa, não obstando a que outras sejam extensivas àqueles processos nem impondo
a sua desjurisdicionalização. Assim, na conjugação desta norma com o artigo
37.º, n.º 3, da Constituição, deve concluir-se que, em processos de
contra-ordenação que beneficiem de uma tutela reforçada (como sucede na hipótese
do artigo 37.º, n.º 3), a garantia geral (artigo 32.º, n.º 8) é derrogada pelo
regime especial.
14 — Mas incluir-se-á o n.º 4 do artigo 10.º da Lei n.º 97/88 no objecto do
presente recurso?
Como se viu, o tribunal a quo identificou, explicitamente, os artigos 3.º, n.º
2, e 10.º, n.º 1, da Lei n.º 97/88 como normas inconstitucionais. Porém, o
juízo de inconstitucionalidade que proferiu abrange também, implicitamente, o
n.º 4 do artigo 10.º da mesma Lei:
............................................................
Logo os artigos 3.º, n.º 2, e 10.º, n.º 1, da Lei n.º 97/88 estão,
irremediavelmente, feridos de inconstitucionalidade material, por violação do
artigo 37.º, n.os 1 e 3, da Constituição da República, na medida em que a
apreciação daquele ilícito é confiada a autoridades administrativas e não aos
Tribunais Judiciais.
O que daqui resulta é que o tribunal recorrido também se recusou a aplicar com
fundamento em inconstitucionalidade material, o n.º 4 do artigo 10.º da Lei n.º
97/88 — que atribui, justamente, ao presidente de câmara municipal competência
para aplicar, as coimas. E essa efectiva «desaplicação» — que se concretizou no
deferimento do recurso interposto da aplicação de coima pelo Partido Comunista
Português e pelo Partido Ecologista Os Verdes — fundamenta a inclusão daquela
norma no objecto do presente recurso.
15 — Será a atribuição de competência aos tribunais judiciais — que só é
compreensível como «imediata» jurisdicionalização e não apenas
jurisdicionalização em sede de recurso — solução suficiente para cumprir o
desígnio do legislador constitucional?
Deverá concluir-se pela negativa, já que, para além de atribuir competência aos
tribunais judiciais, o artigo 37.º, n.º 3, da Constituição determina a
aplicabilidade dos princípios gerais de direito criminal, não exceptuando nenhum
deles.
16 — Ao nível material, a subordinação aos princípios gerais de direito criminal
implica uma estrita vinculação aos princípios da legalidade [artigos 29.º e
168.º, alínea e), da Constituição], da culpa (artigos 1.º e 27.º da
Constituição) da necessidade (artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da Constituição) e da
igualdade (artigo 13.º da Constituição), princípios que vigoram tanto na
definição do ilícito pelo legislador como na determinação judicial da
responsabilidade. Por outro lado, a alusão aos «princípios gerais de direito
criminal» permite concluir que o legislador constitucional pretende também
aplicar às referidas infracções os princípios (gerais) consagrados pela
legislação penal comum (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., 1993, p. 227).
No plano processual, a submissão aos princípios gerais de direito criminal
implica a aplicabilidade de todas as garantias de processo criminal, consagradas
no artigo 32.º da Constituição. Para além da expressa exigência de
jurisdicionalidade (e consequente exclusão da competência das autoridades
administrativas na apreciação das infracções) e da garantia dos direitos de
audiência e defesa (que resultaria já da classificação das infracções como
contra-ordenações, nos termos do disposto no n.º 8 do artigo 32.º da
Constituição), todas as garantias de defesa deverão ser asseguradas ao arguido.
17 — A ausência de mecanismos que permitam aos tribunais judiciais julgarem, em
primeira instância, estas contra-ordenações e que contemplem o exercício das
garantias de processo criminal inviabilizará a aplicação das correspondentes
coimas.
Se os presidentes das câmaras aplicarem estas coimas, os tribunais para que
forem interpostos os respectivos recursos deverão conceder-lhes provimento —
não porque a qualificação das infracções como contra-ordenações seja
inconstitucional, mas sim porque a aplicação das coimas, nestes casos, está
reservada aos tribunais judiciais e deve observar as garantias de processo
criminal.
18 — Ante o exposto, conclui-se que as normas constantes dos artigos 3.º, n.º 2,
e 10.º, n.º 1, da Lei n.º 97/88 não são inconstitucionais na medida em que
qualificam como contra-ordenação sancionada com coima a afixação de mensagens de
propaganda política em lugares de propriedade particular não consentida pelo
respectivo proprietário.
Todavia, conclui-se que a norma contida no n.º 4 do artigo 10.º em conexão com a
do artigo 10.º, n.º 1, da Lei n.º 97/88 é materialmente inconstitucional,
violando o artigo 37.º, n.º 3, da Constituição, numa dupla medida:
a) por subtraírem aos tribunais judiciais a apreciação das infracções;
b) por subtraírem, implicitamente, aos princípios gerais do direito
criminal (incluindo todas as garantias do processo criminal) a apreciação das
infracções.
III — Decisão
19 — Nestes termos, decide-se:
a) Julgar não inconstitucionais as normas constantes dos artigos 3.º,
n.º 2, e 10.º, n.º 1, da Lei n.º 97/88, de 17 de Agosto, na parte em que
qualificam como contra-ordenação, sancionada com coima, a afixação de mensagens
de propaganda política em lugares de propriedade particular não consentida pelo
respectivo proprietário;
b) Julgar inconstitucional a norma contida no artigo 10.º, n.º 4, em
conexão com o artigo 10.º, n.º 1, e enquanto remete para o artigo 3.º, n.º 2, da
Lei n.º 97/88, de 17 de Agosto, na parte em que atribui ao presidente da câmara
da área onde a contra-ordenação for praticada a competência para aplicar a
correspondente coima e em que se subtrai, implicitamente, aos princípios gerais
de direito criminal a apreciação da responsabilidade do agente, por violar o
disposto no n.º 3 do artigo 37.º da Constituição;
c) Negar provimento ao recurso mantendo-se a decisão recorrida embora
com outros fundamentos.
Lisboa, 8 de Novembro de 1995.— Maria Fernanda Palma — Alberto Tavares da Costa
— Armindo Ribeiro Mendes — Antero Alves Monteiro Diniz — Vítor Nunes de Almeida
— Maria da Assunção Esteves (com declaração de voto) — José Manuel Cardoso da
Costa [votei o acórdão, quanto à matéria da alínea b) da decisão, apenas a
benefício de melhor estudo, e para não protelar o julgamento do Tribunal. Com
efeito, sobram-me consideráveis dúvidas, seja quanto ao exacto recorte do tipo
de situações contempladas no artigo 37.º, n.º 3, da Constituição, seja, nesse
contexto problemático, ao alcance que se deve atribuir à sua estatuição final].
DECLARAÇÃO DE VOTO
A norma do artigo 37.º, n.º 3, da Constituição determina que «as infracções
cometidas no exercício destes direitos (de liberdade de expressão) ficam
submetidas aos princípios gerais de direito criminal, sendo a sua apreciação da
competência dos tribunais judiciais». A norma concorre para o asseguramento da
optimização do direito de liberdade de expressão já ordenada nos primeiros
enunciados do artigo 37.º Acrescenta, afinal, à proibição de censura
estabelecida no n.º 2 uma garantia de defesa sobre o uso do direito» que, em meu
entender, só faz sentido nos limites da sua dimensão de conteúdo: é como se a
proibição de censura afirmada no n.º 2 ainda se prolongasse nas garantias a
posteriori do n.º 3.
As valorações que se entrecruzam na norma do artigo 37.º, n.º 3 assentam no
domínio vital do direito de liberdade de expressão e dos direitos que com ele
são por natureza colidentes. A ratio da norma é impedir um direito penal de
excepção e é nesta ratio que devem assentar os critérios que o acórdão diz que a
Constituição não tem.
Afigura-se-me, assim, que o alargamento de todas as garantias de processo penal
às infracções ligadas ao ordenamento externo do exercício do direito e apenas
detendo relevância no direito das contra-ordenações cai fora da intenção
normativa do artigo 37.º, n.º 3, da Constituição. — Maria da Assunção Esteves.
(1) Acórdão publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Abril de 1996.