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Processo: n.º 152/95.
Plenário
Relator: Conselheiro Vítor Nunes de Almeida.
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I — Relatório
1 — O Procurador-Geral Adjunto em exercício no Tribunal Constitucional, como
representante do Ministério Público, veio requerer, invocando os artigos 281.º,
n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e 82.º da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da
inconstitucionalidade da norma do artigo 132.º do Código Penal e Disciplinar da
Marinha Mercante aprovado pelo Decreto-Lei n.º 33 252, de 20 de Novembro de
1943, na parte em que estabelece a punição como desertor daquele que, sendo
tripulante de um navio sem motivo justificado, o deixar partir para o mar sem
embarcar, quando tal tripulante não desempenha funções directamente relacionadas
com a manutenção, segurança e equipagem do navio.
Fundamenta o pedido no facto de tal norma ter sido «explicitamente julgada
inconstitucional, por violação dos princípios da justiça e da proporcionalidade,
ínsitos na ideia de Estado de direito democrático, através dos Acórdãos n.os
634/93, de 4 de Novembro [publicado no Diário da República, II Série, n.º 76, de
31 de Março de 1994, p. 2952 (20)], 650/93, de 4 de Novembro [publicado no
Diário da República, II Série, n.º 76, de 31 de Março de 1994 (e não 4 de
Novembro, como por mero lapso se refere), p. 2952 (27)], e 141/95, de 15 de
Março», este ainda inédito, tendo sido juntas cópias de tais acórdãos.
Notificados, nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei
do Tribunal Constitucional, os Senhores Presidente da Assembleia da República e
Primeiro-Ministro, apenas respondeu o Presidente da Assembleia da República,
oferecendo o merecimento dos autos.
Cumpre, pois, apreciar e decidir.
II — Fundamentos
2 — O Decreto-Lei n.º 33 252, de 20 de Novembro de 1943, aprovou e mandou pôr em
execução, pelo seu artigo 1.º, o Código Penal e Disciplinar da Marinha Mercante
(adiante, CPDMM), revogando através do seu artigo 3.º o anterior CPDMM, aprovado
por Carta de Lei de 4 de Julho de 1864 e toda a legislação que o tinha alterado
ou completado.
O CPDMM aprovado em 1943 veio a sofrer uma alteração legislativa em 1975,
através do Decreto-Lei n.º 678/75, de 6 de Dezembro, que eliminou as penas de
prisão disciplinar.
O artigo 132.º do CPDMM, inserido na Secção I («Da deserção»), do Capítulo II
(«Dos crimes em especial»), do Título II («Dos crimes marítimos»), estabelece o
seguinte:
É considerado desertor o tripulante que, não havendo motivo justificado, deixar
partir o navio para o mar sem embarcar e, bem assim, aquele que sem autorização
superior abandonar o serviço de bordo durante cinco ou mais dias consecutivos.
O pedido formulado pelo Procurador-Geral Adjunto visa apenas um segmento da
norma atrás transcrita, que corresponde grosso modo à primeira parte do
respectivo comando normativo, mas modalizado através de uma importante
especificação: o pedido vem restringido aos tripulantes que não desempenhem
funções directamente relacionadas com a manutenção, segurança e equipagem do
navio.
Importa ainda referir que o pedido também não abrange a norma do artigo 133.º do
CPDMM, que estabelece a punição a aplicar ao tripulante que vier a desertar, ou
melhor, que vier a ser considerado desertor e que previa duas diferentes
molduras penais consoante o tripulante desertasse no porto de partida (prisão
simples até um ano) ou em outro qualquer lugar (prisão simples até dois anos).
3 — Dos acórdãos em que vem fundamentado o pedido interessa particularmente
considerar os n.os 634 e 650 de 1993, porquanto o Acórdão n.º 141/95 se limita a
remeter para «as razões» dos outros arestos.
Embora não mencionado no pedido por lhe ser posterior, não poderá deixar de se
referir que, sobre a norma do artigo 132.º do CPDMM, com uma fundamentação
essencialmente idêntica à dos acórdãos invocados no pedido, veio a ser
proferido, pela 1.ª secção do Tribunal, o Acórdão n.º 211/95, de 20 de Abril de
1995 (publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Junho de 1995), em
que a decisão proferida assentou nos «princípios da subsidiariedade do direito
penal e da necessidade da pena (artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da Constituição)».
4 — Os pedidos de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória
geral formulados ao abrigo do preceituado no n.º 3 do artigo 281.º da
Constituição — como é o caso dos autos — assentes em juízos concretos de
inconstitucionalidade desencadeiam um processo de fiscalização abstracta
sucessiva da conformidade constitucional da norma questionada, em que a
declaração de tal (des)conformidade não é automática nem obrigatória, antes
postulando uma nova apreciação da questão pelo Tribunal, devendo a declaração de
inconstitucionalidade — se for nesse sentido a decisão — limitar-se à norma ou
normas questionadas com o âmbito que decorre das respectivas decisões concretas.
Tais decisões julgaram inconstitucional a norma do artigo 132.º do CPDMM, na
parte em que estabelece a punição como desertor daquele que, sendo tripulante de
um navio e sem motivo justificado, o deixe partir para o mar sem embarcar,
quando tal tripulante não desempenhe funções directamente relacionadas com a
manutenção, segurança e equipagem do navio, fundando-se tais decisões na
violação dos princípios constitucionais da justiça e da proporcionalidade,
decorrentes da ideia de Estado de direito democrático.
Escreveu-se, com efeito, no Acórdão n.º 634/93, depois de se terem abordado duas
outras perspectivas de apreciação da norma em causa face à factualidade
constante dos autos, designadamente, a da violação do princípio da igualdade de
tratamento entre o pessoal de terra e o pessoal do mar e a da violação do
direito de escolher livremente a profissão, derivada do facto de a norma em
causa criar eventualmente uma situação de trabalho obrigatório, perspectivas
estas que não foram consideradas decisivas, o seguinte:
6 — Seja como for, uma abordagem mais incisiva da matéria em causa é, porém, a
que pode ser feita à luz do princípio da subsidiariedade do direito penal (ou
princípio da máxima restrição das penas) que, como é sabido, limita a
intervenção da norma incriminadora aos casos em que não é possível, através de
outros meios jurídicos, obter os fins pretendidos pelo legislador.
É certo que o princípio da subsidiariedade do direito penal não resulta
expressamente das normas que correspondem à chamada «constituição penal»
(artigos 27.º e seguintes da Constituição). Todavia, ele não é mais do que uma
aplicação, ao direito penal e à política criminal, dos princípios
constitucionais da justiça e da proporcionalidade, este aflorado designadamente
no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, e ambos decorrentes, iniludivelmente, da
ideia de Estado de direito democrático, consignada no artigo 2.º da Lei
Fundamental.
Segundo Jescheck (Tratado de Derecho Penal — Parte General, trad., Bosch, 1986,
p. 34), o princípio da proporcionalidade dos meios (proibição do excesso),
também com consagração constitucional no direito alemão, refere-se ao conceito
de Estado de direito material e foi introduzido expressamente no direito
criminal como pressuposto de determinação das medidas penais. Deste princípio,
bem como dos da protecção da dignidade da pessoa humana e da protecção geral da
liberdade resulta a limitação do Direito Penal à intervenção necessária para
«assegurar a convivência humana na comunidade».
Como é sabido, entre nós, a consagração constitucional destes princípios não
merece contestação desde a revisão constitucional de 1982.
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa
Anotada, 1.º vol., p. 170), o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três
subprincípios: princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos,
liberdades e garantias devem revelar-se como um meio adequado para a prossecução
dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente
protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser
exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros
meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa
medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas
excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).
Ora, se parece controversa a afirmação de que a norma incriminadora em causa
viola o princípio da proporcionalidade na primeira destas decorrências, e se não
parece ainda totalmente líquido que o viola na segunda, já é indiscutível que o
viola na terceira.
Com efeito, ao tornar criminosa a conduta de um trabalhador de bordo cujas
funções não estão directa e normalmente relacionadas com a segurança do navio,
mas apenas têm a ver com a actividade económica através dele exercida, a norma
em causa revela-se excessiva.
É que, como afirma o Prof. Figueiredo Dias, «num Estado de direito material, de
raiz social e democrática, o direito penal só pode e deve intervir onde se
verifiquem lesões insuportáveis das condições comunitárias essenciais de livre
desenvolvimento e realização da personalidade de cada homem» («O sistema
sancionatório do Direito Penal Português no contexto dos modelos da política
criminal», Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, i, pp.
806-807). Daqui decorre, para o mesmo autor, que não devem constituir crimes —
ou, sequer, caber no objecto do direito penal — as condutas, entre outras, que,
«violando embora um bem jurídico, possam ser suficientemente contrariadas ou
controladas por meios não criminais de política social; com o que a necessidade
social se torna em critério decisivo de intervenção do direito penal: este, para
além de se limitar à tutela de bens jurídicos, só deve intervir como última
ratio da política social» («O Movimento da Descriminalização e o Ilícito de Mera
Ordenação Social», Jornadas de Direito Criminal — O Novo Código Penal Português
e Legislação Complementar, Centro de Estudos Judiciários, p. 323).
Pode, assim, reconhecer-se que haverá que pesar os diversos bens e valores em
causa para efectuar uma «ponderação de interesses segundo as circunstâncias do
caso concreto», para averiguar «se o sacrifício dos interesses individuais que a
ingerência comporta mantém uma relação razoável ou proporcionada com a
importância do interesse estatal que se trata de salvaguardar», já que «se o
sacrifício resulta excessivo a medida deverá ser considerada inadmissível, ainda
que satisfaça os restantes pressupostos e requisitos decorrentes do princípio de
proporcionalidade» (Nicolas Gonzalez-Cuellar Serrano, Proporcionalidad y
Derechos Fundamentales en el Proceso Penal, Colex, p. 225).
A este propósito, escreveu José de Sousa e Brito («A Lei Penal na Constituição»,
Estudos Sobre a Constituição, vol. 2.º, p. 218):
Entende-se que as sanções penais só se justificam quando forem necessárias, isto
é, indispensáveis tanto na sua existência como na sua medida, à conservação e à
paz da sociedade civil. Uma vez que as sanções penais se traduzem numa
limitação mais ou menos grave dos direitos individuais, o princípio restritivo
dirá que essa limitação será a menor que as necessidades da conservação e da paz
sociais consentirem. Haverá que adquirir em cada caso a convicção de que, se a
sanção fosse suprimida ou reduzida, a ordem social poderia ser posta em causa.
É evidente que o juízo sobre a necessidade do recurso aos meios penais cabe, em
primeira linha, ao legislador, ao qual se há-de reconhecer, também nesta
matéria, um largo âmbito de discricionariedade. A limitação da liberdade de
conformação legislativa, nestes casos, só pode, pois, ocorrer quando a punição
criminal se apresente como manifestamente excessiva.
In casu, a incriminação não é, claramente, necessária para assegurar a
navegabilidade da embarcação, tendo em conta as funções atribuídas ao arguido.
E, para permitir um regular desenvolvimento da actividade económica da pesca de
longo curso, configura-se como um recurso a meios desproporcionadamente gravosos
para a prossecução desse objectivo, só compreensível por se tratar de uma
disposição obsoleta, constante de um diploma pré-constitucional, elaborado à luz
de valores evidentemente contraditórios com os consignados na Constituição
vigente.
5 — No aresto acabado de transcrever, na parte com relevo para o caso, o juízo
que conduziu à censura de inconstitucionalidade foi predominantemente conduzido
à luz das exigências decorrentes do princípio da subsidiariedade do direito
penal dentro de um quadro que se caracteriza pela não proibição directa, por
parte da Constituição, da criminalização de condutas.
Ora, assentando o direito criminal de um Estado de direito democrático na
dignidade da pessoa humana e sendo a culpa entendida como fundamento legitimador
e limite ou, pelo menos, um dos fundamentos irrenunciáveis da aplicação de
qualquer pena (cfr. Figueiredo Dias, «Os novos recursos da política criminal»,
separata da Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, 1983, fls. 27), em qualquer
situação de interrogação sobre a qualificação de certa conduta como «crime», há
que averiguar da relação entre «a ordem axiológica constitucional e a ordem
legal dos bens jurídicos protegidos pelo direito penal», para poder responder à
questão de saber se existe uma correspondência legitimadora de tal qualificação
(princípio da congruência, que decorre do artigo 18.º, n.º 2, em conjugação com
o artigo 2.º, ambos da CRP).
O direito penal é inquestionavelmente um «direito de protecção de bens
jurídicos», e o recorte do respectivo âmbito material, isto é, a delimitação dos
comportamentos sociais que devem ter-se por merecedores de uma reacção criminal,
há-de assentar no princípio da necessidade.
Com efeito, o Estado de direito material só pode consentir a intervenção do
direito penal ali onde «se verifiquem lesões insuportáveis das condições
comunitárias essenciais do livre desenvolvimento da personalidade de cada homem»
na formulação de Figueiredo Dias transcrita do Acórdão n.º 634/93 ou seja, o
direito penal há-de limitar-se à protecção das condutas gravemente perturbadoras
da ordem social, que por isso afectem a vida em comunidade e que, para além
disso, tenham uma séria ressonância ética, não devendo a punição de tais
condutas ser vista num puro plano sociológico, mas antes ético-jurídico.
Ainda segundo Figueiredo Dias, «mesmo quando uma conduta viola um bem jurídico,
os instrumentos jurídico-penais devem ficar fora de questão sempre que a
violação possa ser suficientemente controlada ou contrariada por meios não
criminais de política social» (ibidem), pelo que, de entre o conjunto de medidas
legislativas a que é possível recorrer para a protecção de bens jurídicos, o
direito criminal não só deve ser o último recurso do legislador (princípio da
subsidariedade), como também, uma vez decidida a sua intervenção, deve ela ser
guiada pelo princípio da máxima restrição das penas.
6 — Como se referiu, o Acórdão n.º 634/93, fez radicar o juízo de
inconstitucionalidade nele vertido, primordialmente, nos princípios da
subsidiariedade do direito penal, da justiça e da proporcionalidade, este
aflorado no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, e todos ancorados na ideia de
Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição.
Pelo seu lado, a fundamentação constante do Acórdão n.º 211/95, da 1.ª secção,
vai radicar essencialmente no momento da ponderação das condutas merecedoras de
criminalização, como decorre do seguinte passo do acórdão:
O que justifica a inclusão de certas situações no direito penal é a subordinação
a uma lógica de estrita necessidade das restrições de direitos e interesses que
decorrem da aplicação de penas públicas (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição).
E é também ainda a censurabilidade imanente de certas condutas, isto é, prévia à
normativação jurídica, que as torna aptas a um juízo de censura pessoal.
Em suma, é, desde logo, e exigência de dignidade punitiva prévia das condutas,
enquanto expressão de uma elevada gravidade ética e merecimento da culpa (artigo
1.º da Constituição, do qual decorre a protecção da essencial dignidade da
pessoa humana), que se exprime no princípio constitucional da necessidade da
pena (e não só da subsidiariedade do direito penal e da máxima restrição das
penas que pressupõem apenas, em sentido estrito, a ineficácia de outro meio
jurídico), que é posta em causa pela norma incriminadora contida nos artigos
132.º e 133.º do CPDMM, pelo menos, na parte em que não há adstrição directa do
tripulante à manutenção, segurança e equipagem do navio.
De qualquer modo, é inegável que cabe ao legislador o juízo sobre a necessidade
de recurso aos meios penais, dispondo, nesta matéria, uma ampla margem de
liberdade, dado que inexiste na Constituição qualquer proibição de
criminalização. Porém, a criminalização de condutas deve restringir-se aos
comportamentos que violem bem jurídicos essenciais à vida em comunidade, devendo
a liberdade de conformação do legislador ser limitada sempre que a punição
criminal se apresente como manifestamente excessiva ou o legislador actue de
forma voluntarista ou arbitrária, ou ainda as sanções se mostrem
desproporcionadas ou desadequadas, isto é, não assegurem «a justa medida dos
meios (penais) e dos fins (das penas)», não se garantindo uma «adequada
proporção» entre as sanções e os factos que elas se destinam a punir.
Ora, a norma do artigo 132.º do CPDMM, no segmento em apreciação, ao estabelecer
a punição criminal, como desertor, do tripulante que, não desempenhando funções
directamente relacionadas com a manutenção, segurança e equipagem do navio, o
deixe partir para o mar sem motivo justificado, desde que tal comportamento não
ponha em causa a navegabilidade da embarcação, está a sancionar pela forma mais
grave uma actuação que não tem relação directa com o exercício da função
marítima e que não justifica o recurso a meios social e humanamente tão
gravosos, como é a prevista incriminação como desertor, susceptível de acarretar
uma pena de prisão até um ou dois anos (artigo 133.º do CPDMM).
A norma em apreciação consta de um diploma de 1943, uma época ainda dominada
pelo grande relevo atribuído ao serviço público de transportes marítimos, quer
de passageiros quer de mercadorias e em que tinha grande repercussão económica a
actividade pesqueira de alto mar ou ao largo, o que torna, de certo modo
compreensível a estatuição sancionatória nela contida.
Porém, tal compreensão não pode ir ao ponto de permitir que, face a um direito
penal de justiça, assente na dignidade da pessoa humana e estruturado nos
princípios da culpa (fundamento legitimador e limite das penas), da necessidade
(só devem ter dignidade penal os bens jurídicos comunitários cuja violação
atinja aspectos essenciais da vida em sociedade e alcancem elevada gravidade
ética), da subsidiariedade e da máxima restrição das penas (as sanções penais
hão-de ser sempre o último recurso das medidas legislativas para protecção e
defesa dos bens jurídicos), da proporcionalidade (deve ser garantida uma
adequada proporção entre as penas e os factos a que se aplicam), se mantenha
essa norma para punir criminalmente a conduta de um trabalhador de bordo cujas
funções não estão directa e normalmente ligadas com a segurança do navio, isto
é, não afectam bens jurídicos essenciais à vida em sociedade, designadamente,
não põem sequer em causa o valor de salvaguarda da vida humana no mar — valor
este sim merecedor de uma tutela mais atenta da ordem jurídica, ou seja, se
mantenha tal norma apenas para defender o exercício da actividade económica
desenvolvida a bordo.
Tem de se reconhecer que se trata de um meio excessivo, desproporcionado para
realizar tal finalidade, pelo que se conclui que a norma do artigo 132.º do
CPDMM, ao não respeitar o princípio da subsidiariedade do direito penal e da
necessidade da pena, viola os princípios constitucionais da justiça e da
proporcionalidade decorrentes da ideia de Estado de direito democrático (artigos
18.º, n.º 2, e 2.º da Constituição).
III — Decisão
O Tribunal Constitucional, na sequência do exposto, decide declarar, com força
obrigatória geral, por violação dos artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da Constituição
da República Portuguesa, a inconstitucionalidade da norma do artigo 132.º do
Código Penal e Disciplinar da Marinha Mercante, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38
252, de 20 de Novembro de 1943, na parte em que estabelece a punição daquele
que, sendo tripulante de um navio e sem motivo justificado, o deixe partir para
o mar sem embarcar, quando tal tripulante não desempenhe funções directamente
relacionadas com a manutenção, segurança e equipagem do mesmo navio.
Lisboa, 4 de Outubro de 1995. — Vítor Nunes de Almeida — Guilherme da Fonseca —
Armindo Ribeiro Mendes — Fernando Alves Correia — Antero Alves Monteiro Diniz —
Messias Bento — Maria Fernanda Palma — José de Sousa e Brito — Alberto Tavares
da Costa — Luís Nunes de Almeida — Bravo Serra (vencido, pelo essencial das
razões jurídicas que utilizei na declaração de voto que apus ao Acórdão n.º
634/93) — José Manuel Cardoso da Costa.
(1) - Acórdão publicado no Diário da República, I Série-A, de 10 de Novembro de
1995.