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Procº nº 377/94.
2ª Secção.
Relator:- Consº BRAVO SERRA.
I
1. A. foi acusado pelo Representante do Ministério
Público junto do Tribunal de comarca de Serpa, tendo-lhe sido imputada a prática
de factos que foram subsumidos ao cometimento, em autoria material, de um
ilícito previsto pelo § 1º do artº 1º do Decreto Lei nº 29.833, de 17 de Agosto
de 1939, e punido pelo artº 297º, nº 1, alínea a), com referência ao artº 296º,
um e outro do Código Penal.
Notificado da acusação, requereu o A. a abertura da
instrução, após o que, efectuadas diversas diligências e o debate instrutório, o
Juiz do citado Tribunal de comarca proferiu, em 18 de Abril de 1994, decisão por
intermédio da qual não pronunciou o arguido, para tanto tendo recusado, por
inconstitucionalidade material fundada na violação do nº 2 do artigo 18º da
Constituição, a aplicação da norma constante do citado § 1º do artº 1º do D.L.
nº 29.833.
É desse despacho que vem, pelo Ministério Público,
interposto o presente recurso.
2. Na alegação por si produzida, em que propugna por se
dever conceder provimento ao recurso, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto aqui em
funções concluiu do seguinte modo:
'1º - Em consequência da constituição de penhor em garantia de
créditos de estabeleci- mentos bancários autorizados, sem desapossa- mento
material do devedor, nos termos do artigo 1º e seu § 1º do Decreto-Lei nº 29
833, de 17 de Agosto de 1939, a posse da coisa empenha da é juridicamente
atribuída ao credor pignoratício, ficando o dono daquela na posição de mero
detentor-depositário, privado de qualquer legitimidade para dispor.
2º - Não constitui ofensa ao princípio da subsidariedade da tutela
penal, ínsito nos artigos 2º e 18º, nº 2, da Constituição da Re- pública
Portuguesa, a incriminação pelo legislador ordinário do comportamento do
detentor-depositário violador da indisponibilidade do objecto confiado à sua
guarda, ofendendo si- multaneamente a posse do credor pignoratício e a boa-fé e
confiança no comércio jurídico'.
Por seu lado, o recorrido A. rematou a alegação por si
apresentada com as seguintes «conclusões»:
'1 - A sujeição a penhor de bens fungíveis que constituem
universalidades de facto, apenas configura uma obrigação genérica cujo
incumprimento não se distingue do incumprimento de qualquer outra obrigação de
carácter puramente civilístico.
2 - Impôr uma sanção penal a tal incumprimento configura um
verdadeiro caso de prisão por dividas banida do ordenamento
jurídico-constitucional português e do Estado Democrático de Direito, pelo que
qualquer norma que imponha tal sanção penal é materialmente inconstitucional por
violação dos artºs. 18 nº. 2 e 9º. al. b) da Constituição da República
Portuguesa.
3 - A norma do parágrafo 1º. do artº. 1º. do D.L. nº. 29.833 ao
fazê-lo, encontra-se ferida de inconstitucionalidade material por violação dos
artºs. 18 nº. 2 e 9 al. b) da Constituição da República Portuguesa.
4 - A confiança no comércio jurídico apenas pode servir como único
fundamento da tutela penal em casos muito restritos, precisamente aqueles em que
o comportamento do agente seja passível de censura ético-criminal à luz dos
critérios sociais vigentes. Na medida em que uma interpretação da norma penal
permita a punição do agente só por não obter a autorização escrita permite que
ele seja punido mesmo que já tenha pago a dívida, e tal punição, repugna à
consciência jurídica colectiva, ou seja, à luz dos critérios sociais dominantes
no nosso ordenamento jurídico tal conduta não deve ser punida.
5 - Tal interpretação ao permitir a sanção penal mesmo sem existência
de divida, e ao permitir que o agente mesmo assim seja punido, impõe uma pena
com o máximo de 10 anos de pri- são, sem exigir o dolo específico do agente, sem
exigir que ele provoque ou queira provocar algum prejuízo patrimonial, que ele
enriqueça ou queira enriquecer o seu património ilícita- mente, apenas porque
ele não obteve uma autorização a que teria direito por força do paga- mento, e
da consequente extinção do penhor. (artº. 677º. e 730º. a) do Código Civil).
Tal punição viola o artº. 18º. nº. 2 da Constituição da República,
porquanto não se limita ao necessário para salvaguardar o eventual bem jurídico
tutelado pela obrigação de obter essa autorização que assume um carácter formal,
sem se destinar a garantir a posição nem do credor nem de terceiros.
6 - No entendimento segundo o qual existe um direito ou interesse a
salvaguardar, (a posse do credor ou o direito do credor à garantia da sua
dívida), a norma continuará a violar os artºs. 18 nº. 2 e 9º. al. b) da
Constituição da República, pelos fundamentos aqui expostos nas conclusões 1 a 3.
Contudo, entendendo ser esses os bens a tutelar e não se entenda a
norma em apreço inconstitucional por esses fundamentos, de um ponto não pode
caber dúvida.
7 - Uma vez paga a divida, e não existindo dívida a garantir,
desaparece o direito ou interesse a salvaguardar, pelo que qualquer
interpretação do artº. 1º. parágrafo 1º. do D. L. 29.833, que permita a
imposição da sanção penal nele prevista, ao devedor que já pagou e nada deve ao
credor pignoratício, viola o nº. 2 do artº. 18º. da Constituição e da al. b) do
artº. 9º. da Constituição da República Portuguesa, ficando assim ferida de
inconstitucionalidade material.
Termos em que deve a norma constante do parágrafo 1º. do artº. 1º. do D.L.
29.833 de 17 de Agosto de 1939 ser declarada materialmente inconstitucional por
violação da al. b) do artº. 9º. e do nº. 2 do artº. 18º. da Constituição da
República, /ou caso assim não se entenda/ deve o norma constante do parágrafo
1º. do artº. 1º. do D.L. 29.833 de 17 de Agosto de 1939, ser declarada
materialmente incons- titucional por violação da al. b) do artº. 9º. e do nº. 2
do artº. 18º. da Constituição da República Portuguesa, em qualquer interpretação
dessa mesma norma que permita a imposição da sanção penal nela prevista, ao
devedor que já pagou a divida a garantir pelo penhor, devendo em qualquer dos
casos manter-se a douta decisão recorrida'.
II
1. Considerando que a entrega de coisa ao credor ou a
terceiro era elemento essencial do contrato de penhor, tanto para a lei civil
então em vigor (artigos 855º e 858º do Código Civil de Seabra), bem como para o
penhor mercantil (artº 398º do Código Comercial);
tendo em conta que 'cedo as exigências da actividade
económica e o correlativo desenvolvimento das formas jurídicas determinaram
inevitáveis derrogações' à rigidez que defluía daquele elemento, mas que, mesmo
assim, não satisfaziam 'a todas as necessidades do crédito nem às exigências
sempre crescentes da actividade económica';
ponderando que o recurso ao crédito só era 'possível se
os próprios instrumentos de produção' fossem dados em garantia, pelo que,
tratando-se de bens mobiliários, teria de ser utilizado o 'instituto
pignoratício', o que, por força da normação civil vigente, implicaria o
desapossamento desses instrumentos por parte do devedor, circunstância que se
não tornava desejável, já que assim ficaria ele impossibilitado de continuar a
'actividade que com tais instrumentos de produção' prosseguia;
vincando que, para alcançar o não desapossamento,
poder-se-ia lançar mão do estabelecimento de 'um registo próprio e converter-se
o penhor em hipoteca mobiliária', o que, porém, seria contrariado pelo facto de
o sistema de registo só ser 'susceptível de aplicação' a 'raras coisas móveis',
assinalando que já anteriormente se tinha assistido ao
estabelecimento de regimes, consagrados em vários diplomas avulsos, regimes
esses por intermédio dos quais o devedor continuava 'na detenção do objecto,
mas, por meio de um verdadeiro constituto possessório', ficava 'colocado na
situação de depositário, com as correspondentes sanções penais', ou seja, pelo
contrato de penhor constituiria o dono da coisa 'em favor do credor o direito
pignoratício', ficando este último 'com a respectiva posse em nome próprio',
sendo atribuída ao devedor a detenção da coisa, passando, consequentemente, 'a
ser mero possuidor em nome alheio e qualificado de fiel depositário', sendo que
era nas sanções penais que impendiam sobre o devedor infiel que resida a
'segurança dos interesses do credor e o acautelamento dos terceiros de boa fé
contra a possibilidade de duplo penhor',
tomou o legislador, em 1939, a decisão de, relativamente
'aos penhores para garantia de quaisquer operações bancárias', lhes tornar
extensivo regime semelhante àqueles (entre aspas, as palavras do preâmbulo do
Decreto-Lei nº 29.833).
Nesse mesmo preâmbulo referiu-se ainda:
4. As disposições legais que entre nós têm estabelecido o regime
excepcional de a coisa empenhada poder continuar em poder do dono não adoptaram
um sistema uniforme quanto ao modo de definir a garantia penal que em tais casos
fica assistindo ao penhor: umas vezes mandam aplicar o artigo 453.º do Código
Penal (abuso de confiança); outras vezes mandam observar o artigo 422.º do mesmo
Código; outras ainda limitam-se a cominar sanções que impendem no infiel
depositário, sem especificar quais elas sejam nem quais os pressupostos da sua
aplicação.
Nenhum destes sistemas se afigura absolutamente satisfatório e todos
deixam certas dúvidas sobre o exacto alcance das remissões feitas para a
legislação penal. Além disso, não previnem todas as hipóteses.
Por isso pareceu preferível, no caso presente, definir em concreto o
aspecto penal, embora em disposições que de modo manifesto se inspiram nas do
Código Penal e «de pleno» se integram no seu sistema.
5. Ocorrerá perguntar se, depois de tantas derrogações à doutrina do
Código Civil sobre penhor, ainda existirá um conceito unitário desta garantia
real. Porventura será possível hoje reconduzir à unidade a pluralidade de
configurações que as leis sucessivas foram atribuindo à garantia pignoratícia?
Não haverá já, sobre o nome ilusório de penhor, diferentes tipos de garantia
essencialmente distintos e irredutíveis e não virá o presente decreto agravar
mais essa desagregação do conceito de penhor?
A elaboração de conceitos não é função directa do legislador; mas
convém aqui observar que, a despeito de todas as suas várias modalidades, a
unidade conceitual do instituto pignoratício persiste. Ainda há pouco ela foi
acentuada entre nós e encontra-se neste traço, que é comum a todos os regimes
legais do penhor: a constituição da garantia pignoratícia pressupõe o
desapossamento do objecto empenhado e este desapossamento pode verificar-se
pelos diversos modos de transmissão da posse que existem em direito. Um deles é
o constituto possessório, a que, nos termos expostos, se amolda o regime
adoptado por este diploma'.
Perante estes parâmetros, veio a consagrar-se no
Decreto-Lei nº 28.833:-
Artigo 1.º O penhor que for constituído em garantia de créditos de
estabelecimentos bancários autorizados produzirá os seus efeitos, quer entre as
partes, quer em relação a terceiros, sem necessidade de o dono do objecto
empenhado fazer entrega dele ao credor ou a outrem.
§ 1.º Se o objecto empenhado ficar em poder do dono, este será
considerado, quanto ao direito pignoratício, possuidor em nome alheio; e as
penas de furto ser-lhe-ão impostas se alienar, modificar, destruir ou
desencaminhar o objecto sem autorização escrita do credor, e bem assim se o
empenhar novamente sem que no novo contrato se mencione, de modo expresso, a
existência do penhor ou penhores anteriores que, em qualquer caso, preferem por
ordem de datas.
§ 2.º Tratando-se de objecto pertencente a uma pessoa colectiva, o
disposto no parágrafo antecedente aplicar-se-á a quem incumbir a sua
administração.
Art. 2.º O contrato de penhor regulado neste decreto constará de
documento autêntico ou de documento autenticado e os seus efeitos contar-se-ão
da data do documento no primeiro caso e da data do reconhecimento autêntico no
segundo.
§ único. No documento transcrever-se-ão obrigatoriamente as
disposições dos §§ 1.º e 2.º do artigo 1.º, cumprindo ao notário assegurar a
observância do presente preceito.
Art. 3.º Ressalva-se o penhor de créditos, de títulos de crédito, de
cotas, de coisas imateriais, que, mesmo quando dado em garantia de operações
bancárias, continuará submetido ao regime até agora em vigor.
2. Como se viu, foi a norma constante do transcrito § 1º
do artº 1º, na parte em que comina com as penas aplicáveis ao crime de furto a
alienação, por parte do seu dono, do objecto constituído em penhor para garantia
de créditos de estabelecimentos bancários autorizados e desde que tal objecto
permaneça em seu poder, que foi recusada aplicar na decisão sob censura, pois
que, em síntese, ali se entendeu que:-
- a tutela penal não é exercitável relativamente a
condutas - ainda que sejam as 'mais imorais, a-sociais ou politicamente
indesejáveis' - que não violem um bem jurídico individualizável, pelo que essa
tutela só se deverá impor desde que não acarrete o sacrifício desmesurado de
outros bens jurídicos, o que equivale a dizer que ela só deve actuar face a
condutas potencial e gravosamente danosas da convivência social e para as quais
outras sanções não apresentem eficácia suficiente, já que só razões de prevenção
justificam a aplicação das reacções criminais que, de todo o modo, devem ser
proporcionadas, e isto tendo em conta que do 'mandamento constitucional' resulta
que 'só os bens jurídicos de eminente dignidade de tutela devem gozar de
protecção penal';
- o ordenamento jurídico regulador das relações
civilísticas tem os meios necessários destinados a prevenir os efeitos
decorrentes dos comportamentos que se encontram previstos na norma em apreço,
comportamentos esses, que, no fundo, representam a violação de um contrato e de
um direito real de garantia e, consequentemente, se inserem no 'domínio de
direito privado,..., onde dominam,..., os princípios da autonomia da vontade e
da liberdade contratual';
- porque os mencionados comportamentos não têm uma
grande carga de ilicitude, não poderão, por isso, acarretar a privação da
liberdade, sob pena de 'violação dos princípios...da necessidade e da
proporcionalidade'.
Para se atingir da propriedade da fundamentação acima
sintetizada e que conduziu ao juízo de desaplicação baseado em
inconstitucionalidade, torna-se claro que, numa primeira linha, se afira da
questão consistente em saber se a consagração da sanção penal levada a efeito
pela norma em causa visa, antes de tudo ou primordialmente, assegurar a tutela
do direito de garantia do credor pignoratício.
Daí que se imponha caracterizar qual o 'bem jurídico'
que o legislador visou tutelar ao estabelecer a dita sanção.
3. Contrariamente ao defendido no despacho recorrido,
entende-se que, ao editar a norma em questão, não constituiu principal
desiderato do legislador o de proteger o credor pignoratício ou, ao menos, não
foi este o seu único intento.
Como expressamente resulta do exórdio do diploma onde se
insere a norma sob sindicância, com o mesmo visou-se estabelecer - relativamente
a estabelecimentos bancários fornecedores de crédito a alguém que ao mesmo
recorra e que não possua bens que possam ser dados como garantia à excepção
daqueles que utiliza como factores ou instrumentos de produção - um regime,
semelhante a outros já então existentes, segundo o qual esses mesmos bens
poderiam ser afectos a garantia do crédito concedido e, sendo bens móveis, sem
que houvesse uma transferência de detenção para o credor que, no entanto, por
constituto possessório, passava a deter a respectiva posse.
Vale isto por dizer que o instituto do penhor que, em
regra, implica a transferência da detenção da coisa empenhada ao credor ao a
terceiro (cfr., hoje, nº 1 do artº 669º do Código Civil), se viu, no regime
então criado (e, bem assim, noutros semelhantes - aliás todos ressalvados
hodiernamente pelo artº 668º do mesmo Código), rodeado de determinadas
especificidades entre as quais ressaltam, de uma parte, não ficar o autor do
penhor privado da detenção da coisa, de outra, ficar o credor (ou terceiro)
constituído como verdadeiro possuidor dela e, por último, ficar o autor do
penhor na posição de fiel depositário da mesma.
Obviamente que, com um tal regime (iluminado, repete-se,
pela intenção de não privar o autor do penhor da detenção das coisas empenhadas,
já que elas seriam indispensáveis à prossecução da sua actividade económica e,
assim, isso permitiria a consecução de réditos necessários, quer relativamente
àquela prossecução, quer no tocante à solvabilidade do débito que contraiu, ou
ainda ponderando que ao credor pode não interessar ou não estar em condições de
assumir a exploração, o que tudo conduz à consideração de que ao gizar o regime
em apreço se moveu o legislador pela 'satisfação de relevantes necessidades
económicas' - cfr. Vaz Serra, no «Estudo» publicado no Boletim do Ministério
da Justiça, nº 58º, 17 e segs., concretamente, pags. 49, 50 e nota 70), na
medida em que as coisas dadas em penhor não saem da detenção do devedor, tornam,
relativamente a terceiros de boa fé, sobremaneira difícil saber se sobre as
mesmas o aludido devedor tem, ou não, a respectiva disponibilidade, atenta a
circunstância de não existir qualquer dado registral que nesse sentido aponte.
Daí que, afoitamente, se possa dizer que a peculariedade
do regime em causa (ditado pela satisfação das referidas 'relevantes
necessidades económicas'), no tocante à não privação do devedor da detenção da
coisa, cria uma situação, relativamente a terceiros de boa fé, através da qual
estes podem ser gravemente prejudicados caso aquele devedor, ilicitamente, lhes
alienar ou, verbi gratia, der novamente como garantia, aquela coisa, sobre a
qual não tem qualquer liberdade de disposição, já que dela é mero possuidor em
nome alheio (cfr., sobre a questão, Vaz Serra, «Estudo» e ob. citados, 44 e
45), criando, eventualmente, do mesmo passo, acrescidas dificuldades para o
credor pignoratício.
Poder-se-ia, pois, afirmar que, com a instituição de
regimes, como o vertente, de penhor sem privação de detenção sobre a coisa, se
veio a criar uma garantia obrigacional porventura menos dotada de salvaguardas
para o credor e para terceiros de boa fé, mas que, todavia, apresenta sérias
vantagens económicas, quer para o próprio devedor, quer para o comércio jurídico
em geral.
3.1. Sequentemente, nesta dualidade de interesses - e
sob pena de, em nome de uma sobrevaloração das vantagens económicas,
designadamente as do comércio jurídico em geral e as do devedor, em detrimento
das garantias dos terceiros de boa fé e do próprio credor, ficarem estas
relegadas para um plano de acentuado desfavor - sempre se imporia o
estabelecimento de uma tutela suficientemente forte de modo a que ficassem, por
esse estabelecimento, acentuadamente desincentivados os comportamentos do citado
devedor que se traduzissem na frustração daquelas garantias, sendo certo que,
como se torna límpido, o sistema geral de índole civil não apresenta, face às
medidas sancionatórias que dele constam, um peso tal que, na prática, venha a
constituir um desincentivo à tomada daqueles comportamentos.
A isto acresce que, mesmo do ponto de vista do credor
pignoratício, não é o seu crédito que se intenta directamente proteger, mas sim
a sua posse sobre a coisa empenhada (obtida por constituto possessório), que
exerce em nome próprio, constituindo a dissipação das coisas por parte do
devedor (que é um detentor em nome alheio) uma verdadeira infidelidade, a par de
uma retirada ilícita da posse de outrem que, na substância das coisas, não é
muito diferente de outras situações, tuteladas penalmente, e nas quais se visa,
justamente, a protecção da posse.
Não se poderá, em face do exposto, dizer, por um lado,
que o sancionamento penal levado a cabo pela norma em análise intenta,
unicamente, tutelar a relação jurídico-civil estabelecida entre o credor
pignoratício e o devedor, desta arte se visando proteger um direito de crédito
(antes, e pelo contrário, como se explanou, interessa sobremaneira a tutela de
terceiros de boa fé e da confiança no comércio jurídico); por outro, que não são
suficientes os sancionamentos constantes do ordenamento jurídico civil para
obstarem a uma possível violação dos interesses subjacentes à constituição do
penhor sem privação da detenção da coisa, mormente tendo em conta os interesses
de terceiros de boa fé.
Logo por aqui torna-se nítido falecerem determinadas
considerações carreadas como fundamentação ao despacho recorrido.
4. Um outro ponto, porém, se torna necessário dilucidar.
Consiste ele, justamente, em ponderar - assente que se
não põe em causa que deflui dos princípios constitucionais da justiça e da
proporcionalidade decorrentes da ideia de Estado de direito democrático e da
dignidade da pessoa humana, a exigência de uma subsidariedade da tutela penal
ou, como já foi assinalado, o princípio da máxima restrição das penas (cfr. José
de Sousa e Brito in «A lei penal na Constituição», Estudos Sobre a Constituição,
2º vol., 218) - se a consagração da tutela penal, da forma como é levada a
efeito na norma em apreciação, é algo que se apresenta como manifestamente
desproporcionado, excessivo ou sem justa medida.
Para se alcançar resposta positiva a uma pergunta que se
formulasse nesse sentido, mister seria, supondo ser isso, sem mais, lícito a
este Tribunal, que, inequívoca ou inquestionavelmente, se houvesse de concluir,
de uma banda, que eram de todo desproporcionados, desprovidos de razoabilidade e
arbitrários - logo, ofensivos do sentimento de justiça dominante na comunidade
-, os motivos que levaram o legislador a tutelar penalmente os comportamentos do
devedor (fiel depositário da coisa empenhada, cuja posse pertence ao credor
pignoratício) que acarretem a alienação ou dissipação dessa coisa, com manifesto
prejuízo de terceiros de boa fé e do comércio jurídico, para além da
frustração da garantia do crédito que lhe foi concedido; de outra que, conquanto
não repugne o estabelecimento em abstracto de uma previsão de ilícito de
natureza penal, a medida da tutela se revele excessiva, nomeadamente por
comparação com outros meios de sancionamento da ilícita apropriação, danificação
ou retirada de detenção de bens a quem tem a respectiva posse.
Claro que não interessará, quanto a uma tal questão,
saber se no caso dos autos houvera já sido, pelo incriminado pela norma sub
specie, satisfeito o crédito garantido pelo penhor. É que, como se torna nítido,
isso é uma circunstância que relevará em sede de apreciação de culpa, quer como
um dos índices de adequação concreta da pena, quer como um dos factores
constitutivos do respectivo tipo de crime.
4.1. No que concerne à primeira sub-questão, deflui do
que já acima se disse que não foi a protecção do crédito do credor pignoratício
constituído em possuidor das coisas dadas em penhor e que não saíram da detenção
do devedor o principal intuito do legislador do diploma onde se insere a norma
sub specie, pelo que a tutela consagrada nessa norma não tem por primeiro alvo
garantir aquele crédito, mas sim, desde logo, a posse do credor, adquirida por
constituto possessório, e os interesses de terceiros de boa-fé e do comércio
jurídico em geral.
Daí que esta tutela não possa, sem mais, ser
perspectivada como revestindo de pouca relevância à luz dos critérios sociais
dominantes numa sociedade como a nossa, consequentemente não podendo,
simplisticamente, afirmar-se que a consciência ética reinante fica indiferente -
em termos de lhe repugnar a aplicação de uma sanção de natureza criminal - a
condutas que se traduzam na violação dos aludidos interesses.
Na verdade, como assinala o Ex.mo Procurador-Geral
Adjunto, mesmo no corpo de normas fundamental relativo aos crimes, podem ser
encontradas disposições que apontam no sentido de ser conferida dignidade penal
a comportamentos que se traduzem na infidelidade dos depositários - cfr. artigos
300º, nº 2, alínea b), e 396º, do Código Penal.
Por outro lado, não é relevante a argumentação que, para
efeitos de modelar, concretizar e densificar o princípio da subsidariedade penal
ou da máxima restrição das penas, se filia nas opções legislativas
historicamente consagradas no Código Penal vigente, sob pena de, levado um tal
raciocínio às suas últimas consequências, dificilmente se aceitar legislação
avulsa específica que venha a estabelecer tutela penal para determinadas
situações carecidas da mesma e que não são enquadradas no sistema geral gizado
para e naquele Código.
A isto acresce que a dissipação ou alienação da coisa
(cuja posse, repete-se, pertence a outrem) por parte do devedor não pode, de
todo, representar o exercício, por parte deste, de um qualquer direito ou
interesse constitucionalmente protegido (como era o caso da situação a que
respeitou o Acórdão deste Tribunal nº 204/94, publicado na 2ª Série do Diário da
República de 19 de Julho de 1994)
Em face do que se deixa dito, conclui-se que, no caso da
norma em apreciação, se não depara a existência de uma situação que, patente e
seguramente, não careça de tutela penal, quer porque os interesses que se
visaram defender não reclamam defesa de um ponto de vista da consciência
ético-social vigente, quer porque, a reclamarem tutela, ela seria facilmente
obtida por recurso a sancionamento diverso do do estabelecimento de sanções de
natureza criminal ou por recurso a controlos por meios não penais (cfr., sobre o
princípio da necessidade da punição, o Acórdão deste Tribunal nº 83/95,
publicado na 2ª Série do Diário da República de 16 de Junho de 1995).
4.2. Pelo que toca à segunda sub-questão (precisamente a
de saber se a moldura sancionatória estabelecida por remissão para o crime de
furto é algo claramente desproporcionado) imporá ponderar que a latitude dessas
medidas estabelecidas por remissão para o crime de furto - aqui sobrelevando o
seu limite mínimo - não revela um flagrante arbítrio legislativo, tendo em
atenção os valores em presença que se intentaram tutelar e aquelas medidas
prescritas para os ilícitos criminais em que, primordialmente, se visa a
protecção da posse ou de outros direitos reais, a fidelidade dos depositários e
a salvaguarda dos interesses inerentes ao comércio jurídico (cfr., sobre o
princípio da proporcionalidade, para além do Acórdão nº 83/95, já citado, o
Acórdão deste Tribunal nº 634/93, in Diário da República, 2ª Série, de 31 de
Março de 1994) .
5. Uma última nota incumbe salientar.
Reside ela na argumentação carreada pelo recorrido na
alegação que apresentou neste Tribunal e de harmonia com a qual, ainda que se
entendesse que a norma em apreço não sofria, em abstracto, de
inconstitucionalidade, sempre desse vício padeceria quando interpretada no
sentido de ser aplicável aos casos em que o devedor já pagou a dívida para cuja
garantia deu de penhor as coisas que veio a alienar ou dissipar.
Torna-se claro que uma questão tal como a aflorada pelo
recorrido só poderia ser ponderada, por um lado, se porventura se entendesse que
o interesse tutelado pela norma foi o de garantir o crédito do credor
pignoratício.
Ora, como se viu, não foi esse o desiderato do
legislador, não sendo, pois, aquele interesse o primordial visado pelo normativo
em causa. É que, enquanto subsistir o penhor (tal como se encontra desenhado no
diploma em apreço) - a posse das coisas dadas em garantia pertence ao credor
pignoratício, pelo que a respectiva alienação, para além da ofensa desta posse,
poderá conduzir a que este venha a opor a terceiros adquirentes, ainda que de
boa fé, o seu direito real de garantia.
Por outro lado, não mostram os autos com um mínimo de
suficiência que foi com um tal recorte interpretativo que a norma em análise foi
recusada aplicar. Aliás, não permite o teor do despacho sob censura saber qual a
sua postura perante um eventual não preenchimento do tipo tendo em conta o que
se dispõe nas disposições conjugadas dos artigos 677º e 730º, alínea a), ambos
do Código Civil, pelo que não poderá, nem deverá, neste campo, intervir o
Tribunal.
III
Pelo que acima se deixou aflorado, concedendo provimento
ao recurso, determina-se a revogação da decisão recorrida a fim de a mesma ser
reformada em consonância com o presente juízo sobre a questão de
constitucionalidade.
Lisboa, 18 de Outubro de 1995
Bravo serra
Fernando Alves Correia
Messias Bento
José de Sousa e Brito
Guilherme da Fonseca
Luís Nunes de Almeida