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Processo nº 547/95
Relator: Cons. Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A. respondeu em processo sumário no Tribunal da
Comarca de Guimarães, acusado pelo MINISTÉRIO PÚBLICO de haver cometido um crime
de condução sob a influência do álcool, previsto e punível pelos artigos 2º, nº
1, e 4º, nºs 1 e 2, alínea a), do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril,
porquanto foi surpreendido a conduzir um veículo automóvel ligeiro, apresentando
uma taxa de 1,27 g/l de álcool no sangue.
O arguido foi condenado, ao abrigo das citadas
disposições legais, entre o mais, na pena de 50 dias de multa à taxa de 300$00
diários, a que corresponde, em alternativa, 33 dias de prisão.
Na sentença, a juiz, depois de ponderar que as citadas
disposições legais haviam sido revogadas pelo artigo 87º do Código da Estrada,
julgou este normativo inconstitucional e, em consequência, recusou-lhe
aplicação.
2. É desta sentença (de 3 de Julho de 1995) que vem o
presente recurso, interposto pelo Ministério Público ao abrigo da alínea a) do
nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Neste Tribunal, apenas alegou o Procurador-Geral Adjunto
que concluiu do modo seguinte:
1º Por falta de interesse processual não deve conhecer-se do objecto do recurso;
2º Deve, assim, julgar-se extinto o recurso por inutilidade superveniente.
3. Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentos:
4. A questão do conhecimento do recurso:
Sustenta o Ministério Público que não há interesse
processual no conhecimento do objecto do recurso.
De facto - diz -, se o Tribunal concluir que não foram
revogados os artigos 2º e 4º, nºs 1 e 2, alínea a), do Decreto‑Lei nº 124/90, de
14 de Abril - que punem como crime a condução sob a influência do álcool com uma
taxa igual ou superior a 1,2 g/l - serão tais normas aplicadas no julgamento do
caso. Mas isso é o que fez a sentença recorrida, que, para tanto, recusou
aplicação ao artigo 87º, nº 2, do Código da Estrada, com fundamento em
inconstitucionalidade. Por isso - conclui -, o julgamento da questão de
constitucionalidade não pode ter qualquer repercussão útil sobre a decisão da
questão de fundo - o que retira utilidade ao seu conhecimento.
A irrelevância da existência ou não de revogação dos
mencionados preceitos do Decreto-Lei nº 124/90 para a sua aplicação no
julgamento do caso não conduz, porém, à falta de interesse jurídico na decisão
da questão de constitucionalidade que os autos propõem. Relevante é o facto de a
aplicação de tais preceitos se ter fundamentado num juízo de
inconstitucionalidade. A desaplicação, com fundamento em inconstitucionalidade,
de um segmento do artigo 87º, nº 2, do Código da Estrada constitui, na verdade,
pressuposto do recurso [cf. alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional] e confere interesse jurídico relevante ao conhecimento de tal
questão de constitucionalidade, sendo que o seu julgamento pode, justamente,
concluir-se pela imposição de uma interpretação do citado artigo 87º, nº 2,
segundo a qual dele não decorreu qualquer revogação (cf. artigo 80º, nº 3, da
Lei do Tribunal Constitucional).
Há, por isso, que passar ao conhecimento da questão de
constitucionalidade.
5. A questão de constitucionalidade:
A condução de veículos, com ou sem motor, na via pública
(ou equiparada), sob a influência do álcool, sub specie legis, foi encarada pela
primeira vez entre nós pela Lei nº 3/82, de 29 de Março, que considerou tal
condução proibida, quando o condutor apresentasse uma taxa de alcoolemia igual
ou superior a 0,8 gr/l (cf. artigo 1º, nº 2).
A infracção desta proibição legal era punida pelo artigo
7º, com multa e inibição da faculdade de conduzir.
Os princípios gerais do regime jurídico estabelecido por
essa Lei nº 3/82 vieram a ser desenvolvidos pelo Decreto Regulamentar nº 87/82,
de 19 de Novembro, que, por sua vez, foi completado pela Portaria nº 1.091/82,
de 19 de Novembro (que regulamentou os processos de determinação do doseamento
do álcool no sangue e de realização de exames médicos directos) e pelo Despacho
dos Ministros da Administração Interna, dos Assuntos Sociais e da Habitação
(publicado no Diário da República, II série, de 22 de Fevereiro de 1983), que
estabeleceu o processamento do pagamento de exames e demais operações relativas
à contraprova e recurso previstos na Lei nº 3/82.
Este Tribunal veio a declarar inconstitucional, com
força obrigatória geral, o nº 2 do artigo 5º do citado Decreto Regulamentar nº
87/82 (cf. Acórdão nº 220/89, publicado no Diário da República, I série, de 21
de Março de 1989).
Também a Lei nº 3/82, de 29 de Março - recte, as normas
do seu artigo 4º, nºs 1 e 2 (em conjugação com o preceituado no artigo 2º, nº 1,
do mesmo diploma) - foi objecto de pronúncia por parte deste Tribunal, que, no
seu Acórdão nº 365/92 (1ª Secção), publicado no Diário da República, II série,
de 8 de Abril de 1993, entendeu que o regime previsto nesses normativos não
sofre de qualquer inconstitucionalidade.
Entretanto, foi publicado o Decreto-Lei nº 124/90, de 14
de Abril, ao abrigo da autorização legislativa concedida pela Lei nº 31/89, de
21 de Agosto, o qual veio a ser regulamentado pelo Decreto Regulamentar nº
12/90, de 14 de Maio, e pela Portaria nº 986/92, de 20 de Outubro.
Este Decreto-Lei nº 124/90 considerava crime a condução
de veículos, com ou sem motor, na via pública ou equiparada, por quem
apresentasse uma taxa de álcool no sangue (TAS) igual ou superior a 1,20 gramas
por litro - crime que punia, sendo doloso, com pena de prisão até 1 ano ou multa
até 200 dias; e, sendo culposo, com pena de prisão até 6 meses ou multa até 100
dias. E considerava contravenção a condução por quem apresentasse uma TAS
inferior a 1,20 gr/l, mas igual ou superior a 0,50 gr/l - contravenção que punia
com multa, cujo montante variava entre um mínimo de 15.000$00 e um máximo de
150.000$00.
Às penas correspondentes a tais infracções acrescia a
pena acessória de inibição da faculdade de conduzir, com a duração de 6 meses a
5 anos, tratando-se de crime; de 3 meses a 2 anos, em caso de contravenção, em
que o condutor apresentasse uma TAS igual ou superior a 0,80 gr/l; e de 1 a 6
meses, sendo a TAS igual ou superior a 0,50 gr/l, mas inferior a 0,80 gr/l.
5. Foi, entretanto, publicado o novo Código da Estrada,
aprovado pelo Decreto-Lei nº 114/94, de 3 de Maio.
O artigo 2º deste Decreto-Lei nº 114/94, de 3 de Maio,
dispôs que 'é revogado o Código da Estrada aprovado pelo Decreto-Lei nº 39.672,
de 20 de Maio de 1954, bem como a respectiva legislação complementar que se
encontre em oposição às disposições do Código ora aprovado'.
Deste artigo 2º (conjugado com o artigo 87º do Código da
Estrada) decorre que foram revogados o artigo 3º do Decreto‑Lei nº 124/90, de 14
de Abril - que punia como contravenção a condução de veículos, com ou sem motor,
na via pública ou equiparada, se o condutor apresentasse uma taxa de álcool no
sangue (TAS) superior a 0,50 gr./l, mas inferior a 1,20 gr/l - e, bem assim, o
artigo 4º do mesmo diploma, na parte em que remetia para aquele artigo 3º.
Tais normativos passaram, na verdade, a estar em
oposição com o artigo 87º do novo Código da Estrada, segundo o qual a referida
conduta constitui contra-ordenação.
Dispõe, com efeito, este artigo 87º, na parte que aqui
importa:
Artigo 87º (Condução sob a influência do álcool...)
1. É proibido conduzir sob a influência do álcool, considerando-se como tal a
condução com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 gr/l.
2. Quem conduzir sob a influência do álcool será punido com coima de 20.000$00 a
100.000$00, salvo se a taxa de álcool no sangue for igual ou superior a 0,8
gr/l, caso em que a coima será de 40.000$00 a 200.000$00
Da conjugação desses normativos (ou seja: da conjugação
do artigo 2º do Decreto-Lei nº 114/94, de 3 de Maio, com o artigo 87º, nº 2, do
Código da Estrada) não decorre, porém, contrariamente ao que se sustenta na
sentença recorrida, que tenham sido revogados os artigos 1º e 2º do Decreto-Lei
nº 124/90, de 14 de Abril: aquele, dispondo que se considera estar sob a
influência do álcool o condutor que apresentar uma taxa de álcool no sangue
(TAS), igual ou superior a 0,50 gr/l; o artigo 2º, punindo com 'pena de prisão
até um ano ou multa até 200 dias, se pena mais grave não for aplicável', 'quem
conduzir veículos, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, apresentando
uma TAS igual ou superior a 1,20 gr/l'. (A pena será, porém, de prisão até 6
meses ou multa até 100 dias, se o facto for imputável a título de negligência:
cf. nº 2 do artigo 2º).
Este artigo 2º e, bem assim, os artigos 1º, 4º, nº 2,
a), e 5º, nº 1, mantiveram-se em vigor, só vindo a ser revogados, com efeitos a
partir de 1 de Outubro de 1995, pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março [cf.
artigos 2º, e), e 13º] - revogação que se ficou a dever ao facto de a condução
de veículos com ou sem motor, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior
a 1,20 gr/l, ter passado a ser punida pelo artigo 292º do Código Penal com
prisão até 1 ano ou com multa até 120 dias, 'se pena mais grave lhe não couber
por força de outra disposição legal'.
6. Seria, de resto, irrazoável admitir que o legislador
tivesse pretendido deixar de considerar crime uma conduta tão perigosa como é a
condução de veículos por quem apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou
superior a 1,20 gr/l.
É certo - como se sublinhou no Acórdão nº 83/95 (Diário
da República, II série, de 16 de Junho de 1995) - que 'só os comportamentos, que
se traduzem em violações de direitos e interesses que, no contexto da ordem
jurídico-constitucional, tenham ou devam ter valor (e, por isso, sejam valores
elevados à dignidade de bens jurídicos) podem cair no âmbito do direito penal'.
Mas certo é igualmente que a vida e a segurança das pessoas - que o legislador
pretende proteger com a punição da condução sob a influência do álcool - 'são,
seguramente, bens que, à luz da ordem jurídico-constitucional de valores, o
direito penal pode assumir como seus (isto é, como bens jurídico-penais)' (cf.
citado Acórdão nº 83/95). E são-no, certamente, num âmbito - o da circulação
rodoviária - em que se verificam elevados índices de sinistralidade e em que,
por isso, urge pôr cobro a condutas, como a condução sob influência do álcool,
que, pela sua gravidade, põem em causa a vida de todos quantos circulam nas
estradas.
A necessidade de lançar mão de sanções penais para
assegurar a protecção de tais bens jurídicos no domínio da circulação rodoviária
reafirmou-a, de resto, o legislador no já citado artigo 292º do Código Penal,
com cuja entrada em vigor foi então revogado, como se disse, o artigo 2º do
Decreto-Lei nº 124/90.
7. A vigência dos artigos 1º, 2º, 4º, nºs 1 e 2, e 5º,
alínea a), do mencionado Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril (e, portanto, a
não derrogação de tais normativos pelo artigo 87º, nº 2, do Código da Estrada)
afirmaram-na, uniforme e repetidamente, todas as Relações [cf. Acórdãos das
Relações de Coimbra, Lisboa, Porto e Évora, de, respectivamente, 9 de Novembro,
23 de Novembro, 14 de Dezembro e 8 de Novembro, de 1994, respectivamente, todos
publicados na Colectânea de Jurisprudência, ano XIX (1994), tomo I, páginas 60,
160, 262 e 290] [Cf. também, no mesmo sentido, o Parecer da Procuradoria‑Geral
da República, publicado no Diário da República, II série, de 14 de Dezembro de
1994; e, ainda, JOSÉ DA COSTA PIMENTA, Código da Estrada Anotado, Coimbra, 1995,
páginas 399 e 667].
8. Não tendo o artigo 87º, nº 2, do Código da Estrada
revogado os artigos 1º e 2º do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril, o Governo,
ao editá-lo não 'legislou sobre matéria criminal', como se sustenta na sentença
recorrida, por isso que não excedeu os poderes que lhe foram conferidos pela
Assembleia da República, através da Lei nº 63/93, de 21 de Agosto.
Registe-se que nesta Lei a Assembleia da República não
só não concedeu poderes ao Governo para desgraduar em contra-ordenações o crime
de condução sob influência do álcool, previsto e punível pelos artigos 1º e 4º,
nºs 1 e 2, alínea a), do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril, como prescreveu
que a revisão ou a revogação 'de normas penais incriminadoras relativas à
violação das normas sob trânsito' só poderia fazer‑se, 'desde que não sejam
alterados os tipos de crime ou agravados os limites das sanções aplicáveis' (cf.
o nº 3 do artigo 2º). Especificamente no que concerne à 'revisão das normas
penais incriminadoras relativas à condução sob a influência do álcool constantes
do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril', o que o Governo podia fazer era
'alargar os pressupostos de punição à condução sob a influência de
estupefacientes, psicotrópicos, estimulantes ou outras substâncias similares
[...], observando os limites máximos de punição estabelecidos nesse decreto-lei
[...]'.
9. Mas, se, acaso, o artigo 87º, nº 2, do Código da
Estrada pudesse ser interpretado no sentido de implicar a derrogação dos artigos
1º, 2º, e 4º, nºs 1 e 2, alínea a), do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril,
sempre a juiz recorrida devia ter optado pela interpretação segundo a qual
aquele preceito legal apenas tinha passado a punir como contra-ordenações as
infracções que antes [recte, segundo os artigos 1º, 3º e 4º, nºs 1 e 2, alíneas
b) e c), do citado Decreto-Lei nº 124/90] constituiam contravenções,
mantendo-se, assim, em vigor aqueles normativos do mencionado Decreto-Lei nº
124/90.
De facto, entre uma interpretação que é conforme à
Constituição e outra que com ela é incompatível, o intérprete (juiz incluído)
deve preferir sempre o sentido que o texto constitucional suporta. Se o não
fizer e desaplicar a norma legal com fundamento em inconstitucionalidade, no
recurso que subir ao Tribunal Constitucional, deve este fixar o sentido da norma
que é compatível com a Constituição, e mandar aplicar esta no processo com tal
interpretação [cf., neste sentido, os Acórdãos nºs 163/95 e 198/95 (Diário da
República, II série, de 8 de Junho de 1995 e de 22 de Junho de 1995,
respectivamente)].
Dispõe, de facto, o artigo 80º, nº 3, da Lei do Tribunal
Constitucional que 'no caso de o juízo de constitucionalidade ou de legalidade
sobre a norma que a decisão recorrida tiver aplicado, ou a que tiver recusado
aplicação, se fundar em determinada interpretação da mesma norma, esta deve ser
aplicada com tal interpretação, no processo em causa'.
10. Concluindo: o artigo 87º, nº 2, do Código da Estrada
deve, pois, ser interpretado no sentido de não ter implicado derrogação dos
artigos 1º, 2º e 4º, nºs 1 e 2, alínea a), do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de
Abril, mas antes no de apenas ter passado a punir como contra-ordenação as
infracções que, naquele decreto‑lei, constituíam contravenção.
Assim interpretado, não padece o mencionado artigo 87º,
nº 2, de qualquer vício de inconstitucionalidade.
É, por isso, com o sentido que por último se indica que
o artigo 87º, nº 2, do Código da Estrada deve ser interpretado - e aplicado - no
presente processo.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso e, em consequência,
revoga-se a sentença recorrida a fim de ser reformada, interpretando-se o artigo
87º, nº 2, do Código da Estrada com o sentido que se deixa indicado como sendo
conforme à Constituição.
Lisboa, 8 de Novembro de 1995
Messias Bento
José de Sousa e Brito
Guilherme da Fonseca
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
Luís Nunes de Almeida