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Procº nº 302/95.
2ª Secção
Relator: BRAVO SERRA.
I
1. Em processo tutelar pendente pelo Tribunal de Menores
de Lisboa e durante uma diligência de inquirição de testemunhas, a dada altura,
um advogado solicitou que fosse autorizado a intervir em tal diligência.
Perante uma tal solicitação, a Juiz daquele Tribunal
proferiu despacho com o seguinte teor:
'A obstrução à intervenção de mandatário judicial no processo tutelar
que parte dos representantes legais ou progenitores da menor, estipulada no artº
41º da O.T.M., con- sidera-se inconstitucional por se nos afigurar violar tal
preceito legal o disposto nos artºs 7º e 8º da D.U.D.H., 6º e 13º da CEDH, 16º,
nºs 1 e 2, 20º, 36º, nºs 5 e 7, 67º e 68º e 205º da Constituição da República,
razão pela qual se recusa a aplicação daquele preceito legal e se admite a
intervenção do ilustre advogado dos progenitores da menor dos autos no presente
acto'.
2. Deste despacho recorreu a Curadora de Menores junta
do aludido Tribunal e, recebido o recurso, alegou o Ex.mo Procurador-Geral
Adjunto em funções no Tribunal Constitucional que, propugnando pela
improcedência do recurso, concluiu nos seguintes termos:
'1º - A parte final do nº 2 do artigo 20º da Constituição da
República Portuguesa considera como elemento integrador do direito fundamental
de acesso ao direito e aos tribunais o direito ao patrocínio judiciário, que
envolve a possibilidade de as partes ou sujeitos processuais se fazerem
representar em quais- quer causas por profissionais do foro.
2º - Ao impedir a constituição de mandatário judicial próprio no
processo tutelar, salvo na fase de recurso, o artigo 41º da Organização Tutelar
de Menores introduz uma restrição excessiva e desproporcionada, que atinge o
conteúdo essencial daquele direito, impedindo que sejam assistidos por
profissional do foro da sua confiança os sujeitos potencialmente afectados pelas
medidas decretadas, em desconformidade com o disposto nos nºs 2 e 3 do artº 18º
da Constituição'.
Cumpre decidir, tendo sido dispensados os «vistos» dos
Juízes desta Secção, e isto em face da circunstância de a norma em crise ter já
sido objecto de apreciação pela mesma.
II
1. Por intermédio do seu Acórdão nº 488/95, por ora
ainda inédito, já este Tribunal se confrontou com a análise da compatibilidade
ou incompatibilidade com a Lei Fundamental da norma ínsita no artº 41º da
Organização Tutelar de Menores aprovada pelo Decreto-Lei nº 314/78, de 27 de
Outubro.
Disse-se, na verdade, em tal aresto:
'.............................................
O equacionamento da questão de (in)constitucionalidade aqui posta
resume-se em saber se o citado artigo 41º da O.T.M. colide materialmente com a
Constituição.
Preceitua aquele artigo 41º:
'Artigo 41º
(Mandatário judicial)
A intervenção de mandatário judicial só é admitida para efeitos de recurso.
Vejamos, então, atento o quadro legal do processo tutelar regulado
hoje na O.T.M., correspondendo ao anterior processo de prevenção criminal.
A actual O.T.M., aprovada pelo Decreto-Lei nº 314//78, de 27 de
Outubro, nasceu da necessidade de adaptar a orgânica dos Tribunais de Menores
ao novo esquema de alterações introduzidas à organização dos Tribunais Judiciais
pela Lei nº 28/77, de 6 de Dezembro.
Esta lei repartiu pelos Tribunais de Menores e os de Família a
competência que vinha sendo tradicionalmente atribuída aos primeiros.
Daí a necessidade de um novo diploma onde se opera uma profunda
remodelação do sistema.
Como refere David Borges de Pinho (Da Protecção Judiciária dos
Menores e do Estado, pág. 15):
'[C]om o D.L. 314/78, de 27 de Outubro (actual O.T.M.), pretendeu--se sublinhar
o carácter protector e educativo que se deseja vingar na jurisdição tutelar, e
daí que, consequentemente, já não se fala em medidas de prevenção criminal.
Assim, o acento tónico de tal jurisdição tutelar recai hoje nos aspectos
proteccionistas, assisten- cial e educativo das medidas a aplicar pelos
tribunais, muito embora não se possa olvidar que, protegendo-se judicialmente os
menores e defendendo-se os seus direitos e interesses através de tais medidas,
estar-se-á, consequentemente, a efectivar todo um trabalho de prevenção criminal
que, naturalmente e logicamente, não deixará de advir de uma aplicação
atempada, correcta e ajustada de tais medidas'.
Tendo o processo tutelar por fim a aplicação de medidas tutelares de
protecção, assistência e educação a menores, é um processo de tramitação
simples e resumida, que visa encontrar a medida mais adequada a essa finalidade.
Assim:
- no processo não há acusação - nem as promoções do curador nem o seu parecer
final constituem acusação, nos termos em que esta é entendida em processo
criminal comum;
- não se admitem nele assistentes - apenas se permitindo a intervenção de
mandatário judicial na fase de recurso - artºs. 40º e 41º;
- inexiste audiência de discussão e julgamento - em sistema de contraditório,
como sucede no processo criminal comum.
'Tudo é simples e de execução sumária neste processo' (cfr. Manuel
de Oliveira Leal-Henriques, Organização Tutelar de Menores, pág. 22).
5. Norteado pela regulação de um interesse primordial, que é o do
interesse do menor, o processo tutelar é um processo em que a natureza da
intervenção do juiz implica também o exercício de uma actividade que postula o
contacto imediato do juiz com os interessados, que apela por vezes à sua
capacidade imaginativa (cfr. Manuel de Oliveira Leal-Henriques, ob. cit., pág.
108) e que visa, antes de mais, como já se referiu, a protecção, a assistência
e educação do menor, no processo tutelar.
Como diz Borges de Pinho, na passagem atrás transcrita, embora na
O.T.M. já não se fale em medidas de prevenção criminal, protegendo-se
judicialmente os menores e defendendo-se os seus direitos e interesses através
das medidas tutelares, está-se a efectuar um trabalho de prevenção criminal que
terá de advir de, entre o mais, uma aplicação atempada de tais medidas.
Ora, a aplicação atempada dessas medidas pressupõe que tudo seja
simples e de execução sumária, sob pena de o efeito útil de tais medidas se
perder.
São medidas cuja aplicação se destina rapidamente a evitar que o
menor entre (se não se encontrar já) em situação de risco: de abandono, de maus
tratos, de vadiagem, de agente ou potencial agente de crime, etc.. Medidas que,
pela imediata necessidade de as aplicar e eventual menos boa adequação ao caso,
podem ser revistas a todo o momento.
6. Pergunta-se então: é o fim que tem em vista o processo tutelar (a
aplicação de medidas de protecção, assistência e educação), o modo como se
desenvolve (simplicidade motivada pela urgência, em regra, das medidas), a
inexistência de 'partes' (como sujeitos de interesses contrastantes) e o facto
de o menor não estar desprotegido na defesa dos seus interesses (ao curador
cabe zelar pelos mesmos) que fazem com que não se justifique a intervenção de
mandatário judicial naquela fase?
Ou antes, não será desproporcionada ou desadequada a medida legal
restritiva do artigo 41º da intervenção do mandatário judicial só 'para efeitos
de recurso'?
É aqui que se tem de ponderar e resolver se se mostra ou não violado
o princípio do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º da
Constituição, na vertente da 'intervenção de mandatário judicial', em processo
tutelar (o direito ao patrocínio judiciário reconhecido no nº 2 daquele artigo
20º), quando conjugado com o artigo 18º, nºs 2 e 3.
Ora, a restrição ao patrocínio judiciário - elemento integrador
daquele direito - revela-se, à luz do artigo 18º, nºs 2 e 3, da Lei Fundamental,
desproporcionada e desadequada, pois excluindo-se a defesa dos interesses do
menor e dos direitos que na matéria cabem aos pais por um mandatário judicial,
ainda que ela não se mostre absolutamente necessária, atinge-se o núcleo
essencial do referido direito (direito à nomeação no processo de um
'intermediário técnico', 'entendido como a representação em juízo das partes
ou sujeitos processuais por profissionais do foro, no que se reporta à condução
técnico-jurídica do processo').
Na verdade, o juiz pode, no decurso do processo, adoptar medidas que
restringem fortemente a liberdade dos menores e os poderes que cabem a seus
pais.
Assim, há-se entender-se que os interesses do menor e os
correspondentes direitos dos pais podem não ficar suficientemente protegidos
com a intervenção do Ministério Público, e até com a intervenção do próprio
juiz, a quem é conferido o poder de julgar como o árbitro, não se podendo
considerar salvaguardado esse 'núcleo essencial', e nem a celeridade exigida
por tal tipo de processos, visando acudir a um menor em risco ou em vias de o
estar, justifica a dispensa de mandatário judicial.
Aliás, do texto constitucional, a propósito da filiação e do poder
paternal, extrai-se um complexo de direitos e deveres que espelham aquele poder
e o superior interesse dos filhos. Assim:
- os 'pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos (nº 5 do
artigo 36º)
- os 'filhos não podem ser separados dos pais' (nº 6 do artigo 36º)
- ao Estado incumbe cooperar 'com os pais na educação dos filhos' (artigo 67º,
c))
- os 'pais e as mães têm direito à protecção da sociedade e do Estado na
realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos, nomeadamente
quanto à sua educação' (nº 1 do artigo 68º).
Caracterizando-se o poder paternal, minuciosamente regulado nos
artigos 1877º e seguintes do Código Civil, 'não como um conjunto de faculdades
de conteúdo egoísta e de exercício livre, ao arbítrio dos respectivos
titulares, mas como um conjunto de poderes-deveres, como uma situação jurídica
complexa em que avultam poderes funcionais, que devem ser exercidos
altruisticamente, no interesse do filho, de harmonia com a função do direito,
consubstanciada no objectivo primacial de protecção e promoção dos interesses
do filho, com vista ao seu harmonioso e integral desenvolvimento físico
intelectual e moral' (na linguagem do Parecer do Conselho Consultivo da
Procuradoria-Geral da República nº 8/91, de 16 de Janeiro de 1992, in Boletim,
nº 418, págs. 285 e segs., com análise detalhada do instituto do poder
paternal), com tal caracterização compadece-se a defesa plena dos interesses do
menor e bem assim a dos correlativos direitos dos pais no processo tutelar por
um mandatário judicial, sendo desproporcionado e desadequado excluir ou
restringir essa defesa.
7. Em conclusão: parece que o artigo 41º da O.T.M., nos termos em que
proíbe a 'intervenção de mandatário judicial', viola o artigo 20º, nº 2,
conjugado com o artigo 18º, nºs 2 e 3, da Constituição, como é a tese do
recorrente, e tanto basta para o ferir de inconstitucionalidade material.
8. Termos em que, DECIDINDO, decide-se:
a) julgar inconstitucional, por violação do artigo 20º, nº 2,
conjugado com o artigo 18º, nºs 2 e 3 da Constituição, a norma do artigo 41º da
O.T.M., na parte em que não admite a intervenção de mandatário judicial fora da
fase de recurso;
b) negar, em consequência, provimento ao recurso, mantendo-se o
despacho recorrido'.
2. Adite-se às considerações constantes do transcrito
Acórdão e a título de concretização exemplificativa, que, no processo tutelar, é
possível a imposição de medidas, ainda que cautelares, que, fortemente, vão
restringir o próprio poder paternal, mesmo nos casos em que a situação do menor
justificativa da adopção de tais medidas não tem como causa, quer remota, quer
imediata, um comportamento activo ou passivo por banda daqueles a quem é
confiada a representação do menor.
Isso, só por si, justifica que os interesses, direitos e
deveres destes últimos se devam perspectivar como impondo o devido acautelamento
da respectiva intervenção no processo tutelar, até porque, seguramente, não será
difícil cogitar a ocorrência daquilo que, como se lê na alegação apresentada
pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, são 'apreciações divergentes sobre a melhor
forma de realizar o interesse do menor'.
Ora, uma tal intervenção, como forma de acesso aos
próprios tribunais, não pode deixar de supôr 'logicamente um correcto
conhecimento dos direitos e deveres por parte dos seus titulares' (palavras do
Acórdão nº 444/91 publicado na 2ª Série do Diário da República de 2 de Abril de
1991), o que implicará que esse direito fundamental - o acesso aos tribunais -
venha a integrar o direito ao patrocínio judiciário, como aliás, tem sido, sem
discrepância, reconhecido.
3. Não se vislumbram razões que militem no sentido de a
restrição decorrente da norma em apreço se postar como adequada, necessária ou
proporcionada em face dos objectivos de celeridade do processo tutelar ou da
circunstância de ali não haver um arguido ou não impender sobre o menor uma
acusação, ou não se visar senão a protecção do mesmo.
Quanto ao primeiro aspecto, ele só se poderia colocar
perante uma óptica segundo a qual a intervenção de mandatário judicial ou uma
qualquer outra forma de patrocínio judiciário contribuem para diminuir a
celeridade processual o que, certamente, é algo de indefensável.
Tocantemente ao segundo, e como se disse já, muito
embora as características do processo tutelar o distingam de outras formas de
composição de litígios, sendo norteado por objectivos diferentes, isso não
significa que haja diferentes apreciações do que seja mais favorável para o
menor, sendo até que a intervenção dos progenitores, devidamente patrocinados,
pode dar importantes contributos para permitir ao juiz uma visão mais adequada e
concretizada sobre a situação sujeita à sua apreciação e da medida aconselhável
ao caso, pesando devidamente os interesses daqueles progenitores e as soluções
por eles aventadas, na decorrência dos direitos que, constitucional e
legalmente, lhes cabem.
4. Uma restrição como a que deflui da norma em crise não
se apresenta, desta arte, como adequada, necessária e proporcionada, razão pela
qual:
Julgando inconstitucional, por violação do artigo 20º,
nº 2, conjugado com o artigo 18º, nºs 2 e 3 da Lei Fundamental, a norma do
artigo 41º da O.T.M., na parte em que não admite a intervenção de mandatário
judicial fora da fase de recurso, se nega provimento ao presente recurso.
Lisboa, 17 de Outubro de 1995
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
Messias Bento
José de Sousa e Brito
Guilherme da Fonseca
Luís Nunes de Almeida