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Proc. nº 382/93
2ª Secção
Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. O Ministério Público propôs, no
Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra, acção para declaração de perda
de mandato, ao abrigo do disposto no artigo 11º da Lei nº 87/89, de 9 de
Setembro, contra A., vereador da Câmara Municipal de --------------. Imputou-lhe
a prática de factos previstos nos artigos 70º, nº 1, alínea d) e 81º, nº 2, do
Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, artigo 4º, nº 2, alíneas c), d) e e), da
Lei nº 29/87, de 30 de Junho, e artigo 9º, n.os 2, alínea a), e 3, da Lei nº
87/89, de 9 de Setembro, durante o período em que, em regime de substituição,
havia exercido o cargo de presidente daquela câmara municipal.
Tendo sido anulada pelo Supremo Tribunal
de Administrativo (1ª Secção), por acórdão de 15 de Outubro de 1992, a decisão
condenatória inicialmente proferida, o Tribunal Administrativo de Círculo,
proferiu nova sentença em 11 de Dezembro de 1992. Considerou que os factos
apurados constituíam, senão ilegalidades, pelo menos a prática continuada de
irregularidades, integrando-se nas previsões dos artigos 4º, nº 2, alíneas c),
d) e e) da Lei nº 29/87, de 30 de Junho; pelo que julgou a acção procedente,
declarando a perda do mandato do réu.
2. Recorreu este para o Supremo
Tribunal Administrativo (1ª Secção), invocando, nomeadamente, a
inconstitucionalidade das normas do artigo 9º, nº 3, da Lei nº 87/89, do artigo
4º, nº 2, alíneas c), d) e e), da Lei nº 29/87, e dos artigos 70º e 81º do
Decreto-Lei nº 100/84. Mas, por acórdão de 16 de Março de 1993, o S.T.A.
negou-lhe provimento ao recurso.
Inconformado, recorreu para o Tribunal
Constitucional, nos termos do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei
nº 28/82, de 15 de Novembro.
Nas alegações aqui apresentadas considera
inconstitucionais: (a) os artigos 9º, nº 3, e 14º, nº 1, da Lei nº 87/89; (b) o
artigo 4º da Lei nº 29/87, e designadamente o seu nº 2, alíneas c), d) e e);
(c) e os artigos 70º e 81º do Decreto-Lei nº 100/84.
Por seu lado, o Ministério Público
considera que o objecto do recurso se restringe à apreciação da
constitucionalidade das normas constantes dos artigos 70º, nº 1, alínea d), e
81º, nº 2, do Decreto-Lei nº 100/84, artigo 4º, nº 2, alíneas c), d) e e), da
Lei nº 29/87, e artigo 9º, nº 3, da Lei nº 87/89; mas que essas normas não são
inconstitucionais.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
3. O recurso é interposto com fundamento
no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, isto é, para apreciação de
norma aplicada pelo tribunal recorrido e cuja inconstitucio-nalidade tenha sido
suscitada pelo recorrente durante o processo.
Ora, o artigo 14º, nº 1, da Lei nº 87/89
não foi aplicado pelo tribunal recorrido, e nem sequer o recorrente suscitou a
questão da inconstitucionlidade desta norma durante o processo: apenas o fez
depois de proferida a decisão do S.T.A., nas alegações de recurso que apresentou
no Tribunal Constitucional. Assim, esta questão não pode ser aqui examinada.
Por outro lado, e no que se refere ao
artigo 70ºdo Decreto-Lei nº 100/84, somente cabe apreciar a constitucionalidade
da alínea d) do nº 1, não tendo sido seguramente aplicadas as demais normas
deste artigo, que se referem a situações totalmente diversas das que o tribunal
apurou.
4. É, pois, objecto do presente recurso a
apreciação da constitucionalidade das seguintes normas:
a) dos artigos 81º, nº 2, e 70º, nº 1,
alínea d), do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março.
b) do artigo 4º, nº 2, alíneas c), d) e
e) da Lei nº 29/87, de 30 de Junho;
c) e do artigo 9º, nº 3, da Lei nº 87/89,
de 9 de Setembro.
5. É o seguinte o teor das
referidas disposições:
Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março:
Artigo 70º (Perda do mandato)
1 - Perdem o mandato os membros eleitos dos órgãos autárquicos que:
...
d) Se encontrem abrangidos pelo disposto no nº 2 do artigo 81º;
...
Artigo 81º (Impedimentos)
1 - ...
2 - Pode ser declarada a perda do mandato, mediante a prévia instauração de
inquérito, ao membro do órgão das autarquias locais que tome parte ou tenha
interesse em contrato por esse órgão celebrado, que não seja de adesão, quando
se verifique causa de impedimento nos termos do disposto no Decreto-Lei nº
370/83, de 6 de Outubro, sem prejuízo das demais sanções previstas nesse
diploma ou em legislação especial.
Lei nº 29/87, de 30 de Junho:
Artigo 4º (Deveres)
No exercício das suas funções, os eleitos locais estão vinculados ao cumprimento
dos seguintes princípios:
1) ...
2) Em matéria de prossecução do interesse público:
...
c) Não patrocinar interesses particulares, próprios ou de terceiros, de
qualquer natureza, quer no exercício das suas funções, quer invocando a
qualidade de membro de órgão autárquico;
d) Não intervir em processo administrativo, acto ou contrato de direito
público ou privado, nem participar na apresentação, discussão ou votação de
assuntos em que tenha interesse ou intervenção, por si ou como representante ou
gestor de negócios de outra pessoa, ou em que tenha interesse ou intervenção em
idênticas qualidades o seu cônjuge, parente ou afim em linha recta ou até ao 2º
grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem viva em economia
comum;
e) Não celebrar com a autarquia qualquer contrato, salvo de adesão;
...
Lei nº 87/89, de 9 de Setembro
Artigo 9º (Perda de mandato)
...
3 - Constitui ainda causa de perda de mandato a verificação, em momento
posterior ao da eleição, por inspecção, inquérito ou sindicância, de prática por
acção ou omissão, de ilegalidade grave ou de prática continuada de
irregularidades, em mandato imediatamente ao anterior exercido em qualquer
órgão de qualquer autarquia.
...
6. O recorrente considera
inconstitucionais estas normas, tal como em seu entender foram aplicadas pelo
S.T.A., pelos seguintes motivos (suprimiu-se a numeração dos parágrafos):
Ao recorrente foi declarada a perda do seu mandato, como vereador
da Câmara Municipal do Município de ------------------, por factos ocorridos no
mandato de 1986 a 1989.
Estes factos consistiram apenas em o recorrente, como Presidente da
Câmara em substituição, ter adquirido bens e serviços inferiores a esc.
40.000$00 por factura, ou produto e serviço, a uma sociedade comercial por
quotas 'B.', na qual participava com menos de 11% do capital social e era
gerente sem poderes.
Não se provou, nem sequer se alegou qualquer prejuízo para o
Município ou intenção de beneficiar ou favorecer a sociedade em causa, em
detrimento de outros.
A falta de qualificação subjectiva dos factos, torna a
interpretação dada aos comandos legais que fundamentaram a decisão de perda de
mandato e referidos no art. 17º da p.i., vazia de conteúdo.
E, consequentemente, aqueles comandos assim interpretados têm de
ofender o nº 2 do artº 18º e nº 1 do artº 50º da C.R. [Constituição].
Os factos alegados e dados por provados dizem respeito a direitos,
liberdades e garantias, e situam-se em datas anteriores à entrada em vigor da
Lei nº 87/89 de 9/9, ou seja, em 14/9/89.
Logo, o nº 3 do artº 9º e nº 1 do artº 14º daquela Lei, na medida
em que permitiram a perda do mandato e a inelegibilidade do recorrente em
consequência daqueles factos, têm de se considerar inconstitucionais por
violarem o nº 3 do artº 18º da C.R.
E o mesmo se diga do artº 4º da Lei nº 29/87 de 30/6 e arts. 70º e
81º do Dec. Lei nº 100/84.
Mesmo que assim não se entendesse, como atrás se referiu, as normas
do artº 71º e artº 81º do Dec.Lei nº 100/84 e as als. c), d) e e) do nº 2 do
artº 4º da Lei nº 29/87 de 30/6, tinham de se considerar inconstitucionais por
não existir norma constitucional expressa que desse respaldo a tais comandos.
Assim, estas normas violaram os comandos do nº 2 do artº 18º e nº 1
do artº 50º ambas da C.R.
E o nº 3 do artº 9º da Lei nº 87/89, na medida em que veio agravar
por desqualificação dos actos do recorrente, tem também de se considerar
inconstitucional por violar o nº 3 do artº 18º e nº 1 do artº 29º ambos da C.R.
7. A Lei nº 29/87 aprovou o Estatuto dos
Eleitos Locais, isto é, o estatuto dos membros dos órgãos deliberativos e
executivos dos municípios e freguesias (v. o respectivo artigo 1º, nº 2). O
disposto no artigo 4º, nº 2), alíneas c), d) e e), vincula o eleito local ao
cumprimento de determinados princípios «em matéria de prossecução do interesse
público», destinados a salvaguardar a transparência da sua intervenção.
Segundo o recorrente, estas normas violam
o disposto no artigo 18º, nº 2, e 50º, nº 1, da Constituição, não havendo
disposição constitucional expressa que lhes dê cobertura. Não tem, porém, razão.
É certo que, de acordo com o artigo 18º,
nº 2, da Lei Fundamental, «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e
garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as
restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou
interesses constitucionalmente protegidos».
Mas é a própria Constituição que,
estabelecendo no artigo 243º a tutela administrativa sobre as autarquias locais
- isto é, a verificação do cumprimento da lei por parte dos órgãos autárquicos
(tutela de legalidade) -, pressupõe a sujeição destes a determinados princípios
e regras jurídicas, quando no exercício das suas funções.
O artigo 4º da Lei nº 29/87 desenvolve,
nas suas diversas alíneas, os deveres que neste âmbito recaem sobre os eleitos
locais em matéria de prossecução do interesse público, nada havendo a
censurar-lhe, do ponto de vista das limitações impostas pelo artigo 18º, nº 2,
da Constituição. Com tais deveres visa-se, conforme já foi referido, assegurar
que, na sua actuação, os eleitos locais não se tornem objecto de suspeitas sobre
a respectiva isenção e dedicação ao interesse público. A limitação que a lei
estabelece aqui à sua actuação contém-se, pois, dentro dos parâmetros de
necessidade previstos nessa disposição constitucional.
E, por outro lado, tais deveres, em si
mesmos considerados, em nada restringem o direito de acesso dos eleitos locais,
em condições de igualdade e liberdade, aos cargos públicos respectivos, pelo que
aquela disposição também não viola o artigo 50º, nº 1, da Constituição.
8. Igualmente em nada eram infringidos
tais comandos constitucionais pelos artigos 70º, nº 1, alínea d), e 81º, nº 2,
do Decreto-Lei nº 100/84 (normas estas entretanto revogadas pelo artigo 17º da
Lei nº 87/89).
No que se refere aos deveres impostos ao
eleito local por aquele artigo 81º, nº 2, e de cuja infracção resultava a perda
de mandato, cabe notar que a tais deveres se aplica inteiramente o raciocínio
já exposto para o artigo 4º da Lei nº 29/87. As limitações que a lei ali impunha
à actuação do titular do órgão em causa também se continham nos parâmetros de
necessidade previstos no artigo 18º, nº 2, da Constituição. E tais limitações
também em nada violavam o direito de acesso aos cargos públicos correspondentes,
não violando, pois o artigo 50º, nº 1, da Constituição.
9. E quanto à perda de mandato prevista
no artigo 70º, nº 1, alínea d), do Decreto-Lei nº 100/84, como consequência da
infracção ao disposto no artigo 81º, nº 2, do mesmo diploma, também não se
verificava aí qualquer violação das apontadas normas constitucionais.
O direito de acesso a cargos públicos
proíbe, desde logo, discriminações entre os cidadãos que reúnam as condições
necessárias para o exercício de certos cargos. Tal direito pode, contudo,
sofrer restrições nos casos expressamente previstos na Constituição (artigo
18º, nº 2, da C.R.P.).
E, efectivamente, a Lei Fundamental
permite a perda do mandato dos eleitos locais ao permitir expressamente a
própria dissolução dos órgãos autárquicos resultantes de eleição directa. Quanto
a isto, dispõe o artigo 243º, nº 3, na redacção introduzida pela revisão
constitucional de 1982 (vigente à data da aprovação do Decreto-Lei nº 100/84):
A dissolução de órgãos autárquicos resultantes de eleição directa
só pode ter por causa acções ou omissões ilegais graves.
Ao estabelecer a sanção de perda de
mandato para o membro de órgão das autarquias locais que desrespeite os deveres
que lhe são especialmente impostos em matéria de prossecução do interesse
público, o legislador vem, também aqui, defender a isenção e o desinteresse
pessoal que devem caracterizar a actuação dos eleitos locais, quando no
exercício das suas funções, e portanto a confiança pública de que estes devem
desfrutar.
Assim, a gravidade que é legalmente
atribuída às infracções em causa (ainda que, por um lado, não tenham natureza
penal, e que, por outro lado, não justifiquem a dissolução do órgão autárquico),
atendendo à necessidade de preservar essa confiança pública, impõe que se
considere adequada a medida de perda de mandato do eleito, sanção que não parece
irrazoável nem desproporcionada.
Portanto, a norma que prevê tal sanção,
não viola o direito de acesso aos cargos públicos, consagrado no artigo 50º,
nº 1, da Constituição.
10. Na sequência da revisão
constitucional de 1989, a Lei nº 87/89 estabeleceu o novo regime jurídico da
tutela administrativa das autarquias locais e das associações de municípios,
tendo revogado, no seu artigo 17º, o artigo 70º e o artigo 81º, nº 2, do
Decreto-Lei nº 100/84, acima transcritos. Conforme estabelecido nesta lei, a
declaração de perda de mandato, por ilegalidade grave ou prática continuada de
irregularidades cabe agora aos tribunais administrativos de círculo (artigo
10º, nº 1); as acções respectivas podem ser propostas a todo o tempo, mas o
Ministério Público tem o dever de as propor no prazo máximo de dez dias depois
de serem conhecidos os factos que lhes servem de fundamento.
O artigo 9º, nº 3, desta Lei, dispõe
justamente sobre a perda de mandato dos eleitos autárquicos relativamente aos
quais se venha a verificar (por inspecção, inquérito ou sindicância) a prática,
por acção ou omissão, de ilegalidade grave, ou a prática continuada de
irregularidades, em mandato autárquico imediatamente anterior.
Segundo o recorrente, esta norma viola a
Constituição a dois níveis:
(a) por um lado, e por falta de
qualificação subjectiva dos factos que fundamentam a perda de mandato, viola os
artigos 18º, nº 2, e 50º, nº 1, da Constituição;
(b) por outro lado, e por permitir a
perda de mandato com fundamento em factos anteriores à sua entrada em vigor,
viola os artigos 18º, nº 3, e 29º, nº 1, da Constituição.
Quanto ao primeiro fundamento invocado
pelo recorrente, cabe reafirmar a doutrina já adoptada por este Tribunal a
propósito da norma do artigo 70º, nº 1, alínea e), do Decreto-Lei nº 100/84,
no Acórdão nº 330/94, Diário da República, II Série, de 30 de Agosto de 1994.
Tal como ali se afirmou em relação àquela norma, também aqui a declaração de
perda de mandato com base no disposto no artº 9º, nº 3, da Lei nº 87/89 não se
basta com um mero juízo objectivo sobre a ocorrência de uma 'ilegalidade grave'
ou uma 'prática continuada de irregularidades', antes pressupondo,
necessariamente, um juízo autónomo tendente a avaliar, em cada situação
concreta, se as ilegalidades ou irregularidades verificadas em inspecção,
inquérito ou sindicância são de natureza a justificar uma tal decisão e, além do
mais, porque se trata da aplicação de uma sanção, se a actuação do membro eleito
do órgão autárquico foi culposa. É o concurso deste juízo autónomo destinado a
possibilitar a avaliação do grau de culpa do membro do órgão autárquico que
legitima a afirmação de que a sanção da perda de mandato não é excessiva e
desproporcionada.
Mas terá esta norma do artigo 9º, nº 3,
da Lei nº 87/89 sido interpretada, no caso vertente, com respeito deste
parâmetro da necessária apreciação da culpa do recorrente?
O acórdão recorrido, ao confirmar a
sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra, adopta o sentido com
que tal norma aí foi aplicada. E essa sentença, embora não examine
detalhadamente esta questão, contém elementos que permitem inferir, sem margem
para dúvidas, a interpretação que o tribunal deu àquela norma.
Nomeadamente, têm-se ali em conta as
circunstâncias que permitiam apreciar essa culpa: no ponto 7.4, considerou--se
que não se mostrava que a intenção do recorrente tivesse sido a de evitar um
prejuízo para a autarquia, e bem assim que o réu poderia ter evitado a prática
dos actos que lhe foram imputados, delegando a competência para os mesmos
noutro vereador da Câmara; e concluiu-se que «não se constata qualquer
relevância nos referidos factos que justifiquem a conduta do R., de modo a poder
ser considerada isenta e não determinante da perda de mandato».
Assim, embora não tivesse indicado
expressamente que aplicava a norma em causa tendo por referência a necessidade
de apreciação da culpa, dúvida não há de que o tribunal teve em conta este
elemento. Não pode, pois, dizer-se que aquela norma foi aplicada com um
sentido inconstitucional no que se refere a este aspecto, quer pelo tribunal
de primeira instância, quer pelo Supremo Tribunal Administrativo.
11. Mas terá tal norma sofrido uma
aplicação retroactiva, tendo sido aplicada a factos anteriores à sua entrada
em vigor, e resultará daí uma violação do artigo 29º, nº 1, ou do artigo 18º, nº
3, da Constituição ?
O Supremo Tribunal Administrativo
examinou esta questão, e concluiu negativamente: segundo aquele tribunal, não
houve aplicação retroactiva da lei, nada obstando «a que na aplicação desta se
tenham em conta situações de irregularidades praticadas em mandatos anteriores,
sendo certo que não é essa lei que define quais sejam as irregularidades. No
caso dos autos, tal lei foi aplicada aos efeitos dos actos anteriores, mas só
posteriormente conhecidos em inquérito legalmente ordenado».
Portanto, o S.T.A. considerou que os
factos em causa já constituíam irregularidades segundo o disposto em legislação
vigente ao tempo da sua prática, ou seja, no já citado artigo 4º, nº 2, alíneas
c), d) e e) da Lei nº 29/87. Assim, aliás, havia também decidido a primeira
instância: efectivamente, o recorrente exerceu as funções de Presidente da
Câmara substituto em dois períodos diferentes, a partir de 26 de Setembro de
1987, sendo certo que tal lei tem data de 30 de Junho.
E tais factos já eram considerados
fundamento de perda de mandato no artigo 70º, nº 1, alínea e), do Decreto-Lei nº
100/84.
É que, como observa a este respeito o
Ministério Público, «quanto à caracterização do tipo de acções ou omissões
susceptíveis de constituir causa de perda de mandato, não há uma diferença
juridicamente relevante entre a Lei nº 87/89 e o Decreto-Lei nº 100/84: este,
no artigo 70º, nº 1, alínea e), fala em ilegalidade grave e em prática delituosa
continuada, aquela, no artigo 9º, nºs 1, alínea c). e 3, refere-se a
ilegalidade grave e a prática continuada de irregularidades; a preferência por
irregularidades relativamente a delitos terá ficado a dever-se ao facto de
aquele termo ser mais conforme com o direito administrativo, evitando a tentação
de atribuir ao termo delito uma conotação de natureza predominantemente penal
que, não obstante a sua polissemia, reconhecidamente contém, sobretudo quando
não teria sido essa a intenção do legislador do Decreto-Lei nº 100/84 - na
economia deste diploma a noção de delito está ligada à gestão autárquica e
equivale a faltas ou irregularidades praticadas no seu exercício».
Mas é preciso que nos entendamos quanto
ao mandato de que estava a lei a tratar naquele artigo 70º e que se perdia em
consequência daqueles factos.
Tratava-se ali somente da perda do
mandato exercido à data dos referidos factos, ou também da perda do novo mandato
para que o interessado viesse a ser seguidamente eleito ?
A este respeito, o Ministério Público
observa o seguinte, referindo-se aos factos em que o tribunal se baseou para
declarar a perda do mandato:
Estes, realmente, ocorreram antes da entrada em vigor da Lei nº
87/89: todavia, a relevância jurídica que o nº 3 do artigo 9º lhes atribui não
reveste carácter inovatório, não se podendo, por isso, falar em retroactividade
da restrição.
A perda de mandato enquanto afastamento definitivo do exercício de
um cargo é naturalmente posterior ao início de funções e ao acto que conduziu à
assunção do cargo. Pode, porém, acontecer que a perda do mandato, apesar de ser
posterior ao início do exercício do cargo, se filie na prática de factos que o
precederam.
No direito eleitoral português introduz-se essa possibilidade com o
Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março: enquanto o Decreto-lei nº 701-B/76
estabelecia no artigo 7º, alínea a), que perdiam o mandato «os que, após a
eleição, sejam colocados em situação que os torne inelegíveis», o Decreto-Lei nº
100/84 veio estabelecer no artigo 70º, nº 1, alínea a), que perdiam o mandato
os membros eleitos dos órgãos autárquicos que, «após a eleição, sejam colocados
em situação que os torne inelegíveis ou relativamente aos quais se tornem
conhecidos elementos supervenientes e reveladores de uma situação de
inelegibilidade já existente, mas não detectada, previamente à eleição».
O já citado Parecer nº 19/87 do Conselho Consultivo da
Procuradoria-Geral da República, ao explicitar esta sucessão de regimes, acentua
que, nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 70º do Decreto-Lei nº 100/84,
«perdem o mandato não só os membros eleitos dos órgãos autárquicos que, após a
eleição, sejam colocados em situação que os torne inelegíveis, mas também
aqueles em relação aos quais já se verificava, em momento prévio à eleição, uma
situação de inelegibilidade que, todavia, só posteriormente vem a ser
conhecida»; e acrescenta-se que, por razões de natureza teleológica e
sistemática, o disposto nesta alínea a) constituiria um princípio de ordem
geral neste domínio, aplicável também às situações previstas na alínea e);
donde, «a relevância sobre mandatos posteriores, determinando a sua perda, de
irregularidades praticadas em mandatos anteriores e só naqueles conhecidas
(verificadas)».
Assim, a Lei nº 87/89, a par da revogação expressa do artigo 70º do
Decreto-Lei nº 100/84, vem explicitar, no nº 3 do seu artigo 9º, um regime que,
por via interpretativa, já antes resultava da articulação das alíneas a) e e) do
nº 1 do revogado artigo 70º - o regime da relevância sobre mandatos posteriores
de irregularidades praticadas em mandatos anteriores e só naqueles conhecidas.
E fê-lo restringindo mesmo o campo de aplicação de tal regime: enquanto, de
acordo com as alíneas c) e d) do nº 1 do artigo 70º do Decreto-Lei nº 100/84,
rele-vavam em mandatos posteriores as irregularidades praticadas em qualquer
dos mandatos anteriores, de acordo com o nº 3 do artigo 9º da Lei nº 87/89,
relevam apenas as praticadas no mandato imediatamente anterior.
A norma do artigo 9º, nº 3, da Lei nº
87/89 não teria, pois natureza inovatória. A perda do mandato já estaria
prevista no artigo 70º, nº 1, alínea e), da Lei nº 100/84, vigente à data dos
factos. Portanto, seria descabido falar em retroactividade e em violação do
artigo 18º, nº 3, da Constituição. Será assim?
O citado parecer do Conselho Consultivo
da Procuradoria-Geral da República opera, pois, uma interpretação extensiva do
disposto na alínea e) do nº 1 do artigo 70º daquele Decreto-Lei nº 100/84. Essa
interpretação extensiva seria justificada por razões de natureza teleológica e
sistemática: o disposto na alínea a) constituiria um princípio de ordem geral
neste domínio, aplicável também às situações previstas na alínea e).
Segundo aquela alínea a), perdem o
mandato os membros eleitos dos órgãos autárquicos que, «após a eleição, sejam
colocados em situação que os torne inelegíveis ou relativamente aos quais se
tornem conhecidos elementos supervenientes reveladores de uma situação de
inelegibilidade já existente, mas não detectada, previamente à eleição».
O que se pretende com esta norma é que
uma situação de inelegibilidade, que já existia à data da eleição, mas que só
posteriormente vem a ser detectada, tenha por consequência a perda de um mandato
que - precisamente por causa dessa inelegibilidade - não deveria ter chegado a
ser conferido.
Com esta norma pretende-se, portanto,
corrigir a atribuição indevida desse mandato. Há uma relação de necessidade
lógica entre a inelegibilidade e a perda do mandato: se a pessoa em causa,
afinal, era inelegível, seria absurdo que mantivesse o mandato.
Mas se assim é, não se poderá extrair
daqui um princípio geral aplicável a uma situação completamente diferente, como
a que ora nos ocupa.
Na verdade, na presente situação, o
legislador não está confrontado com a necessidade lógica de fazer respeitar na
prática uma inelegibilidade que previamente definiu. Está, sim, confrontado com
a necessidade político-legislativa de adoptar medidas para garantir a confiança
pública de que devem gozar os autarcas eleitos.
E tanto assim, que podia conseguir essa
finalidade com outro tipo de medidas, sancionatórias ou não. Se era absurdo que
um membro inelegível, mas eleito, conservasse o mandato, já não é absurdo -
pode é ser mais ou menos inconveniente do ponto de vista político - que o
legislador admita que quem perdeu o mandato por virtude de um exercício
irregular do mesmo possa candidatar-se nas eleições seguintes. Assim, mesmo
entendendo-se - como se entendeu maioritariamente no Acórdão nº 25/92 (in Diário
da República, II Série, de 11 de Junho de 1992) - que o legislador é livre de
tomar aqui a opção que considere mais adequada, consoante a maior ou menor
gravidade da irregularidade cometida, não incorre ele em qualquer incoerência se
permitir a recandidatura.
Portanto, não há razão de natureza
teleológica e sistemática para aplicar à situação da alínea e) o princípio que
decorre da alínea a) do nº 1 do artigo em causa.
No fundo, a interpretação extensiva da
alínea e) cria um novo fundamento de perda de mandato, que a lei claramente não
havia estabelecido neste decreto-lei e que só mais tarde veio a ter assento
legal, no artigo 9º, nº 3, da Lei nº 87/89. Ainda que tais factos constituíssem
quer irregularidades continuadas, quer prática delituosa continuada, não havia
norma que, em consequência deles, estabelecesse a perda do mandato seguinte
para o qual o autor dessas irregularidades viesse a ser eleito.
Ao aplicar tal medida por factos
praticados antes da entrada em vigor desta lei, o S.T.A. procedeu a uma
interpretação do artigo 9º, nº 3, da Lei nº 87/89, segundo a qual a norma dele
constante seria retroactivamente aplicável.
Tal norma, assim interpretada e aplicada,
não viola propriamente o artigo 29º, nº 1, da Constituição, na medida em que a
sanção em causa não tem natureza criminal: de facto esta disposição é expressa
ao dizer que «ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei
anterior que declare punível a acção ou omissão [...]».
Mas, independentemente da questão de
saber se têm razão os autores que vêm aí o afloramento de um princípio geral de
proibição da retroactividade, aplicável a todo o direito sancionatório, e não só
ao direito criminal (v., a este propósito, J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., pág 208), dúvida não há
que pelo menos no que se refere às leis restritivas de direitos, liberdades e
garantias, a Constituição proíbe expressamente essa retroactividade.
Com efeito, diz-se no artigo 18º, nº 3,
da Constituição que «as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm
de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo, nem
diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos
constitucionais».
Há consequentemente aqui uma norma
restritiva de direitos, liberdades e garantias (o artigo 9º, nº 3, da Lei nº
87/89), de carácter retroactivo, em violação do preceituado no artigo 18º, nº
3, da Constituição.
Assim sendo, tal norma, enquanto aplicada
retroactivamente - e apenas nessa medida - há-de ser julgada inconstitucional.
III - DECISÃO
12. Assim e face ao exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucionais as normas
dos artigos 70º, nº 1, alínea d), e 81º, nº 2, do Decreto-Lei nº 100/84, de 29
de Março, e do artigo 4º, nº 2, alíneas c), d) e e), da Lei nº 29/87, de 30 de
Junho;
b) Julgar inconstitucional - por violação
do artigo 18º, nº 3, da Constituição - a norma do artigo 9º, nº 3, da Lei nº
87/89, de 9 de Setembro, enquanto interpretada no sentido de que a perda de
mandato aí prevista pode ser declarada com fundamento em factos praticados
antes da data da entrada em vigor dessa lei;
c) E, consequentemente, conceder, nesta
parte, provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada, tendo
em conta o anterior juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 20 de Dezembro de 1995
Luís Nunes de Almeida
Messias Bento
Guilherme da Fonseca
José de Sousa e Brito
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
José Manuel Cardoso da Costa