Imprimir acórdão
Proc. nº 396/94
1ª Secção
Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A., com sede na Avenida --------------, nº
--------------, ---------- veio instaurar processo especial de injunção, ao
abrigo do Decreto-Lei nº 404/93, de 10 de Dezembro, contra a B., com sede na Rua
----------, nºs ----------, ----------, pretendendo a obtenção de aposição de
fórmula executória relativamente à quantia de 126.800$00, valor de facturas
correspondentes a créditos da C., por aquela adquiridas no exercício da sua
actividade social, montante a que acresciam juros moratórios vencidos e
vincendos, nos termos da lei. Liquidou o pedido de condenação em 143.034$00.
Notificada por carta registada para deduzir
oposição à pretensão da requerente, nos termos do art. 4º daquele mesmo diploma
legal, veio a requerida apresentar resposta, em que se limitou a suscitar a
questão da inconstitucionalidade material e orgânica do Decreto-Lei nº 404/93,
por alegada violação dos arts. 20º e 205º da Constituição da República.
Sustentou que ocorria, no caso, violação do princípio constitucional do
contraditório, por preterição da formalidade de citação, invocando que o
procedimento legal impugnado não previa, nem mesmo a título subsidiário, que o
requerente fosse responsabilizado quando pretendesse dolosamente delapidar o
património de terceiros. Acrescia que a oposição do requerido ficava
enfraquecida, a partir do momento em que o juiz viesse a julgar a questão em
processo sumaríssimo, sem ter havido citação do requerido. Verificar-se-ia uma
retirada inconstitucional de competência do âmbito do poder judicial, com
preterição do disposto no art. 205º, nº 1, da Constituição. O poder de aposição
de fórmula executória por parte do secretário judicial traduzir-se-ia num acto
de concreta aplicação do direito, com violação da reserva do Juiz. A instauração
de acção executiva, sem regular e prévio processo de natureza declarativa,
traduzir-se-ia numa violação do acesso à Justiça, garantido pelo art. 20º da
Constituição. A possibilidade de se requerer o processo de injunção sem a
exigência pela lei de apresentação de um documento escrito assinado pelo
requerido violava o princípio da certeza e da segurança do Direito. O diploma
estaria, por último, afectado de inconstitucionalidade orgânica, visto dizer
respeito a direitos, liberdades e garantias.
Distribuído o processo nos termos do nº 2 do art.
6º do Decreto-Lei nº 404/93, veio o Sr. Juiz do 8º Juízo Cível do Porto a
condenar a sociedade requerida no pagamento dos créditos exigidos, por ter
considerado que improcediam as questões de inconstitucionalidade suscitadas.
Pode ler-se na referida sentença:
'Entende-se falecer razão à requerida, em matéria de desconformidade material do
processo de injunção, estabelecido pelo DL 404/93, de 10.12, a qualquer das
regras da CRP, designadamente às estabelecidas nos seus arts. 20º, 2, e 205º.
Assim e seguindo a ordem utilizada pela R., afigura-se não poder
atribuir-se à figura da citação o alcance que a R lhe empresta, de verdadeiro
corolário do aludido princípio de dignidade constitucional, ao direito de acesso
ao direito.
Sem dúvida que o Código de Processo Civil, no seu art. 228º, 1, a
define como 'acto pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra
ele determinada acção e se chama ao processo para se defender', fundamentalmente
nisto se distinguindo da notificação, empregue 'para, em quaisquer outros casos,
chamar alguém a juízo' (nº 2, id); todavia, a utilização pelo legislador de uma
fórmula diversa da citação do CPC (com a correspondente caracterização de
procedimentos) não é suficiente para que assim se possa ver ignorado o princípio
do contraditório, que nada custa ver consagrado através dos arts. 206º e 13º,
CRP.
Na verdade, parece evidente a intenção legislativa de garantir a
participação do devedor na formação do título executivo, ao obrigar a que a
pretensão do credor lhe seja dada a conhecer através de notificação, formalidade
destinada também a que se lhe comunique a significação da sua eventual inércia e
se estabeleça o termo inicial do prazo de oposição. Ou seja, a lei faz depender
a génese do título da sua legitimação, através da aceitação pelo devedor feita
por forma suficientemente segura, de que o direito do credor à prestação
concretamente indicada tem efectiva existência' (a fls. 50 e vº).
E, depois de negar na sentença que ocorresse, no
diploma impugnado, qualquer violação do princípio do contraditório, nomeadamente
quando a inacção do notificado abrisse a via à acção executiva - onde está
assegurada a oposição do executado, por embargos, nos termos gerais -
considerou-se não ter fundamento o argumento de que o Decreto-Lei subtrairia aos
tribunais a competência para administrar a justiça:
'[...] sem se esquecer que os interesses em causa se situam na área dos direitos
disponíveis, deve anotar-se que sempre permanece na mão de ambos os seus
destinatários, em igualdade, provocar o deferimento ao juiz da apreciação do
caso, quanto ao credor através da originária caracterização do litígio como
acção sumarissíma, quanto ao devedor directamente em sede de oposição à
injunção, ou mediatamente na fase de oposição à execução.
O presente processo parece, aliás, ser de alguma forma o
desmentido dos receios da R' (ibidem).
Mais à frente, pode ler-se na mesma sentença:
'Não parece impressionante, por outro lado, a circunstância de a verificação da
regularidade da notificação, verdadeiro controlo do cumprimento de regras que
directamente atinem à contraditoriedade, estar em primeira linha confiada ao
secretário judicial: e isto porque, como é óbvio, não se forma caso julgado
sobre o exequatur, ao qual o devedor sempre se poderá opor nos termos geralmente
consentidos ao executado no art. 815º, CPC.
Não pode, por isso, dizer-se, como repetidamente o insinua a R,
que quem decide a injunção é o secretário judicial ao apor a infeliz fórmula
'execute-se' (que, em bom rigor, não depende da apreciação seja do que for no
plano substantivo), ou ao apreciar a tempestividade da oposição: torna-se inútil
repetir o que antes se expendeu, em contrário de tal tese.
Finalmente, não se vê nem que o título executivo obtido em
processo de injunção não tenha 'prazo de validade', nem em que é que isso, a
acontecer, violaria o falado 'Princípio da Certeza e Segurança do direito', nem,
finalmente, onde terá assento tal princípio, sabido que não raramente o seu
triunfo representa um (conscientemente assumido pelo sistema) sacrifício da
justiça material, de que não pode passar de simples instrumento.
Por último e tendo presente a posição assumida atrás, rejeita-se
que a matéria tratada no questionado DL tenha reflexos directos sobre 'direitos,
liberdades e garantias' (que são apenas os definidos dos arts. 24º a 47º da
CRP). Por essa razão, afigura-se não pertencer ao núcleo da reserva legislativa
estabelecida no art. 168º, 1, b), id., e, por conseguinte, afastada a
inconstitucionalidade orgânica do diploma.
Em síntese;
improcede totalmente a questão prévia suscitada, por ser material e
organicamente conforme à CRP a disciplina da injunção estabelecida pelo DL
404/93, de 10.12'. (a fls. 51 dos autos)
Inconformada, interpôs a sociedade requerida
recurso de constitucionalidade, nos termos do art. 70º, nº 1, alínea b), de Lei
do Tribunal Constitucional.
O relator ordenou a notificação da recorrente
para esclarecer quais as normas que considerava inconstitucionais, nos termos do
art. 75º-A, nº 1, tendo esta vindo referir que considerava inconstitucionais os
arts. 1º a 7º do Decreto-Lei nº 404/93 (a fls. 60 dos autos).
Apresentaram alegações recorrente e recorrido.
Nas alegações, a recorrente formulou 18
conclusões. Transcrevem-se as que contêm os pontos centrais da respectiva
argumentação:
'A) O Decreto-Lei 404/93 institui no ordenamento jurídico português um novo
título executivo, para além dos previstos no Código de Processo Civil, a
injunção.
-------------------------------------------------
E) Caso o devedor não se oponha, ou desista dessa oposição, o secretário apõe
no requerimento a formula executória.
F) A aposição do exequatur é realizada de motu próprio pelo secretário judicial.
G) Tal acto ao conferir força executiva ao requerimento de injunção decide, em
1ª instância, da bondade da pretensão apresentado pelo credor.
H) Todavia o exequatur regulado no DL 404/93 é um mero acto administrativo, que
tem o efeito de tornar exequível e portanto certo e exigível um direito
patrimonial que o credor se arroga.
I) Assim sendo, retira-se do âmbito das atribuições do poder judicial uma das
funções que constitucionalmente lhe são consagradas no art. 205º nº 2 da C.R.P..
J) O que constitui violação do Princípio de Separação de Poderes e conduz à
inconstitucionalidade do citado diploma legal, pelo menos no que toca ao
disposto nos arts. 1º a 7º desse normativo.
L) Bem como ao retirar da esfera do poder judicial o poder-dever de dirimir
interesses privados juridicamente protegidos, o DL 404/93 viola os princípios do
Juiz Legal, de Audição, da igualdade processual das partes, e de conformação do
processo segundo os direitos fundamentais.
M) Por outro lado, a ligeireza com que o DL 404/93 encara as garantias de
defesa dos requeridos, nomeadamente consagrando a notificação destes por carta
registada com aviso de recepção, conjugada com a gravidade da sanção que está
imanente à falta de oposição - o exequatur - resulta numa grave violação dos
direitos fundamentais dos Cidadãos, nomeadamente do princípio do contraditório.
N) Permitindo-se assim, facilmente obter título executivo contra o requerido, e
consequentemente atacar o património deste.
O) Tudo o que constitui ofensa à dignidade da pessoa humana, ao direito ao bom
nome, maxime ao nome comercial, ao seu direito de audiência e as suas garantias
de defesa.
------------------------------------------------
R) Por último, e ofendendo o diploma legal citado direitos fundamentais, deverá
ser declarada a sua inconstitucionalidade orgânica, porquanto as matérias nele
reguladas constituem reserva relativa da Assembleia da República.
-----------------------------------------------'.
(a fls. 114 a 117 dos autos)
O recorrido, por seu turno, concluiu no sentido
de que o secretário judicial, ao apor o exequatur, não desenvolve qualquer
actividade jurisdicional, nem qualquer apreciação sobre o requerimento do credor
ou oposição do devedor, não formando tal exequatur caso julgado no processo
executivo, onde fica aberta a via da oposição por embargos de executado, nos
termos do art. 815º do Código de Processo Civil. Tão-pouco se mostravam violados
os princípios constitucionais do juiz legal, da audição e da igualdade
processual das partes, sendo certo que a notificação prevista nesse processo se
traduzia numa autêntica citação, para mais sendo requerida numa pessoa
colectiva. Não ocorreria, por isso, nem inconstitucionalidade material, nem
inconstitucionalidade orgânica, por não estar em causa a regulamentação de
direitos, liberdades e garantias (fls. 123 vº a 124 vº).
Foram corridos os vistos legais.
Cumpre conhecer do mérito do recurso, por não
haver obstáculo processual que o impeça.
II
4. Importará começar por delimitar o objecto do
presente recurso.
A recorrente indicou como normas objecto do
recurso os arts. 1º a 7º do Decreto-Lei nº 404/93, de 10 de Dezembro.
É fácil de ver, porém, que nem todas estas normas
foram aplicadas, nomeadamente a do art. 7º do diploma.
De facto, entende-se que constituem objecto do
recurso as seguintes normas do diploma em causa:
Art. 4º - Notificação da injunção
'Recebido o pedido, o secretário judicial do tribunal notifica o requerido, por
carta registada com aviso de recepção, remetendo cópia da pretensão e dos
documentos juntos, devendo indicar, de forma intelegível, o objecto do pedido e
demais elementos úteis à compreensão do mesmo, referindo, ainda, expressamente,
o último dia do prazo'.
Art. 6º Oposição do requerido
'1 - O requerido pode opor-se à pretensão no prazo de sete das a contar da
notificação.
2 - Sendo deduzida oposição [...], o secretário judicial do tribunal apresentará
os autos à distribuição, sendo conclusos ao juiz, o qual, se o estado do
processo o permitir, designará, desde logo, o dia para o julgamento,
observando-se a tramitação estabelecida para o processo sumaríssimo.'
Estas normas constituem, pois, o objecto do
presente recurso.
5. O Decreto-Lei nº 404/93, de 10 de Dezembro,
insere-se num movimento amplo da revisão de legislação processual civil
portuguesa, sendo qualificado pelo legislador como diploma de 'natureza
intercalar'. Segundo o respectivo preâmbulo, a criação da providência de
injunção 'constitui um significativo esforço de adequação dos trâmites
processuais às exigências da realidade social presente, sem quebra ou diminuição
da certeza e da segurança do direito, obedecendo, designadamente, aos princípios
de celeridade, simplificação, desburocratização e modernização, que hão-de
informar a nova legislação processual civil'.
Segundo a definição constante do art. 1º do
diploma, a injunção é 'a providência destinada a conferir força executiva ao
requerimento destinado a obter o cumprimento efectivo de obrigações pecuniárias
decorrentes de contrato cujo valor não exceda metade do valor da alçada do
tribunal de 1ª instância'.
De harmonia com os valores das alçadas fixadas
pelo art. 20º, nº 1 da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (Lei nº 38/87, de 23
de Dezembro), a alçada em matéria cível dos tribunais de primeira instância é de
500.000$00, pelo que o valor máximo do pedido do requerente da providência de
injunção é actualmente de 250.000$00.
O pedido de injunção deve ser apresentado na
secretaria do tribunal que seria competente para a acção declarativa com o mesmo
objecto (art. 2º, nº 1). No seu requerimento, deve o requerente 'expor os factos
que fundamentam a sua pretensão, juntar os documentos comprovativos, se os
houver, concluindo pelo pedido da prestação a efectuar, sendo aplicável, com as
necessárias adaptações, o disposto no artigo 793º do Código de Processo Civil'
(art. 3º).
Recebido o pedido na secretaria do tribunal
competente, o respectivo secretário judicial ordena a notificação do requerente,
por carta registada com aviso de recepção, 'remetendo cópia da pretensão e dos
documentos juntos, devendo indicar, de forma intelegível, o objecto do pedido e
demais elementos úteis à compreensão do mesmo, referindo, ainda, expressamente,
o último dia do prazo para a oposição' (art. 4º).
Se o requerido não deduzir oposição ou desistir
de tal oposição, o secretário judicial limita-se a apor uma fórmula executória
no requerimento de injunção ('Execute-se'), sendo o respectivo processo
distribuído como processo executivo comum para pagamento de quantia certa, na
forma sumária (art. 5º do diploma; arts. 45º, nºs 1 e 2, 46º, alínea d), e
465º, nº 2, do Código de Processo Civil, abreviadamente CPC).
Se o requerido se opuser à pretensão do
requerente - tendo para tal um prazo de sete dias a contar da notificação - ou
se se frustrar a notificação por via judicial, 'o secretário judicial
apresentará os autos à distribuição, sendo conclusões ao juiz, o qual, se o
estado do processo o permitir, designará, desde logo, o dia para julgamento,
observando-se a tramitação estabelecida para o processo sumaríssimo' (art. 6º,
nº 2).
O Decreto-Lei nº 404/93 dispõe no seu art. 7º que
a aposição da fórmula executória 'só poderá ser recusada quando o pedido não se
adeque às finalidades constantes do artigo 1º e nas situações em que à
secretaria, nos termos da lei do processo, é lícito não receber a petição,
cabendo da recusa reclamação para o juiz presidente do tribunal ou do respectivo
juízo cível' (art. 7º).
6. Descrito, assim, o núcleo essencial do
Decreto-Lei nº 404/93, importa referir que o legislador teve o cuidado de
afirmar no preâmbulo respectivo que não se pretendia conferir ao secretário
judicial poderes de natureza jurisdicional:
'A aposição da fórmula executória, não constituindo, de modo algum, um acto
jurisdicional, permite indubitavelmente ao devedor defender-se em futura acção
executiva, com a mesma amplitude com que o pode fazer no processo de declaração,
nos termos do disposto no artigo 815º do Código de Processo Civil.
Trata-se, pois, de uma fase de jurisdicionalizada e, portanto,
inevitavelmente mais célere, sem que, todavia, se mostrem diminuídas as
garantias das partes intervenientes no processo, ínsitas, aliás, no direito
constitucionalmente consagrado do acesso à justiça. O acautelamento de tais
garantias é, efectivamente, assegurado quer pela via da apresentação obrigatória
dos autos ao juiz quando se verifique oposição do devedor, quer pelo
reconhecimento do direito de reclamação no caso de recusa, por parte do
secretário judicial, da aposição da fórmula executória na injunção.'
7. A correcta interpretação do diploma mostra que
a providência criada se destina a conferir exequibilidade a pretensões que não
constam de documento que, segundo o direito vigente, disponha de força executiva
(cfr. art. 45º CPC).
Importará recordar que o direito processual civil
português admite tradicionalmente um amplo quadro de títulos executivos não
judiciais ou extrajudiciais - isto é, de títulos que permitem a imediata
instauração da acção executiva, sem ser necessário obter previamente uma
sentença condenatória contra o devedor, em processo de natureza declarativa -
tendo nos últimos anos sido significativamente aligeirados os requisitos de
natureza formal de alguns desses títulos. Em termos de direito comparado, o
direito português é extremamente liberal na concessão de exequibilidade a
títulos não judiciais.
Desde o Código de Processo Civil de 1939 que
podem servir de título executivo, além das sentenças de condenação, as
escrituras notariais, 'as letras, livranças, cheques, extractos de factura,
vales, facturas conferidas e quaisquer outros escritos particulares, assinados
pelo devedor, dos quais conste a obrigação de pagamento de quantias
determinadas', bem como os títulos a que, por disposição especial, for atribuída
força executiva' (art. 46º do CPC de 1939 e do CPC de 1961, ainda vigente).
Assim, os Decretos-Leis nºs 201/76, de 19 de
Março e 533/77, de 30 de Dezembro, diminuíram as exigências de reconhecimento
notarial das assinaturas dos subscritores de títulos executivos, tendo o
primeiro eliminado o reconhecimento presencial de assinaturas nos títulos
cambiários e o último diploma abolido o mero reconhecimento notarial por
semelhança relativamente aos subscritores dos títulos cartulares, quando o
montante constante da dívida não excedesse o valor da alçada da Relação, 'por a
experiência judiciária ter demonstrado que, em grande maioria, as acções
declarativas cuja causa de pedir se reconduz a uma obrigação cartular não são
contestadas, conduzindo, pelo efeito cominatório da revelia do réu, à chamada
condenação «de preceito»' (do respectivo preâmbulo). A 'credibilidade' do
instrumento de prova da obrigação de prestar que é o título cambiário serviu ao
legislador para abolir tais formalidades notariais, afirmando-se no mesmo
preâmbulo que o executado, subscritor desse título, citado para, embora em curto
prazo, cumprir a obrigação titulada ou nomear bens à penhora, sempre se poderia
defender por embargos, no mesmo prazo, 'com amplitude de meios semelhantes aos
da contestação no processo declarativo e, de qualquer modo, antes da apreensão
de bens'. Ainda segundo o legislador, o 'relativo gravame de uma inversão do
ónus da prova - na execução é ao devedor que incumbe provar que o direito de
exequente não existe, ao contrário do que sucede, em princípio, relativamente ao
réu, na acção declarativa - também não tem significado relevante, na medida em
que os títulos executivos cuja amplitude agora se acentua consubstanciam uma
obrigação pecuniária - e, como se sabe, o pagamento, em regra, não se presume'.
Por seu turno, o Decreto-Lei nº 242/85, de 9 de
Julho, - diploma que aprovou a chamada 'reforma intercalar' de 1985 - completou
o ciclo iniciado em 1976, abolindo a exigência de reconhecimento notarial de
assinatura do devedor em títulos cambiários, independentemente do valor destes,
dando nova redacção ao art. 51º do Código de Processo Civil (cfr. J. Lebre de
Freitas, A Acção Executiva, Coimbra, 1993, págs. 45 e segs.; Miguel Teixeira de
Sousa, A Exequibilidade da Pretensão, Lisboa, 1991, págs. 15 e segs.).
Nos trabalhos preparatórios da reforma do Código
de Processo Civil, tem sido proposta a atribuição de exequibilidade a todos os
documentos assinados pelos devedores que importem constituição ou reconhecimento
de obrigações pecuniárias (art. 619º, c), do Anteprojecto Antunes Varela; art.
46º do Projecto de Revisão do CPC de 1995).
Com o Decreto-Lei nº 404/93 visou-se, como se
viu, conferir exequibilidade a pretensões de natureza pecuniária de valor
reduzido, mesmo que não constassem de documento particular, desde que proviessem
de contrato celebrado entre requerente e requerido, através de um procedimento
levado a cabo pelo secretário judicial, baseado numa confissão presumida ou
ficta do alegado devedor.
8. A inovação do diploma de 1993 insere-se
tradicionalmente nas medidas legislativas destinadas a facilitar a cobrança
judicial de pequenas dívidas, preocupação que esteve na origem da criação do
processo sumaríssimo entre nós (através do Decreto de 29 de Maio de 1907
criou-se um processo especial para as acções de pequeno valor; o Decreto nº
21.287, de 26 de Maio de 1932, criou o desde então designado processo
sumaríssimo - cfr. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol
II, 3ª ed., Coimbra, reimpressão de 1980, pág. 285).
Em anos recentes, diferentes reformas processuais
em países europeus têm visado facilitar os modos de cobrança judicial de
pequenas dívidas, acompanhando as exigências das actividades económicas baseadas
na expansão muito acentuada das actividades de crédito ao consumo, a partir dos
anos sessenta do nosso século.
Assim, em 1988, em França foram aditados ao
Código de Processo Civil os arts. 847-1 e 847-2, artigos que regulam um processo
simplificado com intervenção do secretário judicial ('déclaration au greffe').
Quando o montante do pedido não exceda o limite de valor para a competência em
última instância do 'tribunal d'instance', o requerente pode formular o mesmo
através de uma declaração feita, entregue ou endereçada àquele funcionário
judicial, que a regista. Tal declaração 'deve indicar o nome, apelidos,
profissão e endereço das partes, ou, no caso das pessoas colectivas, a sua
denominação e sede. Contém o objecto do pedido e uma exposição sumária dos seus
fundamentos. A prescrição e os prazos para intentar a acção são interrompidos
pela declaração'. Tal como sucede no Decreto-Lei nº 404/93, a comunicação ao
requerido da declaração, depois de registada no tribunal, é feita por carta
registada com aviso de recepção. Mas diferentemente do diploma português, as
partes são convocadas para uma audiência (além da carta registada, é enviada
concomitantemente ao requerido uma carta não registada, podendo o requerente ser
notificado por cota à margem da declaração). A convocatória do requerido tem o
valor de citação, mencionando-se que, 'na falta da sua comparência, fica sujeito
a que contra ele seja proferida uma sentença, com base apenas nos elementos
fornecidos pelo seu adversário. Uma cópia da declaração é anexada à
convocatória' (art. 847º-2).
Também em Itália nas reformas do processo civil
de 1990 - 1991, - que começaram a vigorar em 1994 - foram atribuídas
competências ao juiz de paz, juiz que não integra a magistratura togada, para
conhecer das causas relativas a bens móveis de valor não superior a cinco
milhões de liras, nomeadamente quanto aos processos de injunção previstos nos
arts. 633º e seguintes do Código de Processo Civil (cfr. a nova redacção do
art. 7º deste diploma, introduzida pelo art. 17º da Lei nº 374, de 21 de
Novembro de 1991).
Nestas reformas, como na reforma portuguesa,
pretende-se facilitar as cobranças e diminuir, na medida do possível, a
intervenção do juiz togado para conhecer de causas em que, frequentemente, o
devedor não tem fundamentos válidos de defesa, visando apenas pagar o mais tarde
possível.
9. Bastará dizer que, em estudo recente sobre Os
Tribunais na Sociedade Portuguesa, elaborado por Boaventura Sousa Santos, Maria
Manuel Leitão Marques, Pedro Lopes Ferreira e João Pedroso, do Centro de Estudos
Sociais da Faculdade de Economia de Coimbra, - estudo em que se fez um
levantamento rigoroso da litigação nos tribunais judiciais portugueses ao longo
dos últimos anos - se apurou que, em 1992, 62% das acções declarativas findas
foram acções de dívidas, sendo o elemento 'peso relativo' das acções de dívida
'uma constante na litigação cível e uma sua característica estrutural. Este
peso tem-se vindo a acentuar ao longo da segunda metade do século XX por efeito
de factores exógenos (transformações económicas) e de factores endógenos
(alterações legislativas ou processuais): em 1942 as acções de dívida
representaram 38,5% das acções declarativas cíveis e em 1992 representavam, como
referimos, 62%' (Os Tribunais na Sociedade Portuguesa, apresentação pública em
20 de Fevereiro de 1995 dos principais resultados do projecto de investigação
sobre a administração da justiça em Portugal, pág. 14). Ainda segundo os
resultados referidos neste estudo, em 1992 61,6% do total das acções
declarativas findas tinham valor igual ou inferior a 250.000$00. Por causa desta
realidade, refere-se nesse estudo que o 'baixo valor das acções, combinado com o
facto de estas corresponderem basicamente a um só tipo de litígio (cobrança de
dívidas), é um poderoso factor de rotinização e de trivialização da justiça
portuguesa, colocando-a ao serviço da conflitualidade económica de pequena
dimensão' (Os Tribunais cit., pág. 17). Importará, ainda, notar que cerca de
três quartos das acções declarativas findas em 1992 terminaram antes do
julgamento, o que aponta para uma predominância da litigação 'de baixa
intensidade', a que acresce a circunstância de os titulares de interesses cuja
tutela judicial é prosseguida nessas acções declarativas serem', por regra e não
por excepção, entidades colectivas, basicamente as sociedades comerciais'
(bastará pensar nas instituições de crédito e seguradoras, a par das
instituições hospitalares públicas).
É neste quadro da realidade social portuguesa que
é elaborado o Decreto-Lei nº 404/93.
10. Na fase de elaboração do Decreto-Lei nº
404/93, foi ouvida a Ordem dos Advogados sobre a inovação projectada. No seu
parecer, esta associação pública manifestou receios de que o diploma pudesse vir
a sofrer de inconstitucionalidade material:
'O regime jurídico dado à injunção no projecto poderá levantar dúvidas graves
sobre a sua constitucionalidade material, certo como é que não faltará quem se
sinta tentado a qualificar como envolvendo actividade judicativa, algumas das
decisões que a providência virá a pedir aos secretários judiciais,
designadamente a verificação da regularidade da notificação, a verificação da
adequação do pedido às finalidades constantes do art. 1º, enfim, a aposição
mesma da fórmula executória (...)' (Da Providência Processual Designada
Injunção, in Boletim da Ordem dos Advogados, nº 1/94, pág. 14).
Em nota, o referido parecer chamava a atenção
para o acórdão nº 182/90 do Tribunal Constitucional, onde se julgara
inconstitucional uma norma do Mapa I anexo ao Decreto-Lei nº 376/87, de 11 de
Dezembro, que atribuía competências jurisdicionais aos secretários judiciais, em
matéria de custas, nomeadamente reclamações sobre contas (acórdão publicado in
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16º vol., págs. 365 e seguintes).
A serem ultrapassadas as dúvidas de
constitucionalidade, a Ordem dos Advogados manifestava concordância com os
objectivos de desburocratização visados pelo projecto de diploma em apreciação,
formulando objecções na especialidade a algumas das suas normas. Em todo o caso,
condicionava uma apreciação favorável, sob o ponto de vista da
constitucionalidade do diploma, à exigência de que o legislador tornasse
inequívoco 'que a aposição da fórmula executória pelo secretário judicial não
faz precludir ao devedor o direito de se defender, na futura execução e por
embargos , com a mesma amplitude com que o pode fazer no processo de declaração,
nos termos do disposto no art. 815º do Cód. Proc. Civil' (publicação cit., pág.
16).
11. Depois da entrada em vigor do Decreto-Lei nº
404/93, foram de novo manifestadas dúvidas de constitucionalidade, nos planos
orgânico e material, quanto a esse diploma. A acusação mais frequente de
inconstitucionalidade prende-se com a intervenção do secretário judicial na
aposição da fórmula executória, intervenção que usurparia a função judicial. Por
outro lado, a concessão individualizada de exequibilidade a uma pretensão do
credor, permitindo logo a instauração da acção executiva e a eventual penhora de
bens do devedor, violaria o direito de defesa dos cidadãos e, nessa medida, o
art. 20º da Lei Fundamental. No plano orgânico, a inconstitucionalidade
decorreria do facto de o Governo legislar sobre direitos, liberdades e
garantias, sem a necessária credencial parlamentar ou da violação da alínea q)
do nº 1 do art. 168º da Constituição (cfr. J Lebre de Freitas e J. A. Pires de
Lima, Injunção e Inconstitucionalidade, in semanário Expresso, edição de 15 de
Janeiro de 1994; J. A. Lopes dos Reis, Nota sobre a Injunção, in Boletim da
Ordem dos Advogados, nº 1/94, pág. 24).
12. É, pois, altura de analisar as questões de
constitucionalidade suscitadas no despacho recorrido.
Antes, porém, desde logo se afastarão as questões
de inconstitucionalidade orgânica suscitadas nos escritos acima referidos e que
a recorrente sustenta nos autos.
A criação de um procedimento destinado a conferir
exequibilidade a certas pretensões creditícias cíveis é matéria de natureza
processual civil, sendo o Governo competente para legislar em tal domínio. Não
pode falar-se em matéria de organização e competência dos tribunais, visto que
se trata de organizar uma fase pré-processual de notificação que pode levar à
criação de um título executivo especial, baseado na confissão ficta do
notificado. No caso concreto, porém, nem houve criação desse título executivo.
De facto, só no processo do Tribunal
Constitucional e no processo criminal existe uma reserva de competência
legislativa da Assembleia da República, absoluta no primeiro caso [art. 167º,
alínea c), da Constituição], e relativa no segundo [art. 168º, nº 1, alínea c)].
No que toca ao processo respeitante ao ilícito de mera ordenação social, apenas
o respectivo regime geral é de competência reservada relativa do mesmo órgão
parlamentar [art. 168º, nº 1, alínea d), da Lei Fundamental].
É, por isso, indiscutível a competência
legislativa do Governo para regular tal matéria, nos termos do art. 201º, nº 1,
alínea a), da Constituição.
Por outro lado, não pode dizer-se que se trate de
matéria de direitos, liberdades e garantias a concessão de exequibilidade a
certas pretensões creditícias baseadas na confissão ficta do devedor, sob pena
de se entender que qualquer solução processual de atribuição de efeitos
cominatórios à revelia de um demandado só pode ser criada pela Assembleia da
República ou pelo Governo, mediante autorização legislativa daquela Assembleia.
13. Violarão as normas do arts. 4º e 6º do
Decreto-Lei no 404/93 o disposto nos arts. 20º, 205º e 206º da Constituição,
como pretende a recorrente?
Se se pusesse em causa, no processo presente, a
formação de um título executivo que permitisse à sociedade requerente instaurar
execução para pagamento de quantia certa, poderia então pôr-se o problema de
natureza da intervenção do secretário judicial no procedimento, procurando-se
determinar, nomeadamente, qual a natureza jurídica do acto de aposição da
fórmula executória (art. 5º do diploma), a fim de averiguar se este último podia
ser qualificado como acto jurisdicional (condenação de preceito).
Simplesmente, como o secretário judicial se
limitou a ordenar a notificação da injunção (art. 4º do Decreto-Lei nº 404/93)
e, face à devolução da carta registada ao remetente, verificou a frustração da
diligência, determinou que o processo fosse apresentado à distribuição, não
ocorreu qualquer alteração relevante da tramitação prevista no CPC para o
processo declarativo comum na forma sumaríssima.
Ora, a apresentação do processo à distribuição
não pode qualificar-se como acto de natureza materialmente jurisdicional, que
caiba na competência do juiz (reserva do juiz - art. 205º da Constituição)
Tendo a empresa requerida deduzido oposição ao
processo de injunção, a apresentação à distribuição decorre directamente do
disposto na lei (arts. 6º, nº 2, do Decreto-Lei nº 404/93 e 211º, nº 1, alínea
a), do Código de Processo Civil). A admissão de um papel à distribuição é da
competência do secretário judicial, só devendo tal admissão ser decidida pelo
juiz se o distribuidor tiver dúvidas, submetendo essas dúvidas, com informação
escrita, ao mesmo magistrado (art. 213º, nº 2, do mesmo diploma).
Diferentemente do que se passava nos casos
apreciados pelo Tribunal Constitucional quanto a uma norma que atribuía
competência ao secretário judicial para 'proferir todas as decisões sobre
matéria de custas, nomeadamente sobre reclamações de contas' - situação
apreciada entre outros, pelo Acórdão nº 182/90 atrás citado - o nº 2 do art. 6º
do Decreto-Lei nº 404/93, no segmento aplicado, não implica qualquer composição
de conflitos de interesses entre requerente e requerida, a qual será feita pelo
juiz, tendo em conta a dedução da opinião pela requerida (art. 794º, nº 1, do
Código de Processo Civil, aplicável ex vi daquele nº 2 do art. 6º do Decreto-Lei
nº 404/93), seguindo-se tramitação estabelecida para o processo sumaríssimo. Não
ocorreu, no caso sub judicio, a resolução de qualquer questão jurídica de acordo
com normas jurídicas, que implicasse a intervenção de um órgão independente e
imparcial.
14. Tão-pouco se verificam as apontadas violações
do princípio constitucional de separação de poderes (o secretário judicial
ainda se integra funcionalmente no âmbito dos tribunais), da violação do
princípio do juiz legal (sendo certo que não se trata da matéria criminal), ou
da violação do princípio do contraditório (a notificação postal da ora
recorrente corresponde à citação postal prevista como regra para as pessoas
colectivas - arts. 228º-A e 238º-A do Código de Processo Civil), não se vendo
como se pode afirmar que haja violação da igualdade processual das partes e do
princípio da conformação do processo segundo os direitos fundamentais.
O que é certo é que a ora recorrente se defendeu
com toda a amplitude, teve direito a um julgamento feito por um juiz imparcial,
vindo a condenação a ser proferida por este último.
Não se vê em que medida pode entender-se que as
normas impugnadas e que constituem objecto do recurso ofendem a dignidade da
pessoa humana, o direito ao bom nome, nomeadamente o nome comercial, e as
garantias de defesa!
15. Não se mostram, assim, violadas as normas dos
arts. 20º, 168º, nº 1, alíneas b) ou q), e 205º, nºs 1 e 2, da Constituição.
III
16. Nestes termos e pelos fundamentos referidos,
decide o Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso, confirmando a
sentença recorrida.
Lisboa, 28 de Setembro de 1995
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
Luís Nunes de Almeida