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Proc. nº 136/94
1ª Secção
Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - O Magistrado do Ministério Público junto do Supremo Tribunal
Administrativo, ao abrigo do disposto no artigo 19º, nºs 4 e 5 da Lei nº 1/76,
de 17 de Fevereiro (Estatuto Orgânico de Macau), na redacção dada pela Lei nº
13/90, de 10 de Maio, e nos artigos 14º, nº 1, 26º, nº 1, alínea g), 69º, nº 1 e
71º do Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril (Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais), interpôs recurso contencioso dos despachos do
Encarregado do Governo de Macau e do Governador de Macau, respectivamente, de 22
de Maio e de 5 de Junho de 1991, atinentes à nomeação de notários privados
naquele território sob administração portuguesa.
Na sua petição, complementada pelas alegações assaca aos actos
recorridos a violação de normas constitucionais, formulando as seguintes
conclusões:
1) As normas das alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 8º do Decreto-Lei nº
80/90/M, de 31 de Dezembro, e das alíneas a), b) e c) do nº 3 do artigo 3º do
Decreto-Lei nº 81/90/M, da mesma data, contêm limitações de acesso à função
notarial, a qual é uma função pública.
2) Estas limitações fundam-se exclusivamente no exercício, anteriormente em
Macau, de certas funções jurídicas e no exercício actual da advocacia.
3) Uma tal restrição não tem a justificá-la motivos constitucionalmente
atendíveis, pelo que acabou por impor uma solução de carácter manifestamente
discriminatório, que em muito excede os limites da discricionariedade
legislativa.
4) Assim, violam essas normas o princípio da igualdade, consagrado no artigo
13º da Constituição, e o direito de acesso a cargo público, ou, à função
pública, em condições de igualdade e liberdade, com consagração,
respectivamente, no artigo 50º, nº 1, e no artigo 47º, nº 2, da Lei Fundamental.
5) Os actos sob impugnação fundaram-se nessas normas materialmente
inconstitucionais.
6) A violação daqueles imperativos constitucionais, acarreta a nulidade
desses actos.
7) Por outra via, o Tribunal deve recusar a aplicação daquelas normas, ao
abrigo do disposto no artigo 4º, nº 3, do Decreto-Lei nº 129/94, de 27 de Abril,
ficando, assim, os actos em questão carecidos de base legal, o que é
determinante de anulabilidade.
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2 - O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 27 de Janeiro
de 1994, concedeu provimento ao recurso e anulou os despachos impugnados,
suportando-se para tanto, na parte que aqui importa reter, na fundamentação
seguinte:
'Por força do nº 2 do artigo 8º [do Decreto-Lei nº 80/90/M, de 31 de
Dezembro] podem ser nomeados notários privados:
a) Os antigos notários de Macau que não tenham sido demitidos ou
aposentados compulsivamente.
b) Os antigos magistrados judiciais ou do MºPº que exerceram essas
funções em Macau, cuja última classificação não tenha sido inferior a 'BOM' e
que não tenham sido demitidos ou aposentados compulsivamente.
c) Os advogados com, pelo menos, 5 anos de exercício efectivo em
Macau.
Em consonância com o nº 3 do artº 3º do DL 81/90/M de 31.12 veio ainda a ser
estabelecido que dos antigos notários de Macau e dos antigos magistrados
judiciais ou do MºPº só podem ser notários privados se exercerem a advocacia.
Resulta destes textos legais que há restrições ao exercício das funções de
notário privado e que decorrem exclusivamente do local do anterior exercício de
diversas funções de carácter jurídico, conjugado com a exigência do exercício
actual da advocacia. Ora estas exigências desprovidas de qualquer fundamento
material bastante, realmente violam o princípio da igualdade - consagrado no
artº 13º da CRP que contém uma directiva dirigida ao legislador, que o obriga a
tratar de forma igual situações que são no essencial iguais e de forma desigual
situações que se possam considerar essencialmente diferentes.
Pretende-se com esta directiva impedir o arbítrio legislativo e assim o
tratamento diferenciado ou não diferenciado que venha a ser dado em determinada
situação terá que ter um fundamento constitucionalmente válido.
É dentro dos limites constitucionais que terá de se operar a definição das
situações da vida a tratar igual ou desigualmente, sem que seja eliminada a
liberdade de conformação legislativa.
Ligado a este princípio e no aspecto que estamos a considerar há também que
atentar no disposto no art. 47º, nº 1 e 50º, nºs 1 e 2 da CRP que estabelecem os
princípios da liberdade de escolha de profissão e acesso à função pública e do
direito de acesso a cargos públicos.
Assim, nenhum cidadão pode ser excluído do acesso aos cargos públicos ou à
função pública por motivos que não se traduzam na falta dos requisitos
adequados, como é o caso da idade, das habilitações académicas e das
habilitações profissionais.
Face ao exposto, é incontroverso que a forma de recrutamento para o cargo de
notário privado instituída pelos referidos DL 80 e 81/90/M de 31.12, exclui à
partida os notários que não tenham exercido funções em Macau e também todos os
conservadores.
O que significa que cidadãos com formação profissional adequada, adquirida
através de meios instituídos para esse efeito, ficam por aquela via legislativa,
com o acesso vedado.
Não decorre daqueles textos legais, nomeadamente da sua exposição preambular,
que o objectivo do legislador, ao restringir o acesso ao cargo de notário
privado a quem tivesse anteriormente exercido certas funções de carácter
jurídico em Macau, fosse evitar que um jurista sem conhecimento das
especialidade do regime jurídico vigente em Macau, em particular das regras do
notariado daquele território, pudesse vir a praticar actos da importância dos
actos notariais.
E, mesmo que assim fosse, objectivamente não se pode afirmar com toda a
segurança, que a circunstância de certo cidadão ter exercido em Macau as
funções de notário público, ou de magistrado judicial ou do MºPº, ou ainda de
advogado por período não inferior a 5 anos, signifique, só por si, que seja
realmente conhecedor das especificidades inerentes ao regime jurídico que vigora
em Macau. Basta pensar que pode ter exercido essas funções há longo tempo e
terem ocorrido entretanto alterações a esse regime jurídico que não sejam do seu
conhecimento.
Repare-se também na circunstância que não é de todo irrelevante, que parte
dos cidadãos englobados nas categorias profissionais a que os DL 80 e 81/90/M
reservam o exercício das funções de notário privado não terem realmente qualquer
ligação com a função notarial, como é o caso dos magistrados e dos advogados.
É certo que relativamente aos advogados o DL 9/91/M de 31.1 institui um curso
de formação com a duração de 50 horas, mas o mesmo não se verifica em relação
aos magistrados que têm acesso directo à função notarial sem qualquer preparação
prévia.
Há também que ponderar que as especificidades do regime jurídico vigente em
Macau nunca constituiriam um factor para adopção de medidas especiais no caso do
exercício da função de notário público em Macau, por notários ou conservadores
oriundos dos quadros da República Portuguesa.
E por ser assim é que o regime de provimento dos notários públicos de Macau,
estabelecido nos arts. 25º e segs. da Lei Orgânica dos Serviços dos Registos e
do Notariado (DL 105/84/M de 8/9, que foi alterado pelo DL 16/87/M de 16.3 e
pela Lei 1/92/M de 27.1) não limita o exercício da função a anterior exercício
de certas funções jurídicas, no território de Macau.
Não se pode por isso dizer que os notários e conservadores oriundos do
continente ao serem providos em Macau, não estejam aptos a exercer as funções
de notários públicos.
Deste modo ao reservar-se a função de notário privado para determinada
categoria de pessoas, com preterição de outras com formação adequada e que
teoricamente até pode ser superior à daquelas, sem que para tanto se verifiquem
especificidades relevantes que o justificasse, deu-se origem a uma situação de
diferenciação de tratamento sem qualquer fundamento à luz do referido princípio
da igualdade e também do direito de acesso a cargos públicos ou à função pública
com assento constitucional nos artigos 13º, nº 1, 47º, nº 2 e 50º, nº 1 da CRP.
Face ao exposto, é chegada a altura de concluir pela procedência da
argumentação aduzida pelo Recorrente no sentido de se considerar que as normas
estatuídas nas al. a), b) e c) do nº 2 do artº 8º do DL 80/90/M de 31.12 e nas
al. a), b) e c) do nº 3 do artº 3 do DL 81/91/M de 31.12, estabelecendo
limitações de acesso à função de notário privado, cujo conteúdo funcional é sem
dúvida, como vimos, de carácter eminentemente público - sem se basearem em
motivos que possam ser constitucionalmente atendíveis, acabaram por impor um
regime discriminatório, que excede o poder discricionário atribuído ao
legislador.
Isto significa que foram violados o princípio da igualdade consagrado no artº
13º nº 1 e o direito de acesso a cargo público ou, à função pública, em
condições de perfeita igualdade e liberdade, consagrados, respectivamente nos
artigos 50º, nº 1 e 47º, nº 2 da CRP'.
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3 - Deste acórdão trouxe o Ministério Público recurso obrigatório ao
Tribunal Constitucional, em conformidade com o disposto nos artigos 280º, nºs
1, alínea a) e 3 da Constituição e 70º, nº 1, alínea a) e 72º, nº 3, da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro.
Nas alegações depois oferecidas, o senhor Procurador-Geral Adjunto
deixou o seguinte quadro conclusivo:
'1º A norma resultante da conjugação do preceituado nos artigos 8º, nº 2, do
Decreto-Lei nº 80/90/M e 3º, nº 3, do Decreto-Lei nº 81/90/M, ambos de 31 de
Dezembro, ao restringir o acesso à função de notário privado aos antigos
notários (ou outros magistrados) de Macau que exerçam advocacia, e aos advogados
com pelo menos 5 anos de exercício efectivo em Macau, estabelece uma
discriminação arbitrária entre tais profissionais e todos os demais que, apesar
de materialmente habilitados ao exercício da função notarial, são impedidos de
ter acesso ao referido cargo.
2º Tal discriminação configura-se como materialmente infundada, já que não
encontra suporte material bastante na especificidade do estatuto e do
ordenamento jurídico de Macau, ou nas particularidades do exercício da função
notarial naquele território, que se rege, no essencial, pelo Código do
Notariado.
3º Viola, pois, tal regime legal os princípios constitucionais da igualdade,
consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa - e entendido
como proibição da realização de discriminações arbitrárias pelo legislador - e
do direito a um procedimento justo e igualitário no recrutamento para funções
públicas, previsto no nº 2 do artigo 47º da Lei Fundamental - disposições
aplicáveis em Macau nos termos do artigo 2º do respectivo Estatuto Orgânico,
aprovado pela Lei nº 13/90, de 10 de Maio'.
Na contralegação entretanto produzida pelos recorridos particulares,
formularam-se as conclusões seguintes:
'a) Nos termos em que o pedido foi formulado pelo recorrente, o recurso deve
ser julgado improcedente, visto da conjugação do disposto no artigo 8º nº 2 do
Decreto-Lei nº 80/90/M com o artigo 3º do Decreto-Lei 81/90/M não resultar
nenhuma norma tal como é pretendido pelo recorrente: as normas objecto do
presente recurso não têm o alcance pretendido pelo Ministério Público - não se
perca de vista que o artigo 1º do Decreto-Lei 81/90/M não é objecto do recurso
em apreço;
b) Mesmo que assim não se entenda, o que apenas por dever de patrocínio é
equacionado nas presentes alegações, consideram os recorridos particulares não
merecer provimento o recurso sub judice; com efeito:
i) São as particularidades do território de Macau a justificarem a criação
da figura do notário privado, nos termos em que foi feita; assim, as funções do
notário privado justificam-se exactamente nos termos em que foram concebidas; é
que, não se pretende fazer concorrência aos notários privativos nem aos
notários públicos; pelo contrário, trata-se de permitir ao advogado que possa,
acessoriamente à actividade principal que exerce, praticar gratuitamente actos
notariais;
ii) É, ainda, o particularismo da vida de Macau que justifica ser a função
notarial também exercida por entidades privadas, de forma gratuita e
acessoriamente à actividade privada dos advogados; por assim ser é que,
naturalmente, se condiciona o exercício da função acessória ao exercício da
função principal. Já careceria de justificação o condicionalismo imposto, caso
se tratasse de uma actividade a exercer a título principal ou exclusivo;
iii) Sendo territórios diferentes, o nacional e o de Macau e comunidades
políticas distintas, distintas não podem deixar de ser as ordens jurídicas. Há
uma ordem jurídica da República Portuguesa, tendo por destinatários permanentes
os cidadãos portugueses e ligada ao território nacional; e há uma ordem jurídica
de Macau, tendo por destinatários permanentes os residentes em Macau e
incindível desse território; assim se justifica, à luz do princípio da
igualdade, o regime jurídico do notário privado, nos termos em que o instituiu o
legislador do Território;
iv) Justifica-o, quando a estabelece acessoriamente à actividade do
advogado, uma vez que, como vimos, é aos advogados de Macau que faz sentido,
complementarmente à sua actividade e de modo gratuito, praticarem actos
notariais;
v) Justifica-o quando estabelece a existência de um nexo de conexão entre o
titular do exercício da função e a realidade sócio-cultural e económica com o
Território;
vi) Acresce que a referida localização, instrumento da sobrevivência da
identidade de Macau, apenas se pode concretizar por via de medidas, soluções e
providências que, no respeito dos princípios fundamentais do nosso sistema
constitucional, reforcem a autonomia e a diferenciação;
vii) Analisada a questão nos termos propostos, facilmente se chega à
conclusão de não dar o regime em apreço lugar a qualquer privilégio ou
discriminação;
viii) Importante é ainda, para desmistificar o problema que agora nos ocupa,
o facto de, em Macau, qualquer jurista poder ser advogado; para tal basta que se
inscreva, sem mais imposições, na respectiva associação profissional;
ix) De referir, ainda, não se decretar, portanto, nenhum privilégio dos
juristas de Macau em confronto com os de Portugal ou, inversamente, uma
descriminação de que estes sejam vítimas; aponta-se tão só um tratamento
correlacionado com as circunstâncias objectivas diversas em que uns e outros se
deparam perante as estruturas jurídicas e sociais do Território em fase de
transformação e (nota não menos importante) de transição.'
Os recorridos particulares fizeram entretanto juntar aos autos dois
pareceres da autoria, respectivamente, dos Professores Jorge Miranda e Freitas
do Amaral.
Passados os vistos de lei cabe agora apreciar e decidir.
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II - A fundamentação
1 - O Supremo Tribunal Administrativo ao decidir a impugnação
contenciosa que lhe fora submetida para julgamento recusou a aplicação das
'normas estatuídas nas alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 8º do Decreto-Lei
nº 80/90/M, de 31 de Dezembro e nas alíneas a), b), e c) do nº 3 do artigo 3º do
Decreto-Lei nº 81/91/ M, de 31 de Dezembro' com fundamento em
inconstitucionalidade ditada pela violação dos artigos 13º, nº 1, 50º, nº 1 e
47º, nº 2 da Constituição.
E do respectivo acórdão, em conformidade com a expressa imposição
contida nos artigos 280º, nºs 1, alínea a) e 3 da Constituição e 70º, nº 1,
alínea a) e 72º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, interpôs o Ministério
Público recurso obrigatório em ordem à fiscalização concreta de
constitucionalidade das normas ali desaplicadas.
Tais normas - e são elas que constituem o objecto do presente
recurso - no entendimento daquele aresto, estabelecem limitações de acesso à
função de notário privado sem para tanto se basearem em motivos
constitucionalmente atendíveis, acabando por impôr um regime discriminatório,
que excede o poder discricionário atribuído ao legislador.
Ora, apesar de na individualização dos preceitos cuja aplicação foi
recusada, o acórdão recorrido ter feito referência aos artigos 8º, nº 2, alíneas
a), b) e c) do Decreto-Lei nº 80/90/M, e 3º, nº 3, alíneas a), b) e c) do
Decreto-Lei nº 81/90/M, é manifesto que só por lapso se fez alusão a este último
normativo, desde logo porque o artigo 3º do Decreto-Lei nº 81/90/M é constituído
por um corpo único, não dispondo de números nem alíneas.
Como bem resulta do contexto argumentativo e sistemático que ali se
contém, o acórdão quis reportar-se à norma do artigo 3º, nº 3, alíneas a), b) e
c) do Código do Notariado, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º do
Decreto-Lei nº 81/90/M e não já à norma do artigo 3º deste diploma que rege,
aliás, sobre matéria de todo estranha ao thema decidendi, concretamente, ao
facto de as referências feitas no Código do Notariado à Direcção-Geral dos
Registos e do Notariado deverem ser entendidas como feitas à Direcção de
Serviços de Justiça.
De resto, como vem sendo assinalado pela jurisprudência do Tribunal
Constitucional (cfr. por todos, o Acórdão nº 440/94, Diário da República, II
série, de 1 de Setembro de 1994) a competência dos tribunais comuns no acesso à
Constituição com vista à recusa de aplicação das normas que julguem
inconstitucionais é uma competência vinculada, no sentido de que estes
tribunais só podem decidir as questões de constitucionalidade que tenham por
objecto normas jurídicas aplicáveis ao caso concreto submetido a julgamento.
Ora, sendo patente que a norma do artigo 3º do Decreto-Lei nº
81/90/M, nada tem a ver com a situação posta à apreciação do Supremo Tribunal
Administrativo, não existe impedimento a que no objecto do recurso se tenha por
incluída a norma que em verdade ali se rejeitou, concretamente, a norma do
artigo 3º, nº 3, alíneas a), b) e c) do Código do Notariado, na redacção dada
pelo artigo 1º daquele diploma.
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2 - O Decreto-Lei nº 80/90/M, de 31 de Dezembro, como resulta da sua
exposição preambular, 'mantendo, no essencial, o sistema e partindo do
pressuposto que um notário é essencialmente um jurista, com qualificação
científica e dotado de fé pública, que deve aconselhar, interpretar e conformar
legalmente a vontade dos intervenientes nos actos e contratos' instituiu o
notário privado como novo órgão da função notarial, definindo-o como 'um
advogado de Macau investido em funções após nomeação pelo Governador e com
adequada preparação técnica para os actos notariais'.
Ao notário privado foi atribuída, naquele diploma, competência para
praticar todos os actos notariais, à excepção de testamentos públicos, termos
de aprovação de testamentos cerrados, abertura de testamentos cerrados,
habilitações e justificações notariais, escrituras ante-nupciais, repúdio de
herança de que façam parte coisas imóveis, actos em que outorguem menores e
incapazes e protestos (artigo 2º).
As escrituras celebradas por notários privados haverão de ser
depositadas no prazo de cinco dias num cartório notarial do território de Macau,
sob pena de não produzirem quaisquer efeitos nem poderem ser invocadas em juízo
(artigo 4º, nºs 1 e 3).
O exercício de funções de notário privado não é remunerado, sem
prejuízo da cobrança dos honorários, como advogado (artigo 9º).
Os notários privados estão sujeitos às incompatibilidades dos
advogados e tomam posse e prestam compromisso de honra perante o director dos
Serviços de Justiça, vinculando-se aos deveres da função pública excepto aos de
obediência e assiduidade (artigos 10º e 12º, nº 1).
As condições de acesso ao exercício desta função notarial acham-se
reguladas no artigo 8º, cujo texto a seguir se transcreve na integra, tendo em
atenção a particular importância de que se reveste para o julgamento da matéria
posta no presente recurso.
Artigo 8º
(Acesso)
1 - Os notários privados são nomeados por despacho do Governador.
2 - Podem ser nomeados notários privados:
a) Antigos notários de Macau que não tenham sido demitidos ou
aposentados compulsivamente;
b) Antigos Magistrados Judiciais ou do Ministério Público que exerceram
essas funções em Macau, cuja última classificação não tenha sido inferior a
'BOM' e que não tenham sido demitidos ou aposentados compulsivamente;
c) Advogados com, pelo menos, cinco anos de exercício efectivo em
Macau.
3 - Os indivíduos a que se refere a alínea c) do nº 2 só poderão ser nomeados
após a frequência de um curso de formação nos termos a definir em diploma do
Governador.
E, na lógica sequência do Decreto-Lei nº 80/90/M, o Decreto-Lei nº
81/90/M, de 31 de Dezembro, veio introduzir alterações ao Código do Notariado,
ditadas pelo facto de se haver entretanto criado um novo órgão notarial e
também por força da implantação no território de Macau de um programa de
informatização.
Os órgãos normais da função notarial, de harmonia com este diploma,
são os notários públicos e os notários delegados. São notários delegados os
primeiros-ajudantes dos cartórios notariais (artigo 2º do Código do Notariado).
Regendo sobre os órgãos especiais da função notarial, o artigo 3º do
mesmo código, na redacção dada pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 81/90/M, dispõe
assim:
Artigo 3º
(Órgãos especiais)
1 - Também desempenham funções notariais:
a) Os agentes consulares portugueses;
b) Os notários privativos;
c) Os notários privados;
2 - São notários privativos os funcionários de serviços públicos,
licenciados em Direito, a quem seja atribuída em relação a certos actos, a
competência própria dos notários.
3 - São notários privados:
a) Antigos notários de Macau que não tenham sido demitidos ou
aposentados compulsivamente e exerçam advocacia;
b) Antigos Magistrados Judiciais e do Ministério Público nas condições
da alínea a), e cuja última classificação não tenha sido inferior a 'Bom';
c) Advogados com, pelo menos, cinco anos de exercício efectivo em
Macau.
4 - Os notários privados são nomeados por despacho do Governador e têm a
competência constante de diploma próprio.
Da conjugação das normas dos nºs 2 e 3 do artigo 8º do Decreto-Lei
nº 80/90/M e do nº 3 do artigo 3º do Código do Notariado, na redacção que lhe
foi dada pelo Decreto-Lei nº 81/90/M, resulta assim que o acesso à função de
notário privado se acha reservado aos que exerçam a advocacia em Macau e tenham
anteriormente desempenhado no respectivo território funções de notário público,
Magistrado Judicial ou Magistrado do Ministério Público e aos que venham ali
exercendo a advocacia há mais de cinco anos e tenham frequentado um curso de
formação.
Deste modo, ficam excluídos do acesso a tal cargo notarial os
licenciados em Direito que não exerçam a advocacia no território de Macau, bem
como os que embora a exercendo, o não façam, também aí, há pelo menos cinco anos
ou não tenham desempenhado funções como notários públicos, Magistrados Judiciais
ou do Ministério Público naquele território.
Assinale-se que o Decreto-Lei nº 58/92/M, de 24 de Agosto, veio dar
nova redacção aos artigos 8º, nº 2, alínea a) do Decreto-Lei nº 80/90/M e 3º, nº
3, alínea a) do Código do Notariado, que passaram a prever, ao lado dos antigos
notários, os conservadores que também tenham como tal exercido funções em Macau.
A situação em apreço, porém, dado o seu concreto circunstancialismo, há-de ser
avaliada em face dos textos originários dos respectivos diplomas
Será que poderá dizer-se, como sustenta o senhor Procurador-Geral
Adjunto, que semelhantes restrições, 'exclusivamente fundadas no local do
anterior exercício de funções jurídicas, e com a exigência do actual exercício
da advocacia em Macau' importam violação do princípio da igualdade e do direito
a um procedimento justo e igualitário no recrutamento para funções públicas,
previstos, respectivamente, nos artigos 13º e 47º, nº 2 da Constituição?
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3 - O princípio da igualdade começou por ser entendido no
constitucionalismo liberal do séc. XIX em termos de exclusiva incidência no
domínio da aplicação da lei por forma a impedir diferenças de tratamento ainda
provenientes da ordem feudal ou do Estado estamental.
Esta perspectiva exclusivamente formal, segundo a qual a igualdade
se concretizava através de uma igual aplicação da lei a todos os cidadãos -
através da generalidade da lei, alcançava-se a igualização dos cidadãos -
traduzia-se numa pura exigência de generalidade da lei, apresentando-se o
princípio da igualdade como um mero princípio de prevalência da lei.
Todavia, pouco a pouco, o princípio evoluiu na sua essência
estruturadora do regime geral dos direitos fundamentais e do próprio sistema
constitucional global, apresentando-se como princípio oponível ao próprio
legislador.
Hoje em dia, a igualdade perante a lei não é mais uma mera igual
aplicação da lei a todos os cidadãos, afirmando-se, sobretudo, como uma
igualdade na lei ou, se se quiser, uma igualdade através da lei.
A sua base material é a igual dignidade social de todos os cidadãos,
que, por seu turno, representa um corolário da igual dignidade humana de todas
as pessoas. Trata-se pois de um valor judicializado que preside a todos os actos
jurídicos, a começar pelo acto legislativo. O legislador não pode introduzir
diferenciações na estatuição sobre 'facti species' essencialmente idênticas,
isto é, o princípio da igualdade veda-lhe que trate desigualmente aquilo que é
essencialmente igual e que trate igualmente aquilo que é essencialmente
desigual.
Mas porque a semelhança nas situações da vida nunca é total visto
que por natureza tais situações não se reproduzem integralmente, importará,
numa prévia definição, encontrar o atributo que, retirado do todo, permite o
estabelecimento da igualdade, isto é, delimitar quais os elementos de semelhança
que, para além dos inevitáveis elementos diferenciadores, devem estar presentes
para se poder afirmar a igualdade de duas situações em termos de merecerem o
mesmo tratamento jurídico.
Sendo a igualdade em sentido material um conceito relativo entre
duas situações, importa que o elemento relacionador, como elemento
característico de tais situações, nelas se encontre presente. Tais situações
serão consideradas iguais (ou desiguais), merecendo por isso um tratamento
jurídico igual (ou desigual), consoante o elemento relacionador que se elegeu
como critério de comparação, nelas se verifique ou não verifique.
Mas a definição do critério em que se reporta o juízo de igualdade
pressupõe uma prévia valoração da realidade, apresentando-se com um conteúdo
indissociavelmente ligado aos fins que se pretendem alcançar com o
estabelecimento da igualdade. 'A qualificação de uma situação como igual a outra
inclui, necessarimente, a razão pela qual ela deve ser tratada de certo modo'.
O princípio da igualdade reconduz-se assim a uma proibição de
arbítrio sendo inadmissíveis quer a diferenciação de tratamento sem qualquer
justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos,
constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações
manifestamente desiguais.
A proibição de arbítrio constitui um limite externo da liberdade de
conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da
igualdade como princípio negativo de controle.
A vinculação jurídico-material do legislador a este princípio não
elimina a liberdade de conformação legislativa, pois lhe pertence, dentro dos
limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as
relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar
igual ou desigualmente.
Mas existe, sem dúvida, violação do princípio da igualdade enquanto
proibição de arbítrio, quando os limites externos da discricionariedade
legislativa são afrontados por ausência de adequado suporte material para a
medida legislativa adoptada.
Por outro lado, as medidas de diferenciação hão-de ser materialmente
fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da
justiça e da solidariedade, não devendo basear-se em qualquer razão
constitucionalmente imprópria (cfr. sobre a matéria, por todos, os acórdãos do
Tribunal Constitucional nºs 44/84, 425/87, 39/88 e 231/94, Diário da República,
II série, de respectivamente, 11 de Junho de 1984 e 5 de Janeiro de 1988 e I
série, de respectivamente, 3 de Março de 1988 e 28 de Abril de 1994, e ainda
Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
1993, pp. 127 e ss; Jorge Miranda, 'O regime dos direitos, liberdades e
Garantias, Estudos sobre a Constituição, vol. III, pp. 50 e ss. e Manual de
Direito Constitucional, tomo IV, Coimbra, 1993, p. 219; Maria da Glória
Ferreira Pinto, Princípio da Igualdade - Fórmula Vazia ou Fórmula Consagrada de
Sentido?,, Separata do B.M.J. nº 358, Lisboa, 1987; Lívio Paladin, Il princípio
costituzionale d'eguaglianza, Milão, 1965).
À luz das considerações precedentes pode dizer-se que a
caracterização de uma medida legislativa como inconstitucional, por ofensiva do
princípio da igualdade dependerá, em última análise, da ausência de fundamento
material suficiente, isto é, de falta de razoabilidade e consonância com o
sistema jurídico.
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4 - O acesso à função de notário privado acha-se reservado aos que
exercem a advocacia em Macau e tenham anteriormente desempenhado no respectivo
território funções de notário público, Magistrado Judicial ou do Ministério
Público e aos que também ali exercem a advocacia há mais de cinco anos e tenham
frequentado um curso de formação.
Ficam assim excluídos de tais funções os licenciados em Direito que
não advoguem no território de Macau, bem como os que, embora aí exerçam a
advocacia, o não façam, também aí, há pelo menos cinco anos ou não tenham sido
notários públicos, Magistrados Judiciais ou do Ministério Público naquele
território.
Os diplomas em causa não explicitam directamente as razões que
estiveram na origem das diferenças de tratamento estabelecidas para as diversas
situações profissionais ali previstas, podendo embora dizer-se que 'repousam no
pressuposto de que juristas com actividade anterior ou presente em Macau
possuem mais e melhor conhecimento da legislação especial aí vigente do que
juristas vindos de fora, e revelam maior sensibilidade aos factores
socioculturais e socioeconómicos que rodeiam a aplicação e de que depende a
efectividade dessa legislação. E, como corolário, estatuem que é dentre eles
que devem ser escolhidos os notários privados tornados imprescindíveis pelo
próprio crescimento do Território'.
As especificidades do regime jurídico de Macau resultam desde logo,
do facto de constituir um território sob administração portuguesa que se rege
por estatuto adequado à sua situação especial (artigo 292º, nº 1, da
Constituição).
Como tal, apresenta-se aquele território como uma pessoa colectiva
de direito público interno e goza, com ressalva dos princípios e no respeito dos
direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição e no seu
Estatuto Orgânico, de autonomia administrativa, económica, financeira e
legislativa (artigo 2º da Lei nº 1/76, de 17 de Fevereiro, na redacção dada pela
Lei nº 13/90, de 10 de Maio).
O território de Macau como território diferente do território da
República abriga uma comunidade política distinta à qual, não só por estreitas
considerações lógico-formais mas sobretudo por razões políticas, económicas,
sociais e culturais, corresponde também uma outra ordem jurídica.
Independentemente da comunicação existente entre as ordens
jurídicas da República Portuguesa e do território de Macau e de saber se os
princípios constitucionais fundamentais ali se aplicarem sem necessidade de
interposição destas ou daquelas normas estatutárias, o certo é que este
ordenamento se apresenta em muitos aspectos diverso do ordenamento português
prevalecendo aliás, em diversas matérias, no caso de divergência entre as normas
constantes de diplomas dos órgãos de soberania da República aplicáveis ao
território e as normas de diplomas dos órgãos de Governo próprio do território
de Macau, esta última ordem jurídica.
Por outro lado, de acordo com a Declaração Conjunta do Governo da
República Portuguesa e do Governo da República Popular da China sobre a questão
de Macau (ratificada pelo decreto do Presidente da República nº 38-A/87, de 14
de Dezembro) o vínculo que liga Macau e o respectivo ordenamento à República
Portuguesa tem natureza transitória pois que, a partir de 20 de Dezembro de
1999, se prevê a transferência da administração do território para a República
Popular da China que voltará a assumir o exercício da soberania sobre Macau.
Contudo, depois dessa data e por um período de cinquenta anos o
território de Macau deverá ser convertido em 'Região Administrativa Especial'
com 'alto grau de autonomia, excepto nas relações externas e de defesa', gozando
de 'poderes executivos, legislativos e judicial independentes, incluindo o de
julgamento em última instância' (cfr. sobre o debate parlamentar da 'Declaração
Conjunta', Diário da Assembleia da República, 1ª série, nº 20, de 11 de Dezembro
de 1987, pp. 684 e ss).
Mas a subsistência de um sistema jurídico próprio para além de 1999
pressupõe um adequado ajustamento de tal sistema à sociedade de Macau em termos
de nele se reflectirem as respectivas realidades económicas, sociais e
culturais, perspectivando-se para tanto a localização como um instrumento de
sobrevivência da sua identidade.
É assim que, em conformidade com a exposição preambular do
Decreto-Lei nº 80/90/M, a criação dos notários privados em Macau foi ditada
pelas exigências do 'desenvolvimento económico e social do território',
traduzidas na necessidade de instituir 'estruturas legais capazes de garantir a
certeza e a segurança na aplicação do Direito, assim como a celeridade dos actos
e contratos, imprescindível ao comércio jurídico próprio das sociedades em
expansão'.
E do mesmo modo, no preâmbulo do Decreto-Lei nº 81/90/M, aduziram-se
razões similares quando se invocou como fundamento da criação desse novo órgão
da função notarial' a necessidade de permitir uma maior celeridade na prática
dos actos notariais, sem que se percam a segurança e a certeza jurídicas'.
Com efeito, parece irrecusável a existência de particulares
especificidades no ordenamento jurídico do território de Macau determinadas por
características muito próprias da respectiva comunidade política e das suas
conexas condicionantes culturais, económicas e sociais.
Mas será que as especificidades deste ordenamento e as
peculiariedades da sociedade a que respeita constituem fundamento material
bastante para as diferenças de tratamento estabelecidas no acesso às funções de
notário privado?
Nos pareceres juntos aos autos responde-se em termos afirmativos
aduzindo-se, além de outras, estas considerações:
'Não se decreta, portanto, nenhum privilégio dos juristas de Macau em
confronto com os de Portugal ou, inversamente, uma discriminação de que estes
sejam vítimas. Aponta-se tão só um tratamento correlaccionado com as
circunstâncias objectivas diversas em que uns e outros se deparam perante as
estruturas jurídicas e sociais do Território em fase de transformação e (nota
não menos importante) de transição.
.............................................................
A exigência de uma actividade jurídica anterior ou actual em Macau como
requisito de admissão à qualidade de notário privado assenta num dado objectivo
- a integração existencial no ambiente jurídico e sociocultural do Território -
e, por isso, não ofende o princípio da igualdade, que longe de significar
identidade naturalística, uniformidade, indiferenciação, implica consideração
da diversidade, razoabilidade, proporcionalidade' (Prof. Jorge Miranda).
'Este critério do local (Macau) do anterior exercício de determinadas funções
jurídicas parece-nos que encontra obviamente a sua justificação na necessidade
de garantir que a nomeação de notários privados recaia sobre advogados que
tenham já adquirido um conhecimento adequado e suficiente das especificidades
da particular situação jurídica de Macau e do respectivo ordenamento jurídico.
Por outras palavras, com este tratamento diferenciado pretende-se evitar a
nomeação, como notários privados, de advogados que não tenham ainda uma conexão
suficientemente estrita com Macau, obtida quer pelo anterior exercício, nesse
território, de funções notariais ou de magistratura, quer pelo efectivo
exercício da advocacia, também nesse território, durante pelo menos cinco anos.
São, pois, as especificidades do ordenamento jurídico de Macau e o
particular `ambiente' que rodeia, por isso, o complexo e exigente comércio
jurídico duma sociedade `em expansão' que justificam a restrição do exercício
das funções de notário privado a quem haja exercido determinadas funções
jurídicas naquele território, pois só estes é que se pode considerar que
adquiriram o conhecimento e estão preparados para lidar juridicamente com essa
particular realidade' (Prof. Freitas do Amaral)
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5 - A estes argumentos contrapõe o senhor Procurador-Geral Adjunto
que - podendo embora os advogados exercer funções de consulta jurídica que
envolvam a realização de minutas de negócios jurídicos - não apresenta o
conteúdo da função notarial efectiva e necessária conexão com os actos próprios
da profissão de advogado.
Por outro lado, assinala ainda que o regime instituído para os
notários privados não é aplicável aos notários públicos e aos notário delegados
que poderão ser providos nos respectivos lugares independentemente do facto de
não reunirem os pressupostos de nomeação exigidos aos primeiros, sendo também
certo que o curso de formação a que se reporta o artigo 8º, nº 3, do Decreto-Lei
nº 80/90/M, se revela instrumento idóneo para realizar a selecção dos candidatos
que não se mostrem profissionalmente habilitados ao exercício satisfatório das
tarefas próprias da função sendo por isso inaceitáveis as restrições impostas
por lei.
Não se crê que esta perspectiva das coisas seja a mais adequada à
avaliação da legitimidade constitucional das normas em apreço.
Vejamos porquê.
A vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da
igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa, pertencendo-lhe,
dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto
ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a
tratar igual ou desigualmente.
Infracção ao princípio da igualdade enquanto proibição de arbítrio
só existe quando 'as medidas legislativas não têm adequado suporte material'.
Ora, independentemente de se saber se os elementos relevantes das
diversas situações que no entendimento do legislador, justificam para o
provimento do cargo de notário privado a existência de uma conexão profissional
com Macau, bem como se os índices depois erigidos como critérios reveladores
dessa conexão, são os mais adequados à definição dos pressupostos que
condicionam aquele recrutamento, importa afirmar que uns e outros não se
apresentam como manifestamente desrazoáveis ou inaceitáveis no contexto do
ordenamento a que respeitam e dos específicos vectores políticos, económicos e
sociais que o informam..
Aos tribunais, na apreciação daquele princípio, não compete
verdadeiramente 'substituirem-se' ao legislador, ponderando a situação como se
estivessem no lugar dele e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a
solução 'razoável', 'justa' e 'oportuna' (do que seria a solução ideal do caso);
compete-lhes, sim, 'afastar aquelas soluções legais de todo o ponto
insusceptíveis de se credenciarem racionalmente' (cfr. acórdão da Comissão
Constitucional, nº 458, Apêndice ao Diário da República, de 23 de Agosto de
1983, p. 120).
As inegáveis especificidades do ordenamento de Macau e a
complexidade do comércio jurídico da respectiva sociedade justificam porventura
a solução legislativa adoptada, ao menos, em termos de não se poder afirmar com
segurança a existência de violação do princípio da igualdade por parte do quadro
normativo que rege a selecção dos notários privados.
Esta conclusão não pode ser contrariada pelo facto de no provimento
dos notários públicos se não impor uma obrigatória conexão profissional com o
território de Macau similar à adoptada para os notários privados.
Com efeito, os conteúdos funcionais destes dois órgãos notariais são
bem diversos, justificando porventura uma diferente perspectiva nos respectivos
modos de acesso, sustentando-se mesmo no parecer do Prof. Jorge Miranda que
'não é o regime de acesso dos notários privados que carece de ser alterado, mas
o dos notários públicos que tem de ser adequado aos imperativos da
localização'.
Como quer que seja, não se considera que aquelas normas violem o
princípio da igualdade.
Nas alegações do recurso, além da violação do princípio da
igualdade, teve-se também por afrontado 'o direito de acesso à função pública em
condições de igualdade' consagrado no artigo 47º, nº 2 da Constituição.
Simplesmente, tudo quando se disse a propósito daquele princípio
vale também para o específico princípio da igualdade de acesso à função pública
que mais não traduz do que uma concretização do princípio geral consagrado no
artigo 13º da Constituição.
E assim sendo, a inexistência de violação do princípio da igualdade
consequencia também que não se tenha por afrontado o disposto no artigo 47º, nº
2 da Constituição.
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III - A decisão
Nestes termos, decide-se não julgar inconstitucional a norma
resultante da conjugação do preceituado nos artigos 8º, nº 2 do Decreto-Lei nº
80/90/M, de 31 de Dezembro e 3º, nº 3 do Código do Notariado na redacção que lhe
foi dada pelo Decreto-Lei nº 81/90/M, de 31 de Dezembro, determinando-se, em
consequência, a reforma do acórdão recorrido em conformidade com o presente
julgamento de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 8 de Novembro de 1995
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
José Manuel Cardoso da Costa