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Processo nº 725/92
1ª Secção
Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1.- A., com sede em Lisboa, e outros, recorreram para o
Supremo Tribunal Administrativo pedindo a declaração de nulidade do despacho do
Secretário de Estado do Tesouro, nº 939/91-SET, de 19 de Julho, publicado no
Diário da República, II Série, de 1 de Agosto de 1991, que 'homologou
parcialmente' a decisão da comissão arbitral constituída nos termos do
Decreto-Lei nº 51/86, de 14 de Março, relativamente à empresa nacionalizada B.,
de cujo capital social detinham os recorrentes percentagens diversas.
Nas respectivas alegações suscitaram estes a
questão de inconstitucionalidade do artigo 16º, nº 6, da Lei nº 80/77, de 26 de
Outubro, na redacção do artigo único do Decreto-Lei nº 343/80, de 2 de Setembro,
e do artigo 24º do Decreto-Lei nº 51/86, de 14 de Março, os quais, em sua tese,
os artigos 114º, 205º e 208º, nº 2, da Constituição da República.
2.- O Supremo Tribunal Administrativo (2ª Subsecção da
1ª Secção), por acórdão de 20 de Outubro de 1992, recusou aplicar aquelas
normas, com fundamento em violação do disposto nos artigos 114º, nº 1, 205º, nº
1, e 208º, nº 2, da Constituição, e, em consequência, concedeu provimento ao
recurso, declarando nulo o acto impugnado.
Recorreram deste acórdão, ao abrigo do disposto no
artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o Ministério
Público e o Secretário de Estado do Tesouro.
3. Nas alegações oportunamente apresentadas, o Senhor
Procurador-Geral Adjunto concluiu do seguinte modo:
'1º- A função jurisdicional traduz-se numa actividade de
heterocomposição de conflitos de interesses, realizada por um órgão neutro,
independentemente e imparcial relativamente aos interessados que solicitam tal
composição, a efectivar através da estrita aplicação do Direito (ou da equidade,
quando a lei o permite) aos casos concretos.
2º- Embora normalmente a função administrativa envolva a
prossecução activa de interesses públicos diversos do da realização do Direito
e da Justiça, pode a lei atribuir à Administração um poder de autocomposição dos
conflitos de interesses subjacentes às relações jurídico-administrativas, como
expressão do privilégio da execução prévia.
3º- Não representa usurpação da função jurisdicional a
possibilidade legalmente conferida aos órgãos da Administração de tomarem
unilateral e autoritariamente decisões vinculativas para os particulares,
dirimindo liminarmente conflitos de interesses ou aplicando sanções em áreas
regidas pelo Direito Administrativo, mesmo quando as decisões da Administração
envolvam a aplicação de critérios estritamente jurídicos.
4º- A questão do arbitramento e liquidação das indemnizações
devidas por nacionalizações situa-se plenamente no campo do Direito público,
havendo, consequentemente, interesse público autónomo e relevante na fixação da
contrapartida devida pela apropriação colectiva de meios de produção, ditada por
razões de natureza político-económica.
5º- Regendo-se as relações emergentes de nacionalizações
inteiramente pelos princípios do Direito público, nada impede que sobre elas
possa recair um acto administrativo definitivo e executório, como expressão do
atrás aludido poder autotutelar da Administração.
6º- As comissões arbitrais, na versão decorrente do estatuído
nos Decretos-Leis nºs. 343/80, de 2 de Setembro e 51/86, de 14 de Março, não
podem ser qualificadas como tribunais arbitrais, já que a lei que as institui e
regulamenta não confere força vinculativa próprias às decisões que proferem
sobre a liquidação das indemnizações devidas por nacionalizações.
7º- Exercem, pelo contrário, tais comissões uma função de
arbitragem no âmbito do procedimento administrativo 'gracioso', que culmina na
prática de um acto administrativo definitivo e executório que, controlando a
regularidade e legalidade da arbitragem efectuada, confere força vinculativa à
decisão dos árbitros.
8º- Não sendo legalmente as comissões arbitrais órgãos
jurisdicionais, não representa qualquer intromissão constitucionalmente
ilegítima da Administração no exercício da função jurisdicional a necessidade
legal de ser homologada por acto administrativo definitivo e executório a
decisão proferida pelos árbitros.
9º- Não ocorre, pois, qualquer violação do disposto nos
artigos 114º, 205º, nº 1, e 208º, nº 2, da Constituição, pelo que deve, em
consequência, conceder-se provimento ao presente recurso, determinando-se a
reforma da decisão recorrida, na parte impugnada.'
O Secretário de Estado do Tesouro, por sua vez,
concluiu assim:
'O nº 6 do artigo 16º da Lei nº 80/77, de 26 de Outubro, com a
redacção que lhe foi conferida pelo Dec.-Lei nº 343/80, de 2 de Setembro e o
artigo 24º do Dec.-Lei nº 51/86, de 14 de Março, não estão feridos de
inconstitucionalidade porque a fixação da indemnização inclui-se ainda no
exercício da função administrativa do Estado, que realiza, por esta forma, um
dos interesses públicos ligados ao acto de nacionalização - garantir a paz
social pela salvaguarda do direito fundamental do cidadão à imediata atribuição
de um sucedâneo, quando despojado, legitimamente e no interesse público, do seu
direito de propriedade.'
Finalmente, concluiram os recorridos:
'1ª- A função jurisdicional traduz-se numa actividade de
composição de conflitos de interesses, em obediência a critérios jurídicos,
sendo tal actividade elevada à dimensão do interesse público nela prosseguido,
com exclusão de qualquer outro (cfr. texto, nº 2);
2ª-Só na função jurisdicional a composição de conflitos de
interesses, segundo critérios jurídicos e visando a obtenção da paz jurídica, é
um fim em si mesmo e, por isso, só aí se justifica a construção de um processo
heterocompostivo, com as inerentes garantias de neutralidade, independência e
imparcialidade (cfr. texto, nº 2);
3ª- A fixação do valor das indemnizações devidas pelas
nacionalizações, consistindo numa actividade de composição de conflitos de
interesses entre a Administração e o particular indemnizando, não se destina a
prosseguir qualquer interesse público diferente da paz jurídica decorrente da
resolução dessa questão de direito, pelo que apenas pode caber na função
jurisdicional (cfr. texto, nºs. 2 e 4);
4ª- A fixação administrativa do valor das indemnizações não
prossegue sequer o interesse público subjacente ao cato da nacionalização, visto
que:
a) aquele interesse público é claramente
independente a atribuição indemnização, como o demonstra o facto de já terem
decorrido 19 anos sobre o acto da nacionalização, sem que a consequente
indemnização se encontre satisfeita, e como o demonstra ainda a extinção do
mesmo interesse, prosseguido nas nacionalizações, pelo facto das
reprivatizações que se encontram em curso.
b) a fixação administrativa das indemnizações
não levante qualquer questão relacionada com a garantia constitucional de
acesso aos tribunais ou de recurso contencioso, estando antes em causa o
problema da delimitação da função jurisdicional e da função administrativa e o
princípio da reserva do juiz (cfr. texto, nº 3);
5ª- A lei nunca comete à Administração a resolução de uma
questão jurídica sem nela imiscuir outro interesse administrativo (cfr. texto,
nº 4);
6ª- Em nenhum dos casos apontados como pelo recorrente,
exemplos de actos de realização concreta do Direito por parte das autoridades
administrativas, a intervenção da Administração se faz sobre uma relação
jurídica pré-constituída e controvertida; pelo contrário, se a Administração
puder decidir unilateralmente sobre o valor da indemnização correspondente a
uma nacionalização, o seu acto interviria no âmbito de uma relação jurídica
pré-constituída e parcialmente controvertida, com o único objectivo de impôr
autoritariamente uma certa definição de conteúdo dessa relação (cfr. texto, nº
4);
7ª- No ponto de vista da jurisdicionalização não existe
motivo algum para tratar de modo diferente o arbitramento da indemnização devida
ao expropriado e da indemnização devida ao nacionalizado - as diferenças entre
estes institutos permitirão ao Estado influir no regime das indemnizações
devidas pelas nacionalizações através de actos normativos, mas nada justifica
que, para além disso, o Governo prolongue a sua intervenção até aos actos
individuais de fixação da indemnização (cfr. texto, nº 5);
8ª- Não é a exigência de homologação ministerial das decisões
das comissões arbitrais, prevista pelo artº 16º, nº 6, da Lei nº 80/77, na
versão do D.L. 343/80, que retira natureza jurisdicional a essas comissões, pois
o que está em causa é precisamente o juízo de inconstitucionalidade dessa
inovação legislativa, já que, pela sua natureza, as decisões arbitrais, dadas as
outras vertentes da sua disciplina legal e a missão que lhes é cometida, se
revelam como actos materialmente jurisdicionais (cfr. texto, nºs. 7, 8 e 9);
9ª- O próprio Tribunal Constitucional, respondendo à questão
de saber se determinado órgão revestiria natureza jurisdicional, afirmou já que
o que importa é que, no caso, os árbitros estejam investidos em funções
jurisdicionais e que a missão que lhes é atribuída seja jurisdicional (cfr.
texto, nº 10);
10ª- O juízo da inconstitucionalidade do acto de fixação
unilateral, pela Administração, das indemnizações resultantes das
nacionalizações e do acto de homologação ministerial não implica a declaração da
inconstitucionalidade de todo o art. 16º da Lei nº 80/77, na versão do D.L. nº
343/80 (cfr. texto, nºs. 11 e 12);
11ª- Não é legítimo retirar argumentos contra a natureza
jurisdicional das comissões arbitrais e da função por elas desempenhada, a
partir do regime de recurso das respectivas decisões (cfr. texto, nº 12);
12ª- Os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 39/88, 317/88
e 280/89 não têm qualquer relevo substancial para o caso dos autos pois não se
pronunciam sobre a questão da inconstitucionalidade da fixação das indemnizações
devidas pelas nacionalizações à luz do princípio da reserva da jurisdição aos
Tribunais.
13ª- Do referido Acórdão nº 280/89 pode mesmo extrair-se um
argumento favorável à tese da inconstitucionalidade do nº 6 do art. 16º da Lei
nº 80/77 e do art. 24º do D.L. nº 51/86, à luz de princípio da reserva do juiz
(cfr. texto, nº 13);
14ª- Por tudo o que fica exposto pode seguramente concluir-se
que a intervenção unilateral da Administração na fixação das indemnizações
devidas pelas nacionalizações, através da exigência de homologação ministerial
das decisões das Comissões Arbitrais constituídas ao abrigo da Lei nº 80/77,
viola os princípios da separação de poderes entre órgãos de soberania, da
reserva de jurisdição aos Tribunais, e da obrigatoriedade e prevalência das
decisões dos Tribunais, consagrados nos artºs. 114º, nº 1, 205º, nº 1, e 208º,
nº 2, da Constituição, pelo que o artº. 16º, nº 6, da Lei nº 80/77 e o artº 24º
do D.L. nº 51/86 são inconstitucionais por violação das referidas normas da
Constituição.'
Correram-se os vistos legais.
4.- Está em causa a questão da constitucionalidade
material das normas supra mencionadas.
Sobre ela se pronunciou este Tribunal, em plenário,
se bem que por maioria, ao abrigo do disposto nos artigos 79º‑A, nº 1, da Lei nº
28/82, de modo a estabelecer doutrina orientadora para a sua jurisprudência.
Trata-se do Acórdão nº 226/95, de 9 de Maio de 1995
- ainda inédito, de que foi junta cópia aos autos - para cuja fundamentação
se remete, em razão da qual se decide:
5.
a) Não julgar inconstitucionais as normas
constantes do artigo 16º, nº 6, da Lei nº 80/77, de 26 de Outubro, na redacção
do artigo único do Decreto-Lei nº 343/80, de 2 de Setembro, e do artigo 24º do
Decreto-Lei nº 51/86, de 14 de Março;
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso e ordenar
a reforma da decisão recorrida, em harmonia com o ora decidido em matéria de
constitucionalidade.
Lisboa, 28 de Setembro de 1995
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria da Assunção Esteves
Maria Fernanda Palma
Luís Nunes de Almeida