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Processo n.º 433/2012
3 Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, veio A. interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com as alterações posteriores (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
2. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso, nos termos seguintes:
“1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional.
Atendendo à inusitada extensão do requerimento de interposição do recurso e ao facto de nele serem abordadas questões que iam muito para além da explicitação dos pressupostos de interposição do recurso, foi a recorrente notificada, por despacho de fls. 441, para substituir o requerimento apresentado por outro que, dando cumprimento integral ao disposto no artigo 75.º-A, n.ºs 1 e 2, da LTC, se circunscrevesse ao ato processual, necessariamente sintético, de interposição do recurso.
2. Em cumprimento do referido despacho, veio a recorrente apresentar novo requerimento, em que identifica como “questão axial do presente recurso” a «interpretação do artigo 9.º, alínea a), da Lei da Nacionalidade Portuguesa (Lei n.º 37/81, de 3 outubro, com a redação que lhe foi dada pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril, no sentido de que os requerentes da aquisição da nacionalidade por efeito da vontade continuam a estar obrigados a apresentar provas de ligação à comunidade nacional é conforme com a Constituição ou é inconstitucional.»
3. Verifica-se, no entanto, que a interpretação normativa agora enunciada pelo recorrente não foi questionada, do ponto de vista da sua constitucionalidade, pelo recorrente, perante o tribunal recorrido.
Na verdade, nas alegações de recurso apresentadas junto do TCAS (assim como, aliás, nas alegações do recurso de revista para o STA – cfr. fls. 232 e s. dos autos), o recorrente nunca enunciou uma tal interpretação normativa (ou qualquer outra norma), para depois lhe imputar o vício de inconstitucionalidade. Limitou-se a acusar a decisão recorrida de ter violado vários preceitos constitucionais (cfr. conclusão XXIV e XXVI das referidas alegações, a fls. 183/184 dos autos).
A não suscitação da questão de constitucionalidade obsta, só por si, ao conhecimento do objeto do recurso.
4. Mas ainda que assim não fosse, outra razão impediria a admissão do recurso. É que a decisão do TCAS assenta num duplo fundamento: por um lado, o tribunal entendeu que cabia ao requerente fazer prova positiva do requisito de ligação efetiva à comunidade nacional; por outro lado, considerou que, no caso concreto, o Ministério Público fez prova da inverificação de tal requisito, ou seja, da inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional por parte do requerente. É o que resulta com clareza do seguinte parágrafo do acórdão do TCAS: «Ou seja, o Ministério Público logrou provar a inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional, fundamento de oposição à nacionalidade a que alude a alínea a) do n.º 2 do artigo 56.º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa» (fls. 221 dos autos).
Este outro fundamento é, aliás, salientado pelo Supremo Tribunal Administrativo na fundamentação da sua decisão de não admissão do recurso de revista (cfr. fls. 386 dos autos).
Assim, o presente recurso sempre se revelaria inútil, uma vez que a decisão que este Tribunal Constitucional viesse a proferida sobre a aludida questão de constitucionalidade sempre seria insuscetível de influir (modificar) no sentido da decisão recorrida.
Na verdade, ainda que o Tribunal Constitucional se viesse a pronunciar no sentido da inconstitucionalidade da norma do artigo 9.º, alínea a), da Lei da Nacionalidade Portuguesa, interpretada no sentido de que os requerentes da aquisição da nacionalidade continuam a estar obrigados a apresentar provas de ligação à comunidade nacional, sempre permaneceria intocado o outro fundamento de improcedência da ação, consubstanciado na prova feita pelo Ministério Público quanto à inexistência de uma tal ligação.
Só assim não seria se outra tivesse sido a dimensão normativa indicada como objeto do recurso (e suscitada no decurso do processo), nomeadamente, se o recorrente tivesse questionado a constitucionalidade do elemento “ligação efetiva à comunidade nacional”, enquanto requisito de aquisição da nacionalidade e fundamento de oposição à sua aquisição, independentemente, de se considerar, ou não, que a alteração legislativa de 2006 introduziu uma inversão do ónus probatório. De facto, a inconstitucionalidade desta outra dimensão normativa teria necessariamente consequências também no que respeita à prova dessa inexistência que o Ministério Pública terá feito nos presentes autos.
Simplesmente, embora tenha aludido à questão, o recorrente nunca enunciou – no decurso do processo, perante o tribunal recorrido – a norma nesta dimensão, para a questionar do ponto de vista da sua constitucionalidade.
5. Pelo exposto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, decide-se não conhecer do objeto do recurso.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
3. A reclamante, para fundamentar a sua reclamação, refere que, ao contrário do que afirma a decisão sumária proferida, suscitou a questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada - reportada à interpretação do artigo 9.º, alínea a), da Lei n.º 37/81 de 3 de outubro, na redação introduzida pela Lei Orgânica n.º 2/2006 de 17 de abril – perante o tribunal recorrido.
Desde logo, tal suscitação ocorreu ao longo das alegações de recurso e nas respetivas conclusões apresentadas no Tribunal Central Administrativo Sul, bem como nas alegações do recurso interposto para o Supremo Tribunal Administrativo.
Acresce que considerou o Relator da decisão reclamada que “logrou o Ministério Público provar a inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional”, pelo que o recurso de constitucionalidade sempre se revelaria inútil.
Ora, contra tal pretensa afirmação, refere a recorrente que “a simples consulta dos autos permite a conclusão que nenhuma prova foi produzida”, no sentido afirmado.
Nestes termos, conclui pedindo a reapreciação da questão pela conferência do Tribunal Constitucional.
4. O Ministério Público, em resposta, manifesta a sua concordância com a decisão sumária proferida, enfatizando que o cumprimento do ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, perante o tribunal recorrido, não se basta com a mera referência à pretensa violação de normas constitucionais, impondo, desde logo, que seja enunciada, clara e explicitamente, perante o aludido tribunal, a norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade se pretende questionar, o que, in casu, não ocorreu.
Conclui, pelo exposto, que a reclamação apresentada não merece provimento, não havendo razões para alterar o sentido da decisão sumária proferida.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
5. Analisada a reclamação apresentada, conclui-se que os argumentos aduzidos pela reclamante não infirmam a correção do sentido decisório da decisão sumária proferida, quanto ao não conhecimento do objeto do recurso, como melhor explicitaremos de seguida.
Na verdade, o Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Assim, faltando um dos referidos requisitos, o recurso é inadmissível.
Analisemos, pois, o recurso de constitucionalidade interposto, à luz das considerações expendidas.
Não obstante a recorrente não ter identificado, de forma clara e inequívoca, a decisão recorrida, no seu requerimento de interposição de recurso, interpretou a decisão sumária que a mesma corresponderia ao acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul.
Face ao objeto do recurso, a sua admissibilidade estava dependente da circunstância de a decisão recorrida ter convocado a enunciada interpretação normativa do artigo 9.º, alínea a), da Lei da Nacionalidade, como fundamento jurídico da solução dada ao caso.
Ora, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo não admitiu a revista, pelo que a sua ratio decidendi não coincide, manifestamente, com a interpretação normativa, erigida como objeto do recurso, o que, desde logo, afasta a admissibilidade do recurso de constitucionalidade, se o perspetivarmos como incidente sobre tal decisão.
Na decisão sumária proferida, entendeu-se, como já referimos, que a decisão recorrida corresponderia ao acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul.
Porém, tal acórdão assentou num duplo fundamento. Por um lado, considerou o Tribunal Central Administrativo Sul que as alterações introduzidas pela Lei n.º 2/2006, de 17 de abril, e pelo Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de dezembro, “em nada alteraram o regime legal anterior, mormente no que diz respeito ao requisito da ligação efetiva à comunidade nacional, como também resulta do artigo 57º, nº 1, do Dec.-Lei nº 237-A/2006, segundo o qual “Quem requeira a aquisição da nacionalidade portuguesa por efeito da vontade ou adoção deve pronunciar-se sobre a existência de ligação efetiva à comunidade nacional”.”
Por outro lado, considerou o mesmo Tribunal que o Ministério Público fez prova da “inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional, fundamento de oposição à [aquisição da] nacionalidade a que alude a alínea a) do nº 2 do artigo 56º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, aprovado pelo Dec.-Lei nº 237-A/2006, de 14 de dezembro”.
Assim, independentemente da sorte do recurso de constitucionalidade incidente sobre a interpretação normativa, enunciada pela recorrente no requerimento de interposição de recurso, o sentido decisório do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul manter-se-ia intocado, face à coexistência de uma segunda linha de argumentação, inatingível pelo juízo de eventual inconstitucionalidade que viesse a ser proferido, e que conduziria, na lógica interna da decisão recorrida, ao mesmo resultado de improcedência da pretensão da recorrente.
Saliente-se, quanto a este ponto, que não incumbe ao Tribunal Constitucional sindicar a bondade material da decisão proferida pelo tribunal a quo – como parece pretender a reclamante – mas apenas avaliar se, face aos fundamentos dessa decisão, se revela ou não útil a apreciação do recurso de constitucionalidade interposto.
Nestes termos, configurando a instrumentalidade do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade um dos pressupostos de admissibilidade do mesmo, conclui-se, como na decisão reclamada, que o presente recurso é inadmissível, atenta a insusceptibilidade de o julgamento da questão de constitucionalidade se repercutir, de forma útil e eficaz, na solução jurídica do caso concreto, face à coexistência de uma fundamentação alternativa, efetiva e suficiente, que conduz, de forma autónoma, à mesma solução a que se chega através da via argumentativa a que subjaz o critério normativo, cuja constitucionalidade é posta em causa.
Sendo os pressupostos de admissibilidade do recurso necessariamente cumulativos, demonstrada que fica a não verificação de um deles, torna-se ociosa a discussão sobre os restantes.
Por tudo quanto fica exposto, concluímos pelo indeferimento da reclamação apresentada.
III - Decisão
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a reclamação apresentada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 7 de novembro de 2012.- Catarina Sarmento e Castro – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral.