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Processo: n.º 220/94.
2ª Secção
Relator: Conselheiro Sousa e Brito.
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I — A causa
1 — Intentou a Santa Casa da Misericórdia do Porto, no 1.º Juízo do Tribunal
Cível da Comarca do Porto, contra A., acção declarativa, visando a resolução do
arrendamento para habitação incidente sobre um prédio urbano (Praça ..., n.os
..a ..., do Porto) propriedade da autora, sendo a posição de arrendatária
ocupada pela ré.
Apoiou tal pretensão, na verificação dos fundamentos de resolução desse
contrato, constantes das alíneas f), g) e i), do artigo 64.º, n.º 1, do Regime
do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de
Outubro (subarrendamento ilícito, cobrança de renda não permitida pelo
subarrendamento e falta de residência permanente).
Julgada a acção — que a ré contestou negando a verificação dos fundamentos
invocados — foi na 1.ª instância proferida sentença que entendendo verificado o
requisito do alínea i) do artigo 64.º, n.º 1, do RAU, decretou a resolução do
contrato, ordenando o consequente despejo do locado.
Inconformada apelou a ré para o Tribunal da Relação do Porto, fundando o
respectivo recurso, entre outros, no seguinte argumento:
Da insconstitucionalidade da alínea i) «in fine», do artigo 64.º do RAU.
Artigo 65.º da CRP
«Todos têm direito, para si e para a família, a uma habitação de dimensão
adequada, em condições de higiene e conforto e que se preserve a intimidade e a
privacidade familiar.»
É visível, de uma leitura imediata do dispositivo transcrito, que a Constituição
consagra o direito à habitação.
Não de desconhece que este direito é norma programática.
Porém, as limitações à exequibilidade prática do dispositivo constitucional são
de ordem administrativa e financeira, o que vale por dizer, que o legislador
ordinário não só não pode produzir leis contrárias à norma constitucional
atributiva do direito à habitação como nunca pode, em caso já de existência
desse direito, destruí-lo.
O legislador ordinário ao permitir a resolução do contrato de arrendamento, no
caso da norma em crise sem obrigar à sindicância da existência de casa própria
ou arrendada permite a destruição do direito à habitação e viola esse direito,
no caso, já existente, cometendo inconstitucionalidade material que se invoca.
Finalmente, qualquer norma ordinária haverá de cometer-se senão já à concreção
dos princípios e normas constitucionais, pelo menos, à não violação da
respectiva letra e escatologia que, aliás, está assinalada pelas regras gerais
do arrendamento urbano que devem preservar os princípios socialmente úteis que
tutelem a posição do arrendatário.
Através de Acórdão de 1 de Março de 1994, a Relação do Porto julgou improcedente
o recurso, confirmando a sentença recorrida, consignando quanto à invocada
inconstitucionalidade:
Alega a apelante na conclusão 5.ª a inconstitucionalidade material da alínea i)
«in fine» do citado artigo 64.º do RAU. Trata-se de questão já tantas vezes
suscitada e apreciada na Doutrina e na Jurisprudência que nos abstemos de a
reapreciar no seu aspecto jurídico. Apenas fazemos notar, e é o bastante, que a
faculdade concedida ao senhorio no preceito em causa não ofende nem a letra nem
o espírito do artigo 65.º da CRP. Na verdade, nunca porá em crise o direito de
habitação nele programaticamente assegurado aos cidadãos. No caso concreto o
que se trata é de prescindir desse direito em relação à casa que deixou de
habitar, por acto voluntário do próprio locatário.
Não procede, por conseguinte, esta 5.ª conclusão do apelante.
2 — Recorreu, então, a ré para este Tribunal, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, indicando como norma objecto o
«artigo 64.º, do RAU, in fine» e como norma constitucional violada o artigo 65.º
Apresentou (a ré apenas) alegações, rematando-as com as seguintes conclusões:
a) O disposto no artigo 64.º, alínea i), do RAU in fine, está ferido de
inconstitucionalidade material, pois, ao dispor da maneira que dispôs, sem mais
qualquer outra estatuição, viola o corpo do artigo 65.º da CRP;
b) A interpretação do direito e da lei que sobre o caso impendeu,
atento o probatório consequenciou resultados de insuportabilidade manifesta
para os direitos fundamentais, especificamente da habitação, que cumpre, como
se requer serem correctivamente alterados.
Corridos os pertinentes vistos, importa decidir.
II — Fundamentação
3 — Questiona a recorrente a conformidade constitucional da seguinte disposição
do RAU:
Artigo 64.º
(Casos de resolução pelo senhorio)
1 — O senhorio só pode resolver o contrato se o arrendatário:
............................................................
i) Conservar o prédio desabitado por mais de um ano ou, sendo o
prédio destinado a habitação, não tiver nele residência permanente, habite ou
não outra casa, própria ou alheia;
............................................................
Afrontaria esta, na óptica da recorrente, o «direito à habitação», consagrado no
artigo 65.º da Lei Fundamental, na medida em que permite «… a resolução do
contrato de arrendamento (…) sem obrigar à sindicância da existência de casa
própria ou arrendada» — referindo-se ao arrendatário a despejar — permitindo,
assim, «a destruição do direito à habitação» deste (citações extraídas das
alegações de fls. 59 e 59 v.).
Significa isto que, para a recorrente, a referida alínea i), do artigo 64.º, do
RAU, deveria, por imposição ao artigo 65.º, da Constituição, sofrer uma
recomposição da qual resultasse a possibilidade de despejo do arrendatário de um
prédio destinado a habitação, que nele não tivesse residência permanente, apenas
quando se apurasse que este dispunha de outra casa própria ou arrendada.
Suscita-se, assim, a inconstitucionalidade do trecho final da alínea i),
consubstanciada na seguinte passagem: «habite ou não outra casa, própria ou
alheia».
Para uma compreensão global da resolução fundada na falta de residência
permanente, prevista na disposição em apreço, importa ter presente ainda o teor
do seu n.º 2:
Artigo 64.º
1 — ............................................................
2 — Não tem aplicação o disposto na alínea i) do número anterior:
a) Em caso de força maior ou de doença;
b) Se o arrendatário se ausentar por tempo não superior a dois
anos, em cumprimento de deveres militares, ou no exercício de outras funções
públicas ou de serviço particular por conta de outrem, e bem assim, sem
dependência de prazo, se a ausência resultar de comissão de serviço público,
civil ou militar, por tempo determinado;
c) Se permanecerem no prédio o cônjuge ou parentes em linha recta
do arrendatário ou outros familiares dele, desde que, neste último caso, com ele
convivessem há mais de um ano.
A «residência permanente», verdadeiro conceito-chave da norma em causa, é
consensualmente definida como «a casa em que o arrendatário tem o centro ou sede
da sua vida familiar e social e da sua economia doméstica; a casa em que o
arrendatário, estável ou habitualmente dorme, toma as suas refeições, convive e
recolhe a sua correspondência, o local em que tem instalada e organizada a sua
vida familiar e a sua economia doméstica — o seu lar, que constitui o centro ou
sede dessa organização» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Março de
1985, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 345, p. 372).
Consagra o regime emergente da questionada alínea i) a solução, já tradicional
entre nós, de fazer cessar a protecção vinculística do arrendamento quando não
esteja — neste caso quando deixe de estar — em causa a «residência permanente»
do arrendatário, a realidade relativamente à qual essa protecção vinculística
colhe justificação [v. quanto ao regime anterior ao RAU (artigo 1093.º, n.º 1,
alínea i), do Código Civil e artigo 5.º, da Lei n.º 1662, de 2 de Setembro de
1924), Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. ii, 3.ª ed.,
Coimbra, 1986, pp. 549-550, e J. Pinto Loureiro, Manual do Inquilinato, Vol. i,
Coimbra, 1941, pp. 290-291].
Como a propósito refere Pereira Coelho: «compreende-se que a lei permita o
despejo, pois não seria justo (sobretudo nas actuais condições do país em que a
carência de habitações reveste aspectos dramáticos) que o inquilino beneficiasse
do especial regime de protecção do arrendamento para habitação relativamente à
casa em que não tem residência permanente e só utiliza, porventura, como
residência secundária. Aquele especial regime de protecção não foi feito, de
toda a evidência, para esses casos». (Direito Civil, Arrendamento, Coimbra,
1980, pp. 227-228).
4 — Tem-se apontado ao direito à habitação (v. a caracterização deste na
jurisprudência deste Tribunal, através dos Acórdãos n.os 101/92, 130/92 e
131/92, respectivamente nos Diários da República, II Série, de 18 de Agosto de
1992 e 24 de Julho de 1992), tal como a outros direitos económicos, sociais e
culturais, referidos no texto constitucional, uma dupla vertente: uma,
essencialmente dirigida ao Estado, tem que ver com a exigência de políticas
públicas de promoção do acesso à habitação (construção de habitações sociais,
apoio à construção, política de crédito facilitando o acesso à habitação, etc.);
a outra das vertentes, embora não essencialmente dirigida ao Estado, exigiria
deste uma política legislativa virada para a concretização daquilo que os
constitucionalistas, Vital Moreira e Gomes Canotilho, chamam «o direito de não
ser arbitrariamente privado da habitação ou de não ser impedido de conseguir
uma» (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p.
344).
A este último aspecto se associa, usualmente, o chamado vinculismo arrendatício
com a multiplicidade de providências de protecção do arrendatário e de
conservação no tempo do arrendamento que o caracterizam. Pese embora se discuta
cada vez mais se o fenómeno vinculístico facilitou ou dificultou globalmente o
acesso à habitação, enfim, se foi ou não, uma opção legislativa economicamente
eficaz (v. tal discussão em J. Pinto Furtado, «Valor e Eficiência do Direito à
Habitação à Luz da Análise Económica do Direito», em O Direito, 1992, iv, pp.
525 e segs.; e, do mesmo autor, quanto à história do «regime vinculístico»,
Curso de Direito dos Arrendamentos Vinculísticos, Coimbra, 1984, pp. 131 e
segs.).
É um apelo ao exacerbar da protecção ao arrendatário, entendida como decorrência
do artigo 65.º da Lei Fundamental — e isto mesmo quando já não está em causa a
defesa da sua «residência permanente» — que a recorrente funda a sua alegação de
inconstitucionalidade.
Importa ter presente que a adopção do ponto de vista da recorrente [ou seja, o
de que o despejo previsto na alínea i) do n.º 1 do artigo 64.º do RAU exigiria a
demonstração de que, além da falta de residência permanente no locado, tem o
arrendatário outra casa], a adopção de tal ponto de vista, diziamos, implicaria
o carregar do senhorio com o ónus da prova desse facto, que sendo-lhe totalmente
exterior é de muito problemática demonstração, consistente em ter o arrendatário
garantido o seu «direito à habitação» noutro local, não obstante — sublinhe-se
de novo — se saber, com a demonstração de falta de residência permanente, que
para garantia desse direito não necessita do locado objecto da acção de despejo.
Traduziria tal opção uma exigência desproporcionada e completamente arbitrária,
porque despida de sentido, nomeadamente face a valores constitucionalmente
tutelados. Far-se-ia perdurar a protecção vinculística do arrendamento para
além do seu fundamento, ou melhor, mesmo após se apurar a cessação do seu
fundamento, que é a protecção do «direito à habitação» de alguém realizado
através da sua «residência permanente» num determinado sítio.
A solução resultante da citada disposição do RAU, no específico segmento
normativo questionado, justifica-se dentro de um critério de justiça material e
de equilíbrio entre as posições do locatário, tanto mais que o legislador no n.º
2, da disposição introduz importantes elementos de segurança e garantia do
arrendatário.
Há, pois, que concluir não poder a norma em causa ser considerada como
constitucionalmente ilegítima atribua-se o significado que se atribuir ao
«direito à habitação», consagrado no artigo 65.º do texto constitucional.
III — Decisão
5 — Pelo exposto, desatendendo-se a questão de inconstitucionalidade suscitada,
nega-se provimento ao recurso, confirmando-se o Acórdão recorrido no que ao
julgamento de constitucionalidade respeita.
Lisboa, 18 de Outubro de 1995. — José de Sousa e Brito — Messias Bento —
Guilherme da Fonseca — Bravo Serra — Fernando Alves Correia — Luís Nunes de
Almeida.