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Processo: n.º 213/94.
1ª. Secção
Relator: Conselheiro Tavares da Costa.
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
A. intentou, no Tribunal Cível da comarca do Porto, acção de despejo, na forma
sumária, contra B. e mulher, C., todos identificados nos autos.
Alegou, para o efeito, a qualidade de cabeça de casal da herança de seu marido
que, como proprietário do prédio urbano que identifica, dera de arrendamento
para habitação aos réus um andar desse prédio.
Pediu a resolução desse contrato com fundamento no artigo 64.º, n.º 1, alínea
i), do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro («Regime do Arrendamento
Urbano» — RAU) e, consequentemente, a condenação dos réus a entregar-lhe o
locado, livre de pessoas e coisas.
Os réus contestaram o pedido, por impugnação, aguardando a sua absolvição do
pedido.
Efectuado o respectivo julgamento, no 2.º Juízo Cível daquela comarca, por
sentença de 5 de Maio de 1993 foi a acção julgada procedente e, em consequência,
declarado resolvido o contrato e os réus condenados no pedido.
Inconformados, recorreram estes para o Tribunal da Relação do Porto que, no
entanto, por acórdão de 7 de Dezembro de 1993, confirmou a sentença recorrida,
negando provimento ao recurso.
Então, os réus — após pedido de esclarecimento deduzido ao abrigo do disposto no
artigo 669.º, alínea a), segunda parte, aplicável ex vi do artigo 716.º, n.º 1,
ambos do Código de Processo Civil (CPC), que o Tribunal desatendeu, em
conferência, por acórdão de 1 de Março de 1994 — recorreram para o Tribunal
Constitucional, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82,
de 15 de Novembro, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade da norma da
alínea i) do n.º 1 do artigo 64.º citado, na interpretação dada pela decisão
recorrida.
Recebido o recurso, tão-só alegaram os recorrentes, concluindo pela
inconstitucionalidade material da interpretação daquela norma, por violação do
artigo 65.º, n.º 1, da Constituição da República (CR) «ao permitir, como neste
caso (transcreve-se) a resolução de contrato de arrendamento e o despejo de uma
casa de morada de família, quando não se demonstre ter a considerada provada
falta de prática de determinadas actividades domésticas no arrendado carácter
habitual, nem qual a sua duração, por um tempo que deverá ser razoável por forma
a poder definir-se com segurança a perda de interessse pelo inquilino total ou
parcial na manutenção do contrato de arrendamento».
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II
1 — Baseia-se o recurso no disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei
n.º 28/82 — e no artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da CR — nos termos da qual cabe
recurso para o Tribunal Constitucional das decisões «que apliquem norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo».
Objecto de fiscalização concreta de constitucionalidade, ao abrigo desta
disposição, são, assim, normas jurídicas — tomadas estas no sentido que o
Tribunal Constitucional jurisprudencialmente lhes vem concedendo — e não
decisões judiciais, ou, ainda, uma certa dimensão parcelar da norma, tomada em
si, ou, finalmente, uma dada interpretação desta.
Entende-se, neste último quadro hipotético, que invocar a inconstitucionalidade
de uma dada interpretação de certa norma jurídica é invocar a
inconstitucionalidade da própria norma, nessa interpretação — só se fechando a
via do recurso previsto naquela alínea quando o mesmo tem por objecto a
impugnação da decisão propriamente dita. Neste sentido citem-se, por todos, os
Acórdãos n.os 102/84, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4.º
Vol., pp. 293 e segs., e 388/87, 141/92, 228/94 e 612/94, publicados no Diário
da República, II Série, de 15 de Dezembro de 1987, 21 de Agosto de 1992, 28 de
Julho de 1994 e 11 de Janeiro de 1995, respectivamente (na Doutrina cfr., inter
alia, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição,
Coimbra, 1991, p. 258; J. M. Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em
Portugal, 1992, p. 50; Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, 2.ª
ed., Lisboa, 1994, p. 327).
No concreto caso, não é o conteúdo normativo do preceito do RAU que os
recorrentes atacam, imputando-lhe desconformidade constitucional material, mas
sim a interpretação que ao preceito foi dada pela decisão recorrida.
Vejamos a razoabilidade deste ponto de vista.
2 — Enuncia a alínea i) do n.º 1 do artigo 64.º daquele diploma um dos casos em
que é admissível a resolução do contrato de arrendamento urbano. De acordo com
esse preceito o senhorio pode resolver o contrato se o arrendatário:
i) Conservar o prédio desabitado por mais de um ano ou, sendo o prédio
destinado a habitação, não tiver nele residência permanente, habite ou não outra
casa, própria ou alheia.
A acção foi, na verdade, intentada com base nessa alínea e a 1.ª instância deu
como provados os factos a que respeitavam os três artigos do questionário
oportunamente elaborado, a saber: os réus (ora recorrentes) deixaram, há cerca
de um ano, de dormir, preparar e comer as suas refeições no andar locado; não
passam aí os seus momentos de descanso nem recebem os seus amigos; a partir
dessa altura passaram a dormir, preparar e comer as suas refeições, receber os
seus amigos e gozar os seus tempos de lazer num prédio deles, recorrentes.
Com base nesta matéria fáctica — e na demais constante da especificação que
agora não interessa reproduzir — foi a acção julgada procedente por se
considerar integrar a mesma o conceito de falta de residência permanente a que
alude a segunda parte do normativo discutido, mais se considerando que a
exigência de um determinado período de tempo nele constante — a locução «por
mais de um ano» — se circunscreve à primeira parte do preceito, relativa à
conservação do prédio desabitado. Semelhante decisão — vimo-lo — não mereceu
censura por parte da Relação.
Ora, os recorrentes vêm sustentando tese diversa que se sustenta na seguinte
perspectiva: a) os factos dados como provados são insuficientes para
caracterizar a noção de falta de residência permanente, como causa resolutiva do
contrato; b) de qualquer modo, a causa de pedir não assentou nessa segunda parte
do preceito mas sim na primeira parte — desabitação (consecutiva) por mais de um
ano — não sendo admissível alterar a causa de pedir, sob pena de nulidade da
decisão, de acordo com o disposto no artigo 688.º, n.º 1, alínea d), do CPC; c)
a não se entender assim, está-se perante uma interpretação da norma do artigo
64.º, n.º 1, alínea i), do RAU, que se tem por inconstitucional pois que
contrária ao disposto no artigo 65.º, n.º 1, da CR.
Trata-se, na verdade, de tese inviável — a menos que se pretendesse com este
recurso, para além de ganho de tempo, como que uma reapreciação, em revista, do
decidido quanto ao mérito da causa, o que, evidentemente, se situa totalmente
fora da competência do Tribunal Constitucional, não merecendo que, sobre o
assunto, nos detenhamos.
Retenha-se, no entanto, para melhor compreensão do decidido — e, insiste-se, sem
envolver o mínimo juízo de censura, numa área subtraída à competência do
Tribunal Constitucional — o que, sobre a equacionada alteração da causa de
pedir, decidiu a Relação. Aí se escreveu a dado passo:
A resolução do contrato de arrendamento pela causa prevista pelo artigo 64.º,
n.º 1, alínea i), do RAU não envolve, contrariamente ao entendido pelos
réus-apelantes, uma alteração da causa de pedir.
«A causa de pedir é o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico
pretendido» — A. Varela, Manual, 2.ª ed., p. 245.
A causa de pedir não é o facto abstracto, mas é antes o facto material,
concreto, que em cada caso particular se invoca para justificar o pedido.
O Tribunal não conhece de puras abstracções, de meras categorias legais.
Conhece de factos reais, particulares e concretos, os quais, quando relevantes
especificamente, e que constituem a causa de pedir.
Segundo Chiovenda, citado por Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil
Anotado, vol. iii, p. 125, «a causa petendi não é a norma da lei que a parte
invoca em juízo; é o facto que se alega como capaz de converter em concreta a
vontade abstracta da lei»; «há que repudiar a ideia de que a causa petendi seja
a norma da lei invocada pela parte».
«A acção identifica-se e individualiza-se, não pela norma abstracta da lei, mas
pelos elementos de facto que converteram em concreta a vontade legal. Daí vem
que a simples alteração do ponto de vista jurídico não implica alteração da
causa de pedir».
Ora, no caso vertente, nem sequer se verifica uma alteração do ponto de vista
jurídico, pois na petição inicial a autora limitou-se a articular os factos
subsumíveis à causa de pedir categorizada pela falta de residência permanente.
A autora não operou tal subsunção.
Aliás, ainda que a autora tivesse invocado a 1.ª parte da referida alínea i) em
vez da falta de residência permanente, tal não envolveria como decorre do
exposto supra, uma alteração da causa de pedir.
É lícito ao juiz suprir as deficiências ou inexactidões das partes relativas à
qualificação jurídica dos factos ou à interpretação ou individuação das normas,
desde que se limite ao quadro factual apresentado pelo autor.
Com efeito — artigo 664.º do Código de Processo Civil — «o juiz não está sujeito
às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das
regras de direito», embora limitado, em princípio, aos factos articulados pelas
partes.
Releve-se-nos a extensão do transcrito que, no entanto, sem prejuízo da sua
incensurabilidade, ajuda a melhor compreender a «interpretação» feita pelo
Tribunal da norma em questão.
Com efeito, face à conceituação seguida da causa de pedir no caso do artigo
64.º, n.º 1, alínea i), do RAU e tendo presente, por outro lado, que a Relação
deu como provada a falta de residência permanente, cabe perguntar em que medida
aquela norma, com a interpretação que lhe foi dada, viola o n.º 1 do artigo 65.º
da CR, nos termos do qual, «Todos têm direito, para si e para a sua família, a
uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que
preserve a imunidade pessoal e a privacidade familiar».
3 — Os recorrentes não o dizem claramente. Depreende-se que à exigência do
decurso de um prazo mínimo de um ano que, assim o vimos, conjugam com a
desabitação — aliam «o fim social e económico inerente ao tipo de contratos como
os de arrendamento» para assim consubstanciarem a ofensa ao preceito
constitucional.
O acórdão recorrido debruçou-se sobre o problema de modo correcto (e aqui sim,
justifica-se de pleno o juízo de valor) ao ponderar, face à matéria de facto
provada (e tendo presente o que acima ficou dito sobre a causa de pedir) não
terem os réus necessidade do andar para o fim habitacional pois que
«transferiram para outro prédio o centro da sua vida doméstica, o seu lar, pois
há cerca de um ano passaram a dormir, preparar e comer as suas refeições,
receber os amigos e gozar os seus tempos de lazer noutro prédio».
Assim sendo — mais se conclui, no acórdão — «é evidente a justificação legal e
social da resolução do contrato de arrendamento e do consequente despejo».
O direito à habitação, observa-se, não permite a privação arbitrária da
habitação.
Com efeito, independentemente de se surpreender, ou não, no direito à habitação,
uma dimensão positiva — o direito a obter uma habitação adequada e condigna à
realização da condição humana, em termos de preservar a intimidade pessoal e a
privacidade familiar — a par de uma dimensão negativa, traduzível num dever de
abstenção por parte do Estado e de terceiros em ordem a não serem praticados
actos susceptíveis de prejudicar a efectiva realização desse direito (cfr. Gomes
Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª
ed., Coimbra, 1993, p. 344), o certo é que o reconhecimento do mesmo — tenha ele
o mero valor programático de uma declaração de princípios ou valha como
verdadeiro direito subjectivo público a favor dos cidadãos, directamente
aplicável e de geral vinculação — não implica nem que os proprietários das casas
sejam compelidos a entregá-las a quem as não tem, nem que os arrendatários
possam utilizá-las sem quaisquer limitações, como se fossem suas.
Na realidade, o direito à habitação pressupõe concretização, mediação, do
legislador ordinário, decorrente de opções político-legislativas em que, em
princípio, não há molde constitucional para além das incumbências enunciadas nas
várias alíneas do n.º 2 do artigo 65.º da CR, nem aos tribunais compete
substituir o legislador nesta matéria (haverá, sim, um conteúdo mínimo
determinado constitucionalmente. A esta luz, como observa J. C. Vieira de
Andrade, estaria a violar o direito à habitação a lei que não proibisse ao
senhorio a livre resolução do contrato de arrendamento — cfr. Os Direitos
Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, p. 250, nota
80).
Ou seja, o direito à habitação não confere, por si mesmo, habitação de dimensão
adequada, em condições de higiene e conforto, com preservação da intimidade
pessoal e da privacidade pessoal, dependendo (sob «reserva do possível») da
concretização da tarefa constitucionalmente cometida ao Estado.
Como se ponderou já neste Tribunal, não pode aceitar-se como constitucionalmente
exigível que a realização do direito à habitação esteja dependente de limitações
intoleráveis e desproporcionadas dos direitos de terceiros, porventura também
constitucionalmente consagrados, como é o direito de propriedade privada (cfr.
Acórdão n.º 101/92, publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Agosto
de 1992); de outro ângulo, o cidadão só pode exigir o cumprimento do direito à
habitação nas condições e nos termos definidos por lei, ou seja, depois de uma
interpositio do legislador, destinada a concretizar o seu conteúdo (cfr. Acórdão
n.º 130/92, publicado no jornal oficial citado, II Série, de 24 de Julho de
1992).
Nesta perspectiva, se o direito à habitação vincula igualmente os particulares,
chamados a serem solidários com o seu semelhante (princípio da solidariedade
social), considerando, nomeadamente, a função social da propriedade privada
(cfr. a este respeito, por sua vez, o Acórdão n.º 311/93, tirado em plenário, no
citado Diário, II Série, de 22 de Julho de 1993), há que avaliar se a norma do
artigo 64.º, n.º 1, alínea i), do RAU, na interpretação que lhe foi dada pelo
tribunal recorrido, viola o direito consagrado no artigo 65.º, n.º 1, da CR.
A resposta é, inequivocamente, negativa.
Não só as causas de resolução do contrato de arrendamento aí contempladas não
padecem de semelhante vício que, de resto, não lhes foi assacado — esvaziadas
que estão, nesses casos, dos valores que o regime jurídico do arrendamento
habitacional protege, como a interpretação da norma, face à matéria de facto
apurada, dada pela decisão recorrida, é a correcta e a que se impõe: no caso sub
judice, como se escreveu então, foram os próprios réus-apelantes que, por
desnecessária para sua habitação, renunciaram ao uso habitacional do prédio
locado, sendo, por conseguinte, «justa» a extinção do contrato de arrendamento,
que possibilitará a ocupação da casa por quem dela necessita para sua habitação.
Não há, na verdade, interpretação da norma do artigo 64.º, n.º 1, alínea i), do
RAU violadora do artigo 65.º, n.º 1, da CR.
III
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso de
constitucionalidade, confirmando-se, desse modo, o acordão recorrido, na parte
impugnada.
Lisboa, 8 de Novembro de 1995. — Alberto Tavares da Costa — Vítor Nunes de
Almeida — Armindo Ribeiro Mendes — Antero Alves Monteiro Diniz — José Manuel
Cardoso da Costa.
(1) Acórdão publicado no Diário da República, II Série, de 20 de Abril de
1996.